8 de julho de 2025

Análises

Tecnolatinas

Big techs e oligopólios tecnológicos globais

Na última década, o surgimento expressivo de novas empresas de tecnologia focadas no consumidor na América Latina mudou a forma como as pessoas interagem com os setores bancário, varejista e de serviços. As “tecnolatinas”, como ficaram conhecidas, se consolidaram como empreendimentos lucrativos e com boas perspectivas de crescimento. A lista é grande, mas entre as principais companhias estão Mercado Livre (MeLi), maior plataforma digital da América Latina e um dos maiores marketplaces da região, com capitalização de mercado de US$ 50 bilhões; Magazine Luiza (Magalu), tradicional varejista brasileira que vem se transformando em uma empresa cada vez mais digitalizada, avaliada em US$ 25 bilhões; e Nubank, maior banco digital da América Latina, com impressionantes 70 milhões de clientes.

No entanto, apesar do expressivo crescimento de mercado, as tecnolatinas ainda dependem fortemente de infraestruturais digitais pertencentes e operadas por gigantes como Google, Amazon e Alibaba. As empresas que produzem essas tecnologias dominantes, quase sempre sediadas nos Estados Unidos ou na China, centralizam ferramentas de processamento e armazenamento de dados essenciais ao funcionamento de empreendimentos regionais, criando profundas assimetrias tecnológicas e de mercado que, em última instância, reproduzem antigos desequilíbrios econômicos entre Norte e Sul.

A ascensão das tecnolatinas e seus vínculos com essas gigantes tecnológicas são resultado das transformações e crises econômicas das duas últimas décadas. No começo do século XXI, à medida que a exploração de dados se tornou uma fonte de lucros crescentes e sustentados, os investimentos se direcionaram para os arriscados, mas rentáveis, setores da grande tecnologia. Ativos intangíveis ganharam importância e o controle da informação e do conhecimento se tornou cada vez mais decisivo para a apropriação de rendas.1Haskel, J., and Westlake, S. 2024. Capitalismo sem capital: a ascensão da economia intangível. Rio de Janeiro: Alta Books. O domínio persistente das big techs em todo o mundo levou à consolidação de um oligopólio tecnológico global, fazendo com que o crescimento do mercado no Sul global reforçasse o modelo de acumulação de capital do Norte. 

Oligopólio tecnológico global

Nos últimos vinte e cinco anos, as big techs cresceram exponencialmente, galgando posições estratégicas na economia global. Lideradas por um seleto grupo de empresas estadunidenses e chinesas—Google, Amazon, Meta, Apple, Microsoft, Alibaba, Tencent e Huawei—, as big techs dominaram segmentos estratégicos como computação em nuvem, big data, inteligência artificial e conectividade. Se algumas delas já eram campeãs nacionais e regionais em seus respectivos segmentos, o novo regime de acumulação global amplificou seu sucesso para muito além das fronteiras de origem. O Global 2000 da Forbes demonstra, desde 2010, o processo de consolidação mundial dessas empresas.

Tabela 1. Posição de empresas selecionadas no Forbes Global 2000
Empresa201020152020202220232024
Google1203913**11710
Amazon315458226366
MetaS/D***28039343124
Apple7512971012
Microsoft492513**1298
Alibaba162126931335441
Tencent107330450293538
Fonte: elaboração própria com dados da Forbes Global 2000.
*O cálculo do índice é realizado anualmente no mês de abril.
**Google e Microsoft compartilharam o 13º lugar em 2020.
***Sem dados: a empresa não figurava entre as maiores 2000 do mundo.

Em diversas regiões do planeta, as big techs administram poderosos data centers destinados ao armazenamento e gerenciamento de imensos volumes de dados (próprios e alheios) e à prestação de serviços de processamento a terceiros. Elas operam com três modelos de negócio principais: desenvolvimento de softwares utilizados em diferentes plataformas tecnológicas, fabricação de dispositivos equipados com software próprio ou de terceiros e fornecimento de infraestruturas de rede. Investimentos pesados em pesquisa e desenvolvimento, aquisições estratégicas e ativos intangíveis—algoritmos avançados, big data e redes físicas, como cabos submarinos de internet—foram chave para a expansão mundial.2Mais informações sobre o modelo de negócios de cada uma das gigantes tecnológicas em Borrastero e Juncos (2020, 2023), disponíveis em: https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/146560 e (<)a href='https://revistas.unc.edu.ar/index.php/DTI/article/view/40589'(>)https://revistas.unc.edu.ar/index.php/DTI/article/view/40589(<)/a(>), respectivamente.

Essas empresas operam em múltiplos e inter-relacionados segmentos do setor tecnológico, competindo e cooperando entre si e, por vezes, investindo em tecnologias comuns. Em 2015, por exemplo, o Google desenvolveu e doou à Fundação Linux o Kubernetes, sistema de código aberto para a automação de funções em contêineres tão eficiente para o desenvolvimento de aplicações em nuvem que, atualmente, é amplamente utilizado pela Amazon (AWS), Tencent Cloud, iCloud (Apple) e Azure (Microsoft). Por facilitar essas interações, o software se tornou o padrão da indústria, conferindo ao Google uma vantagem comparativa que persiste até hoje.

O modelo de concorrência das gigantes tecnológicas, central para a nova lógica de monetização do capital digital, tem três características específicas. A primeira é a natureza simultaneamente colaborativa e competitiva: ao passo que competem entre si, essas empresas também colaboram em alguns aspectos, como padronização tecnológica, interoperabilidade e até mesmo conluio.3Uma investigação do Congresso dos EUa descobriu que, no final de 2016, a Apple havia negociado um acordo com a Amazon sobre as comissões devidas pela utilização do serviço Prime Video. Como resultado, a Amazon pagaria somente 15% de comissão pelos clientes que acessassem o Prime Video por meio de aplicativos da Apple. O valor de base cobrado pela Apple de outras empresas era 30%. Ver: Borrastero, C. e Juncos, I. (2023). (<)em(>)El Oligopolio Tecnológico Global y la nueva periferización tecno-económica de América Latina(<)/em(>). Documentos de Trabajo e Investigación de la Facultad de Ciencias Económicas (UNC), 4(2023). A segunda é a tendência oligopolista, que permite às empresas a formação de um grupo com capacidades que se retroalimentam sem excluir a possibilidade de monopolização de alguns segmentos de mercado.4O próprio crescimento das empresas chinesas está marcado pela disputa geopolítica com os Estados Unidos, na qual as GAFAM (acrônimo para as cinco maiores empresas de tecnologia dos EUA, Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) participam ativamente.(<)br(>)Ver: Borrastero, C. e Juncos, I. (2024). (<)em(>)El Oligopolio Tecnológico Global, la periferia digital y América Latina(<)/em(>), Desenvolvimento Econômico, 64(243), pp. 110-136. A terceira, enfim, é o caráter híbrido, que envolve tecnologias físicas e digitais e forma ecossistemas cada vez mais integrados verticalmente.5Chama a atenção, por exemplo, o fato de que nenhuma empresa fora do oligopólio que possui cabos submarinos de internet. As gigantes tecnológicas também avançam em posições estratégicas no setor do 5G.(<)br(>)Ver: Borrastero, C. (2024). “Estado, empresas y factores geopolíticos en el sendero de desarrollo de las redes 5G en Argentina”, Estudos Sociais do Estado, 10(19), pp. 104–138. Em conjunto, esses atributos promoveram mudanças estruturais no sistema mundial de produção e inovação e consolidaram um oligopólio tecnológico global que reconfigurou a divisão internacional do trabalho.

Recentemente, o cabo submarino Firmina, do Google, ligou os Estados Unidos à Argentina. A Huawei detém quase metade das infraestruturas de 5G na América Latina. A presença das big techs nos mercados emergentes cresceu significativamente, fortalecendo seu controle de ativos essenciais para o desenvolvimento tecnológico e econômico. A dinâmica de mercado hiperconcentrada da economia digital orientada por dados gerou assimetrias de informação que aprofundam desequilíbrios de poder entre regiões, países e agentes.6UNCTAD (2021). Digital Economy Report 2021. Cross-border data flows and development: For whom the data flow. Disponível em: (<)a href='https://unctad.org/publication/digital-economy-report-2021'(>)https://unctad.org/publication/digital-economy-report-2021(<)/a(>). Na versão digitalizada da divisão internacional do trabalho, mecanismos de subordinação tecnológica controlados pelo centro do capitalismo reforçam, com novas formas de expropriação financeira baseadas no controle de dados, a tradicional exclusão digital da periferia. O domínio das big techs limita significativamente a autonomia tecnológica de regiões como a América Latina (um processo que contrasta com o registrado em certas partes da Ásia, nas quais a inserção na cadeia global de valor digital envolve desafios distintos). Como resultado, a América Latina enfrenta hoje uma dupla dependência tecnológica: dos Estados Unidos e da China. 

Essa dependência contribuiu para a consolidação de formas específicas de trabalho no setor tecnológico de países periféricos. Enquanto funções estratégicas são reservadas aos países centrais, gigantes tecnológicas tendem a concentrar tarefas operacionais de baixo valor agregado na América Latina. Até mesmo nas tecnolatinas, os cargos gerenciais costumam ser ocupados por ex-executivos de big techs sediadas no Norte. As históricas dinâmicas centro-periferia vêm sendo reconfiguradas pelos oligopólios tecnológicos.

Isso não significa, no entanto, que empresas nas margens do oligopólio tecnológico global sejam meras vítimas das desvantagens da subordinação. Há atores periféricos que, embora dependentes ferramentas de processamento e armazenamento de dados das big techs, se beneficiam de uma posição intermediária na cadeia global de valor por meio do desenvolvimento, ainda que em escala muito menor, de suas próprias tecnologias de ponta. Esses agentes, a exemplo das tecnolatinas, operam regionalmente sob uma lógica predatória de extração de valor bastante semelhante à das grandes empresas de tecnologia. 

As tecnolatinas

Há duas questões fundamentais para entender o papel da América Latina na nova configuração do mercado tecnológico global: como as big techs operam na região e quem são os players regionais bem-sucedidos. Apesar de estar nas margens do mapa da tecnologia global, a América Latina não é entendida como um pedaço de terra irrelevante, mas como um mercado a ser conquistado. As gigantes tecnológicas que atuam na região, portanto, competem e colaboram entre si da mesma forma como fazem no resto do mundo. 

Nos últimos anos, essas gigantes tecnológicas criaram subsidiárias na região com foco predominantemente comercial—vendas, entregas e atendimento ao cliente. O Google tem subsidiárias no Brasil, Argentina, México, Colômbia e Chile. A Microsoft também, na Argentina, Uruguai, Colômbia, Chile e Venezuela. Desde 2010, a AliExpress—divisão de entregas da Alibaba—abriu escritórios comerciais no Brasil, Chile, Colômbia e México, e a Alibaba vem expandindo rapidamente suas operações, principalmente no Brasil, fortalecendo seu papel como principal fornecedora de produtos chineses por meio de plataformas B2B e, cada vez mais, B2C. A Apple tem uma filial no Chile desde 2012 e a Amazon se consolidou como segundo maior marketplace da região, competindo com líderes locais do comércio eletrônico como Mercado Livre e Magazine Luiza.7Borrastero y Juncos (2024) “El Oligopolio Tecnológico Global, la periferia digital y América Latina”, disponible en (<)a href='https://revistas.ides.org.ar/desarrollo-economico/article/view/699/382'(>)https://revistas.ides.org.ar/desarrollo-economico/article/view/699/382(<)/a(>)

As big techs também investem fortemente em infraestrutura física. Em 2011, a Amazon instalou um grande centro de dados em São Paulo que, atualmente, fornece serviços essenciais para instituições públicas e unicórnios regionais como Rappi, Nubank e Mercado Livre. A Microsoft também abriu seu próprio centro de dados no Brasil para competir com a AWS e promove sua tecnologia de inteligência artificial por meio de parcerias com universidades e think tanks locais. 

A Huawei, por sua vez, adotou uma estratégia mais agressiva, inaugurando centros de dados em mercados menores, como o do Chile e o do Peru, países-chave para a Iniciativa Cinturão e Rota chinesa. Em sua estratégia de expansão mundial, a Huawei conta com intenso apoio diplomático do governo da China, o que contribuiu para a rápida expansão da empresa nos setores de telecomunicações e tecnologia 5G em países como Brasil, Argentina, Chile e Colômbia.

Outra área de concorrência relevante é a oferta de serviços financeiros digitais. A Tencent tem participação no Nubank, líder em serviços bancários digitais no Brasil, enquanto Google Pay, Apple Pay e WhatsApp Pay buscam aproveitar a baixa penetração bancária tradicional e as regulações menos rigorosas para conquistar mercados emergentes. Todos esses exemplos ilustram como o modelo de concorrência das big techs molda profundamente o cenário latino-americano.

O surgimento das tecnolatinas é resultado da disseminação de novos modelos de negócios do setor de tecnologia por todo o mundo. Três delas se destacam por terem desenvolvido estratégias de acumulação semelhantes às das big techs: Mercado Livre (MeLi), Magazine Luiza (Magalu) e Nubank. São empresas que, embora enfrentem limitações consideráveis em razão da dependência tecnológica das gigantes globais, conseguiram se estabelecer como campeãs regionais.

Tabela 2. Perfil das tecnolatinas selecionadas
EmpresaAtividade principalAno de criaçãoPaís de origem
Mercado LivreE-commerce
Fintech
1999Argentina
Magazine LuizaE-commerce1957/2016Brasil
NubankBanco digital
Fintech
2013Brasil
Fonte: elaboração própria.

Mercado Livre

O Mercado Livre, maior plataforma digital da América Latina atualmente, opera em 18 países. É também a empresa de tecnologia mais valiosa da região (atingiu uma capitalização de mercado de US$ 49,4 bilhões no final de 2022, depois de ultrapassar os US$ 100 bilhões em 2021). Durante a pandemia, foi a única latino-americana a figurar na lista das 100 empresas globais mais lucrativas do Financial Times. Seu modelo de negócio é uma cópia do Alibaba: oferece um mercado online para pequenos e médios produtores e comerciantes e um sistema digital de pagamento e crédito com características técnicas e operacionais idênticas às do Alipay e da Ant Financial, ambos de propriedade do grupo chinês. A escala de operação do MeLi, no entanto, é muito menor que a das gigantes globais: em 2019, suas vendas representaram 4% do total da Alibaba e 0,8% da Amazon e, no final de 2022, sua capitalização de mercado equivalia a, respectivamente, 21% e 3% do valor registrado por Alibaba e Amazon. 

Para o modelo de negócio do MeLi, não só os dados são centrais, mas seu processamento por meio de inteligência artificial também é fundamental. Isso é particularmente visível na divisão Mercado Pago, que utiliza essas ferramentas para otimizar o processo de classificação de risco no oferecimento de crédito. Fusões e aquisições também foram essenciais para a sua estratégia de crescimento. Em 2007, a empresa abriu o capital e passou a fazer parte da holding Meli Inc., tornando-se a primeira companhia argentina listada na NASDAQ. O aporte de capital vindo daí permitiu a rápida expansão regional do MeLi, que absorveu diversos concorrentes numa trajetória meteórica que a levou ao topo do comércio digital na América Latina.8As principais aquisições incluem sua principal concorrente regional em 2005 (deRemate.com), a Classified Media Group inc. (2008) e suas subsidiárias (tucarro.com, tumoto.com, tuinmueble.com, tulancha.com, tuavion.com), a Autoplaza (2011), a Neosur (2013) e a startup de comércio eletrônico do Vale do Silício dabee (2015). Mais recentemente, em 2021, a empresa adquiriu a Kangu Participações S.A. por US$ 26,5 milhões e a Redelcom S.A. por US$ 24,1 milhões. Em 2018, o MeLi já enviava 1 TB de dados por dia para a nuvem da Amazon. Seu investimento em pesquisa e desenvolvimento representou quase 10% do valor das vendas em 2019, cifra idêntica à da Alibaba e pouco menor que a da Amazon, que investiu 13%—ainda que, em termos absolutos, o volume de investimento do MeLi tenha sido muito inferior ao das gigantes globais, representando 4% do valor investido pela Alibaba e 0,6% do investido pela Amazon. Ao lado da estratégia de mercado, a rentabilidade do MeLi é apoiada pelo Estado argentino. Apesar de não ser uma empresa pequena ou média, foi incluída em diversos programas de incentivo à promoção da indústria de software e da economia do conhecimento nos anos de 2004, 2011 e 2019. Como resultado, o  MeLi pagou somente 30% das contribuições patronais e 40% do imposto de renda devidos por empresas de porte similar. 

A regulação financeira do Banco Central da Argentina também favoreceu a empresa: o MeLi é isento da obrigação de aplicar os saldos das carteiras digitais em títulos públicos e conseguiu contornar medidas de desconcentração que lhe seriam aplicáveis—na Argentina, entidades financeiras não podem operar fora de seu próprio setor, o que, em tese, obrigaria as divisões Mercado Livre e Mercado Crédito a se separarem. Por fim, o MeLi também recebeu prerrogativas da Administração Nacional da Seguridade Social para o pagamento de benefícios por meio da plataforma e firmou convênios de exclusividade com uma miríade de províncias do país.9Borrastero, C. y Juncos, I. (2024). El Oligopolio Tecnológico Global, la periferia digital y América Latina, (<)em(>)Desarrollo Económico(<)/em(>), 64(243), pp. 110-136

Magazine Luiza

Fundado em 1957, o Magazine Luiza (Magalu) é sediado na cidade de São Paulo, no Brasil. Originalmente uma varejista tradicional, em 2016 a empresa iniciou um processo de transformação digital focado em vendas online e distribuição logística avançada. Entre 2019 e 2021, dobrou suas vendas totais (de US$ 5,5 bilhões para US$ 10,7 bilhões) e registrou, no fim daquele ano, um valor de mercado de US$ 25,2 bilhões. Esse processo foi impulsionado principalmente pelas vendas digitais, que saltaram de US$ 2,38 bilhões em 2019 para US$ 7,65 bilhões em 2021.

A Magalu tem mais de 1.400 lojas físicas, 27 centros de distribuição e mais de 1.600 vendedores online. Até 2021, havia atendido 37 milhões de clientes no Brasil. As divisões Agência Magalu, implementada em mais de 400 lojas, e Magalu Entregas, responsável, em 2021, pelo envio de 80% das vendas realizadas por terceiros na plataforma da empresa, lideram operações logísticas de baixo custo e alta velocidade. Além do varejo e da logística, o Magazine Luiza criou sua própria fintech, a MagaluPay, que em dezembro de 2021 já tinha registrado a abertura de 4,8 milhões de contas e distribuído 7,2 milhões de cartões de crédito. A empresa ainda inaugurou a Magalu Ads, plataforma de publicidade digital que, em 2022, contabilizou mais de 1.500 anunciantes.

A Luizalabs, divisão tecnológica da Magalu, emprega mais de 1.800 engenheiros dedicados ao desenvolvimento de soluções baseadas em big data e machine learning aplicadas especialmente em logística, fintech e gestão de estoque. De acordo com os relatórios anuais da própria empresa, a Luizalabs é uma peça fundamental da sua estratégia de crescimento e lucratividade, fornecendo serviços de alta intensidade tecnológica e elevado valor agregado.

A trajetória da Magalu é marcada por fatores caraterísticos das tecnolatinas. Primeiro, assim como no caso do MeLi, a estratégia de crescimento da empresa incluiu significativas aquisições nos últimos anos. Em 2021, a Magalu adquiriu a KaBuM, líder em tecnologia e comércio digital de videogames, por US$ 670 milhões; a Hub Fintech, banco digital com mais de 25 milhões de usuários, por US$ 55,3 milhões; e a Vip Commerce, startup especializada na digitalização de supermercados, por US$ 12,3 milhões. Segundo, a Magalu também depende de tecnologias fornecidas pelo oligopólio global: foi com o uso do Google Cloud que a empresa conseguiu bater níveis recordes de tráfego em seu site. Terceiro, o Estado brasileiro foi essencial para o crescimento da empresa. Nesse caso, ao contrário do MeLi, o grosso do apoio estatal não foram incentivos diretos, mas regulamentações favoráveis e aprovações de aquisições estratégicas. Em 2021, o CADE teve um papel crucial na expansão da empresa ao aprovar a compra da fintech Hub Prepaid, permitindo à Magalu fortalecer sua presença no setor financeiro.10Bnamericas (2021). (<)em(>)Brasileña Magazine Luiza obtiene luz verde para adquirir fintech(<)/em(>). Disponível em: (<)a href='https://www.bnamericas.com/es/noticias/brasilena-magazine-luiza-obtiene-luz-verde-para-adquirir-fintech'(>)https://www.bnamericas.com/es/noticias/brasilena-magazine-luiza-obtiene-luz-verde-para-adquirir-fintech(<)/a(>). Ainda que não haja evidência de que tenha recebido subsídios estatais específicos, a empresa participou de projetos públicos de extrema relevância: durante a pandemia de Covid, por exemplo, quando a resposta do governo federal ainda era limitada, equipes da Magalu ajudaram a transportar vacinas para todo o Brasil.

Nubank

Em 2022, o Nubank, maior banco digital da América Latina, já tinha mais de 70 milhões de clientes brasileiros e uma avaliação de mercado de US$ 30,79 bilhões. Ainda que opere principalmente no Brasil, a empresa está presente também no México e na Colômbia e mantém um escritório em Berlim. O Nubank oferece todos os serviços típicos de um banco tradicional, mas sem agências físicas. Em 2021, arrecadou mais de US$ 2,6 bilhões com sua oferta pública inicial na Bolsa de Valores de Nova York. Entre seus investidores mais notáveis estão Warren Buffett, Tencent Holdings e Sequoia Capital.

A capacidade de armazenar e processar dados e o uso intensivo de inteligência artificial são elementos-chave do modelo de negócios data-driven do Nubank. A empresa conta com cerca de 1.000 engenheiros distribuídos em 75 equipes que trabalham em centros de tecnologia globais no Brasil, México, Alemanha, Estados Unidos, Argentina e Colômbia. Parte de seu quadro executivo é formado por ex-integrantes de empresas como Facebook, Google, Amazon e Alibaba. Entre os principais desenvolvimentos tecnológicos da empresa está o NuCore, plataforma bancária baseada em nuvem que opera com infraestrutura da Amazon Web Services.

Espelhando o caso das big techs e de outras líderes regionais, aquisições estratégias também foram essenciais para a expansão do Nubank. Entre elas, destacam-se a da Easynvest Companies, plataforma de investimentos brasileira com mais de 1,6 milhão de clientes adquirida em 2021 por US$ 451,5 milhões; a Olivia’s, empresa estadunidense com subsidiárias no Brasil especializada na aplicação de IA em bancos comerciais, com mais de 100 mil usuários em seu app, comprada em 2022 por US$ 72 milhões; e a Cognitec, desenvolvedora de tecnologias de reconhecimento facial que custou, em 2020, US$ 10,4 milhões. 

Regulações e políticas do Estado brasileiro, por sua vez, alternaram em apoiar e restringir a expansão do Nubank em diferentes momentos. Por um lado, a empresa estabeleceu parcerias com o governo federal e governos estaduais para facilitar o acesso de seus clientes a serviços públicos digitais. Entre os casos mais recentes estão a vinculação de contas de mais de 3,2 milhões de usuários ao portal gov.br, o que permitiu aos clientes do banco o acesso a mais de 4.200 serviços públicos digitais. O Nubank também assinou sete novos acordos para oferecer seu serviço de empréstimo consignado 100% digital (NuConsignado) aos três ramos das Forças Armadas brasileiras, bem como aos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e ao estado do Paraná.

Por outro lado, o Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional lançaram recentemente uma consulta pública para regulamentar o uso do termo “banco” no caso de instituições financeiras digitais. Se a regulamentação for aprovada, o Nubank terá duas opções: adquirir uma licença bancária, o que implicaria cumprir exigências mais rígidas de capital, solvência e governança (ou seja, aumentar custos operacionais) ou alterar sua identidade de marca. Em maio de 2025, com o objetivo de melhorar a relação com órgãos reguladores, o Nubank nomeou o ex-presidente do Banco Central Roberto Campos Neto como vice-presidente do conselho de administração e chefe global de políticas públicas. 

Periferia digital

A trajetória das gigantes tecnológicas globais e das recém surgidas tecnolatinas mostra como a expansão mundial de inovações tecnológicas, em vez de desafiar o domínio digital do Norte global, contribuiu para a formação de um oligopólio que reinventou a divisão internacional do trabalho. A dinâmica de concorrência das big techs do centro, ao passo que retroalimenta seu poder, também desloca o resto dos atores globais para uma posição cada vez mais periférica.

Esse processo aprofundou severamente a dependência tecnológica da América Latina. Independentemente da capacidade que têm as tecnolatinas de conquistar o monopólio ou a liderança de determinados segmentos de mercado, elas não só permanecem subordinadas às big techs como tendem a reproduzir seus modelos de negócio em nível regional. Como consequência, as tecnolatinas contribuem muito pouco, se algo, para a consolidação de fornecedores locais de sucesso—um fator essencial ao desenvolvimento produtivo endógeno. Em vez disso, além de absorverem potenciais fornecedores por meio de aquisições, sua escala de operação tende a bloquear o surgimento de novos players. O que permite às tecnolatinas garantir uma posição regional de liderança dentro do oligopólio tecnológico global é a manutenção de suas próprias relações assimétricas com atores locais—de governos a trabalhadores.

Os casos do Mercado Livre, Magazine Luiza e Nubank já ilustram como essa dinâmica se desenrola no curto prazo. Em poucos anos, essas empresas ampliaram sua participação de mercado, adquiriram concorrentes menores e garantiram tratamento estatal favorável. Mesmo assim, para operar, dependem de tecnologias fornecidas por empresas do centro do oligopólio tecnológico global—o que ocorre em paralelo à concorrência, no mercado regional, com subsidiárias das big techs. A dualidade dessa interação revela a natureza específica do modelo concorrencial de competição e colaboração nas margens do capitalismo: enquanto competem entre si, as tecnolatinas são todas dependentes das empresas do centro. Apesar do crescimento exponencial nos últimos anos, essas empresas não desafiam as tradicionais dinâmicas centro-periferia. Ao contrário: atualizam o lugar periférico da América Latina na nova ordem do capital.

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