26 de junho de 2025

Análises

O desmonte de um gigante

O custo da privatização do setor energético na Costa Rica

Desde que assumiu o cargo em maio de 2022, o presidente da Costa Rica, Rodrigo Chaves, anunciou suas intenções de reformar o setor elétrico do país. Em outubro, seu governo prontamente apresentou a Lei 23.414 para dar às empresas privadas um papel mais proeminente no setor energético, dominado pelo Estado, tanto na geração quanto na transmissão de eletricidade. As discussões legislativas sobre o projeto continuavam em pleno andamento na primavera de 2025.

A introdução da Lei 23.414 no debate legislativo inaugurou esforços sem precedentes para promover a privatização da energia. Enquadrada como uma “harmonização do sistema elétrico nacional”, a lei propõe desmantelar um dos setores elétricos mais estáveis e socialmente orientados da América Latina. Os defensores da indústria afirmam que a medida não só atrairá investimentos privados e reduzirá custos, mas também alcançará maior concorrência e investimentos em energia renovável, necessários para atender à crescente demanda e garantir um serviço confiável. A ameaça de racionamento de energia em maio de 2024 foram uma evidência da má gestão do Estado e provavelmente se repetirão com a privatização. Mas, como alertaram críticos, como a organização ecologista Federação Costarriquenha para a Conservação da Natureza (FECON), “privatização significa substituir um modelo universal por outro que garantirá os lucros das empresas privadas em detrimento do serviço social da eletricidade”. Na realidade, o racionamento de energia anunciado no ano passado acabou por ser evitado, mas o risco subjacente foi causado pela falta de chuva, o que é a espinha dorsal do sistema elétrico da Costa Rica. No país, a crise climática resultará, no mínimo, em uma crise energética, e a privatização não parece ser solução abrangente.

A tentativa de Chaves de privatizar a eletricidade pode ser analisada no contexto da atual onda de figuras de direita que implementam políticas neoliberais sob o pretexto de reações populistas contra o “establishment”. Sua vitória veio na esteira da pandemia da Covid-19, durante a qual a Costa Rica, fortemente dependente do turismo, foi severamente abalada por restrições de viagem e políticas de isolamento social. Ex-funcionário do Banco Mundial, Chaves foi demitido do cargo por assédio sexual. Ao mesmo tempo em que expressa uma narrativa antissistema, seu governo tem tentado apagar o que resta de social-democracia no país.

Desde a década de 1980, a Costa Rica, outrora conhecida por seu estado de bem-estar social, forte sistema de educação pública e saúde e a ausência de forças armadas, tem sofrido pressões crescentes de instituições financeiras internacionais por reformas neoliberais. Sob o presidente Óscar Arias (2006-2010), o acordo de livre comércio com os EUA, conhecido como CAFTA, foi aprovado por pequena margem em um referendo nacional, apesar da oposição maciça de organizaç sociedade civil. O acordo foi um divisor de águas para políticas mais orientadas para o mercado. A atual proposta de reforma aproveita esse impulso e visa um setor-chave dos serviços públicos do país.

Em toda a América Central, os governos privatizaram o setor energético nos últimos trinta anos. A própria Costa Rica abriu-se de forma limitada a projetos energéticos privados em 1990; Honduras abriu o mercado energético em 1994 e a Nicarágua alterou o quadro jurídico da eletricidade em 1995. A Guatemala, El Salvador e o Panamá seguiram rapidamente o exemplo e, em conjunto, criaram um mercado regional de eletricidade. As expectativas eram altas, não apenas pela formação de um mercado centro-americano, mas também pela esperança de exportar eletricidade para o Norte, conectando a rede centro-americana ao México. A linha de transmissão SIEPAC (Sistema de Interconexão Elétrica para Países da América Central) entrou em operação em 2014. O mercado regional de eletricidade obrigou, assim, a uma virada para a privatização em todo o istmo. Mas a Costa Rica conseguiu manter seu modelo público—até agora.

Construindo um gigante

O Instituto Costarriquenho de Eletricidade (ICE) tem sido a espinha dorsal do sistema social-democrata da Costa Rica desde meados do século XX. Na década de 1920, protestos contra a American and Foreign Power Company (uma subsidiária da Electric Bond and Share Company, que por sua vez era propriedade da General Electric) levaram à nacionalização de toda a produção de energia hidrelétrica. O resultado foi a criação do Serviço Nacional de Eletricidade (SNE) em 1928. No entanto, durante a Grande Depressão, a cobertura permaneceu limitada. Foi somente após a guerra civil de 1948 que o Conselho Fundador da Segunda República, sob o presidente José Figueres, criou o ICE, em 1949.

Entre 1950 e 1980, o Estado embarcou em planos de desenvolvimento em grande escala para estimular a industrialização e o crescimento econômico. Isso incluiu empresas estatais que abrangiam desde o açúcar até o alumínio, substituição de importações e investimentos em tecnologia e inovação. Os planos do governo foram modelados com base no paradigma de desenvolvimento da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) e incluíram a nacionalização dos bancos, legislação sobre direitos trabalhistas e a abolição do exército. No momento único que marcou o fim da guerra civil, este modelo de desenvolvimento foi apoiado por industriais, pequenas empresas, pequenos e médios agricultores e trabalhadores do setor público, enquanto foi contestado pelas frações tradicionais proprietárias de terras e pelo clero não progressista. A social-democracia costarriquenha também moderou as reivindicações mais radicais de mudança social dos camponeses sem terra, dos jornaleros e dos grupos marginalizados e racializados.

O ICE detinha o monopólio estatal da geração de energia, fazendo parte de um novo Estado social-democrata que forneceria os serviços mais essenciais aos seus cidadãos e acabaria com a escassez de eletricidade e a falta de acesso. O fornecimento de eletricidade era visto pelos políticos como um pilar do desenvolvimento social, juntamente com a saúde, a educação e o abastecimento de água. A infraestrutura essencial fornecida pelo Estado tinha como objetivo construir uma classe média mais fortalecida, permitir políticas de longo prazo por parte do Estado e, em última instância, incentivar um crescimento econômico mais equitativo.

Assim, o instituto formou o núcleo do modelo solidário de energia da Costa Rica, permitindo que a energia assumisse uma função fundamentalmente social. A eletricidade era fornecida com base nos princípios da universalidade e solidariedade, com acesso garantido como um direito público e tarifas uniformes em todo o território.

Os preços são baseados no consumo e no setor. A Autoridade Reguladora dos Serviços Públicos (ARESEP) fixa preços e tarifas e tem uma função mediadora. Essa estrutura garante que regiões remotas ou economicamente marginais paguem as mesmas tarifas que os centros urbanos, evitando assimetrias espaciais de preços normalmente produzidas pelos sistemas energéticos orientados pelo mercado. O Estado investiu pesadamente para estender a rede a todas as partes do país, tornando a equidade social um componente da infraestrutura técnica. O ICE continua sendo o único comprador da Costa Rica. Quatro cooperativas possuem linhas de transmissão em menor escala fora da rede, e os municípios de Heredia e Cartago fornecem energia em algumas áreas urbanas para as quais têm concessões geograficamente definidas desde a década de 1960, enquanto o ICE é responsável pela cobertura nacional. Entre as décadas de 1960 e 1990, a ICE implementou uma cobertura quase universal de eletricidade em todo o país.

O instituto foi essencial para o desenvolvimento, os padrões de vida e a posição econômica da Costa Rica na América Latina. A classificação consistentemente alta da Costa Rica nos indicadores de desenvolvimento reflete o sucesso de seu modelo social-democrático do século XX. O ICE também foi influenciado pela mobilização popular, que muitas vezes o levou além do planejamento inicial do Estado. Na década de 1950, conselhos de bairro recusaram pagamentos e organizaram marchas contra os aumentos das tarifas da American and Foreign Power Company, que ainda era proprietária do sistema de transmissão de eletricidade. Essas pressões finalmente levaram à nacionalização da rede em 1958, uma questão delicada, dado o contexto global e o envolvimento dos interesses dos Estados Unidos. Os investimentos da General Electric em telecomunicações na Costa Rica são apenas um exemplo desses interesses.

Rastejando em direção à privatização

Na década de 1980, protestos—particularmente aqueles liderados por alianças de grupos das classes baixa e média—conseguiram desacelerar os aumentos nos preços da eletricidade impostos pelo ICE. No entanto, programas de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial nas décadas de 1980 e 1990 colocaram a Costa Rica sob pressão econômica. Em 1990, a lei 7200 permitiu a geração privada de eletricidade, desde que os produtores privados, juntos, não excedessem 15% da capacidade total. Posteriormente, foi permitida mais geração privada sob o rótulo “Construir, Operar, Transferir”, em que o ICE compraria a eletricidade produzida pela iniciativa privada e, posteriormente, transferiria a usina elétrica para a propriedade pública.

Os últimos trinta anos revelam o enfraquecimento contínuo do ICE. O principal ponto de inflexão foi o “Combo”, um pacote de reformas de privatização tentado por políticos liberais em 2000. O “Combo”, argumentavam, atrairia investimentos em energia e telecomunicações e, para isso, era necessário desmantelar o monopólio do ICE na distribuição de eletricidade, juntamente com o da geração. Em resposta, uma ampla coalizão de ativistas, sindicatos, especialistas, organizações estudantis e o movimento ecológico se formou para defender o ICE. As mobilizações não foram motivadas apenas por preocupações econômicas, mas também por valores culturais e políticos profundamente arraigados associados ao ICE como um pilar da identidade da Costa Rica. Com centenas de protestos e bloqueios de estradas todas as semanas, os manifestantes quase paralisaram o país. Isso forçou o governo a recuar, e o ICE permaneceu sob propriedade pública.

A história do ICE é, portanto, uma história de planejamento estatal que responde às demandas coletivas: desde 2021, mais de 99% dos domicílios estão conectados à rede elétrica. Hoje, o instituto é responsável pela geração, transmissão e distribuição de energia, embora também existam cooperativas regionais (municipais).

No entanto, a imagem atual do ICE é muito mais complexa. Desde os anos 2000, grupos ecológicos, especialmente no sul da Costa Rica, têm chamado a atenção para os riscos ecológicos e sociais das usinas hidrelétricas. Tanto o ICE quanto empresas privadas planejaram projetos de geração de energia em vários rios, de médio e grande porte, que encontraram resistência maciça da população. Em particular, ativistas criticaram o planejamento do ICE como exclusivo, verticalizado e sem consideração às pessoas atingidas, ignorando as preocupações da comunidade e iniciando as construções prematuramente. Os habitantes, especialmente nas áreas rurais, consideram inaceitável o escoamento ou o desvio de rios para a operação de usinas hidrelétricas.

Os manifestantes defenderam veementemente a proteção dos ecossistemas e a importância dos rios como espaços sociais. Um projeto particularmente controverso foi o hidrelétrico El Diquís, que teria sido o maior da América Central, com uma capacidade proposta de 650 MW. O projeto foi formalmente planejado pelo ICE em 2006, com construção inicialmente prevista para 2009 a 2016. Ele teria inundado partes do território da comunidade indígena Térraba sem consulta adequada, uma clara violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre direitos indígenas. Após anos de oposição de ecologistas e organizações indígenas, o projeto foi finalmente arquivado em 2018.

A lei da “Harmonização”

A lei de “Harmonização”, introduzida no início deste ano, reacendeu a disputa entre uma visão da energia como setor orientado para o lucro ou modelo de solidariedade. No final de março, porém, a Comissão Especial para a Energia decidiu suspender o projeto, após longo debate parlamentar.

A “harmonização” na proposta do governo significava que as empresas privadas que produzem energia—proprietárias de usinas hidrelétricas a fio d’água ou turbinas eólicas, mas também usinas térmicas—estariam em pé de igualdade com o ICE e poderiam vender eletricidade diretamente aos grandes consumidores. Isso substituiria o atual sistema de solidariedade altamente regulamentado e criaria um mercado nacional para a produção e distribuição de eletricidade. O Estado perderia o controle sobre o setor, os alicerces do modelo de produção de energia por meio do ICE.

O fornecimento de eletricidade não é determinado pela concorrência, mas pela necessidade de garantir a cobertura geral. Atualmente, o ICE compra eletricidade de geradores privados a preços de longo prazo, mas em 2021 não renovou os contratos existentes, considerando as condições muito desfavoráveis para o Estado. Desde então, as relações entre o ICE e os geradores privados de eletricidade têm sido tensas. A Associação de Produtores Privados de Energia (ACOPE) tem instado repetidamente o ICE a utilizar a eletricidade produzida pelas usinas desconectadas. Como o ICE é o principal distribuidor e compra energia de empresas privadas, ele pode, em teoria, decidir quais usinas permanecem conectadas à rede.

Fonte: Luis Arias e Lucia Rodriguez, com base em: https://semanariouniversidad.com/pais/permitir-a-los-privados-exportar-electricidad-aumentara-tarifas-locales-para-los-usuarios/

Como era de se esperar, o setor industrial argumenta que os preços de eletricidade para a indústria são muito altos, e a Câmara da Indústria da Costa Rica é fortemente a favor da privatização da energia. De acordo com a Câmara, a demanda por eletricidade cresceu muito mais do que o esperado nos últimos anos, e a falta de capacidade instalada significa que mais combustíveis fósseis são usados para geração, causando o aumento de preços. Os industriais argumentam que isso pode levar a mais racionamento de eletricidade:

De onde virá a energia para atender a essa demanda crescente? Vemos essa iniciativa como uma oportunidade para abrir espaço para mais investimentos na geração de eletricidade por meio de fontes renováveis, o que garantirá que nós, consumidores, tenhamos nos próximos anos um serviço contínuo e de alta qualidade, mas acima de tudo a preços competitivos.

Os ativistas rebatem que este é, obviamente, um argumento a favor de uma melhor gestão e não da privatização do setor. A ANEP, um dos sindicatos do ICE, levantou a suspeita de que os gestores recentemente nomeados para o ICE teriam desligado deliberadamente as usinas térmicas de reserva em agosto de 2022, para depois contratar usinas térmicas privadas em outubro de 2023, quando a geração de eletricidade da empresa estatal caísse. Segundo a ANEP, este foi “um plano concebido para enfraquecer a instituição… para justificar a abertura (privatização) do setor elétrico”. Parece que as centrais térmicas se tornaram agora ainda mais importantes, compensando em parte a perda de energia hidrelétrica fidedigna. Num setor baseado no mercado, o ICE continuaria a arcar com o fardo: teria de mediar as flutuações do fluxo de eletricidade no sistema e fornecer eletricidade de reserva em períodos de escassez.

Perdendo um bem comum

Sindicatos, movimentos ecológicos e acadêmicos criticaram fortemente a legislação proposta. Eles alertam para o aumento da injustiça social, já que o aumento dos preços da energia, resultado de mecanismos de mercado, afetaria particularmente os setores rurais e economicamente mais fracos da população. Eles argumentam que a eletricidade, caracterizada pela cobertura universal e considerada um “bem comum”, poderia se tornar um produto de luxo como resultado das reformas planejadas. Os lucros seriam privatizados, enquanto as perdas continuariam a ser suportadas pelo setor público—especialmente se a empresa estatal de energia fosse obrigada a comprar eletricidade de empresas privadas a preços elevados.

O representante sindical Sergio Ortiz, presidente da Asociación Sindical Costarricense de Telecomunicaciones (ACOTEL), argumentou que a única coisa que a iniciativa poderia harmonizar seriam “os interesses privados dos grandes consumidores e produtores de energia do país, para que possam maximizar seus lucros”. Os funcionários do ICE também expressaram preocupação, enfatizando que, apesar das críticas contínuas à instituição, “uma abertura poderia ser até mesmo perigosa de gerenciar, muito delicada”. (Entrevista com engenheiro do ICE, 13 de junho de 2022).

Grupos ecológicos como o Movimiento Ríos Vivos estão preocupados que, em um mercado desregulamentado, os interesses corporativos possam impulsionar a reativação de projetos hidrelétricos anteriormente rejeitados. A experiência de países vizinhos, como Panamá e Guatemala, mostra que grandes usinas hidrelétricas sob gestão privada levaram ao desmatamento, à perda de biodiversidade e ao deslocamento de comunidades locais. Esses riscos estão recebendo cada vez mais atenção na Costa Rica, pois a abertura do mercado de energia ameaça enfraquecer o controle democrático.

Energia mais barata, aumento dos preços ou negócios transnacionais?

Ecoando as demandas da indústria, Chaves prometeu repetidamente “reduzir as tarifas de eletricidade” rapidamente—como fez, por exemplo, em julho de 2022—e reduziu os preços em janeiro de 2025. No entanto, isso ocorreu à custa de grandes riscos para o sistema, incluindo uma escassez de eletricidade até então desconhecida. Essa decisão foi contra a recomendação da ARESEP, entidade reguladora dos preços da eletricidade, que havia sugerido um aumento de 30% nos preços em 2024, com pequenas diferenças entre o ICE e as empresas municipais de distribuição, devido à dívida do ICE com importações de eletricidade e com usinas térmicas privadas do ano anterior.

Em comparação regional, a Costa Rica tem a melhor rede elétrica desenvolvida e os preços de eletricidade mais baixos. Os preços têm flutuado, uma vez que o ICE os reduziu para os residentes nos momentos em que seu orçamento permitiu—em 2022, quando as exportações estavam altas, os preços ao consumidor da eletricidade caíram quase 20%. Os ganhos foram repassados aos consumidores e reinvestidos, e a ARESEP é responsável, desde 1990, por uma política “social” de preços da eletricidade. Ao contrário do argumento do governo de que a concorrência em rodadas de licitações para geradores privados reduziria os preços, os dados mostram o contrário. Partindo da necessidade das empresas de satisfazer os acionistas, a transferência dos lucros para a redução dos preços seria improvável. Na verdade, os preços provavelmente aumentariam.

Preços médios da energia nos países da América Central

Fonte: E. Torijano, Estadísticas del subsector eléctrico de los países del Sistema de la Integración Centroamericana (SICA) 2022, CDMX, CEPAL, 2023.

As mudanças institucionais previstas na “Lei de Harmonização” também terão um grande impacto socioeconômico: a entidade de controle CENCE passaria do ICE para o Ministério do Meio Ambiente e Energia (MINAE). Uma nova “entidade coordenadora” assumiria suas responsabilidades na resposta à demanda. Quando entrevistados, dois representantes do sindicato da energia SITET (Sindicato Industrial de Trabajadores Eléctricos y Telecomunicaciones) alertaram que isso representa uma politização do sistema: a “entidade técnica, o coração do sistema, deixará de ter critérios técnicos, e critérios políticos irão interferir”. É realmente questionável se o controle do sistema mudará a cada ciclo governamental e quem será responsável por tomar decisões para evitar instabilidades na rede.

Repetidamente, os geradores privados exigiram a possibilidade de alimentar a rede transnacional com sua eletricidade. De acordo com a Lei de Harmonização, as empresas privadas poderiam vender eletricidade diretamente ao exterior através da rede regional, tornando-se efetivamente exportadoras de eletricidade. Uma fonte anônima do setor energético argumentou que “o ICE controla tudo. O ICE não permite que outro operador, outro transmissor, outro distribuidor entre”. Agora, os produtores privados de energia poderiam finalmente “contornar” o ICE e passar diretamente para o mercado regional. A abertura das exportações também mudaria completamente a ideia de responsabilidade pelo sistema nacional: “Quando vende seu excedente de eletricidade para o resto da América Central, o ICE pode comprometer a demanda nacional. O ICE não deve vender energia, por exemplo, para a Nicarágua ou a Guatemala, a um preço mais lucrativo, em vez de fornecê-la para empresas ou residências na Costa Rica”, explicou o porta-voz do sindicato, Jorge Coronado.1Entrevista com as autoras. 

Evolução do índice de cobertura elétrica na Costa Rica

Fonte: Índice de Cobertura Elétrica Nacional, Costa Rica


Entre 2018 e 2022, as exportações de eletricidade através da linha de transmissão SIEPAC dispararam, e o Estado converteu os lucros em preços mais baixos para os consumidores. Mas a baixa pluviosidade fez com que, em 2023, as exportações de eletricidade caíssem 86%. Em 2024, o excedente de energia que os países da América Central poderiam exportar para o mercado regional de eletricidade diminuiu 22,8% em relação a 2023. Isso pode significar que as perspectivas para os exportadores privados—caso exportassem separadamente do ICE—não são tão positivas quanto o governo esperava quando apresentou os planos de privatização em 2022. 

Por outro lado, o ICE, fortemente dependente das grandes usinas hidrelétricas construídas entre as décadas de 1970 e 1990, falhou em grande parte no planejamento para as mudanças na produção de eletricidade relacionadas à crise climática. A volatilidade das chuvas já tornou o funcionamento das grandes usinas hidrelétricas do país muito menos previsível. Em 2024, elas entraram em condições críticas, com níveis historicamente baixos em seus reservatórios. Juntamente com o desligamento das usinas térmicas e a redução do comércio de eletricidade em toda a América Central através da linha de transmissão transnacional SIEPAC, isso resultou em escassez de eletricidade. Embora a demanda não pudesse ser atendida, os críticos do ICE argumentam que a crise foi provocada pelo ser humano. O fenômeno El Niño, que causou a seca, era bem conhecido e previsto, mas a administração do ICE e o governo o ignoraram. Alguns chegaram a afirmar que o aumento da dependência de usinas térmicas privadas — apesar dos custos mais elevados—foi uma escolha deliberada.

Democracia energética na balança

A privatização da eletricidade é apenas uma parte da agenda neoliberal clássica mais ampla do governo, em meio a um cenário político caracterizado por alta desigualdade social, aumento da criminalidade e da violência. Uma análise de 2023 da Universidade da Costa Rica (UCR) constatou que o governo Chaves está deliberadamente desacreditando o sistema público de saúde, a Caja Costarricense de Seguro Social (CCSS).Seu governo não ratificou o Acordo de Escazú, um acordo regional sobre a proteção dos direitos humanos e ambientais, e sugeriu a abertura de usinas de gás e a legalização da mineração de ouro. A impunidade do assassino de Jehry Rivera, um ativista ambiental assassinado em 2020, também diz muito sobre o fraco histórico ambiental de Chaves.2O ativista pelos direitos territoriais indígenas foi assassinado em 2020. Embora o autor do crime tenha admitido publicamente o assassinato e um tribunal o tenha condenado a 22 anos de prisão em fevereiro de 2023, a sentença foi anulada em setembro de 2024 e o réu foi absolvido. Jehry estava envolvido nos protestos contra o projeto hidrelétrico de Diquís e na defesa do território indígena. Os repetidos ataques ao judiciário e os episódios de corrupção são mais paralelos aos governos de direita de Donald Trump e Nayid Bukele.

Embora a Comissão de Energia tenha suspendido a iniciativa do governo para a privatização, os debates sobre o futuro do setor energético da Costa Rica estão longe de terminar. Alguns progressistas sugeriram que a pausa é simplesmente uma manobra tática antes das próximas eleições. Está em jogo mais do que um ajuste técnico ou econômico, mas sim a preservação de um modelo de desenvolvimento que há muito garante o acesso equitativo e molda o tecido social do país.

No entanto, discussões sobre alternativas para a produção de energia e descentralização, que vão desde soluções solares e fora da rede até cooperativas de energia de médio porte, têm entrado cada vez mais na esfera nacional. Esses modelos não só oferecem o potencial de reduzir a dependência do país de projetos de grande escala—muitas vezes associados a altos custos sociais e ambientais—mas também promovem a soberania energética genuína, especialmente para povos indígenas e outras comunidades remotas, mantendo uma rede confiável para os costarriquenhos urbanos que pode se mostrar resiliente à crescente crise climática.

O futuro incerto do ICE leva a uma reavaliação do modelo de solidariedade da Costa Rica e seu lugar em um modo de produção e distribuição de energia cada vez mais transnacional. Os debates evocam o controle democrático do fornecimento de energia por meio da participação política, da autodeterminação social e da soberania. Soluções técnicas orientadas para o mercado provavelmente não conseguirão resolver essas tensões fundamentais enraizadas na identidade do Estado costarriquenho.

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