A política dos preços

Inflação e governança monetária

Em 1959, os líderes da então OCEE, atual OCDE, nomearam um Grupo de Especialistas Independentes “para estudar a experiência do aumento de preços” na história recente dos países capitalistas avançados. Entre o final da Segunda Guerra Mundial e o término da Guerra da Coreia, os planejadores econômicos haviam tolerado o aumento dos preços como consequência insuperável da reconstrução pós-guerra e da especulação de commodities induzida pela guerra. Esses governos esperavam que a inflação acabasse na medida em que as economias se readaptassem após o conflito na Coreia. “No entanto,” escreveu o Grupo de Especialistas Independentes em seu relatório final, “o aumento dos preços provou ser um problema contínuo”. O relatório da OCDE classificou quatro causas para a inflação dos anos 1950: aumento dos salários, precificação monopolista, demanda excessiva e o que chamaram de “preços especiais”: aqueles influenciados, por exemplo, por outros países, por más colheitas ou pela suspensão dos controles governamentais de preços.

Com a inflação de volta ao centro da agenda econômica, vale observar quão pouco consenso existia–durante um período lembrado pela suposta coesão social e conformidade intelectual–acerca dessas supostas questões de ordem técnica. Em 1961, o relatório final do grupo de estudos mostrou que seus membros não concordavam sequer sobre os achados concretos da pesquisa sobre as causas da inflação. Richard Kahn, o economista britânico nomeado para o grupo, insistiu em incluir uma objeção no relatório final: “Um de nós (Richard Kahn) não acredita que o conceito de ‘demanda excessiva’ forneça um método satisfatório para analisar os processos de inflação.”1

Se a época capitalista, desde seu triunfo na era vitoriana até sua deterioração durante a Grande Depressão, foi definida pelo desemprego, a invenção da economia planejada nos anos 1920 deflagrou, com a inflação persistente, uma luta paralela. Apesar de ser um debate altamente especializado, os critérios de avaliação técnica sobre o controle da inflação sempre foram traídos pelo dissenso histórico acerca da maneira como os governos deveriam responder ao aumento dos preços.2 Os critérios são esmagadoramente políticos, uma vez que representam interesses conflitantes.  De forma semelhante ao impasse provocado pela guerra, quando o “interesse nacional” vira alvo do mais cuidadoso escrutínio político, o conflito sobre o nível dos preços não é resolvido até que determinados interesses se fortaleçam o suficiente para estabelecer seus próprios paradigmas de mudança ou conservação do estado das coisas como sendo de “interesse público”. O processo pelo qual esse movimento de disputa política estaciona em um entendimento comum é raramente analisado, mas é fundamental para o sucesso de qualquer estabilização. 

Os ensaios que compõem essa série sobre inflação, em sua maioria, análises históricas, propõem alguns pontos de partida para pensar a política do nível de preços. Eles demonstram como esses critérios políticos determinam a técnica e a escolha do momento apropriados para o controle da inflação. Por meio da mediação ou da exacerbação de determinados aumentos nos preços ou na renda, frequentemente praticadas por meio da concessão de subsídios públicos à demanda ou à oferta, as políticas de preços de um país refletem o equilíbrio de forças e a competição pelo controle do Estado subjacentes. Uma vez que a composição da renda nacional molda, em última instância, o comportamento dos gastos, a exigência sobre a capacidade instalada e potencial e o nível de investimento em economias dominadas pela iniciativa privada, a inflação não pode ser adequadamente compreendida sem voltar a atenção às instituições que determinam como a renda é distribuída. Políticas de controle de inflação, portanto, são uma forma de olhar para o debate em torno de quais interesses privados o interesse público deve ou não proteger e nutrir.   

Definindo a política dos preços

Por muito tempo, o controle de preços foi considerado um instrumento importante de soberania.3 O juiz restauracionista Lord Hale, que embasou os comentários de William Blackstone, considerava a capacidade de regular preços excessivos, juntamente com a cunhagem de moeda, poderes fundamentais do rei. E foi uma frase de Hale que emergiu nos Estados Unidos após a Guerra Civil Americana como a opinião dominante sobre a constitucionalidade da regulamentação da indústria: “afetada pelo interesse público”.

Durante o século XVIII, quando os reinos absolutistas da Europa se ocupavam com o gerenciamento das vantagens potenciais de arrecadação tributária que a emergência de novos centros de produção de lucro permitia, o ataque popular ao poder de uma realeza paulatinamente mais ilegítima envolvia essa antiga prerrogativa. A revogação do controle estatal sobre os preços era entendida como caminho para diversificar ainda mais a divisão do trabalho, expandir o número de produtores baratos, incrementar a produtividade e, assim, reduzir os preços em razão do aumento no volume da produção. O fomento dessas iniciativas privadas era a essência da política radical, inseparável da reinvenção do governo como exercício de soberania popular. O empreendedorismo, que por muito tempo havia estado subordinado ao poder soberano, tornou-se uma liberdade civil. 

A realeza mal tinha terminado de cair quando os governos republicanos começaram a enfrentar os mesmos problemas de produção, distribuição, estabilidade e mudança. Após a fuga de Luís XVI para Varennes, a Convenção Nacional, diante comércio colonial embargado e da ameaça de invasão estrangeira, se defrontou com a imediata escassez de pão e de commodities americanas: café, açúcar e velas, para citar algumas. Os preços subiram. Para garantir a ordem durante a defesa da república, em 1793 a Convenção Nacional promulgou a Lei do Máximo Geral, inaugurando um duradouro debate interpretativo sobre a economia do controle de preços e do dinheiro.4

O controle de preços também foi um elemento-chave da legislação estadunidense desde o século XIX. No início da República, os governos estaduais fixavam mínimos legais para a remuneração de carregadores, carroceiros e lenhadores, por exemplo. Após a Guerra Civil, a disputa pela renda real entre três classes–agricultores; grandes corporações de manufatura, processamento e distribuição de bens; e trabalhadores industriais–redefiniu a economia política dos Estados Unidos. Como resposta a esse desafio, na década de 1870, os governos estaduais fixaram os preços cobrados por silos de grão e corporações ferroviárias. Regulamento por regulamento, o controle público sobre os preços ao longo das próximas cinco décadas se expandiu para incluir combustíveis, carne, seguros, moradia e trabalho. As comissões de serviços públicos estabelecidas pelos estados e a criação, pelo Congresso Nacional, da Comissão de Comércio Interestadual (1887), do Federal Reserve Board (1913) e da Comissão Federal de Comércio (1914) foram amparados pelas teorias de “monopólio natural” elaboradas pelos fundadores da American Economics Association (AEA). 

No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, o Departamento de Agricultura dos EUA um programa de investigação, em resposta ao problema da queda de preços agrícolas e da consequente redistribuição dos recursos do campo para a cidade e das comunidades rurais para as urbanas, que teve décadas de duração. Fazendeiros ricos se organizaram e fizeram um insistente lobby pelas leis McNary-Haugen de 1926-1927, que propunham a criação de uma estatal exportadora que garantisse a compra, a preços fixos altos, de commodities excedentes destinadas ao dumping em mercados estrangeiros. A partir do New Deal, com a suspensão geral das leis antitruste sob a National Recovery Administration e a eventual expansão dos efeitos da cláusula constitucional de comércio interestadual pela Suprema Corte, o tabu contra a política de preços foi abertamente confrontado. Durante a Segunda Guerra, um programa de financiado pelo governo para o controle abrangente dos preços levou a produção à capacidade com supressão quase total da inflação. 

Contemporaneamente, os debates sobre o controle da inflação permanecem carregados de conflitos políticos. No verão5 de 2021, assim que a perspectiva de aumento acelerado no nível dos preços ficou aparente, economistas e jornalistas voltaram a atenção às reuniões do Federal Reserve. O Fed, diga-se, inicialmente anunciou que não começaria a elevar as taxas de juros até 2023: a inflação induzida pela pandeia era “transitória”, garantiu o presidente Jerome Powell a seu eleitorado financeiro. Essa explicação para a inação do Fed entregou a fraqueza da política programática de pleno emprego após décadas de inércia oficial. Cada mês de elevação contínua de preços minava a o apoio público ao programa do banco central. 

Quando algumas vozes, atentas aos interesses favorecidos pelas decisões supostamente apolíticas da política monetária, questionaram a resposta do governo, o sacerdócio econômico se uniu em condenação. O aumento dos preços e os lucros recordes não seriam, em parte, indicativos da capacidade de exploração das empresas? Um aumento repentino da taxa de juros não seria um tratamento desleixado destinado às origens erradas do aumento de preços? A NPR não demorou para dar voz a Jason Furman, ex-presidente do Council of Economic Advisers (CEA) no governo Obama, que assegurou a milhões de cidadãos: “as empresas sempre querem maximizar seus lucros. Não acho que estejam fazendo isso em maior escala nesse ano do que em qualquer outro”. A página de opinião do Wall Street Journal (WSJ) foi mais direta: “A Casa Branca e os democratas do Congresso decidiram que criticar as empresas pelos aumentos de preços é politicamente mais útil do que admitir que Washington [está em] falta em razão do endividamento federal para a concessão de incentivos equivocados e uma por uma épica criação de dinheiro que estão impulsionando a inflação”. Os dogmas do governo da taxa de juros são tão sagrados que a mera possibilidade de discussão de alternativas foi rapidamente afastada. 

No meio tempo, repórteres de mercado registravam a perspectiva do empresariado para explicar o aumento nos custos. A sessão de notícias do WSJ reportou que as empresas de energia usaram os lucros gerados pelo recorde de preços para comprar suas próprias ações, ao invés de investir na capacidade produtiva. Executivos de companhias aéreas gabaram: “estamos muito, muito confiantes na nossa capacidade de recuperar mais de 100% do aumento nos preços do combustível”. Os jornalistas de mercado concluíram, de fato: “Empresas ostentam seu poder na precificação”. Questionado, em maio, acerca da causa do aumento de preços, Powell explicou: “é visível que as empresas têm capacidade de aumentar os preços, e que estão fazendo isso”. A possibilidade de contenção ou, ao menos, de escrutínio público dessas decisões, não foi alvo de comentário.

Apesar da promessa inicial em sentido contrário, o Fed elevou a taxa básica de juros em por meio de dois aumentos combinados de 0,75% a partir de março de 2022. Essa medida só é capaz de moderar a alta dos preços por reduzir o investimento real, o crescimento do emprego e do consumo. “É hora de aumentar os juros”, disse o New York Times a seus leitores. “Ainda que Ele me mate, Nele esperarei”.

O caso da guerra fria

Na história da precificação, não há período que defina melhor o debate atual do que a política da Guerra Fria. Escrevendo sobre os esforços de planejamento de Kennedy e Johnson, George Soule, ex-editor da New Republic e diretor geral do National Bureau of Economic Research, explicou que “via de regra, o objetivo dos gestores é expandir a produção e evitar aumentos nos preços”. As administrações de Kennedy e Johnson não tinham as ferramentas legais para essa tarefa. Pontos concentrados de controle nas cadeias de abastecimento—“processadores e distribuidores”, como Soule os descreveu—podiam, em períodos de demanda crescente, cobrar mais por seus produtos do que o aumento nos custos unitários.6 O aumento de vendas diante de custos de produção estáveis ou em queda implica o aumento de produtividade. O objetivo dos economistas de Kennedy e Johnson era garantir a distribuição equitativa dos ganhos da produtividade crescente por meio de um sistema de diretrizes de salário e preço. No entanto, conforme o boom dos anos 1960 aumentou a produtividade, os balanços das empresas acumularam os ganhos por meio da prática de preços mais altos.

Durante a Guerra Fria, a indústria manufatureira provou ser a mais resistente às diretrizes de preços e lucros. Como Soule escreveu, “quando existem alguns poucos produtores, pode ser mais fácil chegar a acordos ou seguir tacitamente uma liderança na formação de preços”. O esquema legal deixado pela combinação entre New Deal e Guerra Fria retirou do poder soberano o controle abrangente de preços. Embora a Lei de Produção de Defesa da Guerra da Coreia tenha estabelecido estoques militares e subsídios diretos para produtores, a revogação dos instrumentos de controle de preços foi alvo de incansável lobby por parte de fabricantes e processadores de alimentos.

Em 1961, o Grupo de Especialistas Independentes da OCDE entendeu essa isenção de regulamentação dos preços de manufatura como uma fonte de pressão inflacionária. “No caso dos Estados Unidos”, escreveram, “há motivos para acreditar que tentativas, em algumas indústrias, de aumentar as taxas de lucro na elevação dos de vendas, ou de ter um ponto de equilíbrio mais baixo, contribuíram para o aumento dos preços industriais” durante o período de 1953-1960.7 Levando em conta os custos crescentes, o grupo da OCDE considerou a extensão do aumento de preços durante a década 1950 foi excessiva: “se alguma forma de capacidade de operação fosse atingida, os lucros brutos em certas indústrias seriam bastante altos”. Como Lyndon Johnson e o 89º Congresso logo descobririam, de fato, os rendimentos corporativos foram absorvidos pelo crescente uso de capacidade estimulado pela Guerra do Vietnã. Sob a inflação produzida por esses produtos, o governo era incapaz de segurar o limite dos salários.

Em busca do pleno emprego, vários governos do Atlântico Norte tentaram restringir a fixação privada de preços e salários por meio da adoção de diretrizes de produtividade, conforme o modelo dos EUA. Em vez dos “controles de preços” das décadas de guerra, o controle de preços passou a ser discutido pelos economistas sob as óticas setorial e de classe, por meio de “política de renda” principalmente direcionadas ao trabalho organizado. Além do Relatório Econômico Anual do Presidente publicado pelo Conselho de Consultores Econômicos dos EUA, a República Federal da Alemanha também recomendou diretrizes, o Commissariat général du Plan Francês previu diretrizes e controles formais em seus Quarto, Quinto e Sexto planos, o governo austríaco estabeleceu uma Comissão de Preços e Salários, e os britânicos publicaram diretrizes por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e da Comissão Nacional de Rendas, ambos criados em 1962.

A teoria econômica por trás desses novos programas de controle da inflação impunha excessivas à organização política de economias mistas. Direitos e privilégios relacionados à propriedade privada remanesciam no conteúdo desses novos conselhos e comissões destinados ao planejamento da macroeconomia. Embora tenham sido um tanto bem-sucedidas no início dos anos 1960, essas diretrizes falharam quase uniformemente diante da aceleração da inflação na virada da década. Na altura dos anos 1970, economistas e gestores públicos haviam tentado maximizar os efeitos das políticas de renda. A Dinamarca havia congelado os salários em 1963 e a Grã-Bretanha em 1966 e em 1972. Os franceses haviam congelado os preços em 1963, os suecos em 1970, e os noruegueses em 1972. Em 1971, a administração Nixon deu seguimento ao congelamento de salários e preços por três meses por meio da instauração de um sistema parcial de controles de salários e preços.

Nenhum desses esforços foi capaz de deter a inflação mundial. Havia duas razões para o fracasso. Primeiro, dado que o investimento era controlado pelo setor privado, a limitação dos lucros era frequentemente cobrada na moeda da capacidade produtiva. De todos os setores impactados pelo congelamento de Nixon, por exemplo, nenhum era mais importante que o de energia: embora os controles de preço tenham isolado os EUA do choque geopolítico de preços do Oriente Médio, sob a restrição dos lucros, as empresas petrolíferas reduziram a produção e geraram escassez. “As grandes empresas petrolíferas”, disse o senador de Illinois Adlai Stevenson em 1974, “aproveitaram a escassez para cortar o fornecimento para a concorrência remanescente no setor, os comerciantes independentes”. Em vez de confiar apenas nos controles de preço e produção para regular essas empresas privadas, Stevenson e Fred Harris, senador de Oklahoma, propuseram a criação de um “fornecedor de última instância” estatal.8. Contrárias à teoria de que o nível de preços e a oferta eram determinados somente pela demanda e, portanto, opostas à política de austeridade recomendada por ela, essas propostas criativas dos meados dos anos 1970 não chegaram a lugar algum nos EUA.

Na medida em que o investimento e a produção permaneceram legalmente sob controle privado, as decisões sobre o investimento ficaram reféns de pré-requisitos relacionados às taxas de lucro. O comentário feito por Jack Jones, da Federação de Sindicados do Reino Unido (em inglês, Trades Union Congress – TUC), sobre as políticas nacionais de renda em 1977 foi: “Eu ainda não vi…nenhuma evidência concreta de que os esforços desse setor… tenham produzido qualquer aumento significativo no investimento ou no emprego, e esse é o teste… na minha visão, uma estratégia industrial exclusivamente baseada em conversas educadas com os industriais e com as associações comerciais…não é, de forma alguma, uma estratégia”.9 Avaliando o fracasso dessas experiências na Alemanha Ocidental e na Áustria, o cientista político Gerhard Lehmbruch comentou: “ampliar o campo da tomada de decisões econômicas corporativas para além das políticas de renda (ou, mais precisamente, das políticas de controle salarial) teria implicado, entre outros efeitos, o controle dos lucros e dos investimentos…”. Leo Panitch descreveu as experiências de controle de inflação dos anos 1970 como a “forma específica de colaboração de classe induzida pelo Estado nas democracias capitalistas”, caracterizada por uma “crença na neutralidade do Estado e na sua promulgação do ‘planejamento’”. Panitch entendia que a fé na neutralidade estatal em relação à luta de classes revelava “o vazio desse planejamento.”10

Interesse social e interesse nacional nas políticas de estabilização

A segunda causa do fracasso das políticas de renda foi o consentimento popular. Durante a década de 1970, os governos do Atlântico Norte estimularam suas populações a participar das políticas de renda sob o pretexto do “crescimento”, mas a inflação contínua revelou a fraqueza desse argumento como motivo suficiente para garantir o consentimento popular em relação ao planejamento. Se a estabilidade macroeconômica exigisse quedas nos salários reais ou controles sobre os lucros dos empregadores, de que adiantaria? Uma expansão geral, segundo a qual um incremento não orientado dos gastos estimularia todas as linhas da indústria, provou-se impossível sem ser inflacionária. Objetivos públicos específicos, como moradia acessível, aumento da renda de grupos desfavorecidos, crescimento do setor de energia renovável ou promoção de igualdade social competem por espaço orçamentário com objetivos privados, como moradias de luxo, lucros corporativos ou operações de empresas de combustíveis fósseis. Deve haver uma série de sanções destinadas à alocação consciente de recursos destinados a um modelo de expansão da capacidade voltado à promoção da composição da demanda por pleno emprego desejada.

A guerra, como escreveu Wesley Mitchell, fundador do National Bureau of Economic Research (NBER, na sigla em inglês), altera o cálculo econômico. Em vez de calcular a produção de bens sob a ótica do dinheiro e orientar a produção pelo objetivo de lucro, os gerentes precisam calcular o dinheiro sob a ótica da produção de bens orientada às necessidades de financiamento do projeto social. Os preços são controlados, o governo ingressa no mercado como comprador e como distribuidor, frequentemente distribuindo sob uma lógica não orientada pelos preços. Os recursos são alocados para qualquer direção na qual possam expandir a composição necessária dos bens exigidos pelo programa. A não ser que haja definição acerca de alguma composição final do produto, os esforços do governo para resolver quaisquer gargalos de capacidade no curso de uma expansão geral acabarão revelando outros pontos de resistência ao longo da cadeia de abastecimento. “O fator determinante do limite efetivo das conquistas muda mês a mês e ainda mais ano a ano, e de país a país”, escreveu Mitchell.11

A descoberta das pessoas comprometidas com o princípio das políticas de renda durante a última crise do capitalismo foi que, para garantir o engajamento privado, o objetivo do planejamento nacional precisa ser publicamente justificado em termos mais específicos do que simplesmente a promoção do “crescimento econômico”. Para que uma estratégia semelhante tenha qualquer chance de sucesso, as instâncias públicas responsáveis por resolver os gargalos devem ter clareza acerca de qual é a composição final dos gastos desejada que seus esforços devem perseguir. Numa democracia representativa, somente as autoridades eleitas podem sancionar moralmente esse planejamento nacional. A pergunta que o historiador Richard Adelstein fez a respeito das reformas legislativas da era progressista foi: “qual é o propósito coletivo que poderia unir os indivíduos e cuja expressão poderia ser o objeto da política?…Qual seria o equivalente público dos lucros privados?”.12 Desde então, mesmo em tempos de paz, os governos seguem sendo confrontados pela mesma questão. Nos Estados Unidos, esse propósito coletivo só foi exprimido no programa de armamentos da Segunda Guerra Mundial e no mosaico específicos dos contratos de aquisição e dos materiais necessários para supri-lo. Não há qualquer paralelo doméstico a isso na história estadunidense.

O debate sobre as políticas de renda da década de 1970 mobilizou esse ponto teórico subjacente. Como escreveu Gardiner Ackley, economista da Great Society, acerca das políticas de controle de Nixon:

Há uma crença difundida de que o “consentimento” dos grandes grupos de interesse econômicos–que, a longo prazo, é a única base possível para sustentar o sucesso de um sistema de controle de inflação–só pode ser garantido e preservado por meio da coordenação entre o sistema de restrições de preços e salários e outras ferramentas de política pública que assegurem a progressiva redistribuição da renda na direção específica que a sociedade aprove. De fato, na medida em que a fonte da pressão inflacionária existente resida na insatisfação com a o estado atual da distribuição de renda por parte de um ou mais grupos de poder, enquanto houver resistência de outros grupos a mudanças significativas nessa distribuição, não é provável que haja real “consentimento” para uma política de renda.13

Nos anos 1970, a busca infeliz por consentimento popular esgotou a fé liberal que a Guerra Fria sustentava sobre o que havia sobrado do estado de bem-estar social.  A necessidade de uma visão social mais ampla levou Ackley, o consagrado tecnocrata keynesiano estadunidense, a uma conclusão tardia, à qual incontáveis líderes de movimentos de transformação social já haviam chegado–da “democracia industrial” dos socialistas da Era Dourada e o “cooperativismo” do Partido Populista ao “Arco da História” de Martin Luther King Jr.–: a conclusão de que aqueles que conscientemente desejam inaugurar novos capítulos para a experiência humana devem, necessariamente, virar a página de sua própria história.

Nixon conduziu, de seu modo cínico, um ensaio desse renascimento, o que lhe rendeu uma eleição, mas custou o prestígio e a autoridade moral do governo federal estadunidense. O papel dos funcionários públicos no controle de preços, enfraquecido pela exploração da situação promovida pelo governo Nixon, foi alvo de um ataque empresarial coordenado durante os anos 1970. Organizações patronais como a Business Roundtable; centros de pesquisa financiados por subsídios empresariais ou fortunas privadas; como o Cato Institute, o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation; e associações profissionais como a Federalist Society reformularam o esquema legal herdado do New Deal. No processo, o judiciário e o Congresso cortaram consideravelmente as atividades de regulação das tarifas do governo. Sob um processo de desindustrialização e crescente liberalização do comércio, conforme os interesses foram se reorganizando na competição pela renda nacional entre o setor energético e o crescente setor de serviços (entre os quais um dos mais refratários era o setor de saúde), o entendimento popular acerca da responsabilidade pelo controle de preços foi deslocado das instituições de produção e distribuição para o Fed e o Tesouro Nacional. Hoje, a norma é que as gigantes do mercado fixem os preços: daí a geração de crise quando o interesse público requer a expansão da demanda efetiva.

O regime social vigente é moldado pelo estatuto jurídico e pela abordagem teórica que identificam e regulam as causas macroeconômicas da inflação. O arrocho dos orçamentos públicos e a dilatação do controle patronal sobre a produção e os preços nos empurra para a política de taxas de juros. No mercado de trabalho, o impedimento criado pela teoria macroeconômica à reforma estrutural reforça um modelo distributivo que conforma arranjos raciais, étnicos, de gênero e de cidadania próprios. Em muitos estados, por exemplo, os baixos salários recebidos por professores de escolas públicas são o legado de um tempo no qual a profissão era majoritariamente exercida por mulheres, cujas carreiras, de acordo com a expectativa social, eram limitadas ao trabalho de meio período e à renda complementar a de seus maridos. O crescimento do número de empregos não sindicalizados na construção civil, por sua vez, é um exemplo perverso da transformação de normas étnicas e raciais: o desmonte da legislação federal e trabalhista que possibilitou a remuneração dos trabalhadores com salários de fome foi transformado em caso de sucesso em razão da diversidade da força de trabalho do setor. Contemporaneamente, as persistentes desigualdades de renda e oportunidade em razão de raça e gênero no mercado de trabalho têm operado como prerrogativa para um movimento sindical sitiado que corretamente as enxerga como base para novos modelos de organização. Mas, enquanto não houver coordenação entre as políticas salariais, os multiplicadores macroeconômicos e o controle de outros rendimentos, o crescimento de um novo movimento trabalhista será limitado pela escolha pública por recessão ao invés de inflação. Num país regido pela supremacia eleitoral, apenas a formação de um amplo consenso social seria capaz de coordenar o consentimento popular necessário à implementação desse programa.

Na experiência dos Estados Unidos, a formação desse consenso foi sempre subsidiada por vitórias bélicas. Quando os gestores estadunidenses lançaram mão de símbolos patrióticos e do crescimento econômico para infiltrar uma política de estabilização no arcabouço jurídico da Guerra Fria, o resultado foi uma desorganização profunda da vida nacional. A reivindicação desse simbolismo é ainda mais inadequada para a renovação desse arcabouço jurídico do que foi para a tentativa de estabilização no interior dele. Hoje, a construção de instituições estabilizadoras cuja finalidade seja mais ilustre que a destruição humana é uma tarefa de importância histórica. Diante do retorno do controle da inflação à ordem do dia e da renovação do conflito de classe, os ensaios dessa série oferecem novas perspectivas acerca de problemas incontornáveis das formas modernas de organização social.

  1. William Fellner, Milton Gilbert, Bent Hansen, Richard Kahn, Friedrich Lutz, Pieter de Wolff, The Problem of Rising Prices (OECD: 1964 [1961]), 9-10, Kahn em 33.

  2. Isso, até certo ponto, considerando que qualquer um dos vários índices construídos para medir grupos de preços possa ser considerado como um conceito singular. O Grupo de Especialistas Independentes da OCDE—que instigou a contenção dos salários e a redução dos gastos públicos—considerou que foi dada “uma atenção excessiva” aos índices e que “fazer do índice de custo de vida um fetiche, em alguns casos, obstruiu a construção de um pensamento razoável sobre políticas.” (Fellner, et al., 25).

  3. Price and Sovereignty,” Harvard Law Review 135, no. 2 (Dezembro de 2021) 755.

  4. Para financiar as obrigações da dinastia Bourbon, a Assembleia Constituinte Francesa de 1789 emitiu papel-moeda lastreado em terras confiscadas da Igreja. Como perguntou o economista americano Seymour Harris em 1930: “Os altos preços de subsistência [durante a Revolução Francesa] foram causados por emissões excessivas de Assignats, ou são explicáveis em termos de produção reduzida e circulação impedida de mercadorias?”. Ele encontrou evidências para ambas as possibilidades, mas decidiu em favor da última.

  5. N.T.: O texto se refere ao verão estadunidense, portanto, época de inverno no hemisfério sul.

  6. George Soule, Planning U.S.A. (Bantam: 1967), p. 151.

  7. O “ponto de equilíbrio” é o volume de vendas necessário para recuperar os custos de produção. Pontos de equilíbrio mais baixos requerem de preços mais altos, enquanto pontos de equilíbrio mais altos requerem preços mais baixos.

  8. Em comentário no programa de debates da emissora WGBH, o The Advocates, Harris disse: “Queremos criar uma corporação federal de petróleo e gás para desenvolver e administrar até 20% das terras públicas, comprar de forma competitiva no mercado mundial de petróleo bruto e vender para refinarias independentes, que agora estão sendo, como vocês sabem, excluídas dos negócios”. “Should Congress create a federal oil and gas corporation to compete with private industry?”, The Advocates , 24 de janeiro de 1974, GBH Archives, acessado em 19 de maio de 2022

  9. Leo Panitch, “Trade Unions and the Capitalist State, reimpresso por Panitch, Working Class Politics in Crisis: Essays on Labour and the State” (Verso: 1986), 205.

  10. Leo Panitch, “Trade Unions and the Capitalist State”, reimpresso por Panitch, Working Class Politics in Crisis: Essays on Labour and the State (Verso: 1986), 190, 197 e 205; Jones e Lehmbruch, 205.

  11. Mitchel, “War ‘Prosperity’ and the Future,” NBER, 1943.

  12. Adelstein, Richard P. “‘The Nation as an Economic Unit’: Keynes, Roosevelt, and the Managerial Ideal,” The Journal of American History 78, no. 1 (1991): 160–87.

  13. Ackley, “Incomes Policy for the 1970s,” The Review of Economics and Statistics 54, nº 3 (agosto de 1972): 218–223. Como o próprio FMI escreveu em 1964: “O grau de sucesso [das políticas de renda] variará de país para país de acordo com o quadro institucional existente e o apoio de grupos sociais ao objetivo da estabilidade de preços.” Relatório Anual do FMI de 1964.


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