12 de setembro de 2024

Entrevistas

Como é a vida na Cisjordânia

Entrevista com Fathi Nimer

Em 28 de agosto deste ano, Israel lançou o maior ataque militar na Cisjordânia desde a Segunda Intifada, há mais de duas décadas. A operação, que batizaram de “Operação Campos de Verão” [Operation Summer Camps], teve como alvo três cidades no norte do território—Jenin, Tulcarém e Tubas—e matou 39 palestinos. Os militares também feriram 150 pessoas, prenderam dezenas de outras e destruíram a infraestrutura básica das cidades. Trechos de estradas foram removidos, fachadas de lojas foram derrubadas e linhas de água e eletricidade foram depredadas.

Apesar das declarações dos oficiais de segurança israelenses indicando que as incursões poderiam ser o início de uma operação militar prolongada, na verdade, houve retirada de algumas cidades do norte. Enquanto isso, as tropas permanecem ativas, com incursões e prisões registradas no fim de semana em Nablus e Hébron (os militares israelenses também mataram uma ativista de ascendência estadunidense e turca com um tiro na cabeça em uma manifestação em um vilarejo ao sul de Nablus no dia 6 de setembro).

A intensa operação terrestre e os dramáticos bombardeios aéreos recentemente iniciados têm menos a ver com a abertura de uma nova frente de guerra para além de Gaza e do Líbano e mais a ver com uma escalada da atividade militar de Israel no território. As forças israelenses têm passe livre na Cisjordânia ocupada e frequentemente o utilizam com o objetivo declarado de atacar os combatentes da resistência palestina. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 650 palestinos foram mortos Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, dos quais mais de 150 eram crianças. Poucos dias antes do lançamento da Operação Campos de Verão, colonos-soldados israelenses atacaram Wadi Rahal, um vilarejo próximo a Belém, e mataram um homem palestino. Duas semanas antes desse assassinato, os colonos perpretaram um pogrom no vilarejo de Jit, queimando casas e assassinando outro palestino. Ainda antes de outubro, 2023 já era o ano mais letal registrado para os palestinos na Cisjordânia.

Esses acontecimentos ocorrem no contexto do genocídio israelense em curso em Gaza e da ocupação militar do território por Israel em vigor desde 1967. A ocupação, amplamente considerada ilegal por toda a comunidade internacional, tem ficado mais forte e violenta a cada ano.

Na manhã seguinte ao início desse novo ataque ao território, conversamos com Fathi Nimer sobre as incursões, as condições de vida após outubro de 2023 e a história da anexação e da ocupação na Cisjordânia. Nimer trabalhou no instituto palestino Mundo Árabe para Pesquisa e Desenvolvimento, na Universidade de Birzeit e no Centro de Estudos sobre Direitos Humanos de Ramallah. Atualmente, é bolsista do programa de política da Palestina em Al-Shabaka.

Entrevista com Fathi Nimer

JACK GROSS: Ontem à noite, as Forças de Defesa de Israel (FDI) deflagraram uma operação contra vários territórios na Cisjordânia, com ataques aéreos em Nur Shams, bombardeios em Faraa, incursões em Beit Fajjar e um cerco a Jenin. O que sabemos sobre o que aconteceu até agora? Trata-se de uma operação limitada ou de uma escalada mais ampla?

FATHI NIMER: Rumores de que uma operação mais intensiva poderia ser lançada na Cisjordânia têm circulado nos últimos meses—e, a rigor, nos últimos dois ou três anos. Um dos motivos é que diferentes grupos de resistência surgiram nos últimos tempos, principalmente nos campos de refugiados, uma das únicas áreas em que os palestinos conseguem se organizar com relativamente menos interferência tanto da Autoridade Palestina (AP), como coordenadora de segurança, quanto do aparato de inteligência de Israel.

Essas áreas se tornaram centros dos novos grupos de resistência armada—que Israel pensava ter eliminado. Desde o início do genocídio, grupos na Cisjordânia procuraram desviar o aparato das FDI de Gaza. Podemos ter uma noção da ameaça representada por esses grupos se pensarmos que, pela primeira vez em quase vinte anos, Israel recorreu ao bombardeio aéreo desses campos. Eles já vêm fazendo isso há dez meses na Cisjordânia, mas não obtiveram os resultados desejados. As FDI acreditam que um ataque massivo poderá causar danos suficientes para dissuadir o prosseguimento da resistência.

O local escolhido pelas FDI para o ataque também é relevante. Jenin é conhecida como um local de resistência desde, pelo menos, a Segunda Intifada—no passado, esteve sujeita a toques de recolher prolongados e a mais assassinatos seletivos do que outras cidades da Cisjordânia. Mas, nesse momento, há também ataques direcionados pelas FDI a locais que não são normalmente associados à resistência armada, como Jericó, por exemplo. A situação na Cisjordânia se deteriorou tão rapidamente nos últimos anos, processo que se acelerou ainda mais desde outubro, que até mesmo áreas que não haviam sido alvo de ataques armados no passado estão sendo afetadas.

Embora o foco atual das FDI esteja no norte da Cisjordânia, a história não termina aí. Em paralelo, há uma grande “campanha de segurança” posta em curso pela AP em Nablus. Nesse tipo de operação na Cisjordânia, nem sempre fica clara a diferença entre as Forças de Segurança Nacional Palestinas e as Forças de Defesa de Israel: o objetivo comum de neutralizar a resistência armada e qualquer coisa que desafie o monopólio do poder da AP faz com que elas trabalhem em conjunto. 

É importante ter em mente que o que acontece hoje é o resultado acumulado de uma série de eventos ocorridos ao longo de anos. A meu ver, o 7 de outubro acelerou o processo, mas sempre estivemos caminhando em direção a esse nível de escalada, porque a política de Israel é, como sempre foi, atacar com a maior força possível sem lidar com as pressões subjacentes. E, enquanto as causas fundamentais do conflito permanecerem inalteradas, inevitavelmente, a resistência será perene.

Outro aspecto a ser observado é que, evidentemente, Israel pode implementar um bloqueio econômico e fazer um genocídio em Gaza sem nenhuma repercussão local, mas, na Cisjordânia, há centenas de milhares de assentados israelenses. A Cisjordânia é um território pequeno, com assentados espalhados por toda parte—tanto em termos de concepção quanto de pré-requisito, os assentamentos são construídos para impedir a existência de um território palestino contíguo que possa se tornar um Estado. Os palestinos estão cercados por assentados israelenses e os assentados israelenses estão cercados por palestinos. Isso significa que, para todos os efeitos, um isolamento total é impossível.

Pode ser que a estratégia de Israel seja “viver pela espada”, mas essa espada se estende hoje por três frentes ativas—Gaza, Líbano, e agora a Cisjordânia—, sem contar o envolvimento periódico de outros grupos na região. Numa situação como essa, Israel tem realmente condições de enviar pelotões para cada um dos assentamentos, de botar um tanque em casa esquina? Isso afeta sua cadacidade de responder prontamente ao que acontece nas outras frentes.

Esta análise não é divulgada pela liderança política, que se limita a publicar bravatas. Mas entre as lideranças militares, há um entendimento de que, se perderem o controle da Cisjordânia e uma rebelião eclodir, isso será um problema maior do que os que poderiam surgir em qualquer outra frente, porque as populações ali estão muito misturadas.

DYLAN SABA: Como você disse, houve um aumento da atividade da resistência na Cisjordânia nos últimos anos, principalmente durante a chamada Intifada da Unidade, em 2021. Algo característico daquele momento e dos anos seguintes foi o surgimento de grupos de resistência palestinos não afiliados às fações históricas da política palestina. Agora, o cenário permanece o mesmo ou há um retorno à política de resistência de facções na Cisjordânia?

FN: Minha impressão é que o cenário continua o mesmo. Os jovens, em geral, estão desiludidos com os partidos formais. Para ser franco, a maioria das facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi amplamente desmobilizada. O Fatah permanece alinhado à AP e, portanto, não está interessado em uma escalada—a rigor, nem todas as correntes do Fatah têm essa posição, mas as facções pró-resistência foram fortemente marginalizadas desde o fim da Segunda Intifada.

Na década de 2000, houve até um estadunidense, o general Keith Dayton, presidindo o que foi chamado de reforma do setor de segurança. Os detalhes desse episódio são complexos—envolvendo tensões entre os governos dos EUA e de Israel e a cooperação com setores de inteligência da Jordânia e com forças militares egípcias—, mas, basicamente, o que aconteceu foi a criação de um novo quadro de soldados treinados pelos EUA, leais à liderança da AP, mas não ao Fatah como partido político. A antiga força de segurança foi desmantelada e essa nova força, treinada pelos EUA, tomou o seu lugar. Essas são mesmas forças que reprimem protestos, inclusive com meios letais, em toda a Cisjordânia.

E isso faz sentido, já que praticamente todo protesto se transforma inevitavelmente em um protesto contra a AP, porque ela é um quase-governo que participa diretamente da repressão aos palestinos. A atmosfera política sufocante da Cisjordânia faz com que as pessoas tenham muito medo do mukhabarat, o Estado de inteligência, um fenômeno tipicamente árabe atualmente. Aqui na Cisjordânia, temos somente o aparelho repressivo do Estado, sem termos um Estado de fato. 

Voltando à sua pergunta sobre os grupos de resistência atuais, é importante entender que eles são transversais às facções: os jovens reivindicam afiliações a diferentes grupos partidários sem a sanção oficial desses grupos. Penso que esse é um dos principais motivos pelos quais é difícil reprimi-los ou cooptá-los. Eles não são facilmente pegos via repressão frontal ou suborno. Isso ficou muito evidente no caso da Cova dos Leões, um grupo da Cidade Velha de Nablus que ganhou certa proeminência em 2021. A AP não conseguiu suborná-los com empregos no aparato de segurança, e Israel conduziu uma campanha de um ano para assassinar todos os líderes do grupo, mas não conseguiu desmantelar completamente a organização. É possível que isso seja parte do motivo pelo qual o ataque israelense é tão duro e devastador. A mensagem que eles pretendem passar é que seu poder é totalmente asfixiante e que resistir seria ridículo. Creio que a tentativa de passar essa mensagem é o que explica grande parte da política de “segurança” israelense na Cisjordânia.

DS: Você apontou uma série de ameaças de diversas naturezas que os palestinos enfrentam, desde antes de 7 de outubro, na Cisjordânia—ameaças de incursões militares israelenses, de violência dos colonos e da AP. Como você entende a relação entre essas diferentes forças repressivas na Cisjordânia?

FN: O objetivo da colonização capitaneada pelo Estado de Israel é garantir o máximo de terras palestinas com o mínimo de palestinos.

Mesmo quando ninguém o invoca, esse imperativo ainda anima a corrente principal da política israelense. As forças opressoras que você citou estão todas orientadas para esse objetivo. Os colonos são essencialmente tropas terceirizadas que consubstanciam a colonização da Cisjordânia. É um erro considerar colonos e Estado como coisas separadas.

Quando os colonos intimidam os palestinos, são protegidos pelo Exército de Israel, que, por ser um exército de recrutas, também inclui colonos alistados. Na verdade, há unidades inteiras formadas apenas por colonos (uma dessas unidades, como você deve se lembrar de alguns meses atrás, deveria ter recebido sanções dos EUA, mas os EUA recuaram porque, para o governo Biden, até mesmo esse gesto simbólico de aplicar a Lei Leahy significaria rigor excessivo).

Portanto, essas forças trabalham de mãos dadas. Os colonos agem mais diretamente no roubo das terras e consideram o método de anexação do Exército muito lento e cauteloso. O Exército vê os colonos como um embaraço internacional, mas, no fim das contas, os dois têm o mesmo objetivo, que é maximizar a posse de terras palestinas.

Há muitos métodos de desapropriação, e a expansão dos assentamentos é somente uma das formas de anexação em operação na Cisjordânia. As reservas naturais foram usadas para anexar muitas terras palestinas. Nas Colinas do Sul de Hebrón, uma faixa inteira de terra foi designada como “zona militar fechada”—anexada ostensivamente para fins militares, o que acabou encorajando o assentamento ilegal. 

Não obstante a retórica israelense em sentido contrário, uma avaliação do período pós-Oslo sugere que a Autoridade Palestina foi um dos melhores investimentos que Israel já fez: eles mantêm o controle das fronteiras e do espaço aéreo enquanto a AP cuida de todo o “trabalho sujo”, como educação, coleta de lixo, assistência médica, preocupações com a segurança de Israel e todas as questões administrativas básicas e desagradáveis que vêm com a ocupação e que, de acordo com o direito internacional, o ocupante deve prover. E cuida de tudo isso sob condições extremamente restritivas.

Teoricamente, a AP foi criada como um órgão provisório cuja finalidade era estabelecer um Estado palestino no prazo de cinco anos. Ela resultou do processo de Oslo e, mais especificamente, do Acordo de Oslo II. Mas os parâmetros do poder da AP eram muito limitados, tanto naquela época quanto agora. A AP não tem qualquer autonomia ou soberania de fato. Hoje ela é apenas um órgão administrativo ordinário com alguma pompa. Um dos aspectos de Oslo II era o chamado Protocolo de Paris, que dispunha sobre o sistema econômico da AP, sobre como ela administraria sua economia e que relação teria com a economia israelense, porque, para todos os efeitos, a economia israelense engoliu a economia palestina. Isso também foi algo planejado, via um processo de reversão do desenvolvimento que começou já no início da ocupação, quando foram instituídas todas essas legislações para impedir que os palestinos concorressem de alguma maneira com os israelenses e para inundar os mercados palestinos com produtos israelenses. Portanto, os palestinos são uma base de consumidores cativos e uma força de trabalho cativa—dentro das fronteiras de Israel e nos assentamentos na Cisjordânia.

JG: Você poderia explicar melhor como a Cisjordânia é dividida em termos jurídicos, militares e de infraestrutura? O que são as áreas A, B e C? Por que essas distinções existem? O que elas significam para os palestinos que vivem sob ocupação? Além disso, até que ponto as restrições à movimentação e à atividade econômica dos palestinos na Cisjordânia se intensificaram depois de 7 de outubro?

FN: Conforme os acordos de Oslo, a Cisjordânia é dividida em três áreas: A, B e C. A Área A é a menor. Teoricamente, ela estaria totalmente sob o controle palestino, mas, na prática, não há nada que esteja efetivamente sob controle palestino. Na Área B, o controle é compartilhado, supostamente, entre a AP, no que diz respeito aos assuntos civis, e as FDI, no que diz respeito à “segurança”. A Área C, maior pedaço de terra da região, está totalmente sob controle israelense, e compreende a maior parte do que deveria ser o “Estado palestino” após o processo de paz. É nesse contexto que a Autoridade Palestina mantém seu programa político de uma solução de dois Estados.

Os palestinos são impedidos de ter sua própria moeda ou de cobrar seus próprios impostos. Israel cobra impostos sobre tudo, principalmente o IVA e os impostos de importação, o que significa que, se Israel quiser congelar ou se apropriar dessas receitas, poderá fazê-lo—e o faz com frequência, sempre que quer exercer qualquer tipo de pressão sobre a Autoridade Palestina. Ou seja, não temos permissão nem mesmo para alterar nossas tarifas, impostos ou qualquer outra coisa. Temos unidade tributária, mas não temos permissão para mudar nada disso. Há também projetos como o Comitê Conjunto de Águas, que determina como a água é distribuída—uma reformulação nominal de como isso era feito antes da AP—, que garante ao Exército israelense poder de veto em qualquer coisa relacionada a essa distribuição. No fim das contas, é Israel quem determina quais palestinos têm acesso a água, pois é quem concede as licenças.

Por exemplo, não temos permissão para escavar em busca de água além de certa profundidade, e quem é pego fazendo isso tem seu poço cimentado. Quem quiser escavar para obter água, terá de solicitar uma licença. Obviamente, a taxa de rejeição das licenças ultrapassa os 98%. Isso ocorre até mesmo na Área A, que supostamente está sob controle total da AP.

Podemos traçar um paralelo entre o sistema de águas e muitas outras restrições de recursos na maior parte da Cisjordânia, porque esse sistema de controle afeta tudo. Até mesmo para construir uma casa é necessário obter uma licença. O pedido não é feito ao seu governo, a AP, mas à Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT) do Exército israelense. E boa sorte para conseguir uma aprovação. É por isso que ouvimos tantos relatos de demolições de casas. As demolições não se restringem a punir pessoas condenadas por “terrorismo”, mas afetam outras famílias sujeitas ao regime de licenciamento de Israel. A propósito, as condenações por terrorismo também oferecem uma visão muito interessante sobre os tribunais militares de Israel: 99,7% dos casos terminam em condenação. Basicamente, você pode ser acusado de, sei lá, ter plantado uma árvore na sua cabeça, e ainda assim ser condenado, porque o sistema funciona dessa forma. Não há como recorrer de nada, se é que haverá algum julgamento. No caso da detenção administrativa, nem sequer há o direito a um julgamento ou ao devido processo legal. Mais de 3.6 mil palestinos estão atualmente detidos dessa forma. A pessoa simplesmente é presa por seis meses, prazo que pode ser renovado indefinidamente, e, em muitos casos, o advogado nem sequer sabe qual é a acusação. Muitas pessoas passaram dez ou vinte anos detidas administrativamente sem saber o motivo.

Portanto, todos esses sistemas tornam a vida na Cisjordânia muito difícil, especialmente na Área C, que está sob controle total de Israel. A Área C é predominantemente rural, e o objetivo é que o maior número possível de palestinos se desloque dessas áreas rurais, porque sua residência obstrui o acesso dos centros urbanos, que estão na área A, a vários recursos— as principais cidades ficam nesse centro, como Ramallah, Nablus e a maior parte de Al Khalil.

E o que está acontecendo agora, depois de 7 de outubro? Como eu disse, a vida já era difícil nessas áreas mas, desde outubro de 2023, tudo se tornou muito mais complicado e imprevisível.

Vocês já devem ter visto imagens de Ben-Gvir distribuindo rifles para os colonos. Mais de 100 mil armas foram distribuídas desde o início da guerra, e os colonos usam essas armas para perseguir, atacar e atirar em palestinos na Cisjordânia sem precisar de grandes motivos. O Exército, é claro, os protege.

Mais de 150 mil palestinos trabalhavam do outro lado da Linha Verde, e todos eles foram proibidos de atravessar a linha para obter seu sustento depois de outubro. Apenas para dar um exemplo de algo que mudou, minha família tem uma pequena fazenda em um vilarejo chamado Kufr Ein, que fica a trinta minutos de Ramallah. Desde o dia 7 de outubro, com os colonos indo para todos os lados e com o fechamento dos postos de controle, agora levamos mais de uma hora para chegar lá, porque temos de pegar uma rota muito tortuosa de estradas estreitas e atravessar vilarejos palestinos que não têm infraestrutura para esse tipo de tráfego. Mesmo antes de outubro, estimava-se que 60 milhões de horas de trabalho eram desperdiçadas todos os anos por causa das restrições de movimentação impostas aos palestinos. As restrições de movimentação incluem postos de controle, desvio de estradas, cercas de separação, o regime de licenças e outras dificuldades diversas.

Todas essas dificuldades nos impedem até mesmo de nos adaptarmos ao sistema de ocupação sob o qual vivemos, simplesmente porque uma economia palestina real ou a autossuficiência dos palestinos não são coisas desejáveis. Um exemplo claro disso é o caso das cooperativas agrícolas, espinha dorsal da economia dos palestinos nos anos 1980, que se tornaram alvo do então ministro da Defesa Yitzhak Rabin. Rabin instruiu o Exército a impor toques de recolher nos vilarejos palestinos durante o período da colheita para que as plantações apodrecessem no campo.

Na década de 1960, Moshe Dayan disse que se Israel pudesse cortar a energia elétrica de Hebrón, seria um meio de controle muito mais eficiente do que mil dispersões de revoltas. E ele estava certo. Temos de escolher entre a privação total ou nos tornarmos partes mais obedientes do sistema—por exemplo, nos afastar do vilarejo de nossas famílias para ganhar um salário do outro lado da Linha Verde, o que, na prática, reduz o número de palestinos nas áreas em que os colonos israelenses vêm procurando estabelecer postos avançados.

JG: Além do controle militar direto sobre os palestinos e seus meios de subsistência na Cisjordânia, houve esforços para transferir parte desse controle do comando militar para o comando civil israelense. Na primavera de 2023—depois de o partido Likud ter votado, em 2017, a favor de uma política de anexação formal e completa da Cisjordânia—, um acordo entre Smotrich e o ministro da Defesa Yoav Gallant começou a transferir vários poderes do comando militar para o comando civil, um passo claro em direção à anexação de jure, e não apenas de facto, da região. Essa transferência de autoridade se acelerou no último ano. Você pode falar mais sobre essas medidas e o que elas representam para a política de colonização de Israel e para os palestinos na Cisjordânia?

FN: Quase sempre que Israel faz algo de jure, isso já foi estabelecido de facto.

Vimos isso com Jerusalém Oriental, que foi tratada como parte de Israel durante décadas, em clara violação ao direito internacional. E aí, na década de 1980, eles disseram “vamos fazer isso de jure” e aprovaram a Lei de Jerusalém, que declarou uma Jerusalém unificada como a capital de Israel. A reação a essa medida foi diminuindo, ninguém mais se importava. É exatamente assim que eles mudarão o status quo na questão do Nobre Santuário. Eles negaram qualquer intenção de mudar esse status por um longo tempo, mas estão fazendo isso nesse exato momento.

Há muito tempo, o bloco pró-assentamento fala abertamente sobre seu objetivo de anexação da Cisjordânia. Essa é uma posição comum em toda a direita israelense.

Por mais interessante que seja o assunto, discutir cenários possíveis para um Estado independente é, a essa altura, um exercício meramente acadêmico, porque os acontecimentos concretos já estão determinando tudo. Alguns poderes de concessão de licenças, como você mencionou, foram transferidos para uma autoridade civil, o que é uma grande violação da Quarta Convenção de Genebra e da legislação de ocupação. Para que uma ocupação seja legal, ela precisa ser temporária, esse é um conceito fundamental da legislação internacional de direitos humanos, que é frequentemente repetido pelos tribunais israelenses. Mas, dada a transferência de centenas de milhares de colonos para o território ocupado, é claramente uma mistificação chamá-la de ocupação temporária. Simplesmente não se investe bilhões de dólares em uma área nem se constrói uma infraestrutura de controle permanente quando se trata de uma medida temporária. E não se transfere o controle para uma autoridade civil quando se está realizando uma ocupação militar temporária. Há décadas que existem evidências muito claras de que Israel pretende anexar a Cisjordânia.

O que essas novas medidas significarão, então, para os palestinos? Penso que o maior efeito que isso terá sobre os palestinos é que, em vez de haver uma taxa de rejeição de licenças de 98%, veremos uma taxa de 100%—uma mudança quantitativa, ou de velocidade. Mas a pergunta que fica é: como será a anexação de jure? Não me parece que eles queiram assumir completamente o controle da Área A. Penso que eles preferem ter uma Autoridade Palestina ainda mais diminuída, talvez governada por alguém como Mohammed Dahlan, na Área A, enquanto assumem o controle total das Áreas B e C.

Eles já estão começando a fixar assentamentos na Área B. Isso causou espanto quando aconteceu pela primeira vez, há uma década, mas hoje é normalizado. Os parâmetros dos Acordos de Oslo estão gradualmente se desfazendo já há algum tempo, mas penso que é seguro dizer que, a esta altura, eles já deixaram de valer totalmente.

Mesmo que ocorra um cessar-fogo, não voltaremos ao estado anterior das coisas. Nem na Cisjordânia, nem em Gaza e nem no ‘481, onde os cidadãos palestinos de Israel, nesse momento, estão basicamente vivendo sob o domínio de um Estado militar. Alguns colegas que vivem dentro de Israel descrevem um nível de censura semelhante ao que existia antes de 1967, quando viviam sob um governo militar.

Após a retirada de Gaza na década de 2000, ninguém queria cogitar a possibilidade de uma reocupação. Os israelenses estavam felizes por terem se livrado desse fardo. Mas agora há pessoas que realmente pedem uma limpeza étnica em Gaza, para esvaziar o território e restabelecer os assentamentos dali—essa é uma mudança radical em relação à última década. Se um retorno à colonização direta for viável novamente em uma área como Gaza, isso será uma ameaça significativa para a Cisjordânia. Será impossível manter o status quo aqui. Nesta semana, o ministro israelense das Relações Exteriores, Israel Katz, sugeriu evacuar os palestinos da Cisjordânia para lidar com a resistência armada. Portanto, apesar da ampla continuidade e do precedente que estou descrevendo, penso que não estamos preparados para o que está por vir.

Mil linhas vermelhas já foram cruzadas. A única maneira de Israel interromper essa política é se houver um custo—político ou econômico—para o seu prosseguimento.

DS: Você falou sobre como as populações de colonos israelenses e de palestinos estão interligadas na Cisjordânia. O número de colonos judeus israelenses nos territórios ocupados após 1967 passou de alguns milhares para quase 500 mil (230 mil em Jerusalém Oriental e 25 mil nas Colinas de Golã, por exemplo). Como esse assentamento foi incentivado, ideológica e economicamente?

FN: A mudança para os assentamentos é fortemente encorajada, porque os colonos têm muitos subsídios e contam com muita segurança. Há seis ministérios do governo que oferecem benefícios de educação, moradia, investimento, assistência social e incentivos fiscais para indivíduos e empresas.

Os assentamentos são definidos como áreas de prioridade nacional, o que significa que recebem subsídios de aluguel, educação e até melhorias em classificações de crédito. Ou seja, mesmo os aspirantes a colonos sem vinculação ideológica com esse projeto podem ser motivados a se mudar para os assentamentos ilegais, onde é possível desfrutar de privilégios da cidadania israelense e há a mesma disponibilidade de tudo que há dentro da Linha Verde, só que por um preço mais baixo.

Os assentamentos não são apenas postos avançados remotos: sua construção requer uma rede de infraestrutura, água, eletricidade, cercas e proteção militar. As estradas exigem a anexação e o recorte de porções maiores do território, o que requer a construção de cordões de segurança e, por sua vez, ainda mais anexação. Estamos falando de água, estamos falando de eletricidade, estamos falando de cercas, estamos falando da presença do Exército. E a presença do Exército também exige estradas, que por sua vez requerem a anexação de outros mais territórios, e também a construção de um cordão de segurança ao redor da área, o que demanda, novamente, a anexação de mais territórios dos palestinos.

JG: Com frequência, se diz que o Plano Allon está na origem da ideia de anexação da Cisjordânia. Todo plano de anexação costuma estar associado à extrema direita da política israelense—hoje em dia, particlarmente, a figuras como Smotrich—, mas você poderia falar um pouco mais sobre essa relação?

FN: O Plano Allon foi originalmente elaborado por Yigal Allon depois da guerra de 1967 e da tomada por Israel da Península do Sinai, das Colinas de Golã, de Gaza e da Cisjordânia. Seu objetivo era delinear as etapas seguintes da expansão de Israel. Ele passou por muitas revisões—inicialmente, Gaza deveria ser completamente anexada, por exemplo—, mas é notável que o projeto para a Cisjordânia tenha permanecido sem grandes alterações, invocando o Vale do Jordão e as áreas ao redor e ao sul de Jerusalém.

Se compararmos o mapa da Área C e o mapa da construção de assentamentos hoje, veremos que o que está sendo feito é muito parecido com o que Israel pretendia fazer logo após 1967. A agenda do plano Allon era criar essa pequena zona autônoma entre Nablus e Jenin para que os árabes “governassem a si mesmos”.

As principais interpretações do Plano Allon não se realizaram de fato, mas os mapas, a lógica por trás deles, as áreas que foram anexadas e as propostas para a construção de assentamentos são todos os mesmos. Isso desmente a associação do estabelecimento dos assentamentos com a direita, com a organização extremista Juventude das Colinas ou com qualquer governo ou corrente política específica de Israel. A lógica fundamental é a mesma há muito tempo, e a associação da anexação e da colonização com a direita é um fenômeno muito recente, fora de sintonia com o registro histórico da limpeza étnica dos palestinos.

DS: Gostaria de falar sobre o direito internacional e a estratégia de abordar juridicamente a questão por meio de apelos às instituições internacionais. Há um amplo consenso internacional de que o projeto de assentamento israelense na Palestina é ilegal, mas, como você mencionou, esse reconhecimento quase nunca é acompanhado de ações ou de quaisquer consequências.

No mês passado, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) deu um parecer consultivo declarando que os assentamentos em toda a Palestina ocupada, bem como a própria ocupação, são ilegais, e afirmando que Israel tem o dever legal de evacuar os assentamentos, pagar indenizações aos palestinos e honrar o direito de retorno. Como esse parecer é recebido pelos palestinos na Cisjordânia? Como a estratégia mais geral de Abbas foi recebida na Cisjordânia antes e depois de 7 de outubro? Você acredita que esse parecer ou essa abordagem abrem novos caminhos para uma atuação jurídica ou criam alguma base para a reivindicação da autodeterminação palestina?

FN: Isso tem alguma utilidade, especialmente do ponto de vista das relações públicas. É útil também para o ativismo jurídico porque, para muitas pessoas em todo o mundo, a ideia de direito internacional ainda tem algum peso. Se um país está violando o direito internacional, então há uma base para fundamentar uma reivindicação moral contra essa prática. Não há discordância, digamos, entre os palestinos nas ruas, de que nossos direitos estão sendo violados, de que a Convenção de Genebra está sendo violada. A questão é: quais as consequências disso?

No que diz respeito à realpolitik, não me parece que isso realmente esteja influenciando o modo como os Estados pensam. Há apenas alguns meses, os EUA declararam que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU não era vinculante. Então, o que nos resta? Houve uma rejeição de toda a ordem internacional! A questão de como a decisão da CIJ pode afetar a situação precisa ser posta no contexto do fracasso das negociações pós-Oslo, que simplesmente excluíram o direito internacional da equação. Em cada etapa, os palestinos são pressionados a abrir mão de seus direitos para que as negociações possam avançar e, se os palestinos negarem um acordo ruim, todos os palestinos serão imediatamente considerados pessoas que rejeitam a paz, e essa caracterização justificará mais ocupação e mais anexação, porque supostamente agimos sem razão.

Esse tem sido o modus operandi por trinta anos, com resultados catastróficos. Como ficamos sabendo pelos Palestine Papers há alguns anos, a Autoridade Palestina basicamente abriu mão do direito de retorno consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Ninguém consultou os refugiados a esse respeito, mas isso foi sacrificado para que as negociações avançassem. Quando analisamos as posições na negociação, o compromisso de Israel se resume a uma mera promessa de cumprimento do direito internacional.

JG: Outro elemento impressionante do parecer da CIJ é a ideia de que os assentamentos precisam ser despovoados, dada a sua ilegalidade, o que, está claro, é uma etapa logicamente necessária para uma solução de dois Estados, mas também está em óbvia contradição com os fatos que observamos e com a imensa importância dos colonos na política e na sociedade israelenses.

FN: Quando Israel retirou os colonos de Gaza, isso provocou um enorme clamor público—inclusive a renúncia de Netanyahu do governo de Sharon. Ainda existe um grande movimento, o Movimento Laranja, que protesta contra a retirada de Gaza.

Na época, só cerca de 8 mil pessoas foram realocadas. Como Israel sobreviveria politicamente realocando mais de meio milhão de colonos para longe de seus postos ilegais? A Autoridade Palestina até ofereceu a troca de terras—trocar território israelense por assentamentos. Isso foi algo não só ridículo, produto do desespero pela solução de dois Estados, mas também inútil, porque não havia, do lado israelense, vontade de permitir a existência de um Estado palestino. Vemos essa oposição total a um Estado palestino diariamente nos comentários dos governantes israelenses. Portanto, a meu ver, a solução de dois Estados—seja na versão do governo dos EUA ou na de analistas e ativistas—é uma discussão completamente abstrata, uma cortina de fumaça que desvia a atenção dos fatos reais.

Para os palestinos, a questão não é o número de Estados, é a soberania. Em Camp David, nos ofereceram um Estado farsesco, sem controle sobre nossas fronteiras, nosso espaço aéreo e nossa água. Em nosso Estado supostamente soberano, não temos forças armadas nem controle sobre a maior parte de Jerusalém Oriental, designada como nossa capital. Isso é o que foi oferecido aos palestinos, algo completamente sem sentido. O que os palestinos precisam ou querem não entra na equação, e os Estados Unidos—com remessas diárias de armas e imenso domínio em fóruns internacionais, sem os quais Israel não poderia se sustentar—não são uma terceira parte neutra agindo em prol de uma resolução significativa.

O progresso das negociações de cessar-fogo pode ser lido como uma analogia grosseira e brutal de como as administrações anteriores falavam sobre a mudança em direção a uma solução de dois Estados: garantia constante de que a diplomacia está trabalhando duro nos bastidores, prestes a realizar um avanço, enquanto a anexação e a matança prosseguem com apoio inabalável.

Tradução: Pedro Davoglio

  1. N.E.: “Palestine ‘48′”, ou apenas ‘48, é um termo amplamente empregado para se referir às cidades e vilareijos palestinos ocupados em 1948 e incorporados ao novo Estado de Israel.

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Entrevista com Rabea Eghbariah

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