29 de maio de 2025

Análises

Outono braudeliano nos EUA

Facções do capital no segundo governo de Donald Trump

O declínio hegemônico, segundo o historiador Fernand Braudel, sempre veio acompanhado pela financeirização. Em meio à queda da lucratividade da produção e do comércio, os detentores do capital passam a transferir seus ativos de modo crescente para o setor financeiro. Segundo Braudel, isso é “sinal do outono” em que os impérios “se transformam em uma sociedade de investidores rentistas à espreita de qualquer coisa que garanta uma vida tranquila e privilegiada”.1Braudel, F. (1984). (<)em(>)Civilization and capitalism, 15th-18th century(<)/em(>). University of California Press, pp. 246 e 266-267 [Fernand Braudel (2009). (<)em(>)Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII(<)/em(>), v. 1 a 3. Trad. Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes].

Esse espectro do declínio braudeliano ronda figuras-chave do segundo governo de Donald Trump. “Diga-me o que todas as antigas moedas de reserva têm em comum”, ponderou Scott Bessent, agora Secretário do Tesouro, durante a campanha. “Portugal, Espanha, Holanda, França, Reino Unido… como perderam o status de moeda de reserva?” E respondeu: “Eles se endividaram além da conta e não conseguiram mais sustentar suas forças armadas”. Embora Bessent, um ex-gestor de fundos de hedge, negue oficialmente que haja um programa de desvalorização do dólar, especuladores vêm derrubando a taxa de câmbio dos EUA desde que Trump assumiu o cargo em janeiro. O Secretário de Estado Marco Rubio é o autor de um relatório de 2019 sobre “Investimento estadunidense no século XXI”, no qual critica Wall Street pelo regime de valorização voltado para os acionistas, que “faz a tomada de decisões empresariais tender para o retorno rápido e previsível do dinheiro aos investidores, em vez de construir capacidades corporativas de longo prazo”. Suas opiniões sobre finanças são compartilhadas por autodenominados “populistas” republicanos, como Josh Hawley.

A hostilidade remanescente em relação a Wall Street marcou uma ruptura ideológica nos primeiros meses do segundo governo de Trump. Por um lado, as tarifas do “Dia da Libertação” proclamado pelo presidente agitaram os mercados financeiros; por outro, Wall Street retaliou com pânico financeiro, buscando disciplinar a Casa Branca. Uma questão central do segundo governo Trump continua sendo se irá se sustentar a coalizão entre os autodenominados populistas do MAGA e a base eleitoral de Trump—que espera elevação dos padrões de vida e empregos seguros, proporcionados por uma retomada da indústria manufatureira impulsionada por tarifas e um ajuste do mercado de trabalho promovido pelas deportações. Empresas de combustíveis fósseis e empresas de tecnologia voltadas para a defesa, como Palantir e Anduril, apreciam muito o nativismo militarizado. Mas a política comercial de Trump claramente prejudica as finanças privadas e as grandes empresas de tecnologia, dois setores que têm apoiado Trump consistentemente e esperam ser recompensados. Atacar esses setores ameaça alienar as mesmas facções do capital americano que o levaram de volta ao poder.

Para essas facções do capital, o declínio dos EUA é relativo e—a exemplo do que fez o Japão—pode ser administrado com complacência. Como Giovanni Arrighi observou em 1994, o setor financeiro sempre intermediou transições hegemônicas e, em consequência, se beneficiou delas.2Arrighi, G. (1994). (<)em(>)The long twentieth century: Money, power, and the origins of our times(<)/em(>). Verso. Hoje, os titãs da gestão de ativos lucram tanto com o reequilíbrio dos portfólios estadunidenses, afastando-os da hegemonia em declínio, quanto com o oferecimento de pools de capital em rápido crescimento da China e de outras economias asiáticas em ascensão com acesso a ativos estadunidenses. As grandes empresas de tecnologia, por sua vez, visam ao controle geral sobre o conhecimento e a coordenação econômica.3Durand, C. (2024). (<)em(>)How Silicon Valley Unleashed Techno-feudalism: The Making of the Digital Economy(<)/em(>). Verso Books. Elas têm muito a perder com a fragmentação geoeconômica, que pode impedi-las de acessar dados, reduzir a efetividade na rede, aumentar o custo de infraestrutura material e pressionar políticas não alinhadas a buscar a soberania digital.

Portanto, em seus esforços para reanimar o império estadunidense, o governo Trump terá de manter um equilíbrio delicado entre os nativistas, cujos interesses estão voltados para a indústria, e as facções capitalistas cujos interesses abarcam o mundo todo. Navegar entre essas agendas conflitantes representará um enorme desafio à longevidade da coalizão trumpista—e à estabilidade do sistema financeiro global como um todo.

O setor financeiro privado apoia Trump

A eleição de 2016 provocou uma cisão dramática em Wall Street. Enquanto os bancos grandes demais para falir e os gestores de ativos de “capital público” se alinharam retoricamente aos democratas, o “capital privado” ou os gestores de ativos alternativos—private equity, venture capital e fundos de hedge—emergiram como apoiadores declarados da primeira candidatura de Trump à presidência. Essa divisão refletiu a do Reino Unido, onde um grupo arrojado de magnatas do private equity e dos fundos de hedge havia manifestado apoio ao Brexit, enquanto as finanças tradicionais tendiam a apoiar a permanência na União Europeia.4Marlène Benquet and Théo Bourgeron, (<)em(>)Alt-Finance: How the City of London Bought Democracy, (<)/em(>)Pluto: London, 2022.

Gestores de ativos alternativos só querem duas coisas: privilégios fiscais e desregulamentação. O fator mais importante por trás da ascensão inexorável dos caciques das finanças privadas no ranking Forbes 400 é a brecha tributária do carry-interest. Nos últimos 25 anos, o “carry”—remuneração dos sócios gerais baseada no desempenho de fundos privados—atingiu a impressionante cifra de US$ 1 trilhão.5Phalippou, L. (2024). The Trillion Dollar Bonus of Private Capital Fund Managers (SSRN Scholarly Paper No. 4860083). https://papers.ssrn.com/abstract=4860083 Em 2010, Obama tentou fechar a brecha—e não conseguiu—, um esforço que o CEO da Blackstone, Stephen Schwarzman, não obstante, achou por bem comparar à invasão da Polônia pela Alemanha nazista. A manutenção da brecha foi a exigência de última hora da senadora Kristen Sinema à Lei de Redução da Inflação do governo Biden—completando o fracasso em aumentar os impostos para empresas e ricos durante o governo de Biden. 

Quanto à desregulamentação, o maior prêmio que a facção das finanças privadas pode ganhar é o acesso ao vasto conjunto de ativos individuais de aposentadoria. Atualmente os fundos de private equity e hedge arrecadam dinheiro de indivíduos super-ricos e de proprietários de ativos institucionais. Seu maior grupo de clientes, de longe, são os fundos de pensão de benefício definido, tanto públicos quanto privados—investidores institucionais com passivos fixos. Desde a crise financeira de 2008, no entanto, planos individuais de contribuição definida, como os planos 401(k) e IRA, cresceram duas vezes mais rápido do que seus equivalentes coletivos. Hoje, pouco menos de US$ 10 trilhões são mantidos nesses dois tipos de planos, todos administrados pelos pilares da facção liberal de Wall Street: empresas como BlackRock, Vanguard e State Street.

Em sua busca de longo prazo para obter acesso a esse gigantesco reservatório de dinheiro, a facção do financiamento privado obteve sua primeira vitória sob o governo Trump I. Em 2020, o subsecretário do Departamento do Trabalho (DOL = Department of Labor), Eugene Scalia, filho do proeminente juiz conservador da Suprema Corte, Antonin Scalia, escreveu uma carta, afirmando que as regras existentes já permitiam que patrocinadores do 401(k) alocassem dinheiro do plano para empresas de private equity. Com certeza, uma carta do DOL, diferentemente de uma mudança na norma pétrea da SEC [Security and Exchange Commission, ou Comissão de Valores Mobiliários e de Câmbio], se assenta em terreno jurídico frágil, mas, não obstante, é significativa. Logo após Trump assumir o cargo pela segunda vez, os titãs do private equity redobraram seus esforços para abrir a torneira do 401(k), acreditando que isso poderia dobrar a procura por seus fundos. 

Não há mistério quanto à determinação do private equity em obter acesso aos 60 milhões de participantes do plano 401(k) nos Estados Unidos. A linha de ataque é clara: ao limitar suas opções de investimento a ações e títulos negociados publicamente, os reguladores privam os detentores de 401(k) de diversificação e retorno. Marc Rowan, presidente-executivo da Apollo, reclamou que os fundos 401(k) “são investidos em fundos indexados com liquidez diária, principalmente o S&P 500”. Larry Fink, CEO da BlackRock, que recentemente investiu em ativos de infraestrutura, lamentou de modo parecido que esses ativos estejam “em mercados privados, trancados atrás de muros altos, com portões que se abrem apenas para os participantes mais ricos ou maiores do mercado”. A investida da BlackRock no private equity representa a guinada mais ampla para a direita que está ocorrendo entre os gestores de ativos de capital aberto, na medida em que o acesso aos retornos do private equity é vendido aos poupadores de aposentadoria estadunidenses como um passo em direção a uma maior democracia financeira.

Na realidade, o setor de private equity está buscando ajuda para salvar o que o economista Ludovic Phalippou chama de sua “fábrica de bilionários”.6 Ludovic Phalippou, “An Inconvenient Fact: Private Equity Returns and the Billionaire Factory,” (<)em(>)The Journal of Investing(<)/em(>),(<)em(>) (<)/em(>)December 2020, 30 (1) 11 – 39. Desde 2006, os retornos dos investimentos dos fundos private equity não superaram os do mercado de ações—apesar do número de bilionários ter crescido de três em 2005 para 22 em 2020. Nos últimos anos, esses fundos de aquisição [buyout funds] têm se empenhado para sair de seus investimentos, em vez de passá-los adiante em um jogo de batata quente que envolve todo o setor. Em 2024, o setor de private equity encolheu pela primeira vez em décadas. As negociações corporativas, que estavam na mira do governo Biden, oferecem um caminho para retomar o crescimento. “O setor tem insistido no retorno de M&A [fusões e aquisições], em parte para justificar o montante de capital que levantaram”, disse recentemente o diretor de investimentos da gestora de ativos alternativos Sixth Street. “O problema é que as pessoas pagaram caro demais por ativos entre 2019 e 2022 e ninguém quer vendê-los sem um retorno aceitável”.

Diante desse acúmulo de expectativas, a maneira mais segura de garantir uma saída lucrativa é atrair novos investidores. O setor raciocina que atrair US$ 1 trilhão em dinheiro “burro” [dumb money] do plano 401(k) permitirá que os fundos de pensão, os fundos soberanos e os grandes proprietários de patrimônio individual se desfaçam de seus investimentos com lucro. Os poupadores menores ficariam com esse saco de ativos supervalorizados. Em outras palavras, um esquema Ponzi.

O realinhamento das grandes empresas de tecnologia

Enquanto o setor financeiro se dividia em duas facções políticas, a elite do Vale do Silício marchava para a direita, mostrando uma união impressionante. Por três décadas, empreendedores do setor de tecnologia e financistas privados puderam “agir rápido e quebrar coisas” sem temer grandes repercussões impostas pelo Estado. Por levar uma vida fácil demais, esse suprassumo dos predadores decidiu que a aplicação cada vez mais intensa de leis antitruste pelo governo Biden e pelo Partido Democrata precisava ser interrompida. Nesse sentido, a união em torno da bandeira de Trump tem como objetivo restaurar o status quo antitrust de Obama-Trump. Falando sobre a ansiedade sentida pelos líderes do setor, o investidor de capital de risco Marc Andreesen descreveu os sinais de “revolução social” nos campi universitários e no Vale do Silício como “um renascimento da Nova Esquerda” que radicalizou a força de trabalho.

É evidente que as empresas estão basicamente sendo transformadas em motores de mudança social, de revolução social. A base de funcionários está ficando descontrolada. Na era Trump [I], houve casos em que várias empresas que conheço sentiram que estavam a poucas horas de tumultos violentos em seus próprios campi, causados por seus próprios funcionários.

O liberalismo do Vale do Silício, ao que parece, foi uma fase temporária ligada a um período já ultrapassado de máxima liquidez e mínima regulamentação do capitalismo estadunidense. Então chegou a Covid e o governo concedeu transferências substanciais aos trabalhadores, alguns dos quais se sentiram encorajados a apresentar novas demandas. Ao mesmo tempo, o braço mais ativista do governo Biden, a Comissão Federal de Comércio (FTC) de Lina Khan, direcionou a fiscalização antitruste para as grandes empresas de tecnologia. Acrescente a isso a tentativa de coordenação internacional da secretária do Tesouro de Biden, Janet Yellen, sobre tributação corporativa e o apoio retórico do presidente democrata à mobilização sindical, e você entenderá por que Andreesen viveu isso como “um momento radicalizador gigantesco” e dedicou uma quantidade enorme de tempo a bate-papos em grupo promovendo a consciência de classe dos bilionários.

Essas foram as circunstâncias que levaram as grandes empresas de tecnologia a se juntarem às das finanças privadas como a segunda facção do capital a apoiar o retorno de Trump. A reunião dos chefes das grandes empresas no dia da posse selou essa aliança. Eles foram rapidamente recompensados com uma enxurrada de decretos executivos que eliminaram as barreiras de segurança pública para empresas de IA e os obstáculos regulatórios para empresas de criptomoedas. De fato, em contraste com a ação rápida do governo Biden contra o plano do Facebook para seu sistema de pagamento global Libra, lançado em 2019 e arquivado em 2022, o novo governo parece estar preparado para apoiar o setor de criptomoedas com toda a confiança e toda a credibilidade do Estado.

Os interesses em criptomoedas adotaram o manual do private equity, buscando atrair recursos dos fundos de pensão. Desde a reeleição de Trump, 23 estados introduziram legislação permitindo que entidades públicas invistam em criptomoedas. Em vários casos, os projetos de lei incluem especificamente fundos de pensão públicos. Embora a Lei Genius [Guiding and Establishing National Innovation for US Stablecoins | Orientando e estabelecendo a inovação nacional para stablecoins dos EUA]”, que visa fornecer uma estrutura regulatória permissiva para stablecoins [criptomoedas atreladas a outro ativo nacional], tenha superado um obstáculo importante no Senado, o ataque do DOGE [Department of Government Efficiency | Departamento de Eficiência Governamental] às agências reguladoras financeiras (da Securities Exchange Commission ao Consumer Financial Protection Bureau), está enfraquecendo a fiscalização e aumentando os incentivos para assumir riscos em todo o sistema financeiro. Restam poucos obstáculos à realização do plano de Elon Musk de uma Conta X Money em parceria com a Visa. Foram lançadas as sementes para uma versão muito maior da crise dos bancos do Vale do Silício.

O resultado é que o sério aperto financeiro que afetou os primeiros meses do novo governo pode ser tanto uma característica quanto um defeito da coalizão corporativa do presidente. As ambições da nova elite do Vale do Silício não são apenas incapacitar a burocracia federal, mas também destronar Wall Street.

O dilema do Fed

Isso nos leva ao árbitro decisivo em qualquer confronto envolvendo finanças e o Estado: o Federal Reserve (Fed). Não obstante uma grave crise financeira, o Fed tem desfrutado de uma sólida trajetória de controle monetário na política macroeconômica dos EUA. Assim que a inflação recomeçou, a política monetária ofereceu um instrumento promissor para a estabilidade financeira e de preços, colocando a política fiscal em segundo plano. A economia de alta pressão, gerada pela estratégia de Yellen de “ir com tudo e agir cedo” em resposta à crise provocada pela pandemia, combinada com a alta dos preços devido aos atrasos na cadeia de suprimentos, fez com que o Fed achasse justificado apertar a política monetária para deflacionar os mercados financeiros e de trabalho.

No entanto, sob Trump II, o Fed encontra-se em um caminho muito mais perigoso. As tarifas de Trump e o dólar enfraquecido tornam o retorno das pressões inflacionárias uma possibilidade real. Um governo competente e disciplinado talvez pudesse impedir aumentos de preços em produtos essenciais por meio de estoques estratégicos e controle de preços.7Weber, I. M., Lara Jauregui, J., Teixeira, L., & Nassif Pires, L. (2024). Inflation in times of overlapping emergencies: Systemically significant prices from an input–output perspective. Industrial and Corporate Change, 33(2), 297–341. (<)a href='https://doi.org/10.1093/icc/dtad080'(>)https://doi.org/10.1093/icc/dtad080(<)/a(>) O governo atual, no entanto, não é competente nem disciplinado, e o ataque sistemático do DOGE ao governo federal apenas reforça a impressão de que o ônus de controlar a inflação recairá exclusivamente sobre o Fed.

Nesse ponto, Jerome Powell enfrenta um dilema. Se as pressões inflacionárias aumentarem sob o duplo ataque de tarifas e um dólar mais fraco, normalmente se espera que o Fed aumente as taxas. O Fed já está permitindo que os rendimentos dos títulos subam. No entanto, o aprofundamento do estresse financeiro devido a taxas de juros mais altas do que o esperado e ao crescimento da renda menor do que o esperado—proprietários de automóveis estão atrasando o pagamento de empréstimos na maior proporção das últimas três décadas—pode forçar o Fed a intervir para sustentar o valor dos ativos, como fez no final de 2019 e início de 2023, por meio de empréstimos emergenciais e compras de ativos. Além disso, Trump e Bessent deixaram claro que querem taxas de juros mais baixas para a dívida do governo dos EUA—uma perspectiva que complica enormemente qualquer projeto de restrição monetária.

O dilema de Powell é ainda mais urgente porque o maior ativo de todos parece estar em jogo: o status dos títulos do Tesouro dos EUA como ativo global seguro e, portanto, o status do dólar estadunidense como reserva global e moeda de financiamento. O apetite dos gestores de reservas oficiais por títulos estadunidenses vem diminuindo há anos, com a participação do dólar nas reservas globais caindo de 71% em 2000 para 57% em 2024. Sinais de crescente preocupação entre os investidores em títulos surgiram já em fevereiro, quando o diretor de investimentos da gestora de ativos francesa Amundi observou, em resposta às ordens da Casa Branca que enfraqueceram a regulamentação de valores mobiliários, que “cada vez mais coisas […] são feitas que podem começar a corroer a confiança […] no sistema estadunidense, no Fed, na economia estadunidense”. Nas semanas seguintes, essa ameaça mal disfarçada começou a se materializar com uma forte correção dos mercados de ações e, mais preocupante, com o aumento dos rendimentos dos títulos do Tesouro estadunidense. Após o anúncio de tarifas “recíprocas” por Trump em 2 de abril, os EUA vivenciaram algo extraordinário: fuga de capitais. Caso o Fed seja pressionado a permitir que as taxas de juros reais caiam à medida que a inflação aumenta, a fuga de capitais em uma escala muito maior será uma possibilidade real.

Há muito são considerados incompatíveis os objetivos de eliminar o déficit comercial dos EUA e, ao mesmo tempo, preservar o status de moeda de reserva do dólar. Desde o trabalho de Robert Triffin sobre o “excesso de dólares”, do final da década de 1950, economistas monetários internacionais entendem que o crescimento econômico global por meio do comércio depende da disponibilidade de reservas. Na ausência de um novo padrão de reservas, isso tem sido interpretado como a exigência de uma ampla oferta de dólares, fornecida ao resto do mundo por meio de déficits comerciais perpétuos dos EUA. Embora um mundo de eurodólares e fluxos financeiros transfronteiriços brutos ilimitados signifique que a liquidez global não está necessariamente vinculada à conta corrente dos EUA, as ideias do governo para desvincular os dois não são nada animadoras. Elas incluem, especificamente, a promessa de “promover o desenvolvimento e o crescimento de stablecoins legais e legítimas lastreadas em dólares em todo o mundo”. Eric Monnet chamou isso de “criptomercantilismo”, uma estratégia que visa estender, em vez de minar, o domínio do dólar no sistema monetário global, uma vez que o valor das stablecoins será lastreado por ativos em dólar. 

As armadilhas do poder da classe dominante

O retorno de Trump ao poder expôs as fissuras da coalizão que contribuíram para sua vitória. As facções populares do MAGA apoiaram Trump por sua postura nacionalista, que tem pouca afinidade com as finanças tradicionais e o interesse do setor de tecnologia em mercados financeiros e digitais globais abertos. Tecnologia e MAGA poderiam potencialmente encontrar um meio-termo na ambição de revitalizar a base industrial dos EUA, mas isso atacaria a base do dólar forte da qual tanto o financiamento convencional quanto o privado dependem para sua primazia. Embora, como afirma Steve Bannon, “muitos MAGAs estejam no Medicaid”, o orçamento federal recentemente aprovado pela Câmara controlada pelo Partido Republicano inclui cortes radicais na previdência social defendidos pelas finanças privadas. Apesar da retórica, esses cortes de gastos não compensam a redução de impostos: os déficits públicos continuarão, do mesmo modo que a agenda tarifária e desregulamentadora do governo seguirá ameaçando a estabilidade financeira.

Os teóricos do Estado há muito argumentam que “a classe dominante não governa”. De acordo com a feliz frase de Fred Block, as democracias liberais têm sido caracterizadas por uma divisão de trabalho entre capitalistas que administram suas empresas e “gestores estatais” que administram o governo.8Block, F. (1987). The ruling class does not rule: Notes on the Marxist theory of the state. In Revising state theory: Essays in politics and postindustrialism (pp. 51–68). Temple University Press. Como os capitalistas individuais tendem a ter dificuldade para enxergar além de seus próprios resultados financeiros, suas fortunas dependem do sucesso dos gestores estatais em sustentar as condições de sua reprodução social, ecológica e financeira.

De acordo com Block, o Estado capitalista gerencia a própria sobrevivência por meio da agregação de interesses. Surge agora a pergunta: será que o atual governo dos EUA, em sua forma debilitada, será capaz de agregar os interesses das múltiplas facções concorrentes que sustentam o governo Trump II? Tarifas que protegem os interesses industriais da tecnologia americana na China, mas que apaziguam os nacionalistas do MAGA, combinadas com uma desvalorização do dólar orquestrada internacionalmente, contribuíram significativamente para sustentar o boom de investimentos industriais da bidenomics. A desregulamentação financeira e a abertura das torneiras do fundo 401(k) para o private equity poderiam ser combinadas com a possibilidade de as alíquotas de imposto de renda para pessoas de alta renda reverterem de 37% para o nível anterior a 2017 de 39,6%, conforme proposto por Trump durante o debate na Câmara sobre o orçamento federal. No entanto, ainda não se sabe se tal consenso surgirá. Em apenas alguns meses, as antinomias da trumponomics estão escancaradas e sem solução óbvia.

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Editor's Note: Enquanto beneficia amplamente o 1% mais rico dos Estados Unidos, a hegemonia do dólar resulta em menos emprego e baixo crescimento salarial para o resto da população do país. Isso decorre das condições estruturais necessárias para que determinada moeda seja utilizada como moeda internacional. A emissão da moeda globalmente dominante obriga o país emissor a incorrer em déficits no balanço de pagamentos, e a recorrência desse processo gera uma corrosão da base produtiva doméstica. Uma vez que o balanço de pagamentos deficitário é bancado pela manutenção de uma miríade de passivos financeiros com atores externos, isso envolve necessariamente um acúmulo de dívida e outros tipos de obrigações por parte das empresas e famílias estadunidenses.

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