Os primeiros 100 dias do segundo governo de Trump já indicaram que os próximos meses, talvez anos, serão marcados por ainda mais incertezas e crescente fragmentação política e econômica. As ameaças de Trump de utilizar tarifas e sanções comerciais para resolver disputas diplomáticas foram proferidas num cenário de contínua competição estratégica entre os Estados Unidos e a China—competição que o presidente prometeu intensificar. Mas, apesar das incertezas e da aversão do Republicano à ação climática, políticas industriais “verdes” provavelmente vieram para ficar, abrigadas sob um guarda-chuva mais amplo de incentivo industrial dos governos nacionais à construção de capacidade tecnológica.
Mas, ao mesmo tempo em que se tornaram um consenso em diferentes agendas governamentais, o conteúdo das políticas industriais verdes varia consideravelmente, especialmente no que diz respeito aos mecanismos de coordenação. No âmbito das ações domésticas unilaterais, a China é o exemplo mais extraordinário: seu investimento industrial em setores verdes foi tão significativo que provocou uma onda de novas políticas industriais no Ocidente. Pesquisadores do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington estimaram que, entre 2009 e 2023, a China concedeu mais de US$ 230 bilhões em incentivos somente para a produção de veículos elétricos, o que rendeu ao país uma posição de liderança mundial no setor. Além disso, o investimento industrial chinês se estende a muitos outros setores, verdes ou não.
Nos últimos anos, diversos esforços nacionais para apoiar setores verdes foram canalizados para a produção de energia limpa e o desenvolvimento tecnológico, em função tanto da necessidade urgente de combater a mudança climática quanto da ansiedade crescente em relação à dominação chinesa sobre esses setores. Sob pressões geopolíticas e domésticas, tanto as economias avançadas do Norte global quanto as economias emergentes e em desenvolvimento do Sul têm procurado assegurar competitividade econômica por meio da captura de parcelas das tecnologias da transição energética e seus insumos. Em meio a subsídios, tarifas, controles de exportação e rastreamentos de investimentos, a garantia de materiais e financiamento para a transição tornou-se ainda mais relevante.
Temendo perder a liderança tecnológica em energia limpa, as economias avançadas expandiram suas políticas industriais verdes para correr atrás do prejuízo. Um exemplo simbólico é a Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act), nos Estados Unidos, que, apesar da aversão pública de Trump, resistirá em alguma medida, em parte graças aos pesados subsídios que concede a distritos controlados pelos Republicanos. Da mesma forma, em nível regional, o Green Deal Europeu é um arcabouço abrangente para tornar o consumo energético da União Europeia neutro em emissões até 2050, coordenando as políticas públicas dos Estados-membro de modo a promover energia limpa e incentivar subsídios à tecnologia verde. Soma-se a isso o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (Carbon Border Adjustment Mechanism), uma tarifa imposta sobre importações intensivas em emissões destinada a proteger os setores industriais da UE que pagam um preço sobre o carbono emitido—instrumento que gerou revolta entre países exportadores, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento.
Os países em desenvolvimento não estão muito atrás: a Índia instituiu “Incentivos ligados à Produção” para expandir a produção doméstica em setores verdes, como o de painéis solares, ao mesmo tempo em que impôs barreiras não-tarifárias à importação de equipamentos solares chineses. Em um esforço para desenvolver a produção e o processamento locais, países ricos em minerais na América Latina, na África e no Sudeste Asiático impuseram ou ameaçaram impor proibições de exportação de minerais críticos sem processamento.
Esses esforços nacionais e regionais têm níveis variados de comprometimento e avanço tecnológico e diferentes desenhos de políticas públicas. Considerando que uma transição energética globalmente integrada comandada exclusivamente por preços e vantagens comparativas é bastante improvável e tendo em vista as grandes lacunas de financiamento existentes, algum grau de especialização e cooperação entre os países será necessário. Nisso, instituições multilaterais e acordos plurilaterais certamente terão um papel a cumprir. Políticas industriais verdes coordenadas ou transnacionais poderiam ser utilizadas para promover o desenvolvimento de tecnologia energética limpa em diferentes regiões do Norte e do Sul global. O desafio central dos próximos anos será negociar e implementar essas estratégias coordenadas em um contexto geopolítico em constante transformação.
Por que precisamos de políticas verdes coordenadas?
Políticas verdes coordenadas são essenciais em um mundo caracterizado por capacidades e recursos desiguais entre as nações. No caso da produção de tecnologia verde—e da produção em geral—alguns países têm recursos e expertise, outros não. Essa diferença sempre estará presente, mesmo se os fluxos de comércio global mais liberalizados diminuírem. Por exemplo, as reservas de lítio, um componente crucial da tecnologia das baterias, estão concentradas em um número pequeno de países. Uma abordagem coordenada pode ajudar a racionalizar as cadeias de fornecimento, garantindo que os países envolvidos se beneficiem mutuamente de suas vantagens e recursos. A fragmentação, ao contrário, pode levar a ineficiências, como a duplicação de tecnologia e a perda de oportunidades de colaboração.
A coordenação também pode ajudar a adaptar a tecnologia e a produção para atender aos contextos e prioridades locais. Enquanto países como a China lideram a corrida com políticas e investimentos ambiciosos, outros ficam para trás por conta de restrições fiscais ou falta de vontade política. Cresce o entendimento de que um Estado proativo é necessário para levar adiante a transição verde, na medida em que ela demanda um expressivo gasto estatal destinado à política industrial verde.1Bentley Allan, Joanna I. Lewis, and Thomas Oatley, “Green Industrial Policy and the Global Transformation of Climate Politics,” (<)em(>)Global Environmental Politics(<)/em(>) 21, 4 (2021): 1–19. https://doi.org/10.1162/glep_a_00640 Isso é, contudo, um desafio para países do Sul Global com capacidade fiscal limitada. A coordenação pode preencher essa lacuna, com a construção de capacidade local e oportunidades econômicas por meio do intercâmbio de financiamento, recursos e expertise.
Por fim, uma política industrial transnacional possibilita incentivar, em diversos níveis, a inovação, que é o fundamento da energia limpa e da política industrial verde. A colaboração global em política industrial facilitaria a difusão de tecnologia e conhecimento entre regiões, ajudando economias menos avançadas a promover a transição para tecnologias mais limpas e eficientes sem que ninguém precise reinventar a roda. A colaboração permitiria ganhos de escala que, por seu vez, reduziriam os custos de pesquisa e desenvolvimento, produção e implementação de tecnologias limpas.
Embora políticas industriais verdes sejam cruciais para a ação climática global, elas enfrentam desafios consideráveis, decorrentes de interesses nacionais divergentes, assimetrias de informação, disparidades econômicas, inconsistências regulatórias e tensões geopolíticas. Esses desafios são acentuados por pretensões variadas de promoção do interesse nacional em diversos países, do “America First” à ambição indiana de desenvolvimento por “Atmanirbharata”, ou autossuficiência. Medidas protecionistas podem dificultar a colaboração, comprometendo políticas industriais coordenadas.
Além da geopolítica, assimetrias de informação são um desafio comum para qualquer tipo de política industrial. Com nações lutando por supremacia tecnológica, a dificuldade em determinar o equilíbrio adequado entre subsídios, incentivos e barreiras regulatórias e institucionais nunca foi tão grande. Além do necessário “enraizamento”—laços de informação e circuitos de responsabilização entre governos e empresas—, uma camada adicional de articulação entre os governos em si é também fundamental. Nesse sentido, é possível que os arcabouços institucionais domésticos e internacionais existentes sejam insuficientes para lidar com a complexidade envolvida na coordenação dessas políticas.
Operacionalizando uma política industrial verde transnacional e coordenada
Nesse contexto fragmentado, a expansão da produção de energia e de tecnologia pode se dar de três formas: unilateralmente, multilateralmente, ou bilateral e plurilateralmente (ver Figura 1). Cada abordagem tem vantagens e desvantagens que impactam a forma como diversos governos serão capazes de promover seus interesses de política industrial de forma efetiva e ambientalmente sustentável.
Figura 1: Política industrial verde coordenada: diferentes abordagens
A abordagem unilateral
Medidas de política industrial unilaterais são implementadas individualmente por países visando necessidades e prioridades domésticas—ou seja, são mais menos o feijão com arroz da política pública. Uma abordagem unilateral pode ser particularmente interessante se prioridades domésticas e eleitorais estiverem alinhadas. Governos podem priorizar interesses nacionais enfrentando diretamente questões econômicas prementes, como a criação de empregos e a segurança energética. Ainda, políticas públicas unilaterais podem ser implementadas de maneira relativamente rápida em comparação com aquelas decorrentes de acordos multilaterais ou bilaterais, reduzindo eventuais entraves burocráticos. E, finalmente, uma abordagem unilateral não significa a ausência de participação estrangeira: a ascensão da China na produção de veículos elétricos, por exemplo, dependeu da parceria entre empresas estrangeiras e locais.
Mas há também, claro, desvantagens. Uma abordagem unilateral pode causar uma onda desreguladora, com países diminuindo exigências para atrair investimento, criando um nivelamento por baixo e potencialmente comprometendo a sustentabilidade de seus objetivos a longo prazo. Pode, ainda, criar uma colcha de retalhos regulatória: um ambiente regulatório tão desarticulado que dificulta a operação de empresas multinacionais privadas, porque gera maiores ineficiências e aumenta os custos.
A abordagem multilateral
Esforços multilaterais para promover políticas industriais podem ser coordenados por meio de bancos de desenvolvimento e fundos como o Banco Mundial, o Fundo Verde do Clima e o Fundo Global para o Meio Ambiente. Essa abordagem permite a colaboração entre diferentes nações por meio de instituições multilaterais que, frequentemente, têm orçamentos maiores—e, por isso, maior tolerância a riscos—que os próprios países que atendem. Isso é crucial para o investimento em setores emergentes, como o de energia limpa, em que os custos iniciais e a incerteza de retorno podem afugentar o investimento privado. Além disso, essas organizações oferecem considerável expertise técnica e apoio institucional para países em desenvolvimento. As molduras institucionais existentes também podem ser usadas para que nações mais ricas auxiliem países em desenvolvimento a navegar pelas complexidades da política industrial.
As críticas a essas instituições, no entanto, argumentam que elas promovem uma agenda alinhada ao Consenso de Washington e contrária à intervenção do Estado na economia, além de serem incapazes de induzir o financiamento climático na escala necessária em países em desenvolvimento. Consequentemente, há um risco de que essa abordagem perpetue relações tradicionais e paternalistas entre doadores e beneficiários, submetendo países em desenvolvimento aos padrões estabelecidos pelas nações doadoras e limitando sua autonomia para formular políticas públicas adequadas à singularidade de seus contextos nacionais. Além disso, os próprios organismos multilaterais enfrentam o desafio de equilibrar interesses de diferentes governos nacionais—sujeitos a flutuações geopolíticas e inércias burocráticas—, dificultando a formação de consensos e a efetiva implementação de políticas por meio de seus mecanismos financeiros.
Abordagens bilaterais e plurilaterais
Acordos bilaterais e plurilaterais envolvem a colaboração entre duas ou mais nações, tais como as iniciativas conduzidas pelo Quad (EUA, Japão, Índia e Austrália), os BRICS, a coalizão EUA-Índia-África ou as recentes Parcerias para a Transição Energética Justa (JET-P). Esses arranjos são comumente caracterizados por um enfoque mais flexível e estratégico.
Os acordos bilaterais e plurilaterais permitem que países com interesses semelhantes se unam, criando coalizões capazes de reagir a oportunidades estratégicas e econômicas com maior rapidez. A maior agilidade é particularmente vantajosa para setores em rápida evolução, como o de energia limpa. Essas coalizões podem facilitar investimentos direcionados em tecnologia e infraestrutura alinhados com os interesses específicos das nações participantes, fortalecendo a resiliência econômica geral.
No entanto, é possível que as coalizões bilaterais e plurilaterais não tenham o mesmo nível de expertise e recursos das organizações multilaterais—muitas não possuem sequer um secretariado ou orçamento independentes—dificultando a implementação efetiva de políticas industriais que exigem articulações complexas entre empresas e governos. Além disso, essas coalizões são vulneráveis a mudanças de liderança política ou alterações nas prioridades nacionais de seus membros.
Há cada vez menos dúvidas de a transição verde depende da proatividade do Estado. Isso implica gastos públicos massivos direcionados a políticas industrais sustentáveis, como ilustra o caso da China. 2No caso de países em que o Estado não tem a capacidade de fornecer o investimento adequado, a literatura argumenta que a implementação da política industrial depende de fluxos financeiros internacionais. Ver: Seth Schindler, Ilias Alami, and Nicholas Jepson, “Goodbye Washington Confusion, hello Wall Street Consensus: Contemporary state capitalism and the spatialisation of industrial strategy,” (<)em(>)New Political Economy(<)/em(>) 28, 2 (2023): 223–240. https://doi.org/10.1080/13563467.2022.2091534 Em economias do Sul global movidas a carvão, como África do Sul, Indonésia, Vietnã e Índia, entre outras, o ritmo estagnado do desenvolvimento industrial verde indica que serão necessários investimentos fiscais muito maiores ou volumes significativamente mais altos de fluxos financeiros internacionais.
Muitas dessas economias receberam JET-Ps desenhadas por países do Norte global para fornecer apoio financeiro à transição verde. Ainda que tenham sido desacreditadas por alguns críticos como soluções superficiais, em um mundo fragmentado, as JET-Ps podem ser elementos vitais para uma política verde coordenada, justamente porque envolvem um esforço colaborativo estratégico entre governos, setores industriais e parceiros internacionais, contribuindo para a construção de redes comerciais para a tecnologia verde e estabelecendo mecanismos transnacionais de intercâmbio de conhecimento e de boas práticas. Especialistas vêm celebrando as JET-Ps como plataformas nacionais orientadas pelo clima, alinhando objetivos climáticos nacionais e internacionais e ajudando a destravar o financiamento público—e, potencialmente, também o financiamento privado internacional. As JET-Ps representam bem a essência do plurilateralismo: fomentam a colaboração significativa, a ação direcionada e uma abordagem flexível, diferente de muitas estruturas multilaterais. Isso faz delas mecanismos mais práticos para enfrentar os complexos e diversos desafios da transição energética global.
Em busca de um futuro sustentável
Dada a importância estratégica das tecnologias de energia limpa no combate à mudança climática e no incentivo ao desenvolvimento econômico e diante do desafio dos países de equilibrar prioridades domésticas e demandas de cooperação internacional, políticas industriais coordenada nunca foram tão urgente.
Dentre as diferentes formas de ação, as abordagens plurilaterais são as mais promissoras. A Aliança Solar Internacional, por exemplo, lançada em 2015, é uma parceria plurilateral que busca promover a energia solar em nações ensolaradas do Sul Global. Até o momento, mais de 120 países aderiram a essa iniciativa para desenvolver infraestrutura de energia solar. Da mesma forma, JET-Ps, ainda que enfrentem, por enquanto, desafios de financiamento e implementação, poderiam se revelar um instrumento-chave de coordenação plurilateral da política industrial verde, buscando atender às demandas de países com diferentes níveis de desenvolvimento e capacidade industrial. Enquanto o governo Trump decidiu, no início do ano, retirar o apoio estadunidense às JET-Ps, outras nações—incluindo a Alemanha e o Japão—intensificaram o financiamento aos projetos em andamento. Isso ilustra como uma coordenação efetiva deve ser sensível e capaz de se adaptar a mudanças geopolíticas bruscas.
Por meio do incentivo à colaboração, do investimento em inovação e da priorização de práticas sustentáveis, os governos podem enfrentar desafios de política industrial enquanto promovem o crescimento econômico e manejam questões estratégicas. O futuro da produção de energia limpa depende da nossa capacidade de coordenar esforços transnacionais, garantindo que a transição para uma economia sustentável seja não apenas viável, mas também justa.
Tradução: Lucia del Picchia
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