Já antes de 2008 era preciso reorganizar os pilares da governança global para acomodar a ascensão da China. Com a crise financeira, somou-se a essa outra exigência: a de remodelar o próprio capitalismo. A pandemia de Covid-19 representou um momento estratégico para avançar nessa dupla tarefa. Uma década depois do anúncio da falência do Lehman Brothers, a emergência sanitária foi ocasião para que parte das elites globais lançassem seu apelo por uma nova ordem mundial pós-neoliberal, apelo que veio acompanhado do chamamento à reestruturação da governança global e, em particular, da sua dimensão econômica: a construção de um “novo Bretton Woods”.
Em comparação com a crise do liberalismo de cem anos atrás, a crise do neoliberalismo e o chamado à nova ordem atuais não contam com uma alternativa ao capitalismo como aquela representada pela União Soviética. Independentemente da classificação que se faça da China, fato é que, ao contrário da antiga URSS, o país não é epicentro de um movimento internacional amplo e bem implantado em variados Estados e regiões. Apesar de ter seguido o modelo soviético por ao menos três décadas, a partir do final dos anos 1970 a China adotou um caminho próprio e peculiar que lhe permitiu sobreviver ao colapso do bloco soviético sem abrir mão de seu projeto.1 Na particularidade da presente crise, o mundo globalizado depende da China sob muitos aspectos, mas nem por isso o país surge como um modelo imitável ou exportável.
A ausência de uma alternativa pós-capitalista implantada e exportável não significa, entretanto, que hoje não estejam presentes, como há cem anos, tensões geopolíticas graves. E não exclui a presença de modelos de capitalismo pretensamente exportáveis e em competição de vida ou morte, como há cem anos foram os capitalismos de tipo fascista ou de tipo New Deal. A possibilidade de que a crise atual leve à ruptura drástica de uma guerra globalizada não está fora da mesa. Daí vem, justamente, o sentido fundamental do chamamento para um “novo Bretton Woods”: reorganizar a governança global para que a passagem a uma ordem pós-neoliberal não cruze com a tragédia e a incerteza de um conflito bélico generalizado.
O duplo convite para uma reforma do capitalismo e de seu modelo de governança se configura em termos da conversão a um novo credo. O conteúdo desse credo ainda precisa de ser fixado, uma vez que sua direção e amplitude envolvem uma batalha já em curso no interior do establishment neoliberal. Qualquer que seja o resultado da batalha, no entanto, a autorreforma não deixa de ter como objetivo final vir a ser um novo credo, algo que desde a era neoliberal costuma ser chamado de “consenso”. Um “novo consenso”, como afirmou Jake Sullivan em abril de 2023.
Ainda que pareça paradoxal, o modelo proposto para essa transição dentro da ordem rumo ao pós-neoliberalismo pretende mimetizar o da própria ascensão e consolidação do neoliberalismo, pelo menos segundo um certo senso comum de como isso aconteceu. Nessa versão da história, o neoliberalismo teria surgido a partir da formulação de um novo paradigma econômico, com teoria e preceitos de política econômica próprios e visão própria de sociedade e de geopolítica. Em seguida, o projeto teria passado à fase de implementação, ilustrada tanto pela tomada das instituições quanto nas disputas culturais e eleitorais que levaram ao estabelecimento desse novo paradigma como hegemônico.2
O raciocínio que sustenta a adaptação contemporânea do projeto passado se estrutura mais ou menos assim: o neoliberalismo despontou em um contexto de Guerra Fria e, no mundo capitalista, conseguiu se consolidar sem uma ruptura bélica generalizada. Analogamente, para alguns países centrais, o atual momento de desglobalização seria caracterizado por uma nova forma de Guerra Fria que, permanecendo fria, permitiria a transição para uma nova ordem pós-neoliberal nos moldes da ascensão do próprio neoliberalismo.
Mas a proposta não seria viável se fosse lastreada somente no poder institucional e econômico dessas elites globais. Há pelo menos dois outros trunfos que tornam o projeto plausível, ainda que não se concretize. Primeiro, a irredutibilidade das transformações sociais provocadas pelo neoliberalismo objetivamente inviabilizou um programa que pretenda “voltar atrás”: hoje, a proposta de retomar uma regulação de tipo keynesiano não é mais que voluntarismo político ilusório. Segundo, a consolidação de uma divisão política de vida e morte, resultado da própria crise do neoliberalismo, serve bem a um projeto de transição dentro da ordem porque mobiliza a vitória da extrema direita como ameaça para forçar a moderação de forças mais à esquerda.
A geopolítica domesticada
Ao contrário de ser uma regulação meramente econômica e superficial, o neoliberalismo estabeleceu raízes sociais profundas.3 Seu sucesso em desmantelar mecanismos universais de solidariedade exacerbou disputas distributivas, provocando efeitos destrutivos e autodestrutivos. A marcada divisão política que se manifesta em diversas realidades domésticas atualmente é resultado desse processo. Hoje, nos países ainda democráticos, essa divisão se dá entre uma direita sem medo de se aliar à extrema direita e um novo progressismo que pretende reformar o neoliberalismo, afastando-se de suas versões mais extremistas. Trata-se de uma autêntica divisão, e não de mera “polarização”, em que, segundo a metáfora, os dois lados pertenceriam a um mesmo “campo magnético”.4 Os campos não apenas são distintos, mas inconciliáveis. São dois “projetos de mundo”.
No ritmo das analogias, seria possível sustentar que divisão semelhante se formou cem anos atrás: não havia terreno comum entre o capitalismo do New Deal, o nazismo e o fascismo e o socialismo soviético. Mas, para além da ausência de uma alternativa ao capitalismo, a situação atual é diferente porque os dois campos constituídos partilham, sim, um terreno comum. E esse não é o terreno da democracia, ou do que ela deveria ser, mesmo que nos países ainda democráticos de hoje, diferente do que aconteceu há cem anos, a extrema direita se apresente como campeã da democracia. O terreno partilhado é o próprio neoliberalismo e sua herança. O objeto principal das disputas é o que preservar e o que descartar do período neoliberal.
Cada um à sua maneira, ambos os representantes da divisão atual são herdeiros legítimos do neoliberalismo. São dois lados da mesma moeda. Os termos em que Gary Gerstle5 descreveu a configuração da disputa nos Estados Unidos aclaram os detalhes do processo sucessório: um dos lados lado é herdeiro do “neovitorianismo” (o neoliberalismo conservador de Ronald Reagan na década de 1980), o outro é herdeiro do “cosmopolitismo” (o neoliberalismo progressista consolidado a partir da gestão de Bill Clinton nos anos 1990). A diferença da nova geração da divisão é que em muitos lugares a direita sem medo, produto do neovitorianismo, é controlada pela extrema direita com a violência explícita e brutal que a caracteriza. O novo progressismo, por sua vez, é hoje o próprio establishment em boa parte dos países ainda democráticos.
A ameaça autoritária da direita sem medo, se por um lado permite ao novo progressismo a manutenção da base que o sustenta como establishment, por outro, impõe a preservação do máximo possível de quadros antes devotados à implantação de programas neoliberais. É justamente do establishment que vem o chamamento para um “novo Bretton Woods”, outra peculiaridade da situação atual: para o novo progressismo, não há necessidade do movimento custoso de tomar as instituições. Prosseguindo nas analogias, o contrafactual histórico para uma reforma do neoliberalismo desde dentro seria uma ordem keynesiana que tivesse conseguido se autorreformar de modo a evitar ser suplantada pela ordem neoliberal “antissistema”. Na disputa pelo espólio do neoliberalismo, é a direita sem medo quem se apresenta como “antissistema” e pretende tomar as instituições. O que lembra que o apelo para um novo Bretton Woods, embora feito pelo campo do novo progressismo, envolve muito mais do que a formação de blocos entre países ainda democráticos. Para ser bem-sucedido, o convite tem que ser estendido também às autocracias consolidadas e aos países com governo de partido único. E aos países em vias de se tornarem uma coisa ou outra.
A grande divisão entre a direita sem medo e o novo progressismo organiza os espaços políticos nacionais em países ainda democráticos, mas não tem contrapartida em alinhamentos internacionais. Quando governos do novo progressismo adotam políticas de comércio exterior como o friendshoring, a “amizade” geopolítica não demanda de seus parceiros uma defesa qualquer da democracia. O pano de fundo da disputa pela nova ordem é o descasamento entre embates nacionais e globais.
Em boa medida, esse descasamento está na base da dificuldade em negociar novos padrões de governança global. Como, do lado dos países ainda democráticos, a disputa de vida ou morte que os divide prossegue, como não há alinhamentos geopolíticos consolidados entre esses países nem mesmo no Norte Global, também uma interlocução eficaz para alcançar acordos globais fica adiada por tempo indeterminado. E nada indica até agora que essa disputa entre a direita sem medo e o novo progressismo irá se resolver em um curto período de tempo.
Nem por isso devem ser abandonadas as tentativas de negociação em curso. Alcançar novos padrões de governança global pode significar a diferença entre a guerra e a paz. E, para muitos países do Sul Global, um “novo Bretton Woods” pode significar também certo alívio de suas dívidas e algum financiamento para a obtenção das tecnologias necessárias para uma transição energética efetiva.
O problema é que nem mesmo isso, que já é bastante otimista, é suficiente. É preciso lembrar que, nos termos presentes, o horizonte da nova ordem em negociação não é o de uma autêntica transição ecológica e socialmente justa, ainda que as desigualdades mundiais sejam insustentáveis e o meio ambiente esteja à beira do colapso. Por mais que o discurso corrente da reorganização geopolítica e geoeconômica gire em torno dessa premissa, os três países que mais emitem carbono no planeta depõem em sentido contrário: os Estados Unidos de Joe Biden aumentaram a exploração de petróleo e pisaram fundo no acelerador do fracking, a China avisou que só inverterá sua curva de emissões, talvez, depois de 2030, adiando a neutralidade das emissões até, ao menos, 2060, e a Índia não demorou em se pronunciar no mesmo sentido.
Mesmo que os esforços de reforma de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio tenham sucesso em algum momento, o que está em jogo é o estabelecimento das bases tecnológicas e produtivas para uma transição meramente energética. E, ainda que limitada a esses termos, é uma transição que só deverá se completar em três ou quatro décadas, caso efetivamente aconteça.
Para os países do Sul Global, de uma forma ou de outra, a conta não sairá barata. A reforma pode implicar exigências proibitivas de alinhamento geopolítico, mesmo que os países ainda democráticos do Sul não possam pagar por isso. O preço será especialmente alto se o “novo consenso” não ampliar sua margem de ação para enfrentar a pobreza e as desigualdades. Para muitos desses países, é um preço que pode custar a saída da armadilha neoextrativista6 que sufoca sua autonomia doméstica e constrange sua inserção internacional.
A política doméstica globalizada
Os países ainda democráticos do Sul Global não podem se dar ao luxo da desvinculação econômica de parceiros autocratas ou de partido único. No movimento de desglobalização atual, o desacoplamento é limitado às nações que podem pagar por ele. O friendshoring como política de comércio e segurança nacional está reservado a quem pode escolher seus amigos.
A globalização do princípio das “vantagens comparativas” na divisão do trabalho reprimarizou e desindustrializou países de economia dependente. Na América Latina, por exemplo, o resultado foi a transformação da maior parte deles em sociedades e economias neoextrativistas,7 ainda que uma série de governos de esquerda tenha formulado programas contra o neoliberalismo. Não há razão para atribuir intenções neoliberais a governos que as rejeitam explicitamente. Mas é necessário distinguir suas pretensões das práticas que, diante do caráter inescapável do neoliberalismo como regulação global do capitalismo, foram e são obrigados a adotar para viabilizar seus projetos políticos.
A redução da política à divisão entre a direita sem medo e o novo progressismo não deixou espaço para terceiras vias, no discurso ou na prática. Hoje, tanto em termos nacionais quanto globais, governos de esquerda ou governos simplesmente progressistas integram o campo do novo progressismo. Como ordem global, o neoliberalismo suplantou intenções domésticas e reestabeleceu as margens de ação disponíveis aos países periféricos. “Resistir” ao neoliberalismo significa, nesse caso, explorar brechas de ação em um quadro geral pouco elástico. Ou pelo menos assim parece quando os efeitos da ordem neoliberal em muitos países periféricos são comparados com aqueles de formas anteriores de regulação do capitalismo.
Na América Latina, após o final da Segunda Guerra Mundial, consolidou-se uma estratégia de desenvolvimento que aspirava a mais autonomia e autossuficiência produtiva, cujo emblema foi a chamada “industrialização por substituição de importações”. Em suas múltiplas configurações, o princípio da substituição de importações foi protagonista de diversos projetos nacionais voltados à criação de um mercado consumidor interno relevante e à redução ou superação da dependência típica de economias fundadas na exportação de bens primários.
Com o assentamento da ordem neoliberal, a globalização do princípio das “vantagens comparativas” esgotou a substituição de importações como projeto nacional. As ditas “vantagens” da América Latina levaram à exploração superintensiva de minérios e produtos agropecuários, que suplantaram em grande medida o que havia de participação industrial complexa nos PIBs nacionais. Os países latino-americanos foram progressivamente confinados na armadilha neoextrativista.
Mas, ainda que essa armadilha reduza ao mínimo a margem de ação dos países da região, não significa que a saída seja voltar ao projeto desenvolvimentista anterior. O retorno não é possível e nem desejável. As condições materiais não estão mais postas, e os projetos nacionais industrializantes do passado foram marcados também pelo autoritarismo, pela destruição ambiental e pelo reforço das desigualdades que não devem servir de modelo para ambições contemporâneas.
Por outro lado, hoje, como ontem, a tarefa é buscar referências para o desenvolvimento doméstico e a inserção internacional que permitam o mais amplo exercício de autonomia possível. Dessa vez, sem que isso aumente desigualdades ou imponha barreiras à transição ecológica. E sem que ameace a democracia onde for possível mantê-la ou instaurá-la.
Para isso, é preciso que as quatro décadas de armadilha neoextrativista criadas pelo neoliberalismo não sejam reduzidas a um problema econômico, mas entendidas em sua multidimensionalidade. O próprio neoliberalismo é um autêntico modelo de sociedade, não somente um conjunto de preceitos econômicos – sua manifestação na periferia do mundo globalizado deve ser lida através dessa mesma lente. Isso vale, ainda, para o atual chamamento à transição para o pós-neoliberalismo: os termos em que a nova ordem é planejada e as diferentes tendências de desenvolvimento que implicará ao redor do mundo precisam ser esquadrinhados em toda sua complexidade.
Reconhecer a especificidade da situação atual envolve também entender que a armadilha neoextrativista não se arma da mesma maneira em todos os lugares. Identificar as variadas configurações de escombros que a globalização das “vantagens comparativas” deixou pelo mundo é, na verdade, a primeira tarefa teórica no entendimento da posição do Sul Global no declínio da ordem neoliberal.
No caso de muitos países ainda democráticos do Sul, a dimensão política da armadilha presente se manifesta nos termos da divisão fundamental entre a direita sem medo e o novo progressismo. No Brasil, por exemplo, a armadilha neoextrativista aprisiona o país entre o colapso climático global e a possibilidade de conter a extrema direita em território nacional. A exploração predatória de recursos naturais sem qualquer reserva ou obstáculo faz parte do programa da extrema direita. O abandono do extrativismo predatório rumo a uma sociedade de baixo carbono, por outro lado, faz parte do programa do novo progressismo. Mas, se quiser continuar a derrotar a direita sem medo em eleições e a manter seu programa de combate a desigualdades, também o novo progressismo não poderá abrir mão do neoextrativismo. Assim se arma a armadilha neoextrativista.
O que vem depois do neoliberalismo
Nos termos em que a transição dentro da ordem se apresenta hoje, duas tendências de desenvolvimento parecem estar em jogo a médio e longo prazo. De um lado, os movimentos de desglobalização em curso oferecem uma oportunidade única para que muitos países do Sul Global mudem os atuais padrões de dependência no sentido de aumentar sua autonomia e margem de ação. Este processo levaria tempo e não implicaria uma dissociação completa de parceiros comerciais tradicionais, mas poderia impactar a correlação de forças em bases nacionais e permitir a sobrevivência de alguma democracia, desafiando as diversas configurações da armadilha neoextrativista. De outro lado, é possível que os países em armadilha neoextrativista fiquem presos ao neoliberalismo, e que neoliberalismo e pós-neoliberalismo coexistam em condições desiguais durante muito tempo, estratificados de acordo com o poder e a liberdade relativos de cada país. Talvez a própria transição energética tome o caminho arriscado de acontecer em ritmo desigual entre os países do Norte e do Sul.8 Sem mencionar a convivência provável entre ordens neoliberais ainda democráticas e autoritárias e entre ordens pós-neoliberais democráticas e autoritárias.
O imperativo categórico de evitar soluções bélicas para conflitos internacionais a qualquer custo se confunde, nos países ainda democráticos, com a defesa do novo progressismo. Na atual correlação de forças, somente uma vitória generalizada do novo progressismo poderá preservar alguma democracia em solo nacional e permitir a criação de blocos geopolíticos capazes de negociar uma coexistência o quanto possível pacífica. A manutenção mais ou menos generalizada e duradoura da paz, por sua vez, é condição inescapável para a eficácia de qualquer acordo global voltado a enfrentar a urgência ambiental.
Trata-se de um horizonte de ação extremamente rebaixado. Em países do Norte Global, a camisa de força política do novo progressismo certamente constrange em alguma medida os trânsfugas neoliberais que abriga, mas constrange ainda mais o seu campo esquerdo. Em países ainda democráticos do Sul, o constrangimento da esquerda dentro do novo progressismo é agravado pela limitação própria de sua posição dependente e a consequente diminuta margem de ação no terreno global.
Os blocos geopolíticos do futuro não serão homogêneos, mas caracterizados por grandes assimetrias de poder e relações de subordinação entre quem quer que venha a compô-los. Nesse cenário, países ainda democráticos do Sul Global podem e devem negociar os termos da sua participação com países autocráticos e de regime de partido único. Interessa a estes manter vínculos com um possível novo bloco geopolítico progressista, enquanto àqueles não interessa “desacoplar” suas economias de países que não se alinharem a esse bloco.
O constrangimento imposto aos países do Sul, ainda que algum alívio internacional chegue e que uma transição – ao menos – energética tenha início, não se limita à dependência de financiamento externo e transferência e produção autônoma de tecnologia. Mesmo que acessem determinado reforço financeiro, estarão desprovidos de ferramentas teóricas e práticas para explorar o quanto for possível a margem de ação que o novo cenário pode abrir: tão desprovidos quanto estavam há quatro décadas, quando o neoliberalismo ascendeu. E as coisas tendem a continuar assim, ao menos que a luta por uma reforma efetiva da governança global venha acompanhada de um esforço para produzir essas ferramentas.
É possível que um “novo Bretton Woods” não aconteça, como é possível que a armadilha neoextrativista permaneça armada ainda por um longo tempo. Mas há algo que o Sul Global pode fazer mesmo assim: já que as analogias estão na moda, que o convite para um novo Bretton Woods venha acompanhado do chamamento para uma nova teoria da dependência.
Nos anos 1960, a teoria da dependência buscou compreender a posição específica que países em desenvolvimento ocupavam na economia e na política mundial. No caso da América Latina, esteve intimamente associada ao princípio da industrialização por substituição de importações e ao “estruturalismo” típico do pensamento econômico da Comissão Econômica para a América Latina, a Cepal, posteriormente ampliada para incluir o Caribe.
Um caminho para produzir as ferramentas necessárias ao momento atual é renovar a teoria da dependência – caminho que pode partir do desenvolvimento de uma nova teoria econômica, mas não pode se reduzir a ela se quiser compreender realmente o neoliberalismo e discernir com precisão as tendências de uma reconfiguração pós-neoliberal do capitalismo. As ferramentas teóricas e práticas que o momento atual exige não podem ser produzidas sem um esforço interdisciplinar e colaborativo.9 E esse esforço não pode se limitar ao trabalho de um único grupo de pesquisa, nem de uma única região do mundo. Igualmente, não pode implicar a adaptação de formulações caducas a circunstâncias atuais. Para começar, deve levar em conta não apenas as críticas feitas à teoria da dependência em sua versão original, mas as autocríticas registradas por seus teóricos, notadamente a partir da década de 1980.
No momento das negociações de Bretton Woods, a possibilidade da industrialização por substituição de importações e a teoria da dependência não existiam. Hoje, da mesma forma, faltam instrumentos para que o Sul Global negocie sua participação num eventual novo modelo de governança global. Na busca de uma referência histórica para semelhante ação colaborativa, pode ser que o movimento de 1974, quando o esforço conjunto de países em desenvolvimento culminou nas resoluções da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), seja mais interessante para o Sul do que 1944. À época da NOEI, a teoria da dependência já era uma ferramenta disponível e foi efetivamente utilizada nas propostas apresentadas à ONU. Mesmo assim, é preciso lembrar que as formulações de 1974 foram, já cinquenta anos atrás, tardias: seu arcabouço de tipo keynesiano era inviável para os países periféricos de então, como parece ser para o mundo globalizado de agora.
Num presente marcado pela superposição de crises e fragilidades, formular os parâmetros de interpretação e de ação que atendam às particularidades de diferentes geografias do mundo globalizado é tarefa inadiável. Pode ser que um esforço mundial para produzir esses instrumentos demore a tomar corpo, como ocorreu tanto nas negociações de Bretton Woods quanto na elaboração das propostas da NOEI. Mas, por maior que seja a distância entre a timidez da ação e a ostensividade da urgência, por intimidante que seja a magnitude do esforço de encontrar respostas adequadas a tantas perguntas simultâneas, proibitivo de fato é não fazer nada.
A primeira versão deste texto foi publicado na The Ideas Letter (18 de abril de 2024) com o título “A New Dependency Theory Moment”. Uma versão reduzida e modificada foi publicada com o título “O que vem depois do neoliberalismo? A armadilha neoextrativista do Sul Global pode ser uma oportunidade para renovar a teoria da dependência” pela revista piauí (n. 213, junho de 2024).
Isabella Weber, Como a China escapou da teoria de choque, São Paulo, Boitempo, 2023.
↩Independentemente da intenção de seu autor, não se deve subestimar a importância do livro de Quinn Slobodian (Globalists. The End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Harvard: Harvard UP, 2018) no estabelecimento do quase lugar comum da compreensão do neoliberalismo nesses termos. Dito de maneira sumária: segundo um esquema interpretativo em que a formulação de um projeto inicial teria sido seguida de uma progressiva implementação por meio da disputa cultural-ideológica e eleitoral e da ocupação de espaços institucionais estratégicos. De um lado, esse esquema serve bem ao projeto de parte das elites globais de uma transição dentro da ordem rumo a uma regulação pós-neoliberal. De outro, entretanto, entender os processos de transição em curso nesses termos obscurece a compreensão do que está efetivamente ocorrendo. Ao contrário desse esquema interpretativo e assim como ocorreu no momento de declínio dos modelos do New Deal e do Welfare State (ver por exemplo, François Denord, Néo-libéralisme version française: Histoire d’une idéologie politique, Paris: Demopolis, 2007; Colin Crouch, The Strange Non-Death of Neoliberalism, Cambridge: Polity Press, 2011 e Hagen Schulz-Forberg, “Crisis and continuity: Robert Marjolin, transnational policy-making and neoliberalism, 1930s–70s”, in: European Review of History, vol. 26, no. 4, 2019), também no atual declínio do neoliberalismo grandes players globais vêm introduzindo e testando correções, que já foram consignadas até mesmo em livros didáticos de economia, ainda que em ritmo lento (por exemplo, Jane Ihrig & Scott Wolla, “Let’s Close the Gap: Revising Teaching Materials to Reflect How the Federal Reserve Implements Monetary Policy,” Working Paper, Board of Governors of the Federal Reserve System, Finance and Economics Discussion Series (FEDS), October 2020).
↩Como mostraram, em diferentes contextos, Verónica Gago (La razón neoliberal: Economías barrocas y pragmática popular, Madri: Traficantes de Sueños, 2015), Carlos Alba Vega et al. (La globalización desde abajo, la otra economía mundial, Mexico City: Fondo de Cultura Económica/El Colegio de México, 2015) e Arlie R. Hochschild (Strangers in their Own Land: Anger and Mourning on the American Right, N. York: The New Press, 2016), apenas para mencionar alguns trabalhos de referência.
↩Sobre isso, ver Marcos Nobre: Limites da Democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro, ed. Todavia, 2022.
↩Gary Gerstle, The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era, Oxford: Oxford University Press, 2022
↩Alcançar uma descrição de conjunto da armadilha neoextrativista exige investigar a fundo coalizões sociais e políticas, hegemonias culturais, tendências demográficas, condicionantes econômicas. É a proposta que será apresentada, em suas grandes linhas, em um próximo texto a ser publicado pela Phenomenal World.
↩Uma importante tentativa de síntese do ponto de vista das lutas sociais contra os efeitos deletérios dessa “mudança de época” pode ser encontrada em Svampa (2019).
↩Nesse contexto, não haveria como convencer o Brasil ou qualquer outro país em armadilha neoextrativista a deixar seu petróleo (ou outro produto de impacto semelhante) no chão, sem ser explorado.
↩É evidente que essa deficiência de ferramentas, instrumentos e projetos estruturantes não se aplica à China, seja lá como se pretenda posicionar esse país no amplo campo do que hoje é considerado o Sul Global. Um indício a mais de que uma teoria da dependência renovada terá de levar em conta também as formas de dependência Sul-Sul. E também da necessidade de distinguir entre composição de blocos geopolíticos e os padrões de dependência.
↩
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