Quais são os impactos geopolíticos e geoeconômicos da dominância persistente do dólar estadunidense nos sistemas monetário e financeiro internacionais? Yakov Feygin e Dominik Leusder questionam, em artigo, se o uso global do dólar como moeda padrão para reservas cambiais, comércio e empréstimos internacionais garante, de fato, um “privilégio exorbitante” aos Estados Unidos. Assim como Michael Pettis, argumentam que a primazia do dólar impõe um fardo exorbitante à população dos EUA em razão dos custos discrepantes que gera.
Enquanto beneficia amplamente o 1% mais rico dos Estados Unidos, a hegemonia do dólar resulta em menos emprego e baixo crescimento salarial para o resto da população do país. Isso decorre das condições estruturais necessárias para que determinada moeda seja utilizada como moeda internacional. Randall Germain e eu argumentamos em diversas ocasiões que a emissão da moeda globalmente dominante obriga o país emissor a incorrer em déficits no balanço de pagamentos,1 e que a recorrência desse processo gera uma corrosão da base produtiva doméstica. Uma vez que o balanço de pagamentos deficitário é bancado pela manutenção de uma miríade de passivos financeiros com atores externos, isso envolve necessariamente um acúmulo de dívida e outros tipos de obrigações por parte das empresas e famílias estadunidenses.
Grande parte dessas obrigações estrangeiras se dá na forma de participação acionária nas empresas estadunidenses. Ainda que os EUA tenham uma participação quantitativamente semelhante em empresas estrangeiras, esses ativos estão nas mãos do 1% mais rico. O grosso da dívida estadunidense com o resto do mundo é formado por dívida pública e privada, incluindo a securitização de hipotecas. E dado que o 1% do topo se esquiva extensivamente do pagamento de impostos, é o povo estadunidense que paga por essas dívidas. Enquanto o rentismo financeiro e a evasão fiscal permitem aos ricos colher os frutos da hegemonia do dólar, o resto da população compete entre si pelo acesso a produtos importados artificialmente baratos, produzidos em países de renda baixa, enquanto batalha para conseguir pagar por moradia.
O argumento de Feygin e Leusder sobre a raíz de classe do domínio do dólar é bastante consistente (o que, traduzindo da linguagem acadêmica, significa “eu disse a mesma coisa, então eles devem estar certos!”), mas eles abandonam os aspectos geopolíticos desse fenômeno muito rápido. Há duas lacunas na análise tradicional dos impérios europeus do século XIX que os levam a uma interpretação conceitualmente falha da estrutura de império e, particularmente, da relação entre centro e periferia nesse contexto. Analisar essa falha interpretativa ilumina o papel global exercido, à época, pela libra esterlina e, hoje, pelo dólar.
A primeira lacuna está em enxergar o centro desses impérios como Estados-nação internamente coesos como os da Europa e da América do Norte no período posterior às duas guerras mundiais. Minha tese é a de que a atuação desses Estados imperiais europeus do século XIX é melhor compreendida como um sistema de poder de fronteiras permeáveis entre um centro e um conjunto hierarquicamente organizado e integrado de periferias.
Os Estados imperiais europeus do século XIX não eram linguística e culturalmente harmônicos como aqueles do pós-guerra. Sua formação foi marcada por um fluxo massivo de imigração – de suas colônias tropicais, inclusive – que condensou populações que falavam idiomas distintos entre si, e por um fluxo de emigração de milhões de pessoas para colônias da zona temperada. Como Ian Lustick demonstrou, ainda que traçassem divisas quase impermeáveis de segregação racial em praticamente todo lugar, os gestores desses impérios não faziam uma separação tão evidente entre centro e periferia. Na linha do argumento de Feygin e Leusder, as elites banqueiras de Londres, Montreal e Melbourne tinham mais em comum entre si do que com os agricultores, estivadores ou açougueiros que levavam cordeiro australiano e o trigo das planícies para o banqueiro londrino. Como as trajetórias de Leo Amery e Cecil Rhodes exemplificam, as elites metropolitanas e coloniais circulavam entre o centro e a periferia nos mesmos navios que transportavam, na segunda classe, os trabalhadores braçais.
A segunda lacuna, nesse mesmo sentido, está em considerar como modelo geral aquele dos impérios tardios construídos na África (e, em menor grau, na Ásia), e não o “império alimentício” britânico que havia sido estabelecido anteriormente. Do ponto de vista econômico – que foi importante para a libra esterlina –, a verdadeira atividade imperial foi aquela do início do século XIX, com o genocídio e o desterramento de populações indígenas de regiões de baixa densidade demográfica das zonas temperadas, posteriormente repovoadas, majoritariamente, por colonos europeus. A Austrália, a Argentina, o Canadá, a Nova Zelândia e, acima de tudo, os Estados Unidos, se tornaram destacados exportadores dos alimentos e matérias-primas agrícolas que alimentaram os trabalhadores e as máquinas da revolução industrial na Europa. A título de comparação, o montante total investido pelo império britânico na Austrália, com uma população de cerca de 4 milhões de pessoas em 1900, foi praticamente igual àquele investido na Índia Britânica, onde a população passava dos 300 milhões. As exportações britânicas para a Austrália e a Nova Zelândia entre 1894 e 1913 ultrapassaram as exportações para toda a África subsaariana. Todo esse volume de comércio e de investimentos estava em libra esterlina e era gerido por uma elite financeira, de fato, transnacional, mas culturalmente e, em grande parte, etnicamente britânica.
É no interior desse contexto histórico que as vantagens geopolíticas e geoestratégicas do dólar no sistema monetário devem ser entendidas. O dólar não apenas funciona como a moeda de uma nação específica, mas como a moeda de um Estado imperial global que é centrado nos Estados Unidos, mas não se limita a ele como entidade jurídica formal. Assim como no século XIX, as divisas entre o centro e as periferias do império não são tão nítidas. As periferias têm diferentes status na hierarquia imperial, os candidatos rivais se espalham por dentro e por fora dessa hierarquia, e a moeda única é um importante baluarte desse império. Essa dinâmica traz quatro aspectos importantes para o dólar estadunidense.
Primeiro, o dólar parcialmente liberta os Estados Unidos e seus aliados de restrições de recursos. Nas duas guerras mundiais, o império alimentício britânico foi um peso decisivo em favor dos aliados contra a Alemanha na balança de recursos físicos. Na primeira Guerra Mundial, o império britânico nos trópicos, em particular a Índia, foi categórico em termos de recursos humanos, tendo fornecido a grande maioria de combatentes fora do palco europeu e mais de 20% da força total das tropas – os colonos brancos contribuíram com mais 20%. O império britânico e seus anexos extensivamente emitiram dívida em libra esterlina para pagar por esses recursos físicos e humanos. Da mesma forma, a emissão de dívida em dólar financia as forças especiais estadunidenses que, hoje, treinam exércitos locais como tropas auxiliares.
Embora não haja uma relação mecânica, o déficit cumulativo no balanço de pagamentos dos EUA entre 1992 e 2019 equivale a 83% das despesas acumuladas do país com defesa. Aumentos significativos no orçamento militar ocorreram simultaneamente a aumentos no déficit do balanço de pagamentos. Essencialmente, economias com balanço de pagamentos superavitários fornecem aos EUA bens de consumo em troca de crédito em quantidade suficiente para liberar os recursos produtivos domésticos para o enorme aparato militar do país. Essa capacidade de recorrer ao mercado global não é simplesmente pautada na crença dos atores externos de que os dólares provenientes de exportações são úteis para futuras importações dos EUA, mas também na dependência do mercado doméstico estadunidense para o crescimento das suas economias. Com exceção da China após 2010, as grandes economias de exportação superavitária cresceram em ritmo mais lento que os EUA desde 1992, apesar do superávit no comércio exterior. Ainda, outras grandes economias com balanço de pagamentos deficitário são igualmente reféns do crescimento estadunidense – os casos mais evidentes são Canadá e México. Como o crescimento do Reino Unido seria possível se Londres não fosse um centro global de fluxos financeiros em dólar, ou se a Irlanda não fosse um paraíso fiscal conveniente? As reservas e as transações em dólar permitem a essas economias evitar a apreciação de suas moedas e a consequente exclusão de sua produção do mercado mundial.
Segundo, todos os cinco países anglo-saxônicos mantêm vínculos geopolíticos estreitos com os Estados Unidos por meio de uma combinação de acordos de cooperação para compartilhar serviços de inteligência, exercícios militares, ações de combate e por uma densa rede de elites que circula entre seus territórios. A integração de serviços militares e de inteligência é tão firme quanto a das finanças e, assim como nas finanças, há uma hierarquia de privilégios e acessos irradiada a partir do centro. Esses laços militares andam lado a lado com os financeiros. O debate sobre a retirada de tropas estadunidenses da Alemanha foi um exemplo do truísmo que permeia a precificação do petróleo em dólar pelos países exportadores em troca de proteção militar dos EUA.
Terceiro, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central estadunidense) é, na verdade, o banco central global. Por ser a última instância garantidora de liquidez em tempos de crise, o Fed exerce poder estrutural sobre quase todo o sistema financeiro mundial. O acesso ao Fed é questão de vida ou morte para sistemas bancários do mundo todo em momentos de grande crise financeira. Em termos técnicos, o dólar estadunidense é a “moeda soberana” ou “moeda fiduciária” global. Colocando da forma mais simples possível, os sistemas monetários em geral são formados por moedas internas (criadas no interior do sistema financeiro) e moedas externas (criadas pelo Estado fora do sistema financeiro). Os bancos trocam a compra de dívida pública por uma licença para criar moeda interna, ou seja, por crédito a outros atores privados. Esse crédito não precisa ser lastreado em reservas pré-existentes: em vez disso, a extensão desse crédito a outros atores cria um empréstimo que, por sua vez, vira um ativo, o depósito simultâneo dos fundos do empréstimo na conta do mutuário cria um passivo para o banco e, voilà, passa a existir um dinheiro novo. Mundialmente, quase 60% dos empréstimos transfronteiriços denominados em dólar são gerados por bancos não-estadunidenses. Em outras palavras, esses bancos voluntariamente criam passivos em dólares em seus balanços e, consequentemente, ficam dependentes do Fed em momentos de crise financeira. Mas esse “voluntariamente” deve ser lido num contexto em que exportar para os EUA transforma estagnação econômica em crescimento modesto. O superávit comercial acumulado pela zona do Euro entre 2011 e 2018 equivale a 90% do déficit acumulado no balanço de pagamentos dos EUA.
Os únicos limites à criação de moeda interna são a regulação e a fraca autodisciplina dos banqueiros. Nos anos 2000, bancos europeus e de outros países começaram a fazer empréstimos internacionais reciclando dólares que haviam acumulado por meio de superávits comerciais e da criação de moeda interna através do sistema eurodólar. A denominação em dólar do balanço do sistema bancário europeu ou canadense médio ultrapassou um terço do total, somando cerca de US$ 14 trilhões em ativos em 2017. Esse tipo de operação implica uma vulnerabilização considerável do sistema bancário na hipótese de colapso das garantias que salvaguardam esses ativos e de descumprimento dos mutuários no pagamento de seus empréstimos, como aconteceu em 2008 e 2020. Esses mesmos sistemas bancários, nessas crises, precisaram de dólares estadunidenses, mas seus bancos centrais não podiam criar moeda externa para resgatar os passivos denominados em dólar. Em vez disso, o Fed criou dólares – moeda externa – para emprestar para esses bancos centrais, para que eles, por sua vez, emprestassem para o seu próprio sistema bancário. Como acontece na cooperação militar, os países que mantinham vínculos mais próximos com os EUA receberam um tratamento melhor e tiveram acesso mais rápido a essas linhas de swap. Os laços financeiros do círculo anglo-saxônico são tão estreitos que alguns analistas se referem ao complexo de operações entre esses países como um conjunto coeso de “finanças anglo-americanas” e descrevem o banco central do Canadá como o “13° Fed“.2 O uso e a reciclagem de dólares mantém a transferência de recursos descrita nos dois pontos anteriores.
Quarto, o uso generalizado do dólar significa que os Estados Unidos ou instituições reguladas pelos Estados Unidos controlam a maioria dos fluxos comerciais e financeiros do mundo. Isso garante aos EUA, especialmente por meio do Tesouro, um poder tático ou operacional sobre os sistemas financeiros não-estadunidenses mesmo em situações que não são de crise. O sistema global de canalização financeira usa as redes Fed-wire, CHIPS e SWIFT, cujas transações são majoritariamente processadas em Nova York. Isso obriga que os bancos de outros países estejam presentes nos Estados Unidos que, além de sediarem, também regulamentam e supervisionam essa rede, o que lhes confere o poder de impor determinados comportamentos às instituições estrangeiras. A ameaça de exclusão das redes de transação em dólar, por exemplo, obriga bancos estrangeiros a cumprir as sanções impostas pelos EUA contra seus inimigos geopolíticos. A SWIFT expulsou bancos iranianos e norte-coreanos da sua rede de pagamentos, o que prejudicou grandemente os programas nucleares e o comércio comum dos países. Os EUA também utilizaram a ameaça de expulsão da rede de pagamentos como forma de obrigar bancos de outros países a aplicar sanções a empresas e bancos russos quando a Rússia invadiu a Crimeia.3 Ainda, os EUA usaram os dados de transferências financeiras internacionais da SWIFT para identificar e monitorar grupos terroristas. Enquanto o Fed dá a cenoura na gestão da crise, o Tesouro empunha o porrete da exclusão do sistema de pagamentos.
Análises como a de Feygin e Leusder estão certas por chamar atenção ao fardo exorbitante que o dólar estadunidense impõe à população dos EUA que não faz parte da elite. Mas esse fardo precisa ser entendido no contexto de um sistema de poder mais amplo que irradia de forma desigual a partir de Washington, Nova York, do Vale do Silício, etc., por meio de uma rede de países aliados, empresas e intelectuais descompromissados que se movem livremente entre fronteiras permeáveis de cidadania e residência permeáveis. Esse sistema foi fundado e está ancorado na utilização do dólar como a moeda real de um império global cujo centro orbita mas não é limitado a Washington. O privilégio exorbitante não compensa o fardo exorbitante: é o outro lado da moeda detida por grande parte da elite global de poder.
O balanço de pagamento inclui as transações correntes, formadas pelas balanças comercial e de serviço e pelas transferências unilaterais, e o movimento de capitais (empréstimos, investimentos, etc.).
↩O sistema do Federal Reserve é formado por 12 bancos regionais.
↩N.T.: Atualmente, desde fevereiro de 2022, a Rússia está banida da SWIFT em razão da guerra na Ucrânia.
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