30 de janeiro de 2025

Análises

Estado e desenvolvimento

Política industrial contemporânea e desafios para a economia brasileira

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Nas últimas décadas, afirmou-se uma retomada da política industrial na economia mundial. Sua base essencial foi a reação dos Estados Unidos à ascensão da China, cuja produção industrial, quer medida pelo valor da produção total, quer pelo valor adicionado, superou a estadunidense. Essa é uma circunstância inteiramente nova para a economia global, já que a polarização entre os Estados Unidos e União Soviética—que perdurou de 1945 até a diluição do bloco soviético em 1991—era essencialmente política: a disputa pela tecnologia mais avançada se circunscrevia ao terreno das armas. A nova polarização em torno da tecnologia nem sempre é destacada nas análises geopolíticas, que sublinham a fragmentação mundial e a emergência de diversas plataformas de negociação, como o G20 e os BRICS, por exemplo. Entretanto, quando se hierarquiza a disputa a partir da competição pelas tecnologias centrais, o antagonismo que se impõe é a entre os EUA e a China. Os demais países reagem a esse confronto.

A retomada da política industrial ganhou maior legitimidade e abrangência nos EUA e em diversos países da União Europeia (UE), ainda que neste continente o retorno do planejamento industrial priorize a redução das emissões de carbono. Na China, o planejamento e as políticas industriais verticais foram essenciais à transição iniciada por Deng Xiaoping em 1978, modelo que marcou também os grandes saltos industriais ocorridos no Japão, na Coreia do Sul e em Taiwan. Estratégias semelhantes, ainda que com menor capacidade de coordenação, também se difundiram em diversos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e especialmente na Índia. Os últimos anos marcam, portanto, uma retomada da política industrial entre países que dela se afastaram no auge do neoliberalismo e sua evolução como ferramenta econômica entre países que historicamente a praticaram.

Em outros países periféricos, entre eles o Brasil, a reação à ascensão chinesa foi distinta. Se no âmbito político o progresso chinês ampliou a capacidade de negociação internacional por meio da criação de plataformas como os BRICS (bloco em processo de expansão e diversificação geográfica), no âmbito econômico, contribuiu para uma evolução contraditória entre os planos da macroeconomia, da estrutura produtiva e do meio ambiente. A ascensão chinesa favoreceu a redução das restrições de balanço de pagamento e a expansão da demanda agregada—o chamado “efeito demanda”.1 No entanto, também ampliou a primarização da atividade econômica, o que tornou o Brasil fortemente dependente em commodities, na acepção da UNCTAD. Essa mudança na pauta exportadora não decorreu exclusivamente de características estruturais e das políticas econômicas adotadas internamente, mas se afirmou a partir da evolução dos mercados externos, o que também contribuiu para a ampliação do processo de desindustrialização e desnacionalização da economia.

O desenvolvimento chinês gerou impactos contraditórios para o Brasil, contribuindo para a configuração de um modelo de crescimento distinto do que marcou a fase mais industrializante do país—sobretudo na década de 1970—, mais convergente com o seu padrão histórico, assentado na especialização primário-exportadora. Esse padrão vem perseverando em que pesem as diversas políticas industriais introduzidas—ainda que de forma fragmentada—em todos os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), incluindo o atual, porque criou coalizões sociopolíticas que dificultam muito um processo de mudança estrutural. O desafio atual é construir uma trajetória de desenvolvimento sustentável que, ao mesmo tempo, gere emprego e renda, reduza as desigualdades sociais e leve a uma redução significativa do desmatamento, a principal contribuição do país à mudança climática. Promover essas transformações implica também a retomada e rediscussão das relações do Brasil com a China. Xi Jinping esteve no Brasil em novembro de 2024 para a reunião do G20. Há uma discussão em curso sobre novas iniciativas de cooperação, inclusive dos termos de um eventual ingresso no Brasil na Iniciativa Cinturão e Rota, que já envolve uma centena de parceiros (na América Latina, quase todos os países estabeleceram memorandos de entendimentos, com exceção de Brasil, Colômbia e México).

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A crescente rivalidade entre EUA e China é comumente atribuída a mudanças no plano da geopolítica. Mas a virada essencial se projetou no momento em que a complementaridade econômica estabelecida entre os países nos anos 1990 foi extinta,2 dando lugar ao antagonismo entre interesses nacionais, assentado não apenas numa perspectiva geopolítica distinta, mas também nos interesses e estratégias de grandes grupos econômicos—privados e estatais. Enquanto havia ampla complementaridade entre as empresas chinesas, especializadas na produção em atividades intensivas em mão de obra, e as estadunidenses, detentoras de marcas e tecnologia, as relações econômicas eram apoiadas por lobbies no Congresso americano que garantiam à China a renovação do status de “Nação mais Favorecida” no GATT.3 Com o catch-up tecnológico chinês e a estratégia voltada à tecnologia endógena adotada nos anos 2000, pressões internas para o endurecimento comercial contra a China passaram a ser exercidas nos EUA pelas mesmas empresas que antes apoiavam o regime chinês. Empresas estadunidenses desfizeram seus lobbies e passaram a endossar a posição mais belicista do Pentágono contra o país asiático. 

A mudança de percepção dos grupos econômicos a respeito da China está por trás da retomada da política industrial americana. Trata-se de uma perspectiva clássica de nacionalismo econômico, defendido pelos governos e apoiado pelas empresas que experimentam ameaças a suas parcelas de mercado. Nos documentos que definiram a estratégia econômica do Joe Biden, defendia-se que os EUA precisavam adotar uma moderna estratégia industrial adequada a tempos de competição estratégica com grandes potências. Essa argumentação está presente no preâmbulo das leis de investimentos de emprego e infraestrutura, de criação de incentivos para a produção de semicondutores e da lei de redução da inflação, aprovadas entre 2021 e 2022.4 A digitalização e as tecnologias verdes são consideradas estratégicas. Embora os Estados Unidos tenham uma posição muito superior à da China na indústria de semicondutores (ainda que o país asiático venha evoluindo muito rapidamente), nas áreas de tecnologia verde, a China lidera com grande capacidade de se tornar um produtor praticamente monopolista em diversas áreas. Como a evolução dessas tecnologias depende do acesso a minerais estratégicos (como as terras raras, o lítio, o nióbio etc.), o  próprio conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, destacou o risco de que as cadeias de suprimento de energia limpa sejam armamentizadas—como ocorreu com o petróleo nos anos 1970 ou com o gás natural na Europa em 2022.

É no setor de semicondutores que se localiza a disputa tecnológica contemporânea mais importante na economia global, e é nessa cadeia de suprimentos que os EUA tem usado todo o seu arsenal de políticas mercantilistas—entre elas, estratégias que poderiam ser interpretadas como medidas de sabotagem visando minar a capacidade de produção e de progresso tecnológico chinês. As políticas estadunidenses de semicondutores e outros materiais estratégicos possuem elementos compulsórios que, em nome da segurança nacional, buscam disciplinar os mercados. Elas mostram uma vez mais o acerto da percepção de Adam Smith, de que a segurança nacional vem na frente dos interesses do mercado. Essas políticas recebem, evidentemente, diversas críticas de economistas liberais e de instituições como a OMC, mas fato é que, tanto no passado como agora, o governo dos EUA promove ou desrespeita as leis comerciais internacionais segundo seus interesses domésticos, quase sempre referidos como elementos de segurança nacional.

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A mudança climática assumiu uma dimensão essencial na reconfiguração da política industrial contemporânea, mas se assentou num momento de grande acirramento de conflitos econômicos e geopolíticos: ao mesmo tempo em que a redução dos índices de CO2 constitui um bem público universal, o mundo se encontra imensamente fragmentado e desigual em termos de renda e de condições de vida, desigualdade que aumentou entre e intrapaíses. Isso torna muito difícil estabelecer uma mesma régua para as políticas universais que o planeta exige, na medida em que os países possuem condições muito diferenciadas. Mesmo assim, há caminhos de planejamento doméstico que podem abrir portas para países periféricos. 

A política industrial de hoje, assim como aquela que se afirmou historicamente, inclui uma grande variedade de instrumentos, como financiamentos diferenciados do comércio externo, empréstimos governamentais, prioridades estabelecidas por bancos de desenvolvimento, assistência financeira diferenciada nos mercados internacionais, compras públicas voltadas para a produção doméstica, garantias de empréstimos e tarifas diferenciadas. A priorização de atividades econômicas estratégicas também está presente em quase todas as experiências nacionais. O que há de comum entre esses instrumentos é que eles possuem uma forte dimensão política, de forma que, para serem adotados de forma coesa e eficaz, necessitam reunir recursos políticos para sustentar, em nome de uma perspectiva geral do país, escolhas que não necessariamente se confundem com aquelas tomadas pelo mercado, mesmo em relação a setores cujos preços podem ser alterados por decisões políticas.

Algumas políticas recentemente implementadas na China e na Índia revelam o amplo protecionismo que veio se afirmando no planejamento industrial asiático. Na década de 2010, a brasileira Embraer, por exemplo, começou a produzir jatos comerciais na China. Dez anos depois, decidiu fechar as operações porque o governo chinês estava mais interessado na promoção de um avião com tecnologia nacional e criou um conjunto de circunstâncias comerciais e institucionais que tornavam não competitivos os custos de produzir os aviões da Embraer no país. Um outro exemplo fundamental: a China é talvez o maior produtor das terras raras do mundo. Já nos anos 1990, Deng Xiaoping observou que o país não tinha petróleo, mas tinha esse recurso estratégico composto por diversos minerais utilizados em painéis solares, motores elétricos, semicondutores, aviônicas e afins. No início, a China se tornou um grande exportador, mas posteriormente reduziu substancialmente as exportações, desenvolvendo o downstream de toda a cadeia com a produção de células fotovoltaicas e painéis solares. Recentemente, a Indonésia proibiu a exportação de cobalto e, com isso, atraiu diversas firmas chinesas para produzir baterias no país. Nas últimas décadas, a Índia também adotou um grande programa de estímulo à aviação doméstica por meio de compras governamentais de aviões de guerra, estabelecendo condicionalidades que favorecem fornecedores locais e estimulando a exportação de partes, componentes e aviões acabados. A partir desta política, a Índia se transformou num significativo exportador de aviões. 

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A evolução da política industrial nos EUA e na Europa e as políticas nacionais-desenvolvimentistas voltadas à inovação, industrialização e diversificação produtiva na Ásia contrastam fortemente com a direção de política econômica que se consolidou no Brasil. O país se tornou um grande exportador de petróleo, soja, carne, ferro e diversos outros minerais, e um grande importador de bens de capital e eletrônicos procedentes da China.5

No Brasil, a discussão predominante sobre a desindustrialização se baseia essencialmente na parcela do valor da transformação industrial no PIB. Mas essa é uma medida imprecisa se não se controlar as outras variáveis relevantes que afetam esta razão, como as transformações em outros setores e a dinâmica do crescimento da economia mundial. Em quase todos os países ricos em recursos naturais, houve tanto uma queda na parcela da manufatura quanto um aumento na parcela das exportações primárias em relação à de manufaturados. Medidas como a participação do valor adicionado do setor manufatureiro nacional no setor manufatureiro mundial são menos ambíguas: no Brasil, entre 2012 e 2022, houve um declínio de 0,73% ao ano.6

Embora a questão da desindustrialização tenha sido amplamente discutida no país, há pouca ênfase sobre o processo da desnacionalização. Na última década, o Brasil figurou como um dos maiores recipientes mundiais de investimento direto estrangeiro (IDE). Em todo o mundo, esse processo de desnacionalização tem implicações sobre os limites das políticas industriais destinadas a promover as empresas nacionais. A baixa presença dessas empresas nas áreas mais distantes dos recursos naturais dificulta, no plano político, a adoção de políticas industriais voltadas aos novos setores e ao processo de inovação. 

A retomada de um programa industrializante é, portanto, um desafio central, e enfrenta velhos e novos obstáculos. Em primeiro lugar, integrar as velhas cadeias produtivas que foram desfeitas e reduzir o déficit de infraestrutura básica constitui uma antiga tarefa desenvolvimentista, mas que se afirma hoje num contexto bastante distinto. O Brasil está comprometido no Acordo de Paris e estabeleceu uma meta de emissão líquida zero até 2050. Ao mesmo tempo, precisa resgatar o atraso tecnológico no setor manufatureiro. Face a estes desafios, o país conta com alguns ativos muito positivos, como a matriz energética limpa. Com efeito, para os grandes países que mais crescem no mundo, como a China e a Índia, reduzir a dependência do carvão na matriz energética já teria significativo impacto para a redução da emissão de CO2. O Brasil, com sua base hidrelétrica maior, e agora contando uma forte expansão de parques eólicos e energia solar, pode viabilizar um aumento da produção industrial com uma energia muito mais limpa.7 A questão da eletricidade no país, no entanto, é não apenas relacionada à expansão da oferta, mas ao preço. A energia no Brasil é cara e a política de preços é complexificada diante dos processos de privatização da Eletrobras e do tipo de diversificação e composição atual da oferta, com a presença significativa, para além da energia hídrica, da eólica e da solar e das fontes baseadas em gás que as complementam. Dado os limites da hidroeletricidade, a expansão da oferta demandará mais investimentos nas fontes renováveis, e reduzir o preço da tarifa é um desafio distributivo fundamental.8

Ainda assim, o país reúne boas possibilidades na produção de veículos elétricos, principalmente de motores híbridos. Hoje, o Brasil exporta para a China manganês, nióbio, níquel, lítio, grafite e bauxita. A questão relevante é internalizar segmentos importantes das cadeias produtivas destes veículos. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de 2023 e a Nova Indústria Brasil (2024) já incluem uma política de industrialização do lítio. Embora em pequenas dimensões, a chinesa BYD começou a produzir baterias na zona franca de Manaus, sinalizando perspectivas para um programa de produção industrial combinando motores elétricos com o etanol e o biodiesel.

No entanto, para além da questão industrial, o desafio ambiental principal do país não é representado pelas emissões relacionadas à matriz energética, mas por aquelas provenientes do desmatamento. O Brasil é um razoável emissor de gases de efeito estufa. Do ponto de vista setorial, a agricultura e a pecuária são os grandes responsáveis, e o uso e manejo de terras e o desmatamento constituem as principais externalidades de sua expansão. O forte desmatamento ocorrido no governo de Jair Bolsonaro deveu-se à desregulação que favoreceu uma expansão selvagem. Com o novo mandato de Lula, em 2023, houve redução do desmatamento e uma retomada de mecanismos de fiscalização. Esta evolução positiva, entretanto, é insuficiente e tende a ser cada vez menos significativa se as trajetórias de expansão e acumulação predominantes permanecerem inalteradas. A dificuldade desta questão é que o seu enfrentamento confronta o poder político dos grandes proprietários do agronegócio. O Brasil já aprovou a criação de um mercado de carbono, mas, em razão da força do agro no Congresso, o sistema “cap and trade” proposto exclui a agricultura, responsável pela maior emissão de gases.9

O que distingue hoje a experiência dos EUA, da China e de diversos países asiáticos face aos desafios comerciais e tecnológicos é um comprometimento forte do governo e de seus órgãos de planejamento com uma política industrial voltada à inovação e à mudança estrutural. Nesses países, a política industrial se afirmou como política econômica prioritária. No Brasil, o PAC, a Nova Indústria Brasil e o Plano de Transformação Ecológica (2023), bem como as cartas de intenção visando a cooperação tecnológica com a China assinadas em 2024, procuram responder a estes desafios a partir de uma realidade econômica caracterizada pela desindustrialização e pela forte dependência de commodities na pauta exportadora. Esses programas priorizam e elegem a infraestrutura, o desenvolvimento produtivo, a reindustrialização a diversificação exportadora, a digitalização, a inteligência artificial, o complexo industrial da saúde, a descarbonização e a bioeconomia como áreas prioritárias para a alocação de investimentos e esforços de pesquisa e desenvolvimento. A questão fundamental é que, para serem eficazes e se transformarem em projetos de investimento com impactos sobre a estrutura produtiva, além de coordenação, esses programas requerem escala, recursos fiscais, créditos direcionados, políticas comerciais estratégica e mecanismos de indução, como compras governamentais voltadas para a inovação. 

Ao longo dos governos anteriores do PT, existiram nominalmente diversas políticas industriais voltadas à mudança estrutural. Entretanto, implementadas em um período caracterizado por elevada expansão do agronegócio exportador, essas políticas se revelaram muito frágeis para confrontar os processos de desindustrialização e regressão da estrutura industrial. Os investimentos em infraestrutura—base essencial para a produtividade sistêmica do país—, objetivo central do novo PAC, iniciara, alguma retomada, mas em patamar estruturalmente baixo face às necessidades brasileiras (tendo em vista sua longa estagnação), especialmente se comparados com os países em transformação. Se, nos anos 1970, esses investimentos atingiram cerca de 10% do PIB, hoje, representam aproximadamente 2,6%, e a expectativa de expansão depende em grande parte de incertas iniciativas baseadas em regime de parcerias público-privadas. Sem uma elevação da capacidade de investimento do Estado (os da União se mantêm estagnados há anos), qualquer processo de transformação estrutural ou não inicia ou ocorre de forma desequilibrada e assimétrica.

A inclusão dos investimentos públicos em infraestrutura estratégica—como os do PAC—em metas fiscais sobre despesas primárias—como a que vigora no país—é um limite que torna a expansão de gastos dessa natureza dependente de fluxos privados de investimentos e IDEs que dificilmente atendem, em termos de volume ou direção, o processo de transformação desejada. É indiscutível que o BNDES, após uma sequência de governos na qual perdeu o seu foco histórico na indústria e reduziu sua importância como emprestador de longo prazo, assumiu no terceiro mandato de Lula um novo protagonismo, com forte comprometimento com a industrialização e com a mudança estrutural, desenvolvendo iniciativas financeiras em linha com as prioridades estabelecidas pela Nova Indústria Brasil e pelo Plano de Transformação Ecológica. Ainda assim, sua expansão como investidor de longo prazo encontra limites em relação à dependência do Tesouro Nacional. De toda forma, o impacto do banco de desenvolvimento sobre o processo de mudança depende não apenas de novos mecanismos de financiamento que permitam uma expansão do crédito, mas também das decisões de investimento privado e de empresas estatais.

Além disso, a retomada da política industrial requer maior interdependência público-privada, de forma a viabilizar uma articulação maior entre governo, empresas de tecnologia, universidades e laboratórios de pesquisa. Existem importantes iniciativas de negociação com empresas estrangeiras, a  exemplo da parceria da BYD com laboratórios da Universidade de Campinas para o desenvolvimento de tecnologias de painéis solares.10 O Brasil é hoje um grande importador de painéis solares que, por sua vez, constituem o principal produto exportado pela China. A produção local destes equipamentos e a internalização de parte desta cadeia produtiva, assim como a produção de baterias e de parte da cadeia produtiva de veículos elétricos e híbridos, são oportunidades que o Brasil pode aproveitar utilizando instrumentos como tarifas, financiamento e compras governamentais. Há também perspectivas relacionadas a investimentos da firma chinesa em big data e inteligência artificial, com importante potencial de impacto na infraestrutura da tecnologia da informação e comunicação (TIC).

Outra oportunidade para o Brasil é a produção em grande escala de bioetanol, biodiesel, biocombustível de aviação e hidrogênio verde, tendo em vista a demanda mundial e as capacitações tecnológicas já existentes. Em geral, as áreas prioritárias destacadas nos memorandos de entendimento de cooperação tecnológica com a China, especialmente a bioenergia e a TIC, poderiam reforçar a articulação entre pesquisa e investimento no país. Tendo em vista a crescente rivalidade entre os EUA e a China, o Brasil poderia aumentar sua capacidade de negociação comercial e diplomática para atrair projetos de alta tecnologia das potências rivais e aumentar o conteúdo local dos investimentos das empresas chinesas e norte-americanas, numa direção semelhante à seguida pelos próprios EUA, China e outros países asiáticos. A expansão desses projetos, entretanto, depende não apenas da capacidade de negociação, mas das iniciativas e contrapartidas financeiras internas, da ampliação dos recursos disponíveis no BNDES e na Finep11 e daqueles destinados aos laboratórios de pesquisa das universidades. 

Por fim, há uma questão institucional sobre a relação entre Estado e mercado. Como se discutiu anteriormente, a política industrial nos EUA, na China e nos países asiáticos incluiu não apenas a discriminação seletiva de setores e atividades, mas também a política de compras públicas voltadas para as inovações. No Brasil, as compras públicas foram  historicamente importantes em diversas áreas, a exemplo do setor petroquímico nas compras relacionadas à saúde pública. Mas, nos últimos tempos, têm sido uma política fortemente dominada por questões de eficiência e de transparência,12 visando essencialmente a obtenção menores preços, sem maiores considerações de médio prazo para o desenvolvimento tecnológico. Em síntese, o problema central percebido há algum tempo por Maria da Conceição Tavares13 para um renovado Estado Desenvolvimentista parece ainda bastante atual:

A questão é o próprio poder do Estado, […] não basta uma burocracia de planejamento, não bastam bancos e empresas estatais. Para que um plano de desenvolvimento funcione é necessário que haja um grau de articulação econômica estrutural e um controle sobre os investimentos e as políticas públicas globais que, por sua vez, implicam um elevado grau de articulação política no seio do Estado e alguma forma de pacto social.

 

  1. Medeiros, C. A.; Cintra, M. R. V. P. 2015. Impacto da ascensão chinesa sobre os países latino-americanos. Revista de Economia Política n. 35(1).

  2. Medeiros, C. A. and Trebat, N. 2024. From Complementarity to Rivalry: The Political Economy of United States-China RelationsJournal of Economic Issues, Taylor & Francis Journals, vol. 58(2), pages 525-532.

  3. Hung, Ho-Fung. 2022. Clash of Empires: From “Chimerica” to the “New Cold War”. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

  4. Medeiros, C. A.; Majerowicz. 2024. Política Industrial Contemporânea e Desafios para a América do Sul e o Brasil, em: Singer A., Ricupero B., Araújo C. e Rugitsky F., O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra. Editora Unicamp.

  5. Medeiros, C. A.; Majerowicz. 2024. Política Industrial Contemporânea e Desafios para a América do Sul e o Brasil, em: Singer A., Ricupero B., Araújo C. e Rugitsky F., O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra. Editora Unicamp.

  6. Amaral, F; Freitas, F.; Castilho, M. 2020. International trade, regressive specialization, and competitiveness: a decomposition for the growth of Brazilian exports between 1995 and 2014. Instituto de Economia da UFRJ, Texto para Discussão 011.

  7. Chen C, Kirabaeva, K. Kolerus, C.  Parry, I., and Vernon, N. 2024. Changing Climate in Brazil: Key Vulnerabilities and Opportunities, IMF Working Paper, WP/24/185.

  8. Medeiros, C. A.; Trebat, N. 2024 Climate Change and Its Social and Developmental Impacts, EAEPE, Bilbao, 2024.

  9. Medeiros, C. A.; Trebat, N. 2024. Climate Change and Its Social and Developmental Impacts, EAEPE, Bilbao, 2024.

  10. Hiratuka, C. 2022. Why Brazil Sought Chinese Investments to Diversify Its Manufacturing. Acesso em janeiro de 2025.

  11. Empresa pública brasileira de fomento à ciência, tecnologia e inovação.

  12. Mazzucato, M. 2023. Inclusive and Sustainable Growth: A Mission-driven Multi-stakeholder Approach, Revista de Economía Pública, Social y Cooperativa, 107: 27–35. https://doi.org/10.7203/CIRIEC-E.107.26371

  13. Tavares, Maria da Conceição. 1986. Problemas de industrialización avanzada em capitalismos tardios y periféricos. IEI, Texto para Discussão, p 1.

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