21 de agosto de 2024

Entrevistas

A Nakba e o Direito

Entrevista com Rabea Eghbariah

Desde o início da guerra em Gaza, a causa palestina ganhou um espaço significativo no sistema jurídico internacional. Além dos procedimentos legais resultantes da própria condução da guerra por Israel—o país é formalmente acusado de genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ) e há chance de que mandados de prisão por crimes de guerra e contra a humanidade sejam expedidos contra líderes israelenses, inclusive Benjamin Netanyahu—, a chamada abordagem baseada em direitos ganhou impulso como referência para tratar a autodeterminação palestina. Em menos de um ano, mais nove nações1 anunciaram o reconhecimento formal da Palestina e, no último mês, a CIJ emitiu um parecer consultivo declarando ilegais a ocupação e o assentamento israelense em Gaza, em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia.2 Esses desdobramentos alavancam a noção de que existe um Estado palestino de jure, apesar da ocupação beligerante de Israel.

Da perspectiva da libertação palestina, a abordagem baseada em direitos tem vantagens significativas em relação ao paradigma que vem a substituir: o arcabouço de Oslo, segundo o qual o estabelecimento de um futuro Estado palestino deveria resultar da negociação entre representantes israelenses e palestinos sob supervisão estadunidense. As negociações bilaterais falharam sistematicamente em razão da profunda assimetria de poder entre as partes e da parcialidade dos Estados Unidos na mediação. A abordagem baseada em direitos evita esses constrangimentos ao recorrer a marcos legais e instituições jurídicas internacionais para reivindicar uma solução. 

O tratamento legalista, porém, tem suas próprias limitações. Ao adotar a lógica da partilha do território, os esforços em curso no arcabouço legal existente ignoram a violência fundamental da desapropriação e do deslocamento palestinos que remonta ao início da ocupação israelense em 1967. Em resposta a essas insuficiências, o jurista palestino Rabea Eghbariah publicou um artigo em uma revista acadêmica de direito apresentando a Nakba como um novo conceito jurídico que incorpora de forma precisa os danos infligidos ao povo paltestino. O artigo, “Toward Nakba as a Legal Concept”, atraiu a ira e provocou a censura de acadêmicos e do corpo administrativo da Faculdade de Direito Columbia. Situação semelhante já havia acontecido com uma versão anterior do texto em Harvard. O trabalho foi finalmente publicado pela Columbia Law Review no primeiro semestre de 2024.

Rabea Eghbariah está concluindo seus estudos de doutorado na Faculdade de Direito de Harvard e trabalha com restrições aos direitos civis e políticos dos palestinos como advogado e pesquisador. Na seguinte entrevista, Jack Gross,  editor da Phenomenal World, e Dylan Saba, advogado e escritor, conversam com Eghbariah sobre a Nakba e a Palestina no direito internacional.

Entrevista com Rabea Eghbariah

Jack gross: Vamos começar com uma pergunta fundamental. O que há de excepcional na experiência palestina em relação ao direito internacional?

rabea eghbariah: Existem duas perspectivas para analisar isso. Uma delas diz respeito à singularidade desse caso, a outra, à proeminência—mesmo o que não é excepcional se torna particularmente vívido na Palestina. É claro que, em termos históricos, há muitas singularidades no caso da Palestina. Mas meu trabalho também consiste em demonstrar que os marcos legais aplicados à Palestina fazem parte de um sistema jurídico internacional mais amplo e representam as hierarquias coloniais que ele produz em sentido geral. E esse é um caso que permite observar essas estruturas em sua forma mais crua. 

A questão palestina é uma história centenária que pode remontar a distintos pontos de origem, mas uma referência chave para entendê-la é a Declaração de Balfour, de 1917, quando o governo britânico se comprometeu oficialmente a apoiar o estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina. A partir daí, o direito internacional foi a estrutura usada para incubar o sionismo na Palestina, por meio do sistema de mandato. Um aspecto singular da Palestina sob esse sistema é que, entre todos os territórios classificados e incorporados pela Comissão de Mandato, foi o único ratificado e constituído como colônia de povoamento.

O sistema de mandato fazia parte da estrutura da Liga das Nações.3 Era um estatuto legal que classificava diferentes nações como Mandatos de Classe A, B ou C. A Palestina era um Mandato de Classe A, o que significava, nos termos dos próprios classificadores, que estava entre os territórios mais próximos da civilização e mais aptos à autoadministração. A Declaração de Balfour foi publicada em 1917, seguiram-se a ela cinco anos de governo militar e, em 1922, o Mandato Britânico na Palestina foi consolidado.

Sob o sistema de mandato, o sionismo e o colonialismo britânico trabalharam em conjunto. Qualquer pessoa pode encontrar isso incorporado e positivado ao longo de todo o texto do Mandato Britânico para a Palestina. A única menção ao gentílico “palestino”, por exemplo, está no Artigo 7, que regulamenta a aquisação da cidadania palestina por judeus. O arranjo decorrente segue essa mesma lógica, apagando 94% da população local sob a classificação identitária negativa como “comunidades não judaicas da Palestina” e garantindo a prevalência das reivindicações nacionalistas judaicas do território. O Mandato tinha o fim de facilitar tanto a imigração de judeus para a Palestina quanto o desenvolvimento de instituições autônomas sionistas, ao mesmo tempo em que suprimia ou negava possibilidades semelhantes aos palestinos. 

Tudo isso, é claro, antecede 1948. É a pré-condição da Nakba, o estabelecimento de um sistema que negava ao povo palestino a autodeterminação e a criação de instituições autônomas de governo. O objetivo era claramente declarado e foi explicitamente descrito em uma carta enviada por Balfour ao primeiro-ministro David Lloyd George: “no caso da Palestina, nós deliberada e corretamente nos recusaremos a aceitar o princípio da autodeterminação”.4 O Mandato estabeleceu a infraestrutura jurídica internacional que de fato define o cenário atual da Palestina. 

Estamos falando de um projeto colonial de povoamento viabilizado por instituições jurídicas internacionais que culminou na Nakba de 1948. Uma vez construído o cenário, o direito internacional se reafirmou por meio do plano de partilha do território. A partir da revolução árabe contra o Mandato, em 1936, os britânicos essencialmente passaram a buscar uma saída para a situação. Após a Segunda Guerra Mundial, decidiram delegar a questão palestina à recém-constituída Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU enviou um comitê para produzir um relatório sobre a Palestina, que apresentou duas conclusões conflitantes: uma linha minoritária favorável ao Estado único e uma majoritária a favor da partilha.5 A linha majoritária do relatório, que obviamente venceu a disputa, continha um excesso de linguagem explicitamente racista, argumentando, entre outras coisas, que os palestinos eram retrógrados demais para a concessão do direito à autodeterminação. Essa linguagem colonialista era ainda muito influente em 1947 e de fato orientou a maneira como a comunidade internacional lidou com a Palestina.

dylan saba: Como você lê o fato de que a partilha—ao mesmo tempo uma forma de estratégia colonial e uma tecnologia jurídica—foi a solução vencedora?

re: A partilha é um mecanismo desenvolvido durante a colonização. Os britânicos a usaram primeiro na Irlanda, depois no subcontinente indiano. Era entendida como um tipo de solução e uma forma de descolonização—uma resposta, nessa medida, a questões de nacionalidade. No entanto, é claro, é um mecanismo que consolidou violentamente, em cada caso, os legados do colonialismo. No caso do subcontinente indiano, implicou um grande e agressivo deslocamento populacional, destruindo a integridade territorial, suprimindo a diversidade de identidades políticas ​​e obliterando a autodeterminação da Caxemira.

Na Palestina, a partilha moldou o projeto colonial sionista de povoamento como um “conflito” entre duas nações rivais e não entre uma sociedade de colonizadores e um povo colonizado. O conceito de partilha também consolidou a lógica sionista de uma identidade judaica exclusivista que deve ser bifurcada6 e separada das identidades políticas árabe e palestina. O mantra dos dois Estados remonta a essa premissa da partilha.

Uma vez que a lógica da partilha foi adotada na Palestina, tornou-se necessário refutar a autodeterminação palestina e romper a integridade territorial para instalar o Estado judeu. A recomendação do Comitê Especial da ONU para a Palestina [UNSCOP, na sigla em inglês] em 1947 foi dar 56% do território palestino para o futuro Estado judeu, em uma época na qual os sionistas na Palestina detinham apenas 7% da área total das terras do Mandato. Os autores do relatório reconheceram que os 56% recomendados incluíam as terras mais férteis, enquanto a outra unidade, isto é, o futuro Estado palestino, talvez fosse economicamente inviável ou necessitasse de ajuda internacional contínua para se sustentar. Obviamente, os palestinos rejeitaram a recomendação, e é importante lembrar que, mesmo depois de 1948, seguiram contestando a partilha e oferecendo horizontes políticos alternativos. 

A partilha, no entanto, sequer chegou a ser implementada na Palestina em sua forma original, mas deu origem à Nakba de 1948 e, a partir daí, consolidou um sistema brutal de dominação, fragmentação e rejeição da autodeterminação. O Plano de Partilha da ONU, adotado em novembro de 1947, abriu caminho para a conquista de 80% da Palestina por milícias sionistas e para o deslocamento de mais de 750 mil palestinos de suas casas entre 1947 e 1949. Eles nunca tiveram permissão para retornar. Os sionistas usaram a partilha como pretexto para realizar essa Nakba. Como o próprio Ben-Gurion disse: “Presumimos que esta é só uma situação temporária. Vamos nos estabelecer neste lugar primeiro, nos tornar uma grande potência e depois encontrar uma maneira de revogar a partilha (…) Não enxergo a partilha como uma solução final para a questão palestina”.

O termo Nakba surgiu para descrever essa transformação radicalmente violenta da Palestina de um território de maioria árabe por mais de um milênio para um autoproclamado Estado judeu fundado na destruição palestina. No rescaldo de 1948, a Nakba foi ilustrativa de um problema árabe que se desenrolava na Palestina, e não de um problema palestino que se projetava no mundo árabe. A criação de Israel na Palestina significou a ruptura da continuidade territorial do mundo árabe e, a partir disso, expôs a crise dos nacionalismos árabes. Passados 70 anos, a Palestina virou um caso excepcional, o mundo árabe se fragmentou ainda mais, o projeto do nacionalismo árabe entrou em declínio e os governos árabes na região hoje veem a Palestina como uma questão com a qual precisam lidar.

jg: Em seu artigo, você descreve um episódio histórico que é ilustrativo de como o direito internacional tentou lidar com a especificidade da experiência palestina, buscando usar conceitos já estabelecidos para compreender as atrocidades e reagir a elas. Em um relatório produzido na sequência do massacre de Sabra e Shatila, em 1980, coordenado por Sean MacBride, um grupo de advogados internacionalistas discutiu a pertinência do conceito de genocídio para dar conta dessa forma de violência.

re: O relatório MacBride é muito valioso exatamente pela forma como expõe um processo de raciocínio. Os autores estão escrevendo um relatório sobre a invasão israelense ao Líbano e se deparam com a questão: por que o povo palestino está no Líbano, para início de conversa? Ao tentar entender o massacre de Sabra e Shatila de 1982, eles chegam à conclusão de que o que acontece no Líbano está vinculado ao que acontece simultaneamente no resto da Palestina—as formas de governança e dominação estão conectadas. Então, buscam um arcabouço que lhes permita assimilar essa dupla dimensão.

Diante da necessidade de um arcabouço capaz de captar essa totalidade, vincular essas diferentes coordenadas, os autores expandem o conceito de genocídio. Ou seja, investigam o significado do termo genocídio e o que ele pode incluir. Citam Lemkin e registram a forma como Lemkin tratou a ideia de genocídio cultural. Ponderam como o “genocídio cultural” poderia ser incorporado ao conceito jurídico de genocídio. E tentam expandir a doutrina, mas acabam chegando a um impasse. Há uma opinião majoritária que afirma que esse é um caso de genocídio, e uma opinião minoritária que discorda desse ponto de vista com base na noção de que o genocídio requer intenção específica. Bem, os massacres de Sabra e Shatila inegavelmente são genocidas—e há uma resolução da ONU de 1982 que os reconhece como atos de genocídio. Mas os autores do relatório MacBride não conseguem chegar a um acordo sobre o que é genocídio e acabam recomendando que se estabeleça um comitê internacional para analisar a aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso dos palestinos. Foi a única forma de chegar a uma recomendação unânime.

Outro paralelo esclarecedor na comparação entre aquela época e o momento atual é a retórica. O lema de “eliminar o Hamas” é o pretexto atual para o genocídio, enquanto o lema dos massacres genocidas em 1982 era “eliminar a Organização para a Libertação da Palestina”. O relatório sobre Sabra e Shatila lança luz sobre a maneira como a experiência palestina se intersectou com a violência genocida ao longo de 76 anos e, ao mesmo tempo, sobre os limites dos conceitos jurídicos vigentes em captar a totalidade da experiência palestina.

No artigo, argumento que precisamos usar Nakba para nomear os crimes contra o povo palestino. Assim como o Holocausto inseriu o crime de genocídio e a experiência sul-africana inseriu o crime de apartheid no vocabulário jurídico internacional, a experiência palestina pode inserir o crime de Nakba.

Entende-se que sempre há sobreposição na tipificação de crimes jurídicos internacionais cometidos contra grupos de pessoas—o Holocausto, por exemplo, incluiu práticas que podem facilmente ser identificadas como apartheid. Ainda assim, distinguimos entre esses conceitos porque entendemos que, apesar da sobreposição, a violência fundamental que definiu o Holocausto é o extermínio, enquanto a violência fundamental que definiu o apartheid é a segregação. Nesse sentido, se olharmos para a experiência palestina e perguntarmos qual é a violência fundamental que define a Nakba, perceberemos que é o deslocamento.

Mas a Nakba nunca terminou, e sua violência fundamental, o deslocamento, deu origem a uma estrutura de fragmentação que funciona para negar a autodeterminação palestina. O conceito da Nakba tem como objetivo dar atenção a esse processo contínuo de deslocamento, fragmentação e rejeição da autodeterminação—a natureza inconfundível do que os palestinos sofreram no último século.

ds: Você escreve sobre fragmentação em seu artigo. Seu argumento deixa claro que o regime jurídico vigente na Palestina—a fragmentação territorial, as várias condições jurídicas conferidas aos palestinos de diferentes partes do mapa—é resultante da intervenção inicial da partilha. Até mesmo o nacionalismo judaico, agora codificado na Lei do Estado-Nação de Israel de 2018, decorre dessa fragmentação da partilha. Quando olhamos para o sistema de mandato, é nítido como o sistema jurídico internacional serviu aos interesses das potências coloniais e do nascente Estado sionista. Mas o propósito da fragmentação fica menos evidente hoje, diante do extraordinário desequilíbrio de poder entre judeus israelenses e palestinos. Falando em termos claros: por que não dominar, simplesmente? Por que criar todos esses sistemas intrincados?

re: É simplesmente dominação por fragmentação. Quanto mais fragmentado está o grupo, menor é sua capacidade de se autogovernar ou de resistir como comunidade. A fragmentação cria um problema de coordenação. Existe um sistema extremamente sofisticado de dominação que classifica os palestinos em diferentes condições jurídicas e de identidade, de modo que cada subgrupo acaba se definindo por sua própria luta. Num mapeamento inicial, há cinco condições jurídicas elementares para os palestinos: cidadãos palestinos de Israel, residentes de Jerusalém Oriental, residentes da Cisjordânia, residentes de Gaza e comunidades refugiadas ou diaspóricas. Cada condição tem uma dinâmica interna de controle, dominação e relativo privilégio jurídico. É uma inversão do dividir para conquistar: primeiro veio a conquista, depois a divisão. Esse modelo de governança cria palestinos com mais privilégios jurídicos do que outros, subconjuntos dos quais a ocupação pode explorar diferentes atividades, segmentar regimes de trabalho, etc. Em um nível muito elementar, quando Benjamin Netanyahu promove divisões políticas entre Gaza e a Cisjordânia, opera sob essa a mesma lógica, com esse mesmo objetivo. 

Quanto à questão da dominação por fragmentação, é útil pensar nesse sistema como a consolidação de um processo começa com a partilha, ou seja, como um caso supostamente binário de fragmentação, mas se alonga por mais de 70 anos. Ao passar do tempo, a partilha acabou se desenvolvendo em um sistema de fragmentação em camadas, tendo em vista que, em 1967, Israel também conquistou o restante das terras palestinas. O que você faz com todas essas pessoas que dominou? Elas agora são, propriamente falando, súditas do seu regime, mas você não pode torná-las todas cidadãs, porque isso sabotaria o projeto de manter uma maioria judaica. Os palestinos representam um problema para o projeto sionista, a mera existência dos palestinos desafia e perturba o sistema, e por isso ele avança a cada passo com o objetivo de fragmentar, controlar e administrar ainda mais essa existência. E esse modelo de controle é estruturado por classificações legais que determinam a condição sociojurídica de cada palestino no sistema.

ds: O que você classificou como fragmentação é uma barreira política principal para a libertação palestina, e é essencial elaborar essa questão. Estou curioso para saber, nesse sentido, como você entende a relevância de desenvolver o conceito jurídico da Nakba. O objetivo é dar nome ao horizonte político e reafirmar a luta contra a fragmentação? É uma forma de mobilizar a pressão externa, incitando defensores internacionais a nomear corretamente a forma de dominação que se pretende combater? Qual é o papel que juristas podem cumprir ao abordar problemas relacionados a circunstâncias históricas ainda em desenvolvimento?

re: Respondendo à sua primeira colocação, eu diria que você está absolutamente certo: unidade e fragmentação são forças que coproduzem a condição palestina atual. Ao longo do tempo, diferentes conjunturas históricas deram mais destaque às manifestações de unidade ou de fragmentação. Em 2021, por exemplo, os protestos contra a limpeza étnica em Sheikh Jarrah rapidamente se expandiram para revelar uma unidade entre palestinos do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Esse levante popular foi, então, intitulado “Intifada da Unidade”. O genocídio em Gaza, em contrapartida, revelou a força da fragmentação mais claramente. Cada subgrupo de palestinos enfrentou uma realidade material inteiramente diferente, refletindo a profundidade da fragmentação. Ainda assim, seria um erro grave pensar nessa fragmentação/unidade em termos binários. As forças que impulsionaram a Intifada da Unidade, na verdade, estão sempre em jogo. Ao mesmo tempo, o mecanismo propulsor do sionismo é a fragmentação cada vez maior dos palestinos. O conceito de Nakba articula essa dialética e o modo como a existência palestina é definida pela interação entre a unidade imaginada e a fragmentação material e jurídica.

Bem, quanto à pergunta: por que deveríamos tentar criar esse conceito? É realmente um exercício meramente intelectual? O que posso dizer é que vivemos um momento em que a linguagem empregada para definir o que acontece é crucial. O que estou tentando fazer, creio, é apresentar um diagnóstico que aborde a raiz do problema. Há um risco de que, se confinada a um certo subconjunto da questão palestina, a questão do genocídio possa fazer de Gaza uma exceção. A questão palestina se torna a questão de Gaza e a questão de Gaza se torna a questão do genocídio—como se ele não tivesse relação com o que está acontecendo na Cisjordânia, com o que está acontecendo com os palestinos de  ‘48,7 com o que está acontecendo em Jerusalém ou com o que está acontecendo nos campos de refugiados. Há uma injustiça fundamental que vem se desenrolando nos últimos 76 anos. Desenvolver um conceito inconfundível de Nakba—como foi feito no passado, iterativamente, com genocídio e apartheid—nos confere a linguagem apropriada para tratar essa fragmentação e dominação em sua totalidade.

Tradução de Heci Regina Candiani

  1. N.T.: No último ano, Barbados, Jamaica, Trinidad e Tobago, Bahamas, Espanha, Irlanda, Noruega, Eslovênia e Armênia passaram a integrar a lista das atuais 145 nações que reconhecem o Estado da Palestina entre os 193 países-membros da ONU.

  2. Leia o parecer aqui. Leia o texto de Dylan Saba a respeito, publicado pela Foreign Policy, aqui.

  3. Antony Anghie. 2005. Imperialism Sovereignty and the Making of International Law. Cambridge: Cambridge University Press, p. 115-195.

  4. Carta de Arthur Balfour, secretário britânico para Assuntos Externos, a Lloyd George, primeiro-ministro britânico, 19 de fevereiro de 1919.

  5. Ardi Imseis. 2021. “The United Nations Plan of Partition for Palestine Revisited: On the Origins of Palestine’s International Legal Subalternity”, 57 Stanford Journal of International Law 1.

  6. N.E.: Como identidade religiosa e política.

  7. N.E.: “Palestine ‘48′”, ou apenas ‘48, é um termo amplamente empregado para se referir às cidades e vilareijos palestinos ocupados em 1948 e incorporados ao novo Estado de Israel.

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