28 de abril de 2025

Análises

Abril é o mais cruel dos meses

Com o governo Trump mantendo até agora suas tarifas altíssimas contra Pequim, o mundo inteiro enfrenta a perspectiva de uma guerra econômica entre os EUA e a China e a desintegração das cadeias de abastecimento globais.

Há mais de uma década, investir nos EUA tem sido uma boa aposta. A indústria tecnológica americana, empresas altamente lucrativas, consumidores insaciáveis e uma política fiscal favorável ao crescimento tornaram o país uma opção muito atraente e contribuíram para a narrativa de que sua economia é inabalável. Isso tem sido chamado de “excepcionalismo comercial dos EUA”, fenômeno que parece ter chegado a um repentino fim.

O aumento dos rendimentos dos títulos soberanos de um país enquanto sua moeda se enfraquece é um padrão raramente observado fora dos mercados emergentes.

Abril foi o mês mais cruel. Na sequência dos anúncios intermitentes de Trump sobre tarifas, além da erosão geral do Estado de Direito no país, os investidores ficaram realmente assustados. Em episódios anteriores de turbulência no mercado, o porto seguro dos títulos do Tesouro americano foi o destino de investidores que fugiram de ativos “de risco”. Agora, os investidores se desfizeram das ações de empresas americanas em um ritmo recorde e, em uma reviravolta dramática, em meados de abril, os rendimentos do Tesouro aumentaram (em outras palavras, os títulos soberanos dos EUA foram vendidos) e o dólar enfraqueceu simultaneamente. Essa combinação de enfraquecimento da moeda e dos títulos soberanos implica uma falta de confiança raramente vista em economias desenvolvidas—o desastroso “mini-orçamento” de Liz Truss em seu breve mandato como primeira-ministra do Reino Unido é uma exceção—, muito menos no país emissor da moeda de reserva mundial. Os títulos “seguros” dos EUA seguem realmente seguros sob um rei louco?

A independência do Federal Reserve é crucial para as suposições do mercado sobre a estabilidade americana. Quando Trump ameaçou “demitir” o presidente do Fed, Jay Powell, os mercados reagiram violentamente. A ameaça foi retirada, mas Trump tem opinado desde então que as taxas de juros devem ser reduzidas. Além disso, a prerrogativa de nomeação por Trump de um novo presidente quando o mandato de Powell terminar, em maio de 2026, significa que as preocupações com a independência do Fed persistirão. Como Larry Summers disse ao Wall Street Journal, intimidar o Fed não altera as taxas, mas deixa os mercados “nervosos, o que significa taxas mais altas no longo prazo”.

Com o governo Trump mantendo até agora suas tarifas altíssimas contra Pequim, o mundo inteiro enfrenta a perspectiva de uma guerra econômica entre os EUA e a China e a desintegração das cadeias globais de abastecimento. Desacoplamento é um termo impróprio e banal. Como escreveu Isabella Weber, a expressão sugere um processo como “desacoplar dois vagões de trem: limpo e simples”. Na verdade, “é mais como arrancar órgãos de um corpo vivo”. Tal evento, se realmente ocorrer, será catastrófico para a saúde da economia global, prejudicando os norte-americanos, hostilizando aliados e retardando a estabilização climática planetária.

Uma série de fatores, em grande parte controlados pela política instável da Casa Branca, estão aumentando as chances de uma recessão nos EUA.
Fonte: Apollo

Hegemonia

As afirmações sobre o fim da hegemonia estadunidense não são novas, mas é novidade a própria Casa Branca declarar que não será mais uma parceira confiável em matéria de segurança, comércio ou emissão da moeda-reserva.

Não há nenhum hegemon substituto à espera para preencher o vazio deixado pelos Estados Unidos nos assuntos globais. E definitivamente não há um substituto óbvio para o dólar. Como observa Dario Perkins, da TS Lombard, a diversificação e a desdolarização marginais não significam o fim do status do dólar como moeda-reserva. O dólar americano “tem poderosos efeitos de rede”. O comércio continuará sendo faturado na moeda, “principalmente porque é apoiado por mercados profundos de financiamento em dólares”.

O sistema foi construído pelos EUA para atender aos seus próprios interesses e crenças. “O arquiteto, o mestre planejador, o desenvolvedor do sistema multilateral de integração econômica baseado em regras”, como disse o ministro das Relações Exteriores de Cingapura, Vivian Balakrishnan, “decidiu que agora precisa se engajar na demolição total do mesmo sistema que criou”.

Os países e os investidores não estão apenas respondendo aos impulsos dramáticos e caóticos da Casa Branca de Trump, mas também tomando medidas para reduzir a dependência em relação aos EUA nos próximos anos. Nos anos 2020, essas medidas podem se basear no ressurgimento da política industrial, do intervencionismo econômico e de uma repulsa mais ampla ao tipo de globalização liberal que prevaleceu desde a Segunda Guerra Mundial. O neomercantilismo—definido por Eric Helleiner como a “crença na necessidade do protecionismo comercial estratégico e outras formas de ativismo econômico governamental para promover a riqueza e o poder do Estado na era pós-smithiana”—está de volta, e os Estados estão remodelando a ordem global.

Fonte: Bridgewater

O G20 responde

Os países do G7 e do G20 estão tomando medidas de capitalização e de proteção contra uma mudança fundamental no poder dos Estados Unidos. Estão fortalecendo suas economias domésticas com financiamento do déficit e direcionando investimentos para os setores verde, de defesa e digital.

A monumental mudança na política fiscal alemã permitirá agora investimentos em clima, defesa e, se as promessas forem cumpridas, infraestrutura social. A provisão permitiu mais de 100 bilhões de euros a nível da União Europeia para apoiar a manufatura limpa, ao mesmo tempo em que a Comissão apresentou uma proposta para investir 800 bilhões de euros em gastos comuns com defesa.

No Canadá, talvez o maior antagonista entre os aliados dos Estados Unidos, Mark Carney fez campanha com uma plataforma de fortalecimento e segurança e prometeu aumentar ampliar a defesa e a manufatura verde. Ele pretende colaborar com a Europa em matéria de segurança e unificar um mercado interno mais amplo, flexibilizando as regras comerciais entre as províncias canadenses.

À medida que as tensões entre os EUA e a China se aceleraram durante o primeiro mandato de Trump, as potências médias emergentes começaram a usar o não alinhamento como moeda de troca para a modernização industrial e para garantir melhores acordos comerciais.

Desde 2020, grandes países em desenvolvimento têm lançado políticas industriais para fortalecer, tornar mais ecológicas e modernizar suas economias. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva lançou a Nova Indústria Brasil para alavancar oportunidades de manufatura com a matriz elétrica amplamente limpa e os recursos naturais do país. Junto com outros países latino-americanos, o Brasil defende o argumento do “powershoring” para atrair indústrias estrangeiras e nacionais, posicionando-se como produtor de bens de capital intensivo em energia em todos os setores, como refino de metais e fabricação de máquinas para as cadeias de suprimentos de energia eólica e baterias. A presidente do México, Claudia Sheinbaum, especialista em sistemas energéticos, anunciou e financiou o Plano México para investimentos estratégicos com metas de desenvolvimento sustentável e conteúdo nacional como resposta às tarifas dos EUA.

Presidenta Claudia Sheinbaum: “O Plano México é o caminho que, tenho certeza, nos levará a um México com mais empregos bem remunerados, com menos pobreza e desigualdade, com mais investimento e produção, mais inovação, com uma pegada de carbono menor, que respeita o meio ambiente e aumenta nossa autossuficiência e soberania”.

O resto do mundo

Em outros lugares, os governos estão descobrindo que têm menos margem de manobra. No Sudeste Asiático, ministros se esforçam para apaziguar a Casa Branca e, ao mesmo tempo, manter relações com seu parceiro econômico mais importante: a China. O Vietnã, que se beneficiou do jogo de “gato e rato” de contornar as tarifas sobre as exportações chinesas para os EUA, está reprimindo o transporte de mercadorias, ao mesmo tempo em que enfatiza sua estreita relação com os EUA. O Camboja está tentando seguir uma linha semelhante. O delicado equilíbrio que os vizinhos da China têm mantido para preservar as garantias de segurança dos EUA, já enfraquecidas na última década, se sustenta agora sobre bases extremamente precárias.

Mas, para os países de baixa renda e altamente endividados—aqueles que mais estão sujeitos à subordinação financeira internacional—, as opções são ainda mais difíceis. Não supreende que tenham imediatamente procurado apaziguar a Casa Branca com promessas de importar mais produtos dos EUA em troca da redução de tarifas. Uma semana após o “dia da libertação”, a Casa Branca informou que mais de cinquenta países haviam solicitaram negociações sobre tarifas.

Fonte: FMI

Se esses países serão de fato ouvidos pela Casa Branca é outra história. A maior indústria empregadora do Lesoto é a têxtil, e seu maior mercado de exportação é os EUA. Quando o prazo de 90 dias anunciado por Trump expirar, em meados de junho, o pequeno reino sem litoral enfrentará tarifas de 50%. O ministro do Comércio do Lesoto, Mokhethi Shelile, disse à emissora sul-africana SABC News que não sabia ao certo o que iria acontecer. “Não tive uma boa experiência em tentar marcar reuniões”, afirmou. É possível que “após três meses, nem sequer tenhamos conseguido sentar com o governo norte-americano para negociar”.

O ministro da Agricultura da Costa do Marfim, Kobenan Kouassi Adjoumani, não mencionou apaziguamento ou retaliação, mas destacou que o custo das tarifas terá de ser repassado aos consumidores. Ele também expressou esperança de que o fortalecimento dos laços com a Europa possa ajudar a compensar as tarifas de 21% sobre suas exportações de cacau.

Pequim

Enquanto isso, a China aprovou um aumento de 7,2% nos gastos com defesa para “proteger firmemente” a segurança nacional. A apresentação, em janeiro, pelo DeepSeek, de um supermodelo de linguagem (sem propriedade intelectual) já ameaçava a suposta predominância dos Estados Unidos nesse campo; agora, a perspectiva de mais tecnologia e inovação chinesas impulsionando o crescimento faz com que os EUA pareçam ainda mais vulneráveis.

Mas a China não está se preparando para substituir o papel dos EUA no cenário mundial. O governo central chinês tem suas próprias maneiras de construir poder estratégico. O presidente Xi traçou uma agenda de oito pontos destinada a apoiar as economias em desenvolvimento do Sul global, que vai desde a cooperação científica com o Brasil e com nações africanas até a redução das barreiras comerciais para países menos desenvolvidos. No entanto, embora a China tenha entrado em cena para preencher algumas das lacunas deixadas pela saída repentina dos EUA dos programas globais de saúde e desenvolvimento da USAID, vem atuando em uma escala muito menor. O governo central não demonstrou nenhuma intenção de aumentar o tipo de financiamento externo que os EUA e outros países do G7 fornecem, nem de se tornar um verdadeiro emissor de moeda-reserva.

Reorientação diplomática

Em resposta aos recentes acontecimentos, foram lançadas várias alianças e investimentos que ignoram os EUA, incluindo uma proposta para tornar mais ecológico o maior bloco comercial do mundo, a Parceria Econômica Regional Abrangente, e o primeiro diálogo econômico em cinco anos entre seus principais membros, China, Japão e Coreia do Sul. A Unão Europeia quer fortalecer e tornar mais ecológicos seus acordos comerciais com o México, Canadá e Brasil, e está em contato com os Emirados Árabes Unidos para firmar um novo acordo de livre comércio. Uma aliança entre os países da ASEAN e o Conselho de Cooperação do Golfo será discutida pelos chefes de Estado de Cingapura, Arábia Saudita e Indonésia.

Nas relações internacionais, no comércio, na segurança e nos mercados de capitais, os temas são os mesmos: em vez de décadas de dependência dos EUA e de seus ativos, o resto do mundo agora busca diversificar, descarbonizar, defender e desdolarizar.

Não está claro como uma ordem global unipolar liderada pelos EUA poderia ser reparada. Reformas em instituições como o Banco Mundial e o FMI fracassaram mas, mesmo com a cooperação dos EUA, qualquer mudança na arquitetura formal exigiria novos níveis de confiança e compromisso entre a Europa e a China, em particular, e com outros países e blocos poderosos, incluindo Japão, Brasil e os países do Conselho de Cooperação do Golfo.

O Brasil e a África do Sul estão liderando os esforços diplomáticos por meio de suas presidências do BRICS, da COP30 e do G20 em 2025. A discussão sobre uma nova arquitetura comercial e financeira, capaz de proporcionar espaço político para buscar uma transformação estrutural verde, está agora se acelerando. Os países em desenvolvimento não estão passivos na policrise, mas tentando ativamente lutar pelo controle de seus destinos. Com Trump destruindo a ordem mundial, repentinamente há mais espaço para esses países trabalharem com a China, a Europa e o Leste Asiático.

As coisas mudaram para sempre— mesmo que todas as tarifas de Trump sejam revogadas amanhã e mesmo que os republicanos entrem em declínio político em 2028. As conexões causais entre desdolarização, diversificação e descarbonização permanecem obscuras. Mas os Estados são atores estratégicos que não vão esperar pela certeza antes de agir para equilibrar a hostilidade de Washington, proteger as instituições multilaterais que apoiam seus modelos de crescimento e investir de forma anticíclica em caso de recessão global. Os EUA estão ficando mais pobres e mais fracos à medida que desmantelam o próprio sistema que construíram. Agora, isolados em um continente banhado por combustíveis fósseis, a questão é se eles ficarão observando em silêncio enquanto outros sobem em direção às alturas solares ou se terão o poder de esmagar a primavera.

Tradução: Hugo Fanton

The Polycrisis é uma publicação com foco em macroeconomia, segurança energética e geopolítica.

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