Em dezembro de 2021, o presidente Joe Biden anunciou uma proposta de incentivos fiscais para a compra de veículos elétricos (EVs, na sigla em inglês) produzidos por trabalhadores sindicalizados da indústria automotiva dos EUA.1 Os incentivos prometem apoiar a transição para as “tecnologias verdes”, reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e “descarbonizar” a economia. E comprometem-se a fazer tudo isso enquanto fortalecem a capacidade de negociação coletiva dos trabalhadores depois de décadas de enfraquecimento dos sindicados por meio de esforços liderados pelo Estado.
Como era de se esperar, a proposta foi recebida com críticas. Nos EUA, Honda, Kia, Nissan, Hyundai e Tesla se opuseram ao projeto de lei em razão do incentivo à sindicalização, que beneficia principalmente a Ford, a General Motors e a Chrysler: as três gigantes automotivas de Detroit que notoriamente empregam força de trabalho sindicalizada. Se a questão é a mudança climática, questionaram os analistas de negócios, por que não expandir o crédito para as empresas que já estão produzindo carros elétricos? O plano também fomentou acusações de protecionismo. O governo mexicano argumentou que os incentivos fiscais violam o Acordo Estados Unidos – México – Canadá (USMCA, na sigla em inglês) “pela concessão de vantagem indevida a veículos produzidos nos EUA”. Como o crédito fiscal para veículos elétricos é uma forma de subsídio, seria contrário às normas da Organização Mundial do Comércio. A Comissão Europeia também se opôs aos incentivos, afirmando que o projeto discrimina as fábricas de automóveis e autopeças da União Europeia, que empregam mais de 420 mil trabalhadores nos EUA.
A reação ruidosa aos incentivos fiscais para EVs expôs as tensões entre a adoção de políticas domésticas e as regras de livre comércio no contexto de uma economia regional altamente integrada. Políticas de proteção do emprego destinadas a uma parcela específica dos trabalhadores da região potencialmente reforçariam a insegurança empregatícia de outras parcelas da força de trabalho na indústria automotiva da América do Norte – incluindo a do México, onde essa indústria representa 20% do PIB.
Antes do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês), as políticas domésticas regulamentavam o setor automotivo do México. Previsões de nível nacional e local visavam a construção de um setor manufatureiro intensivo em capital e trabalho, servindo, assim, como fonte de criação de empregos. Esse cenário mudou nos anos 1990. Com a formação do bloco geoeconômico da América do Norte em 1994, a produção de automóveis passou a envolver a política externa, os acordos comerciais e suas regras, as corporações transnacionais e os sindicatos internacionais. Atualmente, a produção de automóveis é muito mais complexa do que a mera instalação de uma fábrica em determinado local. Traçar a história da indústria automotiva mexicana ao longo de seis décadas esclarece como o setor automotivo norte-americano combina atualmente interesses regionais, domésticos e globais, e quais são as consequências provocadas por cada um deles para os trabalhadores, as políticas industriais e, agora, para as estratégias climáticas.
A construção do setor automobilístico do México
Apostando no fortalecimento do desenvolvimento industrial, o governo mexicano decretou, em 1962, que 60% de cada carro vendido no país deveria ser produzido em âmbito doméstico.2 Isso exigia que as corporações automotivas multinacionais firmassem parcerias com negócios locais para instalar fábricas de automóveis, fortalecendo concomitantemente a oligarquia mexicana e o desenvolvimento da indústria nacional de veículos.3 Uma indústria automobilística nacional era essencial ao projeto de industrialização do México, já que a produção de veículos era diretamente ligada às indústrias de aço, ferro, petróleo, borracha, plástico e vidro.4
As políticas domésticas privilegiaram a indústria em vez da produção agrícola de pequena escala. A industrialização induzida pelo Estado beneficiava as corporações do setor automobilístico por meio de políticas protecionistas, incentivos fiscais e investimento em infraestrutura (como as rodovias), à luz do modelo econômico de industrialização por substituição de importações (ISI). O governo também garantiu às montadoras o acesso barato a terras expropriadas de camponeses por meio da declaração de que as fábricas eram de interesse público. A Volkswagen México, situada em Puebla, a aproximadamente 130 km do sul da Cidade do México, foi beneficiada por três decretos de expropriação de terras.5 O Estado também cumpriu um papel central em direcionar a produção: em 1969, por exemplo, o governo passou a exigir que as empresas aumentassem as exportações para equilibrar as importações de componentes de seus veículos.6
A indústria automotiva impulsionou a ascensão de uma classe trabalhadora assalariada qualificada e majoritariamente masculina no México. O desenvolvimento da indústria nos anos 1960 coincidiu com o aumento do provimento de bens e serviços públicos – saúde pública, crédito imobiliário e subsídios a estabelecimentos do setor alimentício – voltados aos trabalhadores da indústria automobilística e seus dependentes. Enquanto a educação pública era um direito básico de todos os cidadãos, os serviços de saúde e o crédito imobiliário eram acessíveis apenas para aqueles formalmente empregados pelos setores público ou privado do país.7 Esse sistema de serviços públicos suplantava os baixos salários – os trabalhadores frequentemente adotavam turnos duplos ou triplos para cobrir o custo de vida –, e permitia mobilidade social aos empregados da indústria automotiva. O sistema de proteção social priorizava claramente os trabalhadores industriais em relação àqueles empregados em outros setores, como os camponeses. Sob a adoção da ISI, a política nacional beneficiou empresas privadas e estatais e uma força de trabalho majoritariamente masculina dos setores petrolífero, automotivo e elétrico.
Os trabalhadores exerciam pouca influência sobre a política industrial. Desde os anos 1930, sindicatos aliados ao Estado dominavam o movimento trabalhista do México e, quando se tratava da indústria automotiva, apoiavam contratos majoritariamente favoráveis aos interesses empresariais, desmobilizando quaisquer agitações da força de trabalho que questionassem isso. O sindicalismo independente emergiu no setor automotivo8 nos anos 1970, incentivando a democracia sindical e o controle sindical sobre as negociações trabalhistas de chão de fábrica. Esses sindicatos, no entanto, eram excluídos dos debates sobre políticas públicas direcionadas ao setor automotivo. Ainda assim, em ciclos políticos de governos trabalhistas, a classe trabalhadora organizada obteve vitórias.9
Na década de 1970, o México trocou a estratégia de ISI pela de industrialização orientada para a exportação (IOE). Fábricas pertencentes a corporações transnacionais conhecidas como maquiladoras seguiram sendo beneficiadas pela prática de ISI por ceder instalações para empresas que ingressavam no país. A mudança nas maquiladoras, no entanto, foi a determinação de que os componentes provenientes dos EUA seriam montados no México e então exportados novamente aos EUA para comercialização.10 A ascenção da estratégia de IOE foi concomitante à imposição de medidas de austeridade pelo FMI no rescaldo da crise de dívida externa mexicana dos anos 1980. Consequentemente, entre as décadas de 1980 e 1990, o México cortou subsídios públicos e privatizou empresas estatais e serviços de educação e saúde. A política doméstica se voltou à criação de empregos mal remunerados, submetidos à dinâmica do mercado, e ao desmonte do sistema de proteção social e provimento de serviços públicos que marcou a era de ISI.
A virada do NAFTA
Embora a adoção da IOE tenha materialmente encerrado a era da política de ISI nos anos 1970, o abandono deste modelo só foi formalizado em 1989, pela edição de um decreto que criava as bases jurídicas para a adoção do NAFTA a nível nacional. A formalização do NAFTA, em 1992, assentou a maior zona de livre comércio do mundo, em linha com o nascimento de uma ordem multilateral de comércio na qual os acordos comerciais efetivamente positivavam a “constituição de uma única economia global“. Nesse momento, o modelo das maquiladoras era dominante na indústria automobilística.11
A implementação do NAFTA e a adoção da produção just-in-time no setor automotivo fomentaram a especialização flexível e reduziram os custos de produção. Assim, a indústria foi fragmentada em três processos altamente diferenciados: a produção de componentes ou autopeças, a distribuição e a montagem dos veículos.12 O modelo just-in-time reestruturou drasticamente a produção e o regime de trabalho. As fábricas de automóveis continuaram a montar os veículos, mas terceirizaram grande parte do processo produtivo para centenas de empresas ligadas à manufatura de autopeças, à distribuição de componentes e a atividades indiretamente relacionadas à produção de carros, como zeladoria e serviços de alimentação, além da preparação do transporte de carga. Atualmente, os segmentos de produção e distribuição são os que empregam a maior parte da força de trabalho. Essa dinâmica produtiva abriu o caminho para o acentuamento da flexibilização e precarização do trabalho: ao longo da última década, robôs industriais – que não requerem nenhum operador humano – passaram a substituir trabalhadores do setor automotivo. Segundo um relatório de 2018 produzido por Stephen Woodman para o Center for International Governance Innovation, “em 2011 havia 83 trabalhadores mexicanos no setor automotivo para cada robô (…) Em 2015, a razão caiu para 19 para 1”.
A implementação do modelo just-in-time também tirou dos sindicatos independentes o controle sobre o processo produtivo, especialmente no que diz respeito à sua capacidade de influenciar as taxas de produção, as políticas de promoção dos empregados e as garantias trabalhistas e salariais. A nível nacional, tanto os sindicatos independentes quanto os aliados ao Estado perderam o limitado espaço que tinham na negociação de acordos, ainda que os independentes tenham mantido maior propensão à organização de greves.13
Ainda assim, o setor automotivo do México é frequentemente tratado como um grande sucesso do NAFTA. Foi uma indústria que, de fato, gerou empregos e absorveu a participação de uma geração mais jovem no mercado de trabalho nas fileiras da economia formal. A era pós-NAFTA levou a novas oportunidades de emprego nos setores de engenharia, administração e gestão. Em regiões com alta concentração de transnacionais do setor, foram implementadas públicas voltadas à preparação de candidatos a vagas de trabalho preenchidas por testes padronizados. Os governos locais também começaram a pagar um pequeno bônus para incentivar as empresas a enviarem trabalhadores mexicanos para treinamento no exterior. Empregos bem pagos, entretanto, não foram criados no mesmo ritmo, e a maioria dos postos de trabalho abertos no setor automotivo segue marcada pela precarização e baixa remuneração.
A era da ISI criou as bases para um modelo de desenvolvimento que dependia do investimento privado para a geração de empregos e do Estado para a expropriação de terras, e o NAFTA consolidou esse modelo. Mesmo sob o NAFTA, o governo mexicano seguiu fornecendo isenções e incentivos fiscais para atrair investimentos na indústria automotiva.14 Segundo um relatório de 2016, produzido pelo Automotive Policy Research Center, os governos estaduais e federal concederam milhões de dólares para a Toyota, Kia, Mazda, Honda, Volkswagen, Audi e para a Pirelli, multinacional de pneus. A Kia e a Audi também receberam doações de terrenos do governo – 533 e 460 hectares, respectivamente. Em Nuevo León, o governo concedeu à Kia US$ 115 milhões em incentivos indiretos, a desoneração da folha de pagamento por 20 anos e mais US$ 197 milhões em gastos com infraestrutura para a apoiar a construção das instalações. O terreno destinado à fábrica da Audi, composto por um parque industrial que abriga os fornecedores e uma nova cidade próxima à fábrica, foi expropriado de camponeses. Além de terras, quantidades sem precedentes de água foram desviadas da população rural para a economia automotiva do México.
A nível nacional, as empresas privadas ainda exercem um papel central para o desenvolvimento socioeconômico. São as principais fontes de emprego e, portanto, de acesso a serviços de saúde e moradia. Na era da ISI, a relação com a geração de emprego era semelhante, mas o Estado mexicano cumpria um papel mais significativo no desenho da política industrial. Na era da produção orientada à exportação, em escala global, são as leis que estruturam e regulam o livre comércio que determinam a dinâmica da indústria, liderada pelas corporações. O NAFTA foi o primeiro acordo comercial a estabelecer o sistema de arbitragem de litígios investidor-Estado (ISDS, na sigla em inglês), permitindo aos investidores processar um país por eventual “descumprimento de obrigações” que lhe tenha causado perdas.15 Durante a vigência do NAFTA, o papel do governo era majoritariamente o de promover o investimento enquanto mantinha a força de trabalho o trabalho sob controle.16
O trabalho na era do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA)
Em 2020, o NAFTA foi substituído pelo USMCA. Diferente de seu predecessor, o novo acordo aborda diretamente questões relativas ao trabalho, afetando amplamente a regulamentação trabalhista e a organização da classe trabalhadora no México. Os trabalhadores do país já foram positivamente impactados pela garantia de direitos individuais e coletivos prevista no capítulo 23 do acordo. Já em 2021, houve uma reivindicação de que o governo avaliasse potenciais violações de direitos trabalhistas em uma fábrica da GM em Silao e em uma fábrica de autopeças localizada na cidade fronteiriça de Matamoros. Em fevereiro de 2022, os trabalhadores da GM do norte do México elegeram um novo sindicato independente. O presidente do UAW (United Auto Workers, sindicato dos trabalhadores automotivos dos EUA), Ray Curry, e o maior sindicato do setor privado no Canadá,17 o Unifor, declararam apoio à vitória. O USMCA traz também uma cláusula de garantia salarial, exigindo que “40% a 45% dos componentes de um automóvel sejam produzidos por trabalhadores que recebem pelo menos US$ 16 por hora”. Apesar de ser um requisito promissor, ainda não existe clareza sobre sua eficácia para os trabalhadores do chão de fábrica. Até agora, segundo Jesús Seade Kuri, o principal articulador mexicano do USMCA, o requerimento de US$ 16 por hora vem sendo cumprido para os salários de engenheiros e de cargos administrativos.18
O USMCA preserva a integração dos setores automotivos do México, dos Estados Unidos e do Canadá, o símbolo da era NAFTA. De acordo com um relatório de 2021 desenvolvido pelo Congressional Research Service dos EUA, por meio desse sistema, “centenas de fornecedores produzem partes que cruzam fronteiras sete ou oito vezes antes de serem montadas na forma final de um carro”. Anteriormente, o NAFTA exigia que 62,5% do valor líquido de um veículo e 60% do custo de suas partes deveriam ser originados na região geoeconômica da América do Norte para obtenção dos benefícios de livre-comércio. O USMCA eleva o valor do conteúdo regional a um intervalo de 70% a 75%, dependendo do automóvel, e divide essa exigência de conteúdo em três grandes grupos: partes estruturais (como o motor), partes principais (como a rede elétrica) e partes complementares (como o sistema de freios). Ao alterar os valores da exigência de conteúdo regional, o USMCA amplia ainda mais a influência sobre a organização da produção de veículos, criando maior dependência mútua entre os setores automotivos de cada país.
O NAFTA, e agora o USMCA, transformaram a indústria automotiva em um motor de criação de empregos e de crescimento econômico nos três países signatários. Em 2020, o setor representava 3% do PIB estadunidense, empregando aproximadamente 4,1 milhões de pessoas. No México, gerava US$78 bilhões em receitas anuais, empregando mais de 1 milhão de pessoas, o que faz deste o maior setor produtivo liderado por fabricantes de equipamento original (na sigla em inglês, OEMs – Original Equipment Manufacturers) do país. No Canadá, a indústria automotiva foi responsável por CAN$ 12,5 bilhões do PIB e empregou diretamente mais de 117 mil pessoas, além de outras 371.400 de forma indireta. Os três países estão entre os maiores produtores automotivos do mundo: os EUA são o segundo maior produtor global de carros e o segundo maior produtor e exportador de autopeças; o México é o sexto e o quinto colocado, respectivamente; e o Canadá se encontra entre os doze maiores produtores mundiais.
A era dos carros elétricos
Atualmente, os veículos de emissões zero inauguraram um novo capítulo no setor automotivo norte-americano, mas a era do livre comércio vem sendo desafiada pela competição em torno da energia limpa. Uma vez que os carros elétricos são vistos como um caminho para a redução da dependência de combustíveis fósseis, fabricantes de automóveis sediadas no México se comprometeram a abandonar gradualmente, nas próximas duas décadas, os motores de combustão interna e os carros híbridos. A promessa guiou grandes investimentos: a Ford investiu US$ 420 milhões em uma fábrica de Cuautitlán atualmente destinada à montagem de carros elétricos; em abril de 2022, a GM anunciou um investimento de US$ 1 bilhão para modernizar sua fábrica em Ramos Arizpe, Coahuila, e começar a produzir veículos elétricos em 2023; em março de 2022 o grupo Volkswagen anunciou um investimento de US$ 7,1 bilhões para a produção de carros movidos a bateria em a América do Norte. A GM também divulgou um investimento de US$ 9 bilhões nas fábricas sediadas nos EUA para a produção de veículos elétricos e células de bateria.19 A modernização das fábricas da Volkswagen também se dará em ambos lados da fronteira. Com investimentos concomitantes, as empresas parecem estar comprometidas com a distribuição da produção de automóveis por todo território norte-americano, e não com a recondução completa da produção para um único local.
A manufatura de autopeças no México também foi incrementada: em 2019, o país produziu mais de US$ 8 bilhões em componentes automotivos elétricos, um aumento de 8,3% em relação ao ano anterior. Os investimentos também expandiram ao longo cadeia produtiva. A empresa chinesa Ganfeng Lithium, fornecedora da Tesla, anunciou a construção de uma fábrica de reciclagem de baterias de íon de lítio em Sonora. Já a chinesa Contemporary Amperex Technology Co. (CALT) – a segunda maior produtora global de baterias para veículos elétricos – vem considerando investir US$ 5 bilhões no México, no Canadá ou nos EUA. A construção de infraestrutura voltada à produção e reciclagem de baterias é central para o cumprimento dos requisitos de conteúdo local do USMCA, uma vez que, até o momento, a maior parte das baterias é fabricada na Ásia.
Para o México, a virada em direção aos carros movidos a energia limpa ilustra uma oportunidade de recuperar alguma parte do controle público sobre recursos naturais que foi perdido ao longo dos 25 anos de NAFTA. Em março de 2022, o Presidente López Obrador nacionalizou o lítio – essencial para a produção de baterias de carros elétricos –, por se tratar de “mineral estratégico” para o país. Com essa medida, o governo mexicano pretende construir um setor público de energia firme e acessível. O anúncio gerou controvérsias. Kenneth Smith Ramos, que liderou as negociações técnicas para criação do USMCA, declarou que a proposta contraria o acordo.20 Já Katherine Thai, representante comercial dos EUA, alegou que a legislação mexicana sobre o lítio é “anticoncorrencial e contrária às proteções e provisões do USMCA”, além de dificultar a elaboração de soluções climáticas por impedir que os três países signatários trabalhem conjuntamente no desenvolvimento de energias limpas.
O incentivo fiscal para EVs de Biden e a nacionalização do lítio de López Obrador evidenciam uma competição emergente entre os EUA e o México em torno de bilhões de dólares de investimentos verdes em potencial para o setor automotivo. Sob o império do livre comércio, no entanto, essa competição não significa simplesmente a concessão de incentivos fiscais, infraestrutura e disponibilidade de mão de obra qualificada, mas também a complicação no cumprimento dos acordos comerciais. O emerge disso é um terreno irregular de relações de poder, moldado pela história das relações exteriores e do poder empresarial de cada um dos países.
Esforços para “repatriar” componentes da produção automotiva demonstram como o setor envolve a negociação entre interesses locais, nacionais e globals: políticas de garantias ao trabalho adotadas por determinado país comprometem interesses trabalhistas e corporativos de outro. Ainda assim, há uma continuidade entre a origem do setor automotivo mexicano e seu estado atual. O modelo de crescimento adotado pelo governo do México, centrado na indústria de transformação, na dependência do investimento privado e no corte de gastos sociais, foi o que permitiu a progressiva precarização que prevalece no setor atualmente.
Ao mesmo tempo, o fortalecimento da força de trabalho – evidenciado pelas recentes vitórias conquistadas pelos sindicatos independentes – pode indicar uma nova direção. O capítulo 23 do USMCA e as novas reformas trabalhistas no México, que preveem contratações públicas e eleições sindicais diretas, permitiram aos trabalhadores mexicanos desafiar os sindicatos corrompidos. Ainda que os coneários de reconciliação de diferentes interesses nacionais estejam em aberto, as mudanças na legislação trabalhista em diversos níveis de governança são acenos esperançosos às possibilidades de sindicalização emergentes.
Por meio dessa proposa, Biden definiu o caminho para alcançar três objetivos do plano “Build Back Better”, atualmente estagnado: 1) a promoção de um setor de produção de energia que zere as emissões de carbono até 2035; 2) a criação de empregos protegidos por regulamentações trabalhistas; e 3) o fortalecimento da indústria automobilística dos EUA com tecnologias nacionais.
↩Desde a década de 1920, o México montava carros da Ford e da General Motors, inicialmente produzidos em Detroit e exportados em partes completamente não montadas (completely-knocked-down, CDK na sigla em inglês). Ver: Jorge Acevedo Martínez e Armando Heredia González, “Historia de la Ford Motor Company de Mexico, SA de CV.” em La Cultura Industrial Mexicana. Sergio Niccolai e Humberto Morales (eds.). Pp. 387-397 (Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2003).
↩Para uma análise mais detalhada das políticas que moldaram a indústria automotiva mexicana durante a era da substituição de importações, conferir as obras de Douglas C. Bennett e Kenneth Evan Sharpe, Transnational Corporation versus the State: The Political Economy of the Mexican Auto-Industry (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1985) e Rhys Owen Jenkins, Dependent Industrialization in Latin America: The Automotive Industry in Argentina, Chile, and Mexico (New York: Praeger, 1977).
↩Edur Velasco Arregui, “Industrial Restructuring in Mexico During the 1980s.” In The Political Economy of North American Free Trade. Ricardo Grinspun e Maxwell A. Cameron (eds.). Pp. 163-175 (Montreal & Kingston: McGill-Queen University Press, 1993).
↩Manlio Barbosa Cano, “El decreto expropiatorio de las tierras de Ocotlán es contrario al interés público.” Crítica Revista de la Universidad Autonóma de Puebla (1984,21:55-65) e Elsa Patino Tovar, “Periferia Poblana: la desigualdad del crecimiento.” Papeles de Población, Universidad Autonóma del Estado de México (2004 10(2): 125-151).
↩Douglas C. Bennett e Kenneth Evan Sharpe, Transnational Corporation versus the State: The Political Economy of the Mexican Auto-Industry (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1985).
↩Até 2021, os trabalhadores terceirizados empregados em ambos setores eram excluídos desses direitos garantidos pelo código trabalhista mexicano. Ver: Alejandra González Jiménez, “Mexico’s Labor Reform May not be Enough for Auto Logistics Workers”.
↩Ian Roxborough, Unions and Politics of Mexico. The Case of the Automobile Industry (Cambridge: Cambridge University Press).
↩Joseph U. Lenti, Redeeming the Revolution (Lincoln: University of Nebraska Press 2017).
↩Nesses espaços, os empregos eram direcionados especialmente à força de trabalho feminina. Veja mais sobre a dimensão de gênero do setor manufatureiro das maquiladoras em: Norma Iglesias Prieto, Beautiful Flowers of the Maquiladora (Austin: University of Texas Press 1997) e Patricia Fernández-Kelly, For We are Sold, I and my People: Women and Industry in Mexico’s Frontier (Albany: State University Press, 1983).
↩Teresa Healy, Gendered Struggles Against Globalisation in Mexico (Aldershot: Ashgate 2008).
↩Deborah Cowen, The Deadly Life of Logistics: Mapping the Violence of Global Trade. Minneapolis: University of Minnesota Press 2014).
↩Kevin Middlebrook, “Union Democratization in the Mexican Automobile Industry: A Reappraisal.” Latin American Research Review, 1989 24(2):69-93.
↩Essas práticas também são observadas nos EUA e no Canadá.
↩Por meio dessa cláusula, empresas processaram países em razão da aprovação de medidas de proteção ambiental sob o argumento de que seriam prejudiciais às operações e investimentos correntes e sabotariam a expectativa de lucros futuros. Mais sobre o poder corporativo em: Joshua Barkan, Corporate Sovereignty: Law and Government under Capitalism (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013) e Dinah Rajak, In Good Company: An Anatomy of Corporate Social Responsibility (Stanford: University of California Press, 2011).
↩Em 2007, o então Presidente do México, Felipe Calderón Hinojosa, criou o ProMéxico, uma subdivisão da Secretaria da Economia para promover investimentos no país.
↩Para conferir um exemplo de solidariedade além-fronteira entre os trabalhadores da indústria automotiva no México, Canadá e EUA, assista ao vídeo “$4 a Day? No Way! Joining Hands Across the Border.”
↩Para responder às exigências trabalhistas convencionadas pelo USMCA, o México encerrou legalmente, ainda em 2021, a prática de subcontratação. Esse mecanismo de terceirização havia se tornado uma forma bastante comum de emprego no país. Na indústria de automóveis, a nova legislação sobre subcontratação de 2021 terá efeitos no setor de produção de autopeças, mas não no setor de serviços logísticos, uma vez que a entrega de componentes (bem como os serviços de alimentação e limpeza) não são consideradas atividades centrais da produção automotiva.
↩Mesmo assim, o vice-presidente do sindicato United Auto Workers (UAW) reagiu ao investimento em veículos elétricos da GM no México como sendo um “tapa na cara, não apenas dos membros da UAW e de seus familiares, mas de todos os contribuintes e trabalhadores estadunidenses”.
↩Em resposta a essa preocupação, o governo mexicano se comprometeu a respeitar o contrato da britânica Bacanora Lithium em parceiria com a chinesa Ganfeng Lithium, estipulando que a concessão seja ativamente utilizada e não meramente especulativa.
↩
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