15 de maio de 2025

Análises

É preciso dar um jeito, meu amigo

Movimento sindical e ditadura militar no Brasil (1964-1985)

No dia 1º de setembro de 2013, em um editorial que se tornaria famoso, o jornal carioca O Globo reconheceu que seu apoio ao golpe militar de 1964 havia sido um erro. O texto foi escrito no contexto das grandes e confusas manifestações que tomavam as ruas do país naquele momento (conhecidas como “Jornadas de junho de 2013”), nas quais uma das palavras de ordem mais ouvidas era “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. Além disso, era o período de atuação da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 pela presidenta Dilma Rousseff para investigar as graves violações contra direitos humanos ocorridas durante a ditadura.

Reconhecendo como verdadeiro o grito das ruas, o jornal justificava de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “república sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que contagiava vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais. O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações.

A presença pública e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final da Segunda Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos. Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. No campo, a emergência das Ligas Camponesas, e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.

Trabalhistas, católicos, comunistas, entre diversas outras forças políticas, disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre negados, como a lei do 13o salário e a sindicalização no campo.

Operação limpeza

Em um contexto marcado pela Guerra Fria, pela descolonização dos países africanos e asiáticos e pelos impactos da Revolução Cubana na América Latina, a  presença pública dos trabalhadores na década de 1960 significava, para muitos, a antessala do comunismo. Não por acaso, o golpe e seus preparativos contaram com o vital apoio do governo dos Estados Unidos. A desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes sindicais do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente João Goulart (nunca perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada. A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13 de março, foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião realizadas à época e ocultadas durante muito tempo mostravam que a maioria da população apoiava Jango e suas reformas. 

O golpe acabou com tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização. Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”. A chamada “Operação limpeza” desencadeada pelo novo regime invadiu e dilapidou o patrimônio dos sindicatos. Nos primeiros anos após o golpe, mais de mil entidades sindicais tiveram suas direções removidas pelo governo. O movimento operário foi um alvo prioritário da primeira onda repressiva no imediato pós-golpe e dirigentes sindicais e trabalhadores ativistas de todo o país foram particularmente atingidos. Diversas lideranças foram presas, cassadas e algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.

Os mundos do trabalho eram preocupação central da jovem ditadura. Embora tenham enfraquecido bastante o Ministério do Trabalho, os militares e seus aliados não pretendiam acabar com os sindicatos, mas sim afastá-los de qualquer influência considerada política e torná-los parceiros na construção de um modelo de desenvolvimento econômico autoritário. A ideia era capacitar as entidades sindicais nas cidades e no campo para atuar no treinamento da mão de obra trabalhadora e como instituições assistenciais nas áreas de saúde, lazer e previdência.

Em um primeiro momento, tiveram grande apoio de setores conservadores católicos. Também o sindicalismo norte-americano viu no golpe uma oportunidade única de influenciar os sindicatos no Brasil. Por meio de entidades como o Instituto Cultural do Trabalho (ICT) e o Instituto Americano de Desenvolvimento do Sindicalismo Livre (Iadesil), promoveu cursos e diversas atividades de intercâmbio no país. Logo, no entanto, tensões com o governo militar e com muitos sindicalistas brasileiros esvaziaram as expectativas dos estadunidenses. De qualquer forma, vários dos interventores colocados à força pelo golpe militar conseguiram ganhar alguma legitimidade e formar grupos políticos que controlariam os sindicatos por anos a fio. No jargão sindical, eram comumente chamados de “pelegos”.

Entidades empresariais, como a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), celebraram a nova era. Exasperados com a presença dos trabalhadores na esfera pública e suas crescentes demandas por direitos no período imediatamente anterior a 1964, bem como incomodados com o incremento da organização operária nos locais de trabalho, empresários, gerentes e supervisores viram no golpe a chance da “revanche patronal”. Além da repressão direta a dirigentes sindicais e líderes conhecidos, milhares de trabalhadores ativistas, delegados de base ou mesmo mero simpatizantes dos sindicatos e de organizações de esquerda foram demitidos e, graças às infames “listas negras”, tiveram imensas dificuldades para conseguir novos empregos. A aliança entre empresários e a polícia política (o famigerado Departamento de Ordem Política e Social, conhecido pela sigla DOPS) vinha de longe, mas se tornou ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguição passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e capangas a serviço de latifundiários. 

Fabricando o milagre

A nova política trabalhista do governo do primeiro ditador instalado pelo golpe, o General Castelo Branco (1964-1967), consolidou-se com um plano arquitetado pela coalizão de civis tecnocratas e militares, formulado especificamente pelos ministros Roberto Campos, do Planejamento, e Octávio Bulhões, da Fazenda: o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG). O programa tinha como objetivo principal conter o processo inflacionário e acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico por meio da livre iniciativa de mercado. O controle dos salários era um aspecto essencial do plano. Não por acaso, estima-se que entre 1964 e1968 tenha ocorrido uma queda real de cerca de 30% no valor do salário mínimo. Aos trabalhadores eram pedidos “sacrifícios” em nome da almejada estabilidade econômica.

Novas leis visando o controle salarial, a contenção de greves e protestos e o fim da estabilidade por tempo de serviço deram um arcabouço institucional para as medidas anti-trabalhistas do regime. Também criaram um ambiente econômico que facilitava enormemente as demissões e a rotatividade da mão de obra. Essa política econômica era pouco popular. A expressão “arrocho salarial” se tornou lugar comum entre os trabalhadores e mesmo os sindicalistas que apoiavam o novo regime tinham dificuldades em defender várias dessas medidas. Muitos passaram a criticar o governo. Castello Branco se via reiteradamente obrigado a repetir, em vão, que “a Revolução”—termo pelo qual os militares e seus apoiadores denominavam o golpe—“não era contra os trabalhadores”.

A insatisfação crescente, a radicalização de setores da esquerda e os movimentos de massa desencadeados por estudantes em 1968 criaram um ambiente propício para o crescimento do protesto dos trabalhadores. Greves começaram a pipocar no campo e na cidade. As paralizações dos metalúrgicos em Contagem, Minas Gerais, e dos canavieiros na cidade de Cabo, Pernambuco, surpreenderam e assustaram o governo, que acabou aceitando parte das reivindicações. Já a famosa greve dos metalúrgicos de Osasco, em São Paulo, foi exemplarmente reprimida. Com a decretação do Ato Institucional n. 5 e fechamento do regime, o medo e o controle social passaram a definitivamente dominar a sociedade brasileira.

O ano de 1968 não marcou apenas o aprofundamento da ditadura e o início de sua fase mais repressiva. Foi também o momento em que a economia brasileira superou a crise dos anos anteriores e adentrou um período de forte crescimento, o que deu popularidade ao regime. Beneficiando-se de uma conjuntura global bastante favorável ao fluxo de investimentos e empréstimos internacionais, a política econômica—propagandeada como “milagre econômico brasileiro”—levou o país a taxas de crescimento anuais superiores a 10% por anos consecutivos.

O país atraiu o investimento direto de empresas multinacionais, em particular, no setor industrial de bens de consumo duráveis. De fato, para além dos incentivos fiscais e da ampliação do crédito para as empresas, o próprio clima repressivo de arrocho salarial e de contenção das demandas sociais era um fator decisivo para os industriais nacionais e estrangeiros, favorecidos pela intensa exploração de uma mão-de-obra abundante e barata cujo protesto era fortemente cerceado.  O “milagre” também era embalado pela política nacionalista da ditadura que imaginava “integrar” e transformar o país numa potência internacional: o “Brasil Grande”. Assim, amplos investimentos em infraestrutura, em particular nas áreas de transportes, telecomunicações e energia, marcariam aqueles anos.

O milagre não completou uma década: o ano de 1973 marcaria uma inflexão na política econômica do regime. O aumento dos preços do petróleo determinado pelos países produtores provocou uma crise de dimensões globais. Diante da instabilidade internacional, o governo do Ernesto Geisel, ditador que tomou posse em março de 1974, decidiu colocar o “pé no acelerador” da economia para garantir crescimento, popularidade e força política. O II Plano Nacional de Desenvolvimento procurava ajustar a economia nacional ao novo momento de crise do petróleo, redobrando a aposta na industrialização, em particular nos setores de bens de capital e na infraestrutura energética. O governo ditatorial dos militares procurava completar o processo de industrialização do país. Para tanto, lançava mão, de forma afutoritária, vários mecanismos empregados pelo Estado desde a década de 1930, como o planejamento, o protecionismo e o largo uso de empresas estatais.

Essa industrialização acelerada, no entanto, era acompanhada de dois flagelos que marcariam a economia brasileira durante quase duas décadas: a inflação e o endividamento externo. Esses problemas ficaram evidentes quando duas gigantescas crises internacionais atingiram o país em cheio: uma nova crise do preço do petróleo em 1979 e a crise da dívida externa latino-americana no início dos anos 1980.  Ocorridas durante o governo do último ditador, João Batista Figueiredo, as crises conjugadas e o receituário proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) provocaram uma brutal recessão econômica, ampliaram o desemprego, disseminaram a fome e azedaram de vez o humor popular em relação ao regime dos militares.   

Modernização conservadora

A ditadura também pretendia redimensionar a questão agrária no país, sem alterar a estrutura fundiária, tema tão fundamental nos debates políticos das décadas anteriores. O regime impulsionou uma enorme transformação no mundo rural brasileiro, estimulando a transformação dos latifúndios em empresas, a expropriação de pequenos camponeses, a migração de agricultores, em particular do sul do país (vistos como empreendedores e etnicamente superiores em relação às populações racializadas) e a ocupação de novas fronteiras agrícolas no Centro-Oeste e na região amazônica—institucionalizando a relação entre elites agrárias e forças conservadoras que perdura até hoje. A expressão “modernização conservadora” se consagraria como uma síntese da política econômica da ditadura como um todo.

Apesar do ambiente repressivo, da censura e da retórica nacionalista do governo, a alta concentração de renda, a intensificação dos problemas sociais e a inflação eram denunciadas por sindicalistas, intelectuais e setores da sociedade civil como o “outro lado” do “milagre”. De qualquer forma, a propaganda oficial divulgava uma imagem do Brasil do “milagre” como um país promissor em que migrantes rurais, agora na cidade, trabalhavam na construção civil, nas fábricas, enquanto suas mulheres, como empregadas domésticas em lares de classe média poderiam adquirir hábitos “civilizados” e “modernos”. Fuscas, geladeiras e aparelhos de televisão eram os símbolos daquela era. 

De toda forma, apesar do crescimento econômico e das brechas para alguma mobilidade social, as profundas desigualdades sociais do país eram percebidas por milhões de trabalhadores como a marca dominante do regime militar e um denominador de identidades e demandas em comum no final dos anos 1970 e início dos 1980. O crescimento econômico aumentou a concentração de renda, beneficiando empresários, uma alta classe média gerencial, profissionais liberais e os estratos superiores da burocracia estatal. As políticas de arrocho salarial e de controle social murcharam o peso da massa salarial no PIB nacional. A ditadura entregava um país em que os ricos eram ainda mais ricos e os pobres ainda mais pobres. O crescimento da inflação a partir de meados dos anos 1970 ampliou a sensação de perda e empobrecimento. 

A ditadura dos generais chegava ao interior das fábricas, fazendas, canteiros de obras e locais de trabalho como a ditadura dos patrões e feitores. A experiência cotidiana do trabalho foi sentida com o temor do despotismo gerencial. O trabalho era vivido como um espaço de superexploração. Ritmos intensos com longas jornadas recheadas de horas extras, frequentemente com riscos à saúde e à integridade física. Nos anos 1970, o país chegou a ser o “campeão mundial de acidentes de trabalho”, naturalizados numa lógica de descarte humano e violências corriqueiras.

O fim daquela década foi marcado por uma dupla crise. De um lado, a deterioração do modelo econômico dos militares: o esgotamento do “milagre”. De outro, um crescente desgaste político e perda de legitimidade. Apesar de ainda controlarem o processo político, com a proposta de uma distensão lenta e gradual, os militares, na segunda metade da década de 1970, viam o crescimento da oposição e a mobilização de numerosos setores sociais demandando o fim do regime e a volta da democracia. 

Ditadura e formação de uma “nova” classe trabalhadora

A década de 1970 também era um momento de profundas metamorfoses nos mundos do trabalho. Uma classe trabalhadora mais ampla e ainda mais multifacetada e diversificada emergiu no Brasil ao longo daqueles anos. As transformações econômicas e sociais que vinham das décadas anteriores e as variadas tradições políticas e culturais presentes no movimento dos trabalhadores reconfiguraram os processos de formação e identidade de classe. As greves no final da década e sua politização em um contexto de luta contra a ditadura militar deram visibilidade e autorreconhecimento para essa “nova” classe trabalhadora, fenômeno que atravessou as várias categorias profissionais e regiões do país.

Era, sobretudo, uma classe trabalhadora marcada por intensos processos de urbanização e migração. Se em algum momento da década de 1960 a maior parte da população do país passou a morar em cidades, em 1980 já tínhamos 68% de brasileiros vivendo no mundo urbano. As periferias das capitais e as cidades no seu entorno, as chamadas regiões metropolitanas, tornaram-se os lugares “típicos” de moradia de milhões de trabalhadores. As favelas, fenômeno ainda mais antigo e também estigmatizado pela precariedade, racialização e autoconstrução de moradias, também se periferizaram naqueles anos. 

A “espoliação urbana” foi central na vida de milhões de trabalhadores, mas as periferias e favelas também foram espaços fundamentais para a construção de sensibilidades e sociabilidades, trocas culturais e formação de identidades nas quais as experiências de moradia e de trabalho constituíam um universo comum de lutas por direitos e reconhecimento. Não por acaso, foram nas periferias e favelas que se desenvolveram naqueles mesmos anos uma intensa vida associativa e experiências organizativas que renovaram o repertório de ação coletiva da classe trabalhadora e seu impacto no espaço público do país durante a redemocratização e nas décadas seguintes.

A classe trabalhadora forjada naqueles anos também era marcada pelas migrações internas. Estima-se que, entre 1950 e 1980, quase 40 milhões de brasileiros tenham tido algum tipo de experiência migratória, em particular deixando as regiões rurais e dirigindo-se para as cidades. O Nordeste e Minas Gerais são popularmente conhecidas como as regiões de onde saíram a maior parte desses migrantes rurais, em particular para as áreas metropolitanas das grandes cidades do Sudeste. 

Tratava-se também de um país jovem com uma classe trabalhadora jovem. Embora as taxas de natalidade começassem a declinar rapidamente, a idade média dos brasileiros em 1980 ainda era de cerca de 20 anos. No mesmo ano, por volta de 70% da população com mais de 15 anos não tinha a educação primária completa e a entrada no mercado de trabalho era precoce. Era também um mundo do trabalho com maior presença feminina no emprego formal. A participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil saltou de 21% em 1970 para quase 28% em 1980. Premidas pelas dificuldades do orçamento familiar e por mudanças em um mercado de trabalho aquecido, essas jovens trabalhadoras ocupavam funções mal remuneradas, com pouca perspectiva de promoção e socialmente consideradas pouco qualificadas. Eram mais facilmente demitidas e o casamento e a maternidade dificultavam a admissão e a manutenção nos empregos. Em 1973, o salário médio feminino era 60% inferior ao masculino.

Apesar dessa condição subordinada das mulheres, sua presença no mercado de trabalho impactava as relações de gênero e desafiava as visões tradicionais sobre o lugar delas na sociedade. A crescente emancipação econômica feminina teve um papel central na transformação dos modelos familiares e na arena pública. Não é possível entender tanto os movimentos de mulheres e a onda feminista do final dos anos 1970 quanto a emergência de movimentos sociais em geral na redemocratização sem compreender o lugar e a ação dessas mulheres trabalhadoras.

A década de 1970 consolidou a estruturação de um mercado de trabalho complexo e diversificado. As políticas desenvolvimentistas do regime impulsionaram a indústria de transformação, o setor de energia e a construção civil como os setores que seriam o alicerce da economia naqueles anos. Ocupações e profissões nessas áreas cresceram e passaram a ter um papel particularmente destacado no mercado de trabalho, com destaque para metalúrgicos, trabalhadores da construção civil, trabalhadores do setor de energia e transportes, além da ampliação do funcionalismo público em geral.

A busca por dignidade, respeito e autonomia estava no ar em milhares de locais de trabalho Brasil afora no final dos anos 1970. Ela unia milhões de trabalhadores que se sentiam humilhados, oprimidos e explorados. Quando as primeiras fábricas e usinas entraram em greve, muitos perceberam que era possível lutar, protestar e reivindicar uma vida diferente.

Na segunda metade dos anos 1970, mesmo cerceada pela repressão ditatorial, uma onda associativa tomava conta dos bairros da classe trabalhadora no Brasil. Sociedades Amigos de Bairro, Associações de Moradores, clubes de mães, coletivos de ajuda mútua, grupos reivindicando saúde, educação e transportes públicos, entre várias outras organizações, compunham um mosaico de associações populares que se proliferaram em todo o país. Fragmentadas, dispersas geograficamente e com práticas de resistência cotidianas e miúdas, essas associações foram, paulatinamente, criando mecanismos de autorreconhecimento, constatando experiências comuns e construindo uma identidade coletiva. Durante a redemocratização, esse autointitulado “movimento popular” começou a atuar de forma mais ampla, ocupando o espaço público com protestos, manifestações e passeatas e articulando-se com lideranças das oposições no mundo político, ao mesmo tempo que chamava a atenção das autoridades, particularmente no nível local.

Os setores progressistas da Igreja Católica tiveram papel fundamental nesse processo. Presente na vida política brasileira desde antes do golpe de 1964, a esquerda católica tornou-se hegemônica em diversos setores da Igreja entre o final da década de 1960 e início dos anos 1970 e foi um ator central tanto na oposição ao regime militar quanto na reconfiguração da atuação da classe trabalhadora na esfera pública nos anos da redemocratização. Como um fenômeno internacional, com particular presença na América Latina, a chamada “Teologia da Libertação” articulava um conjunto de práticas e teorias que representariam uma guinada da Igreja à esquerda e um compromisso com a emancipação social. As comunidades eclesiais de base (CEB’s), ao lado das pastorais temáticas (operária, da terra, dos indígenas, etc) foram os fenômenos que melhor simbolizaram a ação da Igreja Católica progressista naqueles anos.

No entanto, essa efervescência associativa não deve ser exagerada. Apesar do caráter informal da relação dos setores populares com os movimentos sociais e das ausências de dados sobre as variadas formas de como as pessoas se associam, era uma parcela minoritária da população que efetivamente estava organizada. As antigas hierarquias de dominação social continuavam a ser muito poderosas e questões como a violência urbana despertavam reações bastante conservadoras e autoritárias, inclusive nas periferias e favelas—tema que seria cada vez mais explorado pela direita política nos anos vindouros. De toda forma, era evidente um salto qualitativo na participação popular, na politização da classe trabalhadora e na construção de um imaginário coletivo “do direito a ter direitos”.

Sindicalismo e redemocratização

No final da década de 1970, era o sindicalismo o movimento social que melhor catalisava a insatisfação e as demandas populares, ao mesmo tempo que articulava uma identidade coletiva e uma linguagem comum. E foram as greves massivas e disseminadas do período o repertório de ação coletiva que mais deu visibilidade a essa presença dos trabalhadores na arena pública e nas lutas políticas pela redemocratização do país.

Os metalúrgicos do ABC paulista foram protagonistas centrais desse movimento. ABC paulista é o nome dado a um conjunto de municípios industriais no entorno da cidade de São Paulo. Desde o final dos anos 1950, se instalou nessa região um parque industrial em torno da produção automobilística que, para muitos, era o símbolo da modernidade capitalista brasileira. Foi ali que sucessivas greves nos anos de 1978, 1979 e 1980 impactaram fortemente as lutas sociais e o processo de redemocratização.

Apesar da pressão patronal e da repressão policial, essas paralisações foram massivas e entusiasmantes. Em plena ditadura, era impressionante ver milhares e milhares de trabalhadores, simples “peões”, lutando por seus direitos e desafiando os militares e poderosas empresas multinacionais. As imagens das assembleias repletas no Estádio de Vila Euclides, comandadas por Lula, um carismático e emergente líder popular, eram transmitidas para todo o país por jornais e canais de televisão recém liberados de várias amarras da censura governamental.

Mas os movimentos de protesto dos trabalhadores estiveram longe de se resumir somente aos metalúrgicos do ABC. A paralisação do ABC e as imagens de Vila Euclides simultaneamente catalisaram e impulsionaram uma das mais impressionantes ondas grevistas da história do Brasil. Além de setores com antiga tradição sindical, como os trabalhadores industriais, de transporte e do petróleo, greves de trabalhadores rurais, bancários, servidores públicos, professores, entre outros, tomaram conta do país, com a participação de milhões de pessoas, apesar da pressão e das tentativas de controle por parte do governo militar.  Somente em 1979, mais de 3 milhões de trabalhadores e trabalhadoras paralisaram suas atividades em algum momento nas 246 greves que varreram o país de norte a sul, nas cidades e no campo. 

Apesar da recessão econômica e da diminuição das greves, o começo da década de 1980 foi um momento intenso para o sindicalismo e os movimentos sociais em geral. Foi uma época de reorganização e institucionalização. A emergência pública das lutas sociais no final da década de 1970 havia mobilizado milhões de pessoas e milhares de novos militantes haviam surgido. A oposição ao regime politizou de forma inédita muitos daqueles movimentos sociais e a reorganização partidária e o ocaso da ditadura abriam espaço para novos arranjos e alianças políticas, que variavam muito local e regionalmente.

A ditadura, em seu crepúsculo, era desafiada por um amplo e diversificado leque de movimentos sociais e políticos. A oposição ao regime era pluriclassista, mas seus setores mais aguerridos e combativos se identificavam como membros da classe trabalhadora e clamavam não apenas por um Estado de Direito formal, mas por uma “verdadeira democracia” que reconhecesse a dignidade do trabalho e os direitos humanos, que combatesse as desigualdades sociais e que construísse um país justo e democrático.

As diferentes estratégias e vozes oposicionistas confluíram para um amplo movimento entre o final de 1983 e 1984. Vinte anos depois de instalado à força, o regime militar enfrentava gigantescas manifestações políticas em que milhões de brasileiros em todo o país exigiam a volta da democracia. Os movimentos sociais populares e o sindicalismo tiveram papel ativo e fundamental na mobilização das massas durante a campanha das Diretas Já. Mas, assim como a campanha, foram derrotados. Dividiram-se em diferentes caminhos em relação à articulação política que envolveu setores majoritários da oposição e correntes do regime ditatorial e que acabou vencedora na transição da ditadura para a democracia levando ao poder a chapa Tancredo Neves e José Sarney.

O impacto dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais na arena pública, no entanto, ainda estava longe de se esgotar. Embora muitos analistas, cientistas políticos e historiadores da redemocratização tendam a negligenciar esse papel, reforçando uma visão elitista de que a transição política teria sido fundamentalmente conduzida no interior de quartéis e gabinetes, é impossível compreender a história do país nos últimos 40 anos sem compreender o lugar da classe trabalhadora, suas organizações, lideranças e lutas naqueles anos.

 



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