O êxito do Partido Popular Indiano (em inglês, Bharatiya Janata Party – BJP) na política da Índia durante a última década tem sido frequentemente creditado a sua abordagem da assistência social. Um aspecto crucial desse sucesso foi o aumento das transferências diretas de benefícios (DBT, na sigla em inglês), mecanismo que permite aos beneficiários receber diretamente em suas contas bancárias os valores correspondentes a mais de 500 programas estatais de assistência social. A eleição nacional mais recente, no entanto, colocou isso à prova: o BJP, partido do primeiro-ministro Narendra Modi, perdeu a maioria que detinha na Lok Sabha (a câmara do povo do parlamento indiano), ainda que provavelmente mantenha seu poder por meio de um governo de coalizão.
Nos últimos ciclos eleitorais, a popularidade dos projetos de bem-estar social encabeçados pelo BJP a nível regional e nacional garantiu vitórias massivas ao partido. Nas eleições regionais de 2022, o estado mais populoso da índia, Uttar Pradesh (UP) – onde vive uma enorme população de beneficiários das transferências do governo – votou esmagadoramente no BJP. Este ano, o apoio dos eleitores do UP virou para a aliança Samajwadi-Congresso. A mudança no padrão eleitoral do estado foi um dos principais motivos pelos quais o BJP não conseguiu obter maioria absoluta na Lok Sabha.
Faz tempo que as transferências monetárias são pedra angular da política do BJP. Durante esta última década em que o partido governou a Índia, a soma paga em DBTs aumentou de ₹ 60 bilhões (cerca de US$ 718,8 milhões) para ₹ 2,1 trilhões (aproximadamente US$ 25,1 bilhões), abrangendo, em setembro de 2023, mais de 1 bilhão de beneficiários registrados, segundo dados divulgados pelo Ministério da Fazenda. A rápida expansão das DBTs foi facilitada por diversos avanços tecnológicos: o aumento na disponibilidade de telefones celulares e planos de internet acessíveis na Índia, em especial após o lançamento da Reliance Jio, em 2016; o surgimento do Aadhaar, programa de identificação biométrica do governo que disponibilizou o primeiro documento de identidade unificado do país; e a criação do Pradhan Mantri Jan Dhan Yojana, o programa governamental de inclusão financeira anunciado pelo primeiro-ministro Modi em 2014, que ensejou a abertura de mais de 500 milhões de contas bancárias para uma maioria de cidadãos indianos até então excluídos desse sistema.
Como esse novo “modelo de bem-estar social” baseado em transferências monetárias difere da abordagem anterior, adotada por governos liderados pelo Congresso Nacional Indiano nos anos 2000 e baseada em direitos? E em que termos a narrativa política subjacente a essa mudança representa uma tentativa de reformulação da democracia indiana? Yamini Aiyar, que foi presidente do Centro de Pesquisas em Políticas Públicas de Nova Délhi, chama o modelo implementado pelo BJP de “Estado tecnopatrimonial”, cujo sucesso é sustentado pela criação de uma nova classe beneficiária – uma “labharthi varg”1 – que mobiliza politicamente.
Na entrevista a seguir, Aiyar conversa com Rohan Venkat, editor da India in Transition, sobre os os ideais social-democratas de bem-estar social, o discurso dos “brindes” (freebies) na política social indiana e as implicações do Estado tecnopatrimonial para o sucesso eleitoral do BJP. Essa conversa foi publicada inicialmente pelo Centro de Estudos Avançados sobre a Índia da Universidade da Pensilvânia em abril de 2024, como parte de uma série sobre as eleições deste ano. O texto foi editado por razões de espaço e clareza.
Uma entrevista com Yamini Aiyar
Rohan Venkat: O que provocou sua análise da nova política de bem-estar social indiana?
Yamini Aiyar: Os questionamentos que me levaram a essa análise decorrem da minha própria carreira como pesquisadora de políticas públicas que, por coincidência, se inicia dos anos 2000, quando a Índia construía seu Estado de bem-estar social. Isso acontecia em razão da convergência de uma miríade de movimentos sociais, da sociedade civil organizada, do judiciário e de setores da elite em direção à formação do que chamamos, desde então, de um modelo de bem-estar baseado em direitos. Os primeiros passos foram as aprovações legislativas do Direito à Informação, da Garantia Nacional do Emprego Rural (NREGA, na sigla em inglês), do Direito ao Trabalho, do Direito à Educação e da Lei Nacional de Segurança Alimentar, em 2013. Minha pesquisa começa no trabalho com os movimentos sociais, estudando o desenrolar desses programas. Particularmente, eu olhava para o esforço, majoritariamente conduzido por esses movimentos, de recorrer a uma gramática de direitos sociais para abrir espaços de participação direta dos cidadãos nas reivindicações ao Estado.
Eu tentava mapear as especificidades que levaram a Índia a atrelar o bem-estar social a um arcabouço de direitos socioeconômicos específico. Na Europa Ocidental, muitos Estados robustos de bem-estar social eram firmados em razão de políticas sociais redistributivas, sem um referencial baseado em direitos. A Índia claramente estava fazendo outra coisa, e eu quis entender melhor essa diferença. Vi “o bom, o mau e o vilão” desse esforço inicial. E vi também o surgimento da tecnologia como instrumento narrativo do provimento de bem-estar social, especialmente a partir de 2009-2010, quando o projeto Aadhaar se cristalizou na opinião pública.
A partir de 2014, o establishment político mudou. Em um de seus primeiros discursos ao Parlamento, o primeiro-ministro Modi chamou a NREGA (que garantia ao menos 100 dias de trabalho assalariado a domicílios rurais por ano) de “monumento à pobreza”. Isso é frequentemente lido somente nos termos do debate político-partidário, mas houve uma mudança substantiva no entendimento da assistência social. A gramática de direitos foi substituída por um discurso sobre integridade e transparência como objetos da reivindicação direta do cidadão ao Estado. A tecnologia fez com que as transferências diretas de renda se tornassem uma possibilidade real.
Eu observei e eventualmente participei de um debate muito consistente que ocorreu entre 2010 e 2014 em torno dessa ideia de transferências diretas, particularmente nos atos preparatórios para a aprovação da Lei Nacional de Segurança Alimentar. Esse debate era centrado em duas questões-chave: a eficiência na prestação do serviço, dado que as transferências diretas tinham o potencial de atravessar as camadas de incompetência e corrupção do Estado, e o papel do mercado no provimento de serviços básicos.
A abordagem baseada em direitos parte de uma posição normativa que estabelece a centralidade do setor público na prestação de serviços básicos. Considera também que os direitos são um meio de aprofundar a capacidade dos cidadãos de fazer reivindicações ao Estado e obter dele uma resposta íntegra e transparente. Em contraste, a abordagem pautada nas transferências monetárias entende que essa transparência é garantida pela eficiência da prestação direta e pela participação do mercado. Os termos do contrato social são pensados de formas muito distintas pelas duas perspectivas. Isso foi antes de a renda básica universal virar tendência no mundo das políticas públicas. A partir de 2016-2017, o ingresso da ideia de renda básica e do JAM (sigla em inglês para a tríade Pradhan Mantri Jan-Dhan Yojana, Aadhaar e telefone móvel) no discurso do bem-estar social transformaram as linhas gerais desse debate.
Em 2017-2018, num processo fomentado pela rápida escalada do Aadhaar, as transferências monetárias já eram corriqueiras, e a expressão “transferências diretas de benefícios” estava instalada no vocabulário do Estado de bem-estar indiano. Tentando entender como isso aconteceu, senti a necessidade de abordar um problema antigo da esfera pública indiana e reenquadrar os termos do debate público sobre assistência social. Nosso discurso sobre assistência social é rapidamente reduzido à questão do populismo. Antigamente, chamávamos de populismo, de política social populista, de política dos brindes (freebies). Agora, o termo usado é revdi: doces.
Rv: Como você define o “Estado tecnopatrimonial” de bem-estar social, o que ele é, como surgiu?
YA: Meu argumento é: nós abandonamos a ideia de bem-estar social como cerne do contrato social, e abandonamos também a ideia de que o bem-estar social evolui dentro de um referencial normativo de direitos. Diante do fascínio provocado pelas possibilidades de transferências diretas de benefícios abertas pelo avanço tecnológico, o bem-estar social vem sendo redefinido como um “presente” oferecido pelo líder do partido à população, em oposição à ideia de que existe um conjunto de direitos fundamentais que orienta os termos do contrato social entre cidadãos e Estado.
Nesse novo referencial, os cidadãos são sujeitos passivos da benevolência do governo, benevolência essa que é patrocinada diretamente pelo líder do partido político. O bem-estar social, nesses termos, existe em razão do apadrinhamento e do carisma do líder, em vez de emergir de uma obrigação moral do Estado e de uma articulação da cidadania no interior de um referencial de direitos.
Rv: Você vincula isso à ideia de Estado compensador que tem sido proposta pelo economista Rathin Roy.
YA: Em um discurso de 2022, Modi afirmou que a juventude da Índia deveria ficar atenta a essa nova “política do revdi” (doces). Isso trouxe de volta antigos debates sobre “brindes vs. subsídios baseados em mérito” e sobre a necessidade de escolher entre crescimento e provimento de bem-estar social que ocuparam economistas e estrategistas do desenvolvimento durante décadas. Na época das discussões em torno da NREGA, de fato, houve quem argumentasse que essa política de garantia de renda no campo era equivalente a jogar dinheiro de um helicóptero nas mãos da elite rural, uma política de brindes, não uma política sensata, promovida pelo governo com a finalidade de inclusão social ou de expansão do bem-estar.
Existe uma pilha enorme de textos debatendo o que configuraria ou não um revdi e qual deveria ser a natureza da política social. Na medida em que me fui me envolvendo com essas questões, comecei a entender que, na verdade, o debate sobre o bem-estar social e as respostas políticas associadas remontam a duas desilusões muito distintas (embora inter-relacionadas) com o contexto social, econômico e institucional da Índia.
A primeira desilusão diz respeito à natureza da economia indiana. Desde 1991, o crescimento da Índia e a dinâmica da transformação estrutural associada a ele nos levaram a um modelo de crescimento sem geração de emprego. Lá em 2004, tendo como pano de fundo o slogan do “India Shining” [Índia brilhando] e a vitória eleitoral da coalizão liderada pelo Congresso Nacional Indiano, que se tornaria a Aliança Progressista Unida (UPA, na sigla original em inglês), essa questão do crescimento sem emprego estava no cerne do discurso político. O Congresso Nacional Indiano se lançou no pleito com o lema do “crescimento inclusivo”. Esse argumento do crescimento inclusivo era politicamente poderoso porque a economia crescia, mas não produzia empregos suficientes para dar conta do dividendo demográfico que estávamos para alcançar. Esse foi o ambiente que permitiu que medidas como o NREGA ou o Direito ao Trabalho se tornassem tão essenciais e politicamente potentes. E modelo de crescimento não só foi conservado como, inclusive, exacerbado ao longo da nossa história econômica.
Amit Basole escreveu um importante artigo acerca dessa questão. Ele argumenta que, na trajetória da transformação estrutural indiana, o momento em que as pessoas foram arrancadas da agricultura e lançadas em uma economia urbana foi, em grande medida, moldado por um movimento em direção ao setor da construção civil informal, no qual o trabalho é exercido de forma precária e sem vínculo empregatício, e não em direção à produção manufatureira de pequena escala, como aconteceu mundialmente. Dada a natureza atípica da nossa transformação estrutural, a criação de empregos para a juventude foi uma questão que sempre nos assombrou.2 A verdade é que o Estado indiano e sua política econômica simplesmente fracassaram no enfrentamento ao alto nível de desemprego entre os jovens, e os políticos sabem disso, embora hesitem muito em admitir no discurso público.
Como Rathin Roy contundentemente analisou, a assistência social surgiu como uma “compensação” por esses fracassos. Eis o “Estado compensador”. Analisando os traços gerais do Estado compensador, encontrei várias características específicas do caminho indiano em direção ao bem-estar social. O Estado de bem-estar social da Índia não se desenvolveu segundo o modelo social-democrata tradicional, como fruto da negociação entre trabalho e capital. Tampouco se desenvolveu segundo as características do regime de bem-estar conservador estadunidense, que buscava oferecer parcos benefícios condicionados à comprovação de necessidade, mas estava realmente comprometido com a ideia de pleno emprego. Ou, o que é ainda mais intrigante, nem sequer se parece com os regimes de bem-estar produtivistas do Leste Asiático, que investiram a sério em saúde e educação como cernes do capital humano, com o objetivo explícito de mobilizar a capacidade produtiva da força de trabalho em direção ao crescimento econômico.
Nosso Estado de bem-estar social se desenvolve a partir de uma lógica que o concebe praticamente como uma barganha (faustiana) decorrente do fracasso em construir uma economia capaz de garantir o pleno emprego. Sua tática central é usar a política fiscal como instrumento de transferência de recursos públicos, seja em dinheiro, seja em espécie, como mecanismo de compensação aos cidadãos. Não se trata de oferecer uma proteção ao trabalho ou de aumentar o poder de barganha dos trabalhos. Tampouco se se trata de investir no potencial produtivo.
Basta pensar em alguns dos programas de transferência direta mais recentes, lançados por diferentes partidos políticos, inclusive o BJP e o Congresso. Transferências para jovens desempregados, transferências para determinados setores profissionais, ou o PM Kisan, programa de transferência para nossos agricultores. São formas de compensação que o Estado precisa oferecer porque, num país desigual como a Índia, num país em que seus principais eleitores são os pobres, é impossível que um partido político, por mais amigável que seja sua relação com o capital, dispute uma eleição sem oferecer algo para a maioria dos indianos ou sem se envolver com a realidade vivida pelas pessoas. Essa é a beleza da democracia, com todos os desafios que a acompanham.
A segunda desilusão é relacionada com o Estado indiano, e é aí que entra a tecnologia. Todos sabemos que o Estado indiano é incompetente, corrupto e apático. Essas falhas circunscreveram o discurso da elite sobre a assistência social.
Muitos anos atrás, escrevi um artigo com Lant Pritchett intitulado “Taxes: Price of Civilization or Tribute to the Leviathan?” [Impostos: o preço da civilização ou um tributo ao Leviatã?]. Debatemos como, diante da incompetência do Estado, é impossível que a barganha da tributação exerça seu papel, isto é, que se estabeleça uma disposição a se deixar coagir e pagar pelo Estado diante de uma expectativa de que ele forneça um conjunto de serviços públicos que melhorem a sua capacidade produtiva. Essa é uma conclusão justa do ponto de vista do contribuinte mas, mesmo assim, é preciso reconhecer as consequências dela. Essa conclusão circunscreve a natureza do discurso público sobre tributação na Índia, que desvincula a taxação progressiva da distribuição. A progressividade tributária teve um papel histórico gigante na construção de sociedades mais justas e de Estados de bem-estar mais igualitários e funcionais.
Na mesma linha, o debate sobre transferências diretas na Índia tem origem na ideia de que nossos sistemas públicos simplesmente não funcionam. Qualquer investimento excessivo nos sistemas públicos equivale a um tributo ao Leviatã, não ao preço da civilização. A tecnologia possibilitou driblar esse Estado extrativista incompetente e fornecer ao cidadão ao mínimo necessário. Essa ideia enfatiza excessivamente o papel do mercado, porque entende que o Estado simplesmente fracassou na provisão de bens em espécie e serviços.
Em certo sentido, esse discurso é a fonte de legitimidade do Aadhaar, o programa de infraestrutura digital pública da Índia. Não levantamos questões sobre os limites da tecnologia porque estamos mobilizados pela ideia de que ela nos ajuda a driblar um Estado fracassado. Essa legitimidade da tecnologia é a base para a construção de um sistema de assistência social que não aposta no sistema público. A meu ver, uma das consequências disso é que valorizamos uma ideia de eficiência em detrimento das realidades tumultuadas que marcam a democracia, permeadas pela negociação, pela barganha e pelas respostas estatais conflitantes; realidades que exigem, para que funcionem conjuntamente, um sistema público forte e de base robusta.
Rv: Você destaca uma contradição desse novo modelo: ele se distancia da ideia de direitos e prerrogativas e se aproxima da ideia de dever, ao mesmo tempo em que, no entanto, é vendido como mais aspiracional e “progressista”. Considerando que as pessoas estão recebendo transferências monetárias no lugar de bens públicos ou bens de mérito, segundo um modelo que contorna as múltiplas instâncias do Estado, como esse modelo pode ser considerado aspiracional ao invés de ser visto como uma ajuda do governo?
YA: Ele é amplamente narrado em termos aspiracionais e usa o vocabulário do progresso. O projeto Viksit Bharat, o “Bharat Aspiracional”, fala sobre a qualidade de vida. De modo muito interessante, ele narra o atual modelo de assistência social baseada em transferências monetárias como um mecanismo de empoderamento, em contraste com a assistência social do passado, que é enquadrada como um bem-estar social de prerrogativas. Em diferentes discursos, o primeiro-ministro falou sobre o empoderamento como um processo de combater a pobreza usando suas próprias forças, no qual você, como cidadão, tem uma série de obrigações na utilização, com responsabilidade, das oportunidades que lhe são ofertadas.
Por exemplo, no discurso do 75º aniversário da Independência, ele narra como o governo tomou medidas para fornecer eletricidade 24 horas por dia, então é dever do cidadão usá-la com responsabilidade. Na mesma linha, o ministro do Interior apresentou outra versão dessa definição de empoderamento ao dizer que “fornecemos conexões de gás encanado, fornecemos banheiros etc. Agora é responsabilidade dos cidadãos usar essas oportunidades para melhorar suas vidas”. Isso é o que entendemos por empoderamento. Mas esse referencial nada diz a respeito da obrigação do Estado de fornecer serviços públicos básicos inerentes à cidadania, à detenção de direitos. Os cidadãos são reenquadrados como responsáveis e obedientes, e não como sujeitos de direito ativos que reivindicam o bem-estar social.
Essa versão de empoderamento é substancialmente distinta daquela do um modelo de bem-estar baseado em direitos, que mobilizava essa gramática de direitos para empoderar os cidadãos a fazer reivindicações ao Estado. Isso é muito importante no contexto indiano. Desde o momento da fundação do nosso Estado, a articulação de direitos políticos sempre foi mais favorecida que a articulação de direitos socioeconômicos. Estes últimos foram alocados no interior dos princípios diretivos do Estado. A assistência social foi enquadrada como caridade ofertada por apadrinhamento do governo e na medida em que ele é capaz de fazê-lo, e não como um direito central que o Estado é obrigado a garantir a seus cidadãos. Não à toa, afinal, o Estado indiano acabou ficando conhecido como um “mai baap sarkar” (Estado paternal e maternal).
Os movimentos por direitos tentavam resolver isso. Seu fracasso talvez tenha bastante a ver com a incompetência do Estado indiano. As oportunidades tentadoras da tecnologia nos afastaram muito rapidamente da aspiração por um bem-estar social baseado em direitos. Ouvimos falar muito nas obrigações dos cidadãos que decorrem dos esforços do governo em melhorar a qualidade de vida, mas falta uma linguagem que reconheça que os cidadãos são detentores de direitos básicos e que é obrigação do Estado fornecer um padrão mínimo de serviços públicos. Essa é a diferença.
Rv: Você comenta que, embora esse novo modelo seja fortemente identificado com o BJP e com o Modi, não é limitado a eles. Vemos ecos disso em outros partidos que flertam com a política do bem-estar social, como víamos também no passado. Em seu artigo, você menciona a Jayalalithaa, ex-ministra-chefe de Tamil Nadu. Eu gostaria que você nos desse uma visão disso como um fenômeno indiano, e não apenas do BJP.
YA: Até a chamada política de brindes feita em Tamil Nadu se enquadrava em uma gramática mais ampla de direitos e dignidade. Até a distribuição de sáris e a entrega de televisões, que caracterizaram a política em Tamil Nadu, estavam integradas a essa gramática de direitos, dignidade e justiça: tanto a Dravida Munnetra Kazhagam [Federação Progressista Dravidiana] quanto a All India Anna Dravida Munnetra Kazhagam [Federação Pan-Indiana Progressista Dravidiana Anna] se empenharam nessa assistência social competitiva ao longo de muitas décadas. O que me parece específico sobre o atual momento de tecnopatrimonialismo baseado em transferências diretas é que ele é efetivamente despido de qualquer linguagem de direitos e dignidade. Trata-se de um conjunto de doações que podem ser oferecidas pelo Estado a seus beneficiários.
Além disso, esse momento tem a qualidade específica de mobilizar uma tecnologia que, no passado, não existia de maneira tão eficiente. O modelo das transferências diretas possibilita que você drible todos os intermediários do Estado, tanto políticos quanto burocráticos. Isso é muito relevante politicamente porque permite o estabelecimento de uma conexão direta entre a liderança política e o beneficiário.
É evidente que dirigentes populares de partidos regionais exerceram no passado e exercem atualmente essa conexão direta entre líder e eleitor: Jayalalithaa é um epítome disso, mas Indira Gandhi também. A capacidade de driblar intermediários, no entanto, é nova. Nesse sentido, a atribuição de créditos, a vinculação política, se tornam um fenômeno muito mais direto. É o que eu, Louise Tillin e Neelanjan Sircar argumentamos com base em dados do Lokniti [Programa de Democracia Comparada]. Você pode ver essa atribuição direta mudar com o passar do tempo, desde os dias da UPA, em que os governos estaduais e ministros-chefes estaduais conseguiam receber muito mais crédito pelas políticas do que recebem no contexto atual, em que boa parte desse crédito vai para a liderança partidária, escanteando os intermediários e o governo estadual. O BJP é um exemplo.
O terceiro ponto distintivo do presente momento é o tipo de mobilização política em torno da categoria de beneficiário, o labharthi. A “labharthi varg” (classe beneficiária) surgiu no léxico político como uma categoria de mobilização política. Líderes políticos podem atravessar intermediários para forjar uma relação direta e emocional com o eleitor como indivíduo, de um modo que efetivamente solapa a reivindicação coletiva baseada em interesses comuns, a reivindicação dependente da casta e a mobilização baseada na religião. Em vez disso, cria-se uma base social bastante neutra de beneficiários individuais em torno da qual a mobilização acontece.
É uma ferramenta politicamente conveniente. Por exemplo, ela possibilita ao BJP refutar críticas quanto à discriminação de minorias religiosas e muçulmanos, apontando para a distribuição dos benefícios. É uma ferramenta inteligente e efetiva para solapar as estratégias tradicionais de mobilização eleitoral em torno de reivindicações coletivas para o uso dos recursos estatais, baseadas em interesses compartilhados. A meu ver, é isso que a torna tão poderosa. Isso também aprofunda a relação direta forjada entre a liderança partidária e eleitor individual, possibilitando que essa lealdade se torne aquilo que Neelanjan Sircar denomina “política do vishwas” [confiança], a própria base a partir da qual os eleitores são mobilizados e os partidos políticos são fortalecidos.
Rv: Como as pessoas têm respondido à ideia de “Estado tecnopatrimonial de bem-estar social”?
YA: A resposta disso faz parte de um trabalho que ainda está andamento, e eu estou tentando apreender não apenas o momento político contemporâneo, mas também o que a evolução do Estado do bem-estar social indiano tem a nos dizer sobre os termos do contrato social e sobre a natureza da nossa democracia. No momento, podemos apenas citar reivindicações de eficiência. Não temos como saber com precisão porque não temos bons dados. Antigamente, havia uma série de avaliações que desvelavam “o bom, o mau e o vilão” dos programas do governo. Hoje, há uma escassez de boas avaliações, de modo que não temos uma noção precisa da apreensão da realidade pelas pessoas.
Há quem possa questionar: “Não deveríamos estar satisfeitos com o fato de que os benefícios estão chegando às pessoas?”. Minha resposta a isso é: vamos realmente arriscar nossa democracia porque estamos impressionados com a capacidade do Estado de depositar uma quantia de dinheiro na conta das pessoas? É só isso que esperamos que o Estado faça? Qual é nosso contrato social? Estamos tentando construir uma sociedade pautada em valores de igualdade, capazes de fomentar a solidariedade entre comunidades distintas, uma sociedade que reconhece a importância de investir em todos nós? Ou seremos uma sociedade que simplesmente se refestelará na glória dessa conquista tão limitada?
Nenhum país do mundo conseguiu se tornar uma potência econômica sem investimento público sério em bens públicos e de mérito essenciais, cujo provimento aos cidadãos é obrigação do Estado, ao exemplo de educação e saúde. É quase como se tivéssemos desistido, legitimando isso ao dizer que “ao menos está funcionando, o que é um passo importante na construção de um Estado maior”. Estou comprometida a nos provocar realmente a refletir mais.
Minha crítica não é a de que não deveríamos fazer isso. Minha crítica é a de que deveríamos entender quais são as consequências efetivas disso para a economia política em sentido mais amplo, e resistir fortemente à despolitização da luta distributiva em um país tão desigual e com solidariedades tão frágeis quanto a Índia.
Rv: O que você acha desse argumento no que diz respeito às eleições de 2024?
YA: Essa é uma boa hora para entender melhor a relação os programas de assistência social dessa natureza e as perspectivas e o comportamento do eleitor. Que cara tem o Estado, no nível da base, neste momento? Como mencionei, uma das mudanças mais cruciais que resultaram desse sistema de assistência baseado em transferências diretas e orientado pela tecnologia foi que, em muitos níveis, o estado local deixou de ser um intermediário. Quem ou o que é o estado local neste momento? Como os cidadãos se envolvem com o estado local nesse cenário de construção de um Leviatã tecnológico, e o que tem sido feito com os espaços de deliberação, diálogo e ação coletiva de base?
Esses estados locais sempre foram um tanto fracos na Índia, e a realidade do nosso sistema de governos locais (que deveria ter uma estrutura incorporada de Gram Sabhas funcionando como espaços de diálogo e deliberação de base) nunca conseguiu de fato se consolidar, com exceção de alguns estados, dos quais o Kerala é o exemplo mais visível. Mas agora que esses investimentos se tornaram ainda mais minguados e o papel dos governos locais tem se alterado, precisamos entender melhor a dinâmica desses espaços para determinar quais são os termos emergentes no enquadramento das relações Estado-sociedade. Ainda não temos trabalhos empíricos o suficiente sobre isso. Para mim, seria essa a base para entender como a articulação entre a arquitetura do Estado e os mecanismos de integridade e transparência vem se construindo, e qual é a contribuição disso para a natureza da nossa democracia.
N.T.: No debate doméstico indiano há uma diferenciação, justamente pelas mudanças encabeçadas pelo BJP, entre a ideia de cidadania, ou de detenção de direitos, e a ideia de pertencimento a uma classe beneficiária de políticas sociais. Essa diferenciação é empregada, particularmente, nos esforços de compreensão das mudanças no comportamento eleitoral de determinadas regiões e estratos da distribuição de renda nos últimos ciclos eleitorais.
↩Nota da edição: A Organização Internacional do Trabalho divulgou recentemente que os jovens representam 8% da força de trabalho desempregada na Índia.
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