De acordo com o Government Accountability Office dos EUA (órgão equivalente ao TCU brasileiro), ao menos um em cada sete imóveis alugados no país está significativamente avariado. Os problemas vão desde paredes rachadas e infestações de ratos até ausência de estruturas básicas, como aquecimento e água corrente. Destes últimos, cerca de 80% são alugados por famílias de baixa renda.
A mudança climática piora esse quadro ainda mais, tornando a busca por um lugar seguro para morar especialmente mais difícil para famílias de baixa renda. Nos EUA, cerca de 40% dos 44 milhões de imóveis destinados a locação estão localizados em áreas de risco e sujeitos a danos imediatos de custo de reparação moderado ou alto. Enquanto isso, o uso residencial de energia elétrica responde por cerca de um quinto das emissões de gases de efeito estufa no país.
Aprovada há dois anos, a Lei de Redução da Inflação [Inflation Reduction Act—IRA] destina bilhões de dólares do orçamento federal para o investimento na atualização da infraestrutura elétrica residencial por meio de descontos, subsídios e créditos fiscais. No entanto, a maior parte dos fundos direcionados a imóveis residenciais—cerca de US$ 9 bilhões em dez anos—consiste em reembolsos pagos ao proprietário do imóvel: depois de um investimento em energia limpa ou melhoria da eficiência energética, o proprietário tem direito a um crédito fiscal ou abatimento tributário. Estes recursos são destinados a domicílios com renda inferior a 150% do rendimento mediano de sua região e limitados a US$ 14 mil por imóvel, um valor insuficiente para cobrir o custo total das melhorias necessárias em muitas regiões do país. O IRA também inclui mais de US$ 2 bilhões para acelerar projetos de descarbonização residencial por meio de ONGs nacionais como parte do Fundo de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa, que visa catalisar o investimento privado. Em alguns contextos habitacionais, outros programas também concedem recursos para entidades públicas que invistam em projetos de energia limpa.
Notavelmente, os fundos habitacionais do IRA são limitados a projetos energéticos. Quando o pacote legislativo Build Back Better—que eventualmente se tornou a Lei Bipartidária de Infraestrutura [Bipartisan Infrastructure Act]—foi inicialmente proposto, em abril de 2021, incluía US$ 213 bilhões para “produzir, preservar e reformar mais de dois milhões de moradias populares sustentáveis”. Em novembro, quando a Câmara dos Deputados aprovou a proposta, o orçamento para infraestrutura já tinha sido reduzido: sobraram US$ 170 bilhões para programas federais voltados a expandir a construção, diminuir os custos de aluguéis e financiar melhorias nos imóveis (o pacote, no entanto, não foi aprovado no Senado). Atualmente, enquanto os governos estaduais se preparam para alocar US$ 9 bilhões de recursos públicos em isolamento térmico e descarbonização, existem poucas salvaguardas para evitar que proprietários de imóveis usem as reformas financiadas com recursos públicos como uma oportunidade para expulsar inquilinos de baixa renda.
O mercado imobiliário estadunidense e o IRA
No mercado de locação residencial dos EUA, o controle de qualidade dos imóveis é geralmente deixado nas mãos dos locadores que, cada vez mais, terceirizam a administração e a manutenção de suas propriedades a empresas especializadas. De acordo com a pesquisa Rental Finance Housing Survey do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA (HUD, na sigla em inglês), a proporção de imóveis alugados com administração terceirizada aumentou de 23,7% em 2015 para 29,2% em 2021. No caso de imóveis alugados em habitações multifamiliares (prédios e condomínios, por exemplo), essa proporção aumentou de 12% em 2012 para 20% em 2021. A qualidade da manutenção, no entanto, está em declínio. De 2011 a 2021, de acordo com a pesquisa American Housing Survey (AHS) do HUD, a proporção de imóveis alugados em habitações multifamiliares sem a presença do proprietário ou do administrador aumentou de 41% para 51%.
Em um mercado imobiliário de alta concentração, no qual a maior parte dos grandes edifícios residenciais pertencem a empresas, os proprietários têm poder de mercado e incentivos suficientes para cobrar aluguéis elevados e evitar gastos com manutenção, em prejuízo da habitabilidade dos imóveis. Melhorias em sentido geral e, particularmente, a adoção de fontes de energia limpa comumente são vinculadas a aumentos de custo para os inquilinos, mesmo que isso implique a substituição do locatário atual por outro, capaz possa pagar mais caro pela moradia. E, embora as melhorias impliquem um aumento do aluguel, a recíproca não é verdadeira. Entre 2001 e 2017, enquanto a parcela de imóveis com problemas de habitabilidade se manteve constante, a proporção de famílias que gastam mais de 30% da renda com aluguel aumentou de 42% para 48%. Em 2022, essa proporção ultrapassou os 50%—um recorde histórico.
O IRA foi desenhado para incentivar o uso de recursos públicos e privados em projetos de descarbonização—incluindo reformas de imóveis residenciais. Ainda que os recursos sejam insignificantes diante do volume de consertos gerais necessário—o Joint Center for Housing Studies de Harvard estima que o custo de reparação de todos os imóveis alugados no país seria de US$ 51,5 bilhões—, os fundos do IRA têm o potencial de gerar investimentos concretos em áreas nas quais políticas públicas anteriores não fizeram mais do que firmar compromissos no papel.
Nos Estados Unidos, a política federal de habitação privilegia muito mais os proprietários que os locatários, subsidiando a aquisição de imóveis através da dedução dos juros do financiamento imobiliário do imposto de renda. A política climática não é diferente. Nos modelos de habitação pública ou cooperativa, o governo ou a cooperativa atua como proprietário ou administrador do imóvel, ou seja, tem ingerência sobre as condições de habitabilidade. Em grande parte do mercado privado—no qual a maior parte dos locatários encontra moradia—, o governo federal assume um papel menos incisivo, e os inquilinos não têm como contratar os serviços necessários de forma direta. O foco do IRA em incentivos e créditos para proprietários de imóveis preserva esse modelo.
O fato de que aproximadamente um em cada três imóveis utilizados como moradia no país é alugado levanta questões sobre os efeitos que os incentivos fiscais do IRA terão sobre o direito à moradia. O governo Biden enfatizou a importância de direcionar esses recursos a “comunidades vulneráveis”, afirmando que as famílias de baixa renda devem receber cerca de 40% fundos, dos quais 10% devem ser destinados a imóveis habitados por mais de uma família. Entretanto, os dados sobre a propriedade de imóveis nos EUA deixam uma questão incômoda em aberto: é factível imaginar que os gastos dos proprietários com reformas de caráter ecológico—pré-condição para receber os recursos públicos do IRA—serão capazes de alterar a atual dinâmica de poder financeiro entre inquilinos e proprietários?
Um dos principais desafios nesse sentido é que os investimentos em energia limpa para residências esbarram no problema do “incentivo dividido”. O crédito fiscal é concedido para proprietários que instalam fontes de energia limpa. Mas um proprietário que não vive no imóvel e não paga a conta de luz não tem motivo para pagar a diferença entre o custo da melhoria e os recursos públicos oferecidos, que geralmente não são suficientes para cobrir o valor total do investimento. Nesse caso, tanto vale não fazer nada.
A queda nos investimentos em melhorias e a depreciação dos imóveis impõem barreiras ainda mais significativas à descarbonização do mercado de aluguel residencial. Embora o IRA preveja recursos para reparos essenciais, como a substituição de janelas e portas para melhorar o isolamento térmico, o orçamento não basta para cobrir o custo estimado de US$ 51,5 bilhões para reparar todos os imóveis alugados com problemas estruturais no país. Instalar um sistema de aquecimento em um prédio cheio de mofo não proporcionará as condições sanitárias que os inquilinos precisam para viver com segurança. Em alguns estados, como Nova York, os recursos só podem ser destinados a edifícios que já estejam em conformidade com as normas e regulamentações de habitabilidade. As melhorias nas condições sanitárias e os investimentos em energia limpa devem acontecer lado a lado, e os governos locais e estaduais devem orientar os recursos do IRA de modo a garantir a adequação às normas locais e permitir uma melhoria abrangente nas condições de habitação.
Mas o verdadeiro desafio é a habitação multifamiliar, onde o conflito entre proprietários e inquilinos está cada vez mais institucionalizado no modelo de negócios. De acordo com a pesquisa AHS, a proporção de imóveis alugados em propriedades com cinco unidades ou mais aumentou de 27% em 2011 para 38% em 2021. Nesses contextos, inquilinos que solicitam reparos correm o risco de sofrer represálias dos proprietários. Mesmo que um inquilino deseje instalar a infraestrutura de energia verde e queira solicitar ao proprietário que aproveite os recursos do IRA, é comum que encontre dificuldade na própria tentativa de contatar o dono do móvel. É cada vez mais frequente que o “serviço de atendimento ao cliente” seja terceirizado a empresas digitais, o que não somente afasta o proprietário da responsabilidade sobre o imóvel, mas da própria responsabilidade de se comunicar com os inquilinos.
Termos e condições do investimento
Os conflitos sobre as obrigações dos locatários e locadores suscitam ainda outra modalidade de risco para os inquilinos. Quando as condições do imóvel realmente melhoram, geralmente o resultado é um aumento do valor do aluguel ou uma notificação de desocupação do imóvel sem justa causa, para dar lugar a outro inquilino que esteja disposto a pagar mais.
A colcha de retalhos federal, estadual e local que regulamenta os regimes de aluguel e as hipóteses de despejo é insuficiente para proteger inquilinos de aumentos de aluguéis ou da expulsão dos imóveis, independentemente de os proprietários assumirem gastos compensados pelo IRA ou não. Não existem leis federais que regulem o mercado de aluguel residencial nos EUA ou disponham sobre o custo do aluguel e o despejo de inquilinos. Há muito, o governo federal optou por delegar essas questões às instâncias estaduais e locais (os condados). Os governos locais, por sua vez, vestiram uma camisa de força nas autoridades municipais: cerca de trinta estados proíbem as jurisdições locais de adotar controles de aluguel e apenas sete exigem “justa causa” para rescisão de contratos, garantindo que inquilinos não sejam despejados sem motivo.
Esse status quo transforma os gastos com melhorias nos imóveis em uma óbvia oportunidade para aumentar aluguéis, fazendo com que provisões como as do IRA possam causar ainda mais prejuízos para as próprias famílias de baixa renda que pretendem beneficiar. Novos painéis solares ou janelas com vedação aumentam o valor do imóvel e atraem inquilinos de renda mais alta. Semelhante ao que acontece em qualquer outro mercado, esse aumento de custos exige um aumento de receitas para que as margens de lucro sejam mantidas. Como documentado pelos pesquisadores do Strategic Actions for a Just Economy, o despejo de inquilinos frequentemente sucede investimentos em melhorias. Uma vez que a maioria das jurisdições locais não adotam controles sobre aluguéis que protejam os locatários de aumentos abusivos, o despejo do locatário logo depois de uma reforma não somente é lícito, mas também comum.
Para limitar este problema e proteger os inquilinos, o Departamento de Energia impôs restrições à utilização dos recursos do IRA. Proprietários que recebam os recursos destinados a melhorias energéticas são proibidos de aumentar o valor do aluguel ou expulsar inquilinos por um período de dois anos. Por meio desse regulamento, o governo federal reconhece a necessidade de proteger os inquilinos e vai além do que foi oferecido em muitos outros programas federais. Por outro lado, esse curto prazo de dois anos foi estabelecido sem nenhuma contrapartida orçamentária ou de fiscalização, levando associações de inquilinos a argumentar que a proteção será amplamente ineficaz. A não ser que os estados se baseiem nesses regulamentos para criar estratégias de fiscalização, é improvável que essas proteções sejam suficientes para afrontar o status quo.
Horizontes para proteção dos inquilinos e garantia dos investimentos verdes
Nos últimos anos, associações de inquilinos têm se formado em todo o país para discutir novos horizontes para a habitação multifamiliar e para influenciar as condições de implementação da transição energética nos imóveis residenciais. O Sindicato dos Locatários de Los Angeles [Los Angeles Tenants Union—LATU] lançou campanhas de “reparo e dedução” para pleitear que os inquilinos paguem pelas melhorias necessárias e deduzam os custos do aluguel. O LATU também organizou greves de aluguel para forçar os locadores a negociar e firmar contratos detalhando as melhorias a serem feitas. Em Kansas City, o sindicato de locadores KC Tenants mobilizou inquilinos e obteve uma vitória importante contra um proprietário negligente, que se recusava a consertar o aquecimento de um imóvel ocupado principalmente por refugiados birmaneses e imigrantes mexicanos. Além do objetivo imediato de melhorar as condições das moradias, essas iniciativas são passos importantes na direção de aumentar o poder de barganha dos locatários. Associações de inquilinos criam blocos sociais e eleitorais relevantes a nível local, que podem contestar o status quo por meio de campanhas de pressão direcionadas a proprietários de imóveis e a órgãos públicos.
Campanhas visando regulamentar os aluguéis e equalizar as relações entre inquilinos e proprietários também vêm ganhando força no legislativo. Seja a nível local ou estadual, essas mobilizações são essenciais para garantir uma implementação justa dos incentivos do IRA. Apenas em 2023, houve um ressurgimento de campanhas pelo controle de aluguéis em pelo menos quinze estados. Restrições ao despejo sem justa causa também vêm ganhando importância no debate político. Em 2024, o estado do Colorado, destino de US$ 140 milhões do IRA para imóveis residenciais, aprovou uma lei proibindo despejos sem justificativa, e vários outros estados estão debatendo projetos similares.
Essas campanhas locais também começaram a reunir os elementos políticos necessários para formar coalizações nacionais pelos direitos dos inquilinos. A Federação dos Inquilinos [Tenant Union Federation] é uma das iniciativas que vem pressionando a Agência Federal de Financiamento e Habitação a impor controles de aluguéis e outras proteções aos inquilinos como requisitos para o recebimento de empréstimos federais, o que pode afetar um em cada quatro imóveis alugados nos EUA. São mobilizações que não só podem garantir proteções urgentes a pessoas que delas necessitam, mas também permitir que a efetivação de investimentos verdes nas residências estadunidenses não implique um aumento no número de despejos.
Esses esforços ajudam a proteger os inquilinos e aumentar a sua força política. Para muitas dessas associações, o horizonte é ainda mais ambicioso—estabelecer moradias sociais verdes, imóveis com preços constantes e acessíveis, controlados pelos moradores e resguardados da especulação, promovendo resiliência climática e impulsionando a descarbonização. As atuais campanhas por moradia social não focam apenas na construção de novos imóveis—que respondem por apenas 3,5 milhões de unidades nos últimos doze anos—, mas também na melhoria das atuais condições de habitação de milhões de trabalhadores estadunidenses. No final do século XX, os sindicatos foram fundamentais para a construção de moradia social. Hoje, novamente, sindicatos de professores e de profissionais da saúde e do comércio estão se unindo às associações de inquilinos para enfrentar a baixa oferta e o elevado custo da moradia, reforçando a pressão pela moradia social. Em Nova York, por exemplo, os sindicatos dos carpinteiros e dos professores se juntaram à luta pela moradia social verde. Em Los Angeles, a união entre o sindicato UNITE HERE, predominantemente ligado a trabalhadores nos setores de serviços, e os sindicatos dos professores e dos trabalhadores da construção civil conquistou a criação de um novo imposto sobre as vendas de imóveis de luxo, aumentando o orçamento do departamento de habitação da cidade em US$ 900 bilhões por ano e garantindo que parte desses recursos seja empregada em reformas de imóveis já existentes. Com propostas de políticas públicas que enfrentam simultaneamente os problemas dos inquilinos e a crise climática, essas novas alianças políticas podem contribuir para uma transição verde verdadeiramente justa.
Em 2024, o Sindicato dos Locatários de Connecticut conquistou a primeira negociação coletiva de contratos de aluguel do estado, uma vitória significativa contra a Ocean Management, uma das empresas mais poderosas da cidade de New Haven. O acordo obriga manutenções periódicas e proíbe que os custos sejam repassados aos inquilinos por meio de aumentos de aluguéis. Agora, inquilinos de um condomínio de setenta apartamentos estão tentando comprar o prédio e transformá-lo em uma cooperativa administrada democraticamente. Querem construir espaços comuns, garantir preços de moradia permanentemente acessíveis para famílias com crianças e instalar painéis solares—com o objetivo de gerar energia limpa não só para o prédio em si, mas também para a comunidade local, incluindo uma escola vizinha ao condomínio.
Há um conflito inerente à tentativa de mitigação da crise climática no mercado imobiliário: os investimentos valorizam os imóveis, o que incentiva os proprietários a aumentar os aluguéis. Preservar a acessibilidade dos custos de moradia aos inquilinos implica não investir. Investir implica despejar inquilinos que não podem pagar aluguéis mais altos e oferecer os imóveis a locatários de renda maior. Há escassa regulamentação voltada a combater esse padrão. Políticas climáticas que visam mitigar os riscos da crise climática para comunidades vulneráveis devem lidar com esse problema, criando instrumentos que protejam, e não ameacem, os inquilinos. Na ausência de reformas complementares para resolver o desequilíbrio de poder entre locadores e locatários, o IRA não promoverá resiliência climática para essas comunidades. O caminho para descarbonizar imóveis residenciais alugados nos EUA depende da priorização dos inquilinos como protagonistas da transição justa: um compromisso para que a descarbonização não se traduza em mais despejos.
Tradução: João Victor Marcolin
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