29 de agosto de 2025

Análises

Da dominação ao extermínio

Estratégia militar e desenvolvimento econômico em Israel desde 1948

Israel é um dos países mais militarizados do mundo. Desde que David Ben-Gurion ordenou a fundação das Forças de Defesa de Israel (FDI) em 26 de maio de 1948, as forças armadas e o quadro de agências de segurança em sentido amplo passaram a constituir o núcleo em torno do qual se desenvolveram as instituições, estruturas financeiras e a economia do país como um todo. Nas décadas que sucederam o nascimento das FDI, a formação da economia política israelense foi centralizada pelo princípio organizador da guerra e evoluiu à medida que a natureza da guerra mudou com a política externa dos EUA no Oriente Médio.

Ao longo da década de 1940, milícias coloniais descentralizadas se consolidaram em um conglomerado estatal e de gestão pública voltado para a produção de bens militares. O Estado israelense limitou as exportações dessa indústria, padrão que continuou mesmo após a independência, uma vez que a indústria bélica nacional produzia armamentos para fins expansionistas. No contexto inicial da Guerra Fria e das transformações do período pós-colonial, a estratégia militar do país refletia esse modelo econômico. Em vez de adotar a guerra convencional, o assentamento israelense foi promovido através de campanhas de limpeza étnica realizadas por pequenas unidades militares com armas leves. Embora Israel importasse armamentos—principalmente da França—, essas milícias eram majoritariamente equipadas por meio da produção doméstica.

Foi no rescaldo da Guerra Árabe-Israelense de 1973, com o aumento do financiamento militar dos Estados Unidos, que as práticas de aquisição do exército israelense mudaram. A nova fase da Guerra Fria global deu início a um período de transformações setoriais na indústria de defesa local. A guerra revelou graves fragilidades na defesa do país, que havia sofrido na mão de exércitos árabes armados pela União Soviética. A resposta foi um aumento rápido e acentuado nas importações de sistemas de armamento dos Estados Unidos. Mas essa decisão exigiu um ajuste estrutural: para fortalecer seus vínculos com a indústria bélica norte-americana, Israel privatizou e liberalizou seu aparato militar doméstico. Como resultado, ao longo das últimas décadas do século XX, as Forças de Defesa de Israel se transformaram em uma agência policial colonial de alta tecnologia, empregando técnicas de vigilância e controle para gerenciar as populações palestinas de Gaza e da Cisjordânia. À medida que as importações de armas dos Estados Unidos cresciam, Israel reorientou sua própria produção para tecnologias especializadas em vigilância e encarceramento. Surgia, então, uma nova divisão global do trabalho na produção de equipamentos militares, moldada pela Guerra ao Terror e pela indústria de defesa global liderada pelos Estados Unidos, que durou até 2023.

A campanha genocida de Israel na Faixa de Gaza marcou uma ruptura com o status quo mantido por décadas. Desde o 7 de outubro, a indústria militar israelense tem buscado, de forma crescente, suplementar sua esmagadora dependência de importações militares com a produção doméstica—um retorno às raízes de uma nação-milícia organizada em torno de hostilidades constantes. A mudança tem sido tanto qualitativa quanto quantitativa. Ao produzir para o mercado doméstico, o complexo industrial-militar israelense começou a recompor seu antigo perfil produtivo voltado a armamentos de baixa tecnologia concebidos para atividades de destruição e deslocamento rudimentares—práticas mais próximas de sua estratégia fundante.  

Um Estado colonial de povoamento

As raízes da indústria armamentista de Israel antecedem a própria fundação do Estado. A Israel Military Industries—empresa responsável pela Desert Eagle e pela Uzi—foi criada em 1933 como uma fabricante de armas leves cujo objetivo era abastecer as primeiras milícias sionistas. Suas armas eram produzidas secretamente, escondidas e contrabandeadas ilegalmente para o uso desses grupos armados. Submetralhadoras Sten, morteiros e veículos blindados leves—armas particularmente convenientes para intimidar civis e, em última instância, eficazes no projeto de limpeza étnica da Palestina—municiavam as milícias que, mais tarde, formariam as Forças de Defesa de  Israel. Em consonância com a doutrina militar original, baseada em alta mobilidade e comando descentralizado—o que generais israelenses frequentemente descreviam como o ideal de “um exército pequeno e inteligente”—, esses armamentos favoreciam táticas de pequenas unidades e guerra irregular em terrenos difíceis.

O espírito coletivista dos colonos foi essencial para moldar o perfil militar, as estratégias de armamento e a relação do movimento sionista com a população palestina indígena. Sob a liderança do ex-primeiro-ministro David Ben Gurion, que liderava tanto o Partido Trabalhista quanto os sindicatos, o Estado israelense monopolizou a fabricação de armamentos. Com os lucros dessa indústria sendo canalizados para pesquisa e desenvolvimento, o monopólio impulsionou o setor público do país.1Ya’akov Lifshitz, Security Economy, the General Theory and the Case of Israel, Jerusalem: Ministry of Defense Publishing and the Jerusalem Center for Israel Studies (2000). Esse tipo de máquina bélica também influenciou a política de recrutamento militar: para manter a coesão e a lealdade das unidades, Israel isentou grandes segmentos da população do serviço militar obrigatório—palestinos, judeus ultraortodoxos e, mais tarde, um número crescente de judeus seculares. Essa estratégia se provou bem-sucedida em 1948, 1956 e 1967, quando unidades de alta mobilidade equipadas com armamentos leves foram capazes de vencer forças árabes menos organizadas. Com a eclosão da guerra em 1973, no entanto, suas limitações foram rapidamente expostas.

Infraestrutura de dominação

Embora o sucesso militar de Israel contra o Egito, a Síria e a Jordânia na Guerra dos Seis Dias de 1967 tenha gerado um excesso de confiança entre as elites militares israelenses, a Guerra do Yom Kippur de 1973 destruiu essa concepção de autossuficiência, inclusive na fabricação de armas. Grandes compras de equipamentos militares russos pelos governos do Iraque e da Síria, bem como a explosão das receitas do petróleo árabe e o ingresso de armamentos comprados com esses recursos, marcaram o estabelecimento de um novo modelo bélico em muitos eixos do conflito regional. A partir de outubro de 2023, quando a guerra foi deflagrada, a estratégia de pequenas unidades e até mesmo a superioridade aérea se mostraram incapazes de deter o avanço de divisões sírias e egípcias. Nesse processo, Israel recorreu à importação de armas dos EUA, o que exigiu novas táticas e, em última instância, uma nova estratégia.

A dependência israelense de financiamento militar dos EUA começou no meio da Guerra do Yom Kippur e rapidamente se tornou uma característica fundamental da indústria bélica nacional. Na Guerra Fria, a hostilidade estrutural de Israel aos governos socialistas árabes financiados pela União Soviética posicionou o país como um representante natural dos interesses dos EUA. Ao resgatar Israel do precipício da destruição, os EUA ganharam um novo ativo estatal de projeção de seu poder no Oriente Médio e uma oportunidade imediata de reestruturar a indústria militar israelense em torno de suas próprias prioridades econômicas e geoestratégicas.

Nos anos seguintes, os EUA também utilizaram o financiamento militar para exercer pressão sobre o tipo de tecnologias e equipamentos que Israel poderia produzir. O Pentágono identificou projetos de pesquisa militar israelenses que poderiam potencialmente criar concorrência com empresas de defesa americanas e negociou seu eventual encerramento. Entre as iniciativas israelenses paralisadas estava a construção de um míssil antitanque que objetivava competir com o míssil LAU fabricado pelos EUA e até mesmo o principal projeto armamentista do país—o caça Lavi, desenvolvido na década de 1980 e projetado para superar o caça F-16 da Lockheed Martin.2Sharon Sadeh, “Israel’s Beleaguered Defense Industry,” Middle East Review of International Affairs Journal, Vol. 5, No. 1, março de 2001, pp. 64–77. O Pentágono também monitorou as exportações israelenses de sistemas bélicos com tecnologia americana, proibindo sua venda para países como Rússia e China.

Desde 1973, Israel se tornou o maior beneficiário da ajuda militar externa dos EUA no mundo e, desde a Revolução Iraniana de 1979, de longe, o maior comprador de equipamentos militares dos EUA na região. Da Guerra do Yom Kippur para cá, os EUA concederam mais de US$ 171 bilhões em assistência militar a Israel em termos nominais—sem juros ou correção monetária.3Jeremy Sharp, “US Foreign Aid to Israel: Overview and Developments since October 7, 2023”,  (<)a href='https://www.congress.gov/crs-product/RL33222'(>)https://www.congress.gov/crs-product/RL33222(<)/a(>), acesso em agosto de 2025. Essa mudança na base das aquisições militares israelenses reorientou profundamente o papel dos fabricantes de armas locais. Embora os EUA sejam, incontestavelmente, o principal exportador de armas do mundo, Israel se tornou, por mérito próprio, um vendedor de peso, com a maior taxa de exportação de armas per capita do planeta. Enquanto as exportações dos EUA se concentram nos membros da OTAN, a maior parte das exportações israelenses é direcionada a países de fora do Tratado do Atlântico Norte.

A união dos interesses militares dos EUA e de Israel teve dois resultados históricos. Primeiro, sob a influência dos EUA e à medida que o país passava por um período de intensa privatização em sentido amplo, empresas privadas ganharam proeminência sobre empresas estatais nas aquisições das Forças de Defesa de Israel. As pressões para a privatização aumentaram tanto em razão dos duros ajustes impostos pelos EUA à produção de armas quanto dos cortes em gastos militares decorrentes do fim da Guerra Fria. Em 1993, um comitê governamental sobre o futuro das aquisições militares israelenses, liderado pelo professor Israel Sadan, recomendou a privatização de todas as funções “periféricas”, de armazenamento e distribuição, aquisições logísticas até a própria segurança das bases militares. A concorrência entre fornecedores privatizados foi apresentada pelo comitê como uma medida de corte de gastos que não comprometia a segurança do país. A palavra de ordem era eficiência: nos termos do chefe das FDI à época, Ehud Barak, “tudo o que não atira ou ajuda diretamente a atirar será cortado”.4Nadir Tzur, “The Third Lebanon War,” Reshet Bet, 17 de julho de 2011.

A privatização não se limitava ao complexo industrial-militar. Já com o Plano de Estabilização Estrutural de 1985, Israel havia iniciado um processo de privatização de grande escala que atingiu os setores de infraestrutura e de serviços de telecomunicações, a companhia aérea nacional, o setor bancário e incluiu uma privatização parcial dos sistemas de água, saúde e portos.5Yael Hason, Three Decades of Privatization [Shlosha Asorim Shel Hafrata], Tel-Aviv: Adva Center (novembro de 2006). Além de agradar às preferências dos EUA, a privatização proporcionou aos membros da elite de segurança israelense oportunidades lucrativas na gestão de empresas de armamento privadas.

Segundo, essas empresas privadas foram progressivamente incorporadas na Guerra ao Terror liderada pelos EUA. A privatização acompanhou a especialização em tecnologias utilizadas na guerra cibernética, drones de ataque e sistemas eletrônicos avançados para veículos militares.6Sadeh, 2001. Entre a Segunda Intifada e os ataques de 11 de setembro de 2001, Israel e os EUA passaram a compartilhar o interesse no desenvolvimento de sistemas de alta tecnologia para vigilância, monitoramento e controle.

Desde 2001, entre 70 e 80% da fabricação de armas israelense foi destinada à exportação. Empresas israelenses ficaram conhecidas por vender armas a clientes que, de outra forma, ficariam à margem: países sob embargo militar, grupos rebeldes, milícias, Estados sem relações diplomáticas com outros grandes produtores e até mesmo compradores que, mais tarde, voltaram essas armas contra Israel.7Jonathan Cook, “Israel Maintains Robust Arms Trade with Rogue Regimes,” Al-Jazeera, Outubro de 2017: (<)a href='https://www.aljazeera.com/news/2017/10/23/israel-maintains-robust-arms-trade-with-rogue-regimes'(>)https://www.aljazeera.com/news/2017/10/23/israel-maintains-robust-arms-trade-with-rogue-regimes(<)/a(>), acesso em dezembro de 2024. O país ganhou essa reputação ao longo da década de 1960, no auge da Guerra Fria, exportando armas para Uganda, Angola, Chile, África do Sul, Cingapura, Taiwan, Nicarágua, Guatemala e para o Irã pré-revolucionário. Mais tarde, à medida que a geografia das guerras quentes mudou, as exportações passaram a se concentrar em Ruanda, Iugoslávia, Turquia, Azerbaijão e Índia. Nas últimas décadas, os Estados do Golfo começaram a importar cada vez mais armas israelenses. Embora Israel ainda fique atrás dos principais exportadores de armas do mundo—como EUA, Rússia, Reino Unido, França e Alemanha—, o status de maior exportador de armas per capita foi alcançado já por volta de 2009, após a invasão da Faixa de Gaza em 2008 matar cerca de 1.400 palestinos.8United Nations, “5. Estimates of Mid-Year Population: 2002–2011,” Demographic Yearbook, 2013 (<)a href='http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/dyb/dyb2011.htm'(>)http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/dyb/dyb2011.htm(<)/a(>), acessado em dezembro de 2024; Richard F. Grimmett e Paul K. Kerr, “Conventional Arms Transfers to Developing Nations”, 2004–2011, Congressional Research Service, 7–5700, 24 de agosto de 2012; Amnesty International, “Israel/Gaza: Operation ‘Cast Lead’ – 22 Days of Death and Destruction, Facts and Figures,” julho deIsrael 2009, (<)a href='https://www.amnesty.org/en/wp-content/uploads/2021/07/mde150212009eng.pdf'(>)https://www.amnesty.org/en/wp-content/uploads/2021/07/mde150212009eng.pdf(<)/a(>), acessado em dezembro de 2024. 

Em 2003, o presidente americano George Bush fundou o Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês) com um orçamento superior a US$ 59 bilhões. O DHS e o clima da Guerra ao Terror representaram a oportunidade perfeita para as empresas militares e de segurança israelenses capitalizarem sua experiência nos territórios ocupados. A ocupação de territórios palestinos foi apresentada como um laboratório de testes para o desenvolvimento de produtos compatíveis com o novo projeto de Segurança Interna dos EUA e Tel Aviv logo se tornou a capital mundial do setor de segurança da indústria bélica.9Jonathan Cook, “Israel’s Booming Secretive Arms Trade,” Al-Jazeera, agosto de 2013, (<)a href='https://www.aljazeera.com/features/2013/8/16/israels-booming-secretive-arms-trade'(>)https://www.aljazeera.com/features/2013/8/16/israels-booming-secretive-arms-trade(<)/a(>), acessado em dezembro de 2024; Neve Gordon, “The Political Economy of Israel’s Homeland Security/Surveillance Industry,” The New Transparency, Working Paper (28 de abril de 2009). A sequência de operações militares israelenses em Gaza, no Líbano e em outros lugares virou uma dádiva para os fabricantes de armamentos do país, permitindo-lhes comercializar seus produtos como “testados em batalha” nas feiras de armas que sucederam cada uma delas.10Sophia Goodfriend, “Gaza War Offers the Ultimate Marketing Tool for Israeli Arms Companies,” +972 Magazine, janeiro de 2024 (<)a href='https://www.972mag.com/gaza-war-arms-companies/'(>)https://www.972mag.com/gaza-war-arms-companies/(<)/a(>), acesso em dezembro de 2024. Menos de uma década depois da fundação do DHS, em 2012, as exportações militares israelenses atingiram a cifra de US$ 7,5 bilhões. Naquele mesmo ano, o então ministro da Defesa Ehud Barak declarou que a renda de 150 mil famílias israelenses dependia da indústria bélica. Atualmente, esses produtos militares não só se consolidaram como um grande negócio como se tornaram um setor-chave da economia israelense.

A relação entre Israel e os EUA é fundamental para todos esses desenvolvimentos. A troca de dinheiro e armamento entre os dois países, um vínculo fundamentalmente militar, desempenha um papel estruturante na economia israelense. Embora cerca de 75% dos US$ 3,1 bilhões de ajuda militar anual dos EUA a Israel tenham que ser gastos em armas americanas, o restante pode ser direcionado para a produção doméstica. A transferência da produção de pistolas Magnum e Desert Eagle pela americana Magnum Research para Israel demonstra como esse fortalecimento de laços diplomáticos facilitou a integração industrial. Atualmente, quando compra armas dos EUA, frequentemente Israel adquire produtos com componentes fabricados em seu território. Em 2018, a nova onda de privatizações e a demanda global por exportações culminaram na compra da estatal Israel Military Industries pela Elbit Systems. Em 2019, a Elbit se tornou a maior empresa de armas de Israel e a 28ª maior do mundo, fornecendo armas direta e indiretamente por meio da execução de projetos de empresas maiores, como a General Dynamics e a Airbus.11Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) “The SIPRI top 100 Arms-Producing and Military Service Companies, 2020,” SIPRI, dezembro de 2020, (<)a href='https://www.sipri.org/sites/default/files/2021-12/fs_2112_top_100_2020.pdf'(>)https://www.sipri.org/sites/default/files/2021-12/fs_2112_top_100_2020.pdf(<)/a(>), acessado em dezembro de 2024. A Elbit Systems ilustra a nova face da indústria de armas de Israel: tecnologias de opressão, linhas de produtos complementares aos dos EUA e  exportações globais que capitalizam o valor que governos em todo o mundo atribuem à experiência de Israel com a ocupação da Palestina. Fundos públicos de pesquisa e parcerias com universidades garantem “legitimidade científica” ao desenvolvimento de tecnologias de repressão.12Maya Wind, Towers of Ivory and Steel: how Israeli Universities Deny Palestinian Freedom, Verso (2023).

Cinco décadas depois da guerra de 1973, antigas milícias coloniais apoiadas pelo Estado de Israel foram efetivamente transformadas em um complexo altamente tecnológico dedicado à opressão palestina. Equipando as forças armadas nacionais com uma produção que, hoje, é intensiva em capital, a indústria bélica israelense exibe publicamente seus avanços tecnológicos por meio de ataques militares contra os palestinos e da vigilância e controle diários dos territórios ocupados.13Yagil Levy, Israel’s Death Hierarchy: Casualty Aversion in a Militarized Democracy, Nova York: NYU Press (2012). Longe de ser exclusividade da literatura crítica, o termo “laboratório palestino” é amplamente empregado pelas próprias fabricantes de armamentos do país.

Enquanto produziu ferramentas muito úteis para a manutenção da ocupação de territórios palestinos, a especialização do “laboratório” em sistemas de vigilância, infraestrutura de encarceramento e equipamentos antimotim se mostrou inadequada para o enfrentamento de guerras convencionais. As Forças de Defesa de Israel deixaram de ser uma força de combate e viraram uma verdadeira polícia colonial, priorizando a contenção, repressão e submissão palestina em detrimento da supremacia no campo de batalha. No desenvolvimento e manutenção dessas tecnologias, dezenas de milhares de agentes de segurança privada também foram treinados. 

Extermínio como estratégia

Os ataques de 7 de outubro de 2023 colocaram décadas de dependência israelense desse modelo de policiamento de alta tecnologia das populações palestinas em xeque. O vazamento de uma investigação interna de março de 2025 revela que a possibilidade de um ataque palestino era rejeitada por oficiais do país, que acreditavam na inviolabilidade de seu regime de controle. Quando essa ilusão foi quebrada pelo Hamas, o governo de extrema direita de Israel retornou ao que, até então, parecia um modelo ultrapassado: o emprego de armas pesadas fornecidas pelos EUA—artilharia, tanques, drones armados, bombardeiros navais e caças—no sitiamento prolongado de uma população inteira.

O genocídio em Gaza, a invasão do Líbano e os ataques aéreos na Síria, no Iêmen e no Irã compartilham, além da autoria israelense, outra característica importante: o emprego de armas majoritariamente importadas na sua execução. Ainda que Israel pague um preço acima do mercado por armamentos da Alemanha, Sérvia e, cada vez mais, de “países com os quais não temos relações diplomáticas, incluindo Estados muçulmanos de todos os continentes”, como recentemente declarou um oficial do país, a maioria desses equipamentos importados ainda é subsidiada pelo contribuinte americano. À medida que as Forças de Defesa de Israel esgotavam munições e equipamentos na campanha pós-7 de outubro, o que sobrou para os vendedores de armas do país num contexto de preços inflacionados pela demanda ucraniana foi a carniça da indústria bélica global: trocar sistemas de armas de alta tecnologia, como drones e equipamentos computadorizados, por material básico, como projéteis, pólvora e outros explosivos.14Hussein, 2024. Yoav Zitun, “From deals in the Third World to dubious brokers: a glimpse into the IDF arms race,” Ynet, novembro de 2024, (<)a href='https://www.ynetnews.com/article/h1tefly71g'(>)https://www.ynetnews.com/article/h1tefly71g(<)/a(>); Cf. (<)a href='https://www.haaretz.com/israel-news/2024-09-27/ty-article-magazine/.highlight/retired-israeli-general-giora-eiland-called-for-starving-gaza-does-he-regret-it/00000192-33f5-dc91-a1df-bffff4930000'(>)https://www.haaretz.com/israel-news/2024-09-27/ty-article-magazine/.highlight/retired-israeli-general-giora-eiland-called-for-starving-gaza-does-he-regret-it/00000192-33f5-dc91-a1df-bffff4930000(<)/a(>), acessado em janeiro de 2025. Segundo o Wall Street Journal, somente entre outubro e dezembro de 2023, os EUA enviaram mais de 5 mil bombas não guiadas Mk82, 5.400 bombas não guiadas Mk84 de 2 mil libras, mil bombas GBU-39 de mil libras e cerca de 3 mil kits JDAM a Israel. Desde o 7 de outubro, os EUA forneceram pelo menos US$ 17,9 bilhões em armas e munições ao país, além do financiamento militar anual de US$ 3,8 bilhões e da exportação de armas americanas na cifra de US$ 8,2 bilhões.15Ellen Knickmeyer, “US spends a record $17.9 billion on military aid to Israel since last Oct. 7,” AP, 9 de outubro de 2024, (<)a href='https://www.ap.org/news-highlights/spotlights/2024/us-spends-a-record-17-9-billion-on-military-aid-to-israel-since-last-oct-7/'(>)https://www.ap.org/news-highlights/spotlights/2024/us-spends-a-record-17-9-billion-on-military-aid-to-israel-since-last-oct-7/(<)/a(>), acessado em agosto de 2025; Hagai Amit, “89 Billion NIS in two years: the numbers behind the buying binge of the IDF in the war,” The Marker, July 27, 2025, (<)a href='https://www.themarker.com/allnews/2025-07-27/ty-article/.highlight/00000198-4735-deec-ab9e-e73f8bc40000'(>)https://www.themarker.com/allnews/2025-07-27/ty-article/.highlight/00000198-4735-deec-ab9e-e73f8bc40000(<)/a(>), acessado em agosto de 2025. 

A transição para uma estratégia militar de maximização da destruição também provocou um ressurgimento de demanda estatal por armas produzidas domesticamente. Essa tendência ficou clara durante uma assembleia de acionistas da Elbit Systems em 2025: Israel continua dependente da importação de armas, mas está tentando adquirir o máximo possível de empresas nacionais para minimizar os impactos do crescente embargo militar que lhe é imposto. Ainda que a participação das exportações no comércio total da Elbit Systems tenha caído de 79% no primeiro trimestre de 2023 para 58% no quarto trimestre de 2024, as vendas foram seguradas pela recomposição da demanda doméstica. Os relatórios financeiros recentes da Elbit Systems revelam que a receita e o lucro operacional da empresa aumentaram não devido às exportações, mas graças a “um aumento significativo na demanda por seus produtos e soluções por parte do Ministério da Defesa de Israel em comparação com os níveis anteriores à guerra”. No ano encerrado em dezembro de 2024, a empresa obteve US$ 1,6 bilhão em lucros sobre US$ 6,8 bilhões em receitas—em comparação com US$ 1,5 bilhão em lucros sobre US$ 6 bilhões em receitas em 2023. Sua carteira de pedidos aumentou de US$ 17,8 para US$ 23,8 bilhões. De modo geral, fabricantes de armamentos israelenses têm recebido uma enxurrada de pedidos das forças armadas nacionais.16Yuval Azulay, “Israel’s Arms Industry Profits Soar as Wars Fuel Billion-Dollar Contracts,” Calcalist, agosto de 2024, (<)a href='https://www.calcalistech.com/ctechnews/article/hkuwdfkic'(>)https://www.calcalistech.com/ctechnews/article/hkuwdfkic(<)/a(>), acessado em dezembro de 2024. Em maio de 2025, a Elbit emitiu US$ 588 milhões em novas ações, subscritas pelo Bank of America Securities, J.P. Morgan, Jefferies e Morgan Stanley.

Como em períodos anteriores, essa mudança econômica acompanhou transformações na estratégia militar. O novo canhão de 155 mm Sigma (Ro’em) da Elbit Systems é um exemplo revelador. À primeira vista, seu desenvolvimento parece paradoxal: se Israel enfrenta uma escassez crítica de projéteis de 155 mm, por que investir em um canhão que dobra a cadência de tiro? As inovações no Sigma revelam preocupações mais profundas das FDI: o novo carregador automático robótico reduz a necessidade de tripulação de sete soldados para apenas dois, permitindo que o equipamento seja operado por unidades pequenas e com níveis mínimos de coordenação e disciplina. Uma vez que o fluxo tanto de bombardeiros quanto de ajuda externa dos EUA para a compra de projéteis por Israel não parece estar diminuindo de ritmo, o novo equipamento pode viabilizar uma reorganização estratégica das FDI.

O Sigma é um dispositivo ideal para bombardeios de estilo miliciano: maximiza a destruição por soldado enquanto institucionaliza a falta de disciplina característica da campanha de Israel em Gaza. Ele personifica as transformações das próprias Forças de Defesa de Israel: o retorno de um exército com tecnologia de ponta à artilharia—com o poder de fogo suplantando a estratégia de combate e o projeto de extermínio substituindo o de ocupação. 

O espírito da colonização miliciana novamente abastece as forças armadas israelenses. “A artilharia e o poder de fogo dos tanques são mais eficazes que armas de precisão caras”, disse um oficial das FDI em novembro. “Matar um terrorista com um projétil de tanque ou um franco-atirador, em vez de um míssil disparado por um drone, é considerado mais ‘profissional’”.17Zitun, “From deals in the Third World to dubious brokers: a glimpse into the IDF arms race,” Ynet, (<)a href='https://www.ynetnews.com/article/h1tefly71g'(>)https://www.ynetnews.com/article/h1tefly71(<)/a(>)g, acessado em 22 de novembro de 2024. Tanques bombardeiam campos de refugiados a queima-roupa e ataques aéreos destroem quarteirões inteiros para matar alvos isolados. A doutrina de armas combinadas e ataques de precisão promovida pelos EUA não é apenas ignorada, mas efetivamente substituída por um projeto de aniquilação indiscriminada. A indústria de armas criada para policiar zonas de ocupação em todo o Sul global no final da Guerra Fria, agora, olha para dentro e se pergunta como pode contribuir com o trabalho de uma frota de equipamentos estadunidenses de ponta dotados de capacidade de destruição total.  

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