Tarifas de importação costumam ser adotadas em dois momentos-chave do desenvolvimento de uma economia nacional: ou na fase inicial ou na fase inicial da industrialização, quando se tenta proteger e fortalecer indústrias nascentes, ou na fase de declínio, quando as elites tentam adiar a decadência que se aproxima. A caótica guerra comercial de Donald Trump é um claro exemplo do segundo caso. No entanto, em meio ao forte recuo da hegemonia estadunidense, vem surgindo um arranjo geoeconômico e geopolítico alternativo: uma globalização com características chinesas e movida a bateria. Nesse processo de reordenação, a China está pronta para ser protagonista, tendo a tecnologia verde como motor. A enorme expansão internacional de seu setor de veículos elétricos (VEs) é o exemplo mais evidente disso.
Se, até recentemente, a qualidade dos veículos elétricos chineses foi ridicularizada por gente como Elon Musk, hoje, sua excelência é incontestável. Além disso, a supremacia tecnológica da China está se traduzindo rapidamente em domínio de mercado, a ponto de ameaçar ultrapassar outros líderes não apenas do mercado de VEs, mas do setor automotivo como um todo. Isso traz consequências sísmicas para a geografia econômica internacional.

A BYD é o exemplo mais significativo dessa expansão internacional. Depois de surpreender os analistas com seu aumento global de vendas no fim de 2023, a BYD agora está à frente da Tesla, que até recentemente era líder incontestável do setor de VEs. Em 2024, enquanto o valor das ações e as vendas da empresa de Musk caíram, a BYD acumulou sucessos: registrou um recorde de vendas de 4,3 milhões de carros elétricos, um aumento de 41%. Agora, está confortavelmente à frente da Tesla na categoria geral de veículos de nova energia (NEVs, na sigla em inglês), que inclui veículos elétricos a bateria (BEVs) e veículos elétricos híbridos plug-in (PHEVs). De acordo com os últimos relatórios, a BYD está praticamente empatada com a Tesla em vendas de BEVs: enquanto a Tesla vendeu 1.790.000 unidades, a BYD vendeu 1.764.000—um aumento de 12% em relação ao ano anterior. Tendo em vista as taxas de crescimento anual superiores a 50% e o enorme potencial inexplorado do setor de VEs, é razoável esperar que, na próxima década, a BYD ultrapasse a Toyota como a líder mundial em automóveis.
Uma coisa é certa: ela já se comporta como uma empresa que busca o domínio mundial em seu setor. Até recentemente, o setor automotivo e de VEs chinês era, em geral, um fenômeno doméstico, com a maior parte dos veículos vendidos para o mercado interno. Agora, as empresas chinesas estão expandindo sua produção em todo o mundo, em escala e velocidade sem precedentes. Na Indonésia, na Tailândia, no Paquistão, na Turquia, na Hungria, no Brasil e no México, fábricas de veículos elétricos—algumas capazes de produzir mais de 100 mil unidades por ano—estão sendo instaladas para atender à crescente demanda por VEs chineses que, além da alta qualidade, são cerca de 20% mais baratos do que os ocidentais.
Um fator decisivo para essa expansão é o esforço para mitigar o risco potencial de tarifas de importação e outras barreiras comerciais em um ambiente de crescente protecionismo. Ao montar seus carros em fábricas no exterior, as empresas chinesas esperam driblar as taxas de importação que inviabilizariam a competitividade internacional de seus produtos. Mesmo assim, a instalação de fábricas no exterior ainda é uma operação delicada, que depende não apenas de cálculos complexos da própria empresa sobre perspectivas futuras, mas também de desenvolvimentos geopolíticos e diplomáticos. Mapear a expansão internacional de uma empresa como a BYD, portanto, nos permite compreender aspectos relevantes da estratégia de relações internacionais da China.
De Shenzhen para o mundo
A sede oficial da BYD e o coração industrial da empresa estão localizados na agora famosa cidade de Shenzhen, no Delta do Rio das Pérolas, perto de Hong Kong e Cantão—região destinada a se tornar a Palo Alto do século XXI. Criada em 1979 numa área pantanosa que abrigava uma vila de pescadores, Shenzen foi a primeira Zona Econômica Especial da China, estabelecida por Deng Xiaoping como parte de suas políticas de “Reforma e Abertura” (改革开放, Gaige Kaifeng). A cidade rapidamente se tornou um centro global de fabricação de bens eletrônicos, abrigando muitos fabricantes de equipamento original (OEM, na sigla em inglês), a exemplo da Foxconn, que produz para várias marcas internacionais, como Apple, Sony e Dell. Firmas chinesas—Huawei, Xiaomi, Hisense e Oppo—também se instalaram nessa nova Zona Econômica Especial, assim como corporações de internet, como a Tencent.
Em 2000, a BYD inaugurou seu primeiro grande parque industrial no distrito de Kuichong, em Shenzhen. Na época, não era uma empresa automotiva: produzia baterias para bens eletrônicos de consumo da Motorola e da Nokia. A companhia foi fundada por Wang Chuanfu, cientista e empresário com doutorado em química de baterias, cujo patrimônio líquido atual é de US$ 23 bilhões. A notável transformação da BYD de uma empresa de baterias em uma de automóveis foi, em parte, facilitada pela aquisição da antiga estatal Tianjin Qinchuan Auto Manufacturing. O primeiro carro produzido pela BYD foi o F3, um sedã compacto tradicional com motor de combustão interna, feito na fábrica de Changsha, em Hunan, onde os custos de terra e mão de obra eram menores em comparação com Shenzhen e cuja localização possibilitava um envio mais fácil e barato para norte do país. No entanto, tanto em termos de fabricação de baterias quanto de montagem efetiva, Shenzhen continuou sendo o verdadeiro centro de produção de veículos elétricos.
Atualmente, a BYD conta com cinco fábricas em Shenzhen, algumas delas agrupadas em torno da “BYD Road”, no distrito de Pinghsan. Ali, mais de 500 mil carros dos modelos Tang, Qin e Dolphin são montados todos os anos. Além de Shenzhen e Changsha, há grandes fábricas em Qinzhou, Guangxi (que produzem cerca de 100 mil veículos por ano), em Fuzhou, Fijian (150 mil veículos), em Xangai (pelo menos 150 mil carros) e em Tianjin (200 mil). Juntas, essas fábricas são responsáveis pela maior parte dos quase 2 milhões de veículos elétricos produzidos anualmente na China.
Até o início da década de 2020, a produção de VEs da BYD tinha como foco principal o mercado doméstico, enquanto suas operações no exterior estavam voltadas à produção de ônibus e caminhões, que são os veículos da BYD mais presentes em muitos países fora da China. Até 2024, 87% dos veículos de nova energia da BYD foram vendidos internamente. O sucesso da BYD se deve não somente ao tamanho do mercado chinês, mas também à forma como, ao concentrar estrategicamente todas as suas operações essenciais—como pesquisa e desenvolvimento, fabricação de componentes (incluindo baterias e semicondutores), montagem de veículos e logística da cadeia de suprimentos—no território nacional, ela conseguiu desenvolver amplas economias de escala por meio da integração vertical.

O alto grau de diversificação e sofisticação tecnológica da China foi facilitado por políticas industriais dirigidas pelo Estado—como aquelas adotadas sob os auspícios do plano Made in China 2025—, com o uso de subsídios, investimento em pesquisa e outros incentivos destinados a acelerar o desenvolvimento tecnológico do país. O mercado chinês, dinâmico e ávido por inovação—atualmente, 50% dos veículos novos vendidos são elétricos—serve como uma poderosa plataforma de lançamento para empresas como a BYD, a Xiaomi e a Geely, que agora buscam o domínio mundial. Em 2023, suas vendas de NEVs no exterior cresceram impressionantes 77%. O entusiasmo, no entanto, foi atenuado pela taxa de crescimento de 2024, de apenas 6,7% em comparação com o ano anterior. Em 2025, há um risco de estagnação das vendas. Se não garantirem uma parcela substancial do total de vendas no exterior, a sustentabilidade econômica dessas empresas será ameaçada.
A corrida dos VEs no Sul e Sudeste Asiático
Além da “Rota da Seda”, parte da Iniciativa Cinturão e Rota que atravessa a Ásia Central, a China busca implementar o que vem chamando de “Rota da Seda Marítima”, empreendimento que conectaria portos chineses—Xangai, Fuzhou, Guangzhou e Shenzhen—a portos e infraestruturas logísticas no subcontinente indiano. A partir daí, o acesso ao Oriente Médio, ao Mediterrâneo e a portos europeus como Pireu, Triste, Roterdã e Hamburgo estaria garantido.
Esse corredor litorâneo é reconhecido há muito tempo como um importante vetor de poder geopolítico. Para a China, essa rota comercial adquiriu importância inigualável após a guerra da Ucrânia, que interrompeu muitas vias de comércio continentais e fez com que alguns projetos da Cinturão e Rota fossem adiados ou tivessem sua escala reduzida. O eixo comercial que vai do Estreito de Malaca até o Mediterrâneo ocidental e se estende de Indonésia, Tailândia, Índia, Paquistão até o Oriente Médio, o norte da África e a União Europeia abrange uma área que concentra metade da população mundial e que, no devido tempo, será responsável por uma parcela significativa do mercado de VEs. Portanto, não surpreende que exatamente ao longo desse corredor—pontuado por alguns dos principais portos controlados por empresas chinesas como a COSCO—estejam sendo construídas algumas das mais importantes fábricas chinesas de VEs.

Na fronteira sul da China, a BYD está aumentando a presença no Camboja, correndo atrás das concorrentes Ford, Hyundai e Toyota, e no Vietnã, onde está construindo uma fábrica de US$ 250 milhões no parque industrial de Phu Ha. A planta vietnamita deverá produzir 150 mil veículos por ano e há a possibilidade de construção de uma segunda fábrica para explorar ainda mais os baixos custos de mão de obra do país. Na vizinha Tailândia—o segundo maior mercado de automóveis do Sudeste Asiático—, a BYD está investindo US$ 500 milhões em uma fábrica no Corredor Econômico Oriental de Rayong, com capacidade anual prevista de 150 mil veículos. Do outro lado do Mar de Java, a empresa investiu US$ 1 bilhão em uma nova fábrica em Subang, Java Ocidental. As operações estão programadas para começar em 2026, com uma meta de produção anual de 150 mil veículos destinados principalmente ao enorme mercado interno do país: 285 milhões de consumidores, que devem comprar 2 milhões de VEs por ano até 2030. E tanto a BYD quanto outras automotivas chinesas não estão investindo apenas em montadoras, mas também na cadeia de suprimentos e em logística. Enquanto isso, o governo chinês injeta dinheiro na construção de infraestrutura na região, fomentando a cooperação econômica e promovendo a diplomacia cultural. Esses casos ilustram como o governo Chines está bastante ciente da importância estratégica dessa região na “periferia sul” da China, que gostaria de ver se tornar um centro confiável para “friendshoring” e parcerias de longo prazo.
A Índia é um caso à parte. Atualmente um grande importador de produtos chineses, o país pretende desenvolver sua própria capacidade tecnológica, o que inclui um setor de VEs. Para tanto, a Índia já começou a restringir os investimentos chineses. Uma consequência significativa disso é que, hoje, a BYD tem uma única fábrica em todo o país: localizada em Tamil Nadu, produz apenas 10 mil veículos por ano. Em resposta à aversão da Índia à influência chinesa, a BYD e suas irmãs se voltaram para o Paquistão, que abriu suas portas com entusiasmo para os investimentos chineses em VEs a fim de se tornar um centro global de exportação. Em colaboração com a empresa paquistanesa Mega Motors, a BYD planeja instalar uma fábrica em Karachi. A planta, já em construção e com inauguração prevista para 2026, produzirá inicialmente 50 mil carros por ano para o mercado paquistanês, com possibilidade de ampliação—a expectativa é de que, até 2030, 50% dos carros vendidos no país sejam elétricos. A BYD já comercializa três modelos no Paquistão: o Atto 3, o Seal e o Sealion. Além disso, fez uma parceria com a HubCo, maior empresa privada de fornecimento de serviços essenciais do país, para construir uma rede de estações de carregamento rápido. Esse caso é ilustrativo da visão de longo prazo e do foco em infraestrutura da BYD, bem diferentes da atitude de seus concorrentes ocidentais—tanto empresas quanto governos—que, em detrimento próprio, tendem a adotar uma visão curto-prazista.
Ofensiva industrial e estratégia de sedução na Europa
As empresas chinesas de VEs estão de olho nos mercados em expansão do Sudeste Asiático e do Sul da Ásia, mas o grande troféu são os ricos mercados de automóveis da Europa: o continente, que inclui a UE e o Reino Unido, é o terceiro maior mercado de automóveis e o segundo maior mercado de VEs depois da China, com 1,5 milhão de veículos registrados em 2024 (uma ligeira queda em relação ao ano anterior, em parte devida ao fim dos subsídios alemães). A China está interessada em aumentar as vendas na Europa, mas também deseja ter relações mais próximas com a região—que enxerga como potencial parceira no desenvolvimento de uma ordem multipolar. As tarifas de importação da União Europeia sobre os VEs chineses, no entanto, dificultam a tarefa.
No fim de 2023, houve aumento das tarifas aos VEs da China. A BYD foi impactada por uma tarifa de 17%, acrescentada ao imposto de importação padrão de 10% já em vigor; outras empresas chinesas foram afetadas por percentuais ainda mais altos: 18,8% para a Geely e 35% para a SAIC—por conta de auxílio estatal ou de subsídios que Bruxelas considera desleais. Uma consequência possivelmente não intencional dessas políticas protecionistas é que elas criam incentivos para que as empresas chinesas evitem as tarifas abrindo fábricas na Europa. Uma tática comum já utilizada pelas empresas de automóveis é enviar “kits desmontados” para um determinado país, para a montagem e venda no mercado interno. Esses kits são classificados como componentes e, em geral, pagam uma tarifa mais baixa do que os produtos prontos. Isso também é mais eficiente do ponto de vista da cadeia de suprimentos: é mais fácil transportar um carro desmontado. No entanto, as autoridades locais podem ver nisso uma tática de evasão e exigir que, para se qualificar como local, um carro precise incorporar maior valor agregado e conteúdo locais. Em resposta a essas questões, a BYD e outras empresas chinesas de VEs elaboraram uma estratégia de relacionamento e investimento de longo prazo, desenvolvendo centros de P&D no continente e firmando parcerias de longa duração com fornecedores. Além disso, a BYD também está jogando a carta do soft power, patrocinando eventos e fazendo campanhas de comunicação para se aproximar dos cidadãos europeus.
Até agora, o investimento mais significativo da BYD na Europa ocorreu na Hungria, país conhecido por sua robusta cadeia de suprimentos automotivos e pela estreita relação com a China. Os números são impressionantes: 44% de todo o investimento estrangeiro direto chinês na União Europeia vai para a Hungria e a BYD está concluindo a construção de uma grande fábrica em Szeged, perto da fronteira com a Sérvia e a Romênia. Espera-se que o investimento de 1 bilhão de dólares resulte na produção—e não simplesmente na montagem—de 150 mil a 200 mil carros por ano, que deve começar em meados deste ano. Para garantir a cadeia de valor local, a BYD firmou uma parceria com a francesa Forvia, a sétima maior fornecedora de tecnologia automotiva do mundo, para abastecer a fábrica de Szeged. A fábrica, no entanto, está agora sujeita a uma investigação da UE por auxílio estatal desleal, o que poderia forçar a empresa a reduzir sua capacidade ou vender parte de seus ativos.
Se essas apurações revelam algum grau de vulnerabilidade, não restringem os ambiciosos planos de expansão da BYD. A empresa já iniciou a construção de uma segunda fábrica para aumentar sua produção europeia. Uma nova planta em Manisa, perto de Izmir, tem inauguração prevista para meados de 2026, com capacidade anual de 150 mil carros. A posição da Turquia nos limites da Europa é essencial nesse sentido. Embora não faça parte do mercado único da UE, ela é parte fundamental de sua área alfandegária. Isso significa que um carro montado na Turquia é poupado de tarifas pesadas. A “cooperação estratégica” entre Turquia e China, explicitada na recente adesão à Iniciativa do Cinturão e Rota, torna o país uma escolha natural para a expansão europeia da BYD.
Além disso, uma terceira fábrica na Europa está sendo cogitada. Houve rumores de que a Itália seria um possível local, dado o interesse de seu governo em diversificar os fabricantes para compensar o declínio na produção da Stellantis (controladora da Fiat). As reuniões iniciais com a BYD foram pouco promissoras, mas há relatos de que a Chery está interessada em investir na Itália. Relatórios mais recentes indicaram que a Alemanha é o local mais provável para essa terceira fábrica da BYD na Europa. Fábricas de automóveis da Volkswagen e de outras firmas alemãs que estão prestes a fechar podem ser os terrenos mais atraentes para o investimento de empresas chinesas. Obter acesso à infraestrutura produtiva da Alemanha, bem como à sua posição no centro do mercado europeu, seria uma vantagem para qualquer empresa chinesa em busca de expansão.
A BYD não deseja simplesmente construir algumas fábricas na Europa: pretende se posicionar como um parceiro amigável do continente. Os executivos da BYD têm afirmado com frequência que a empresa quer “se tornar europeia”. Na prática, isso significa investir em uma produção abrangente (não apenas em montagem), estabelecer centros de pesquisa e desenvolvimento—como o que está previsto para o Reino Unido—e promover uma robusta cadeia local de suprimentos. A reunião no início deste ano entre os representantes da BYD e 300 fabricantes italianos de componentes automotivos em Turim é ilustrativa da maneira como a BYD se envolve com os agentes econômicos locais, apresentando-se como um parceiro confiável interessando em investimentos de longo prazo.
África e América Latina: a última fronteira
A África e a América Latina podem não estar entre as prioridades da expansão da BYD, mas são áreas de crescimento visadas. O investimento chinês na Ásia e na América Latina vem aumentando, particularmente em portos, infraestrutura logística e na indústria extrativista. A onda de VEs oferece à China a oportunidade de aproveitar as relações econômicas e diplomáticas já estabelecidas e construir uma vasta presença industrial e logística, o que poderia ter implicações geopolíticas importantes em termos de aproximar essas regiões ainda mais da órbita chinesa e afastá-las de Washington.
Na África, os planos ainda estão em fase inicial. Até o momento, a única fábrica de grande porte em estudo pela BYD seria na África do Sul. A BYD também teve discussões preliminares sobre a construção de fábricas no Egito e no Marrocos. Um obstáculo para a introdução de VEs na África é a limitada infraestrutura de carregamento e manutenção existente, bem como a falta de uma estrutura regulatória de apoio e incentivos para VEs por parte dos governos. No entanto, as coisas estão lentamente mudando. As classes médias africanas em países como Ruanda e Nigéria já adquiriram um gosto por veículos elétricos, enquanto a Etiópia proibiu a importação de carros a gasolina. Espera-se que novas fábricas de automóveis sejam abertas na próxima década.
Já nas Américas, os planos da BYD estão em um estágio mais avançado. Tendo decidido evitar os mercados dos Estados Unidos e do Canadá—onde Biden e Trudeau já impuseram tarifas de importação de 100%—a BYD e outras empresas chinesas de VEs estão ganhando espaço nas Américas Central e do Sul. No Brasil, a BYD adquiriu uma antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, e investiu US$ 1 bilhão para transformá-la em uma instalação de última geração para a produção de VEs—embora a construção da fábrica tenha sido interrompida depois que uma investigação revelou que 163 trabalhadores chineses estavam vivendo ali em condições análogas à escravidão. A Great Wall Motors e a Chery estão estabelecendo fábricas no Brasil, que é um centro de produção e distribuição de automóveis para a América do Sul. Além disso, a BYD discute a possibilidade de instalação de uma nova fábrica no México. Não surpreendentemente, a iniciativa já causou alarme entre as elites dos Estados Unidos, que alegam que o México pode se tornar vítima da supremacia tecnológica chinesa.
Com instalações no México, fabricantes chineses que pretendam vender para os Estados Unidos poderiam evitar as tarifas punitivas aplicadas aos bens produzidos na China e ter direito à tarifa mais baixa de 25% aplicada aos carros mexicanos, aumentando assim sua competitividade. No entanto, há risco de que uma fábrica tão próxima da fronteira dos Estados Unidos possa resultar em um vazamento de tecnologia para o maior adversário estratégico da China. A ameaça é vista com tanta seriedade que as empresas chinesas de VEs consideram adiar seus planos de investimento na América Latina, uma vez que nessa região (como em outras) o setor automotivo representa uma área decisiva no cabo de guerra geopolítico entre as grandes potências do mundo.
Uma globalização com características chinesas e movida a bateria
A BYD e suas irmãs estão capitaneando uma das maiores ondas de expansão internacional da história do setor automotivo. Caso a China ultrapasse os Estados Unidos como líder da globalização, é de se esperar que a nova linha virá do governo chinês. Isso significará uma ênfase maior em questões de ordem e estabilidade de longo prazo do que a dada por Washington nos últimos anos. As principais fábricas da BYD estão localizadas em países como Paquistão, Indonésia, Turquia e Brasil—todos signatários da Iniciativa Cinturão e Rota ou membros dos BRICS. Sob a égide chinesa, a cooperação econômica anda de mãos dadas com a parceria entre Estados, apesar das grandes diferenças ideológicas.
Essa variedade de globalização é impulsionada por uma recuperação da “integração vertical” em oposição ao sistema de “produção flexível” que dominou o fim do século XX. Também ganha prioridade a estabilidade de longo prazo e a formação de consenso entre os países envolvidos. As práticas de “localização” adotadas por empresas como a BYD as posicionam como agentes benignos focados na criação de empregos e no avanço da transição verde.
Mas, é claro, a realidade é mais complexa. Relatórios sobre a condição dos trabalhadores na fábrica de Camaçari, no Brasil, destacam práticas exploratórias que visam contornar a influência dos sindicatos sobre a produção industrial. Ainda, embora encorajados por sua impressionante liderança tecnológica em muitos campos, CEOs e políticos chineses continuam preocupados com novas investidas protecionistas no bojo de uma crescente guerra comercial global e com o risco de transferências reversas de tecnologias em países como a Índia e o México. Para os países que recebem investimentos chineses, essas preocupações também fornecem uma lição útil: exigir que as empresas chinesas interessadas em seus mercados façam parcerias com empresas locais é a melhor maneira de transformar o investimento estrangeiro em uma alavanca para a autonomia e não para a dependência.
Tradução: Pedro Davoglio
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