Martin Luther King certa vez chamou o governo dos Estados Unidos de “o maior patrocinador de violência no mundo”. Essa formulação pode ser controversa, mas ninguém nega que os EUA são, de longe, o maior fornecedor de armas do planeta, com uma participação de 42% do mercado global de exportação de armamentos.
Desde a Guerra Fria, o Congresso estadunidense aprovou várias legislações para regular a venda e o financiamento de armas e a ajuda humanitária a países estrangeiros. Essas leis, que mudaram de acordo com a evolução das guerras e dos conflitos das décadas seguintes—e do equilíbrio de poder no Congresso, na Casa Branca e entre os dois—, impõem limitações e exigências de notificação a determinados tipos de transação.
A partir de outubro de 2023, as transferências de armas se tornaram um ponto de conflito tático em relação ao apoio dos EUA ao genocídio de Israel em Gaza—de parte tanto daqueles que esperam pôr fim a esse apoio quanto daqueles que pretendem estendê-lo. Meses depois de o governo Biden ter declarado que a invasão ainda em andamento de Israel a Rafah, a cidade mais ao sul de Gaza, traçava uma “linha vermelha” para os Estados Unidos, o Congresso foi notificado de uma nova venda de armas no valor de US$ 20 bilhões para Israel. Enquanto isso, ativistas solidários à Palestina exigiram que a vice-presidente Kamala Harris, a candidata democrata à presidência, se comprometesse com o fim de tais transferências para obrigar Israel a encerrar a guerra. Em resposta, a campanha de Harris esclareceu que ela “não apoiava um embargo de armas a Israel”, uma declaração que constituiu “um de seus primeiros posicionamentos políticos mais firmes”.
Para esclarecer como funciona o fornecimento de armas e equipamentos militares dos EUA a governos estrangeiros, o editor colaborador da Phenomenal World Tim Barker e o escritor Dylan Saba conversaram com Sarah Harrison, advogada que trabalhou no Gabinete do Conselho Geral do Departamento de Defesa. Entre outras funções, Harrison se especializou em assistência humanitária, alívio de desastres no exterior, legislação Leahy, questões de Mulheres, Paz e Segurança e assuntos africanos no âmbito do Departamento de Defesa. Atualmente, é analista sênior do Grupo Internacional de Crise.
Entrevista com Sarah Harrison
DYLAN SABA: Como funcionam as transferências de armamentos realizadas pelos EUA? Qual é a cadeia de tomada de decisões que passa pela Presidência, Congresso, Departamento de Defesa e desemboca na entrega das armas?
SARAH HARRISON: Há duas categorias legais que determinam o curso de uma transferência de armas. Isso depende do tipo de compra: o país está comprando equipamentos de uma empresa privada ou do governo dos EUA? No primeiro caso, temos uma venda comercial direta [direct comercial sale] ou DCS. No segundo, a classificação é de venda militar externa [foreign military sale], ou FMS.
Em uma venda militar externa, um país pode comprar armas ou artigos de defesa (equipamentos militares em sentido amplo) usando seu próprio dinheiro ou por meio de financiamento militar externo [foreign military financing], ou FMF. De modo geral, o FMF é uma assistência de segurança concedida pelos EUA.
Muitas pessoas estão familiarizadas com o fato de que Israel recebe dos EUA mais financiamento militar externo do que qualquer outro país do mundo—quase US$ 4 bilhões por ano. Dos US$ 3,8 bilhões que Israel recebe dos EUA anualmente, a maior parte é financiamento militar externo, usado para comprar armas fabricadas nos EUA por meio de vendas militares externas. Em abril, o Congresso aprovou uma quantidade ainda maior como parte de um grande pacote de segurança internacional que prevê transferências para Ucrânia, Israel e Taiwan.
Depois que uma solicitação de compra é feita, há um processo de revisão interna pelo Departamento de Estado, que aprova os pedidos de FMS e, em seguida, a Agência de Cooperação de Segurança e Defesa do Departamento de Defesa supervisiona e executa os pedidos. Esse processo interagências pode ser coordenado com a Casa Branca, mas a Presidência não se envolve em todas as vendas para todos os países—diferentes governos adotam diferentes políticas em relação a quais vendas devem ser sinalizadas ao órgão.
Nas vendas mais significativas para a maioria dos países, uma vez que a solicitação é aprovada pelo Departamento de Estado, a Lei de Controle de Exportação de Armas de 1976 prevê que o Poder Executivo notifique o Congresso trinta dias antes de emitir a carta de aceite, que permite que a venda avance formalmente.1
Esse período de trinta dias é o tempo que o Congresso tem para agir se quiser impedir que a venda ocorra. Mas, para os aliados da Otan, para Israel e para alguns outros parceiros importantes dos EUA, essa janela é, na verdade, de quinze dias (“aliado”, nesse contexto, significa especificamente um país com o qual os EUA têm um pacto de defesa, portanto, Israel é normalmente chamado de “parceiro próximo” do governo para esses fins. Ou pelo menos era assim que nos referíamos a Israel no Gabinete do Conselho Geral do Departamento de Defesa quando trabalhei lá entre 2017 e 2020). A notificação formal de uma venda de armas vai para a Comissão de Relações Exteriores do Senado, para a Comissão de Relações Exteriores da Câmara e para o presidente da Câmara. Cada um deles recebe uma notificação, mas, na prática, no caso das vendas militares externas, o governo costuma ter antes discussões informais com os partidos da maioria e da minoria em cada comissão. Eles chamam isso de aprovação dos “quatro cantos”, pois estão envolvidos o presidente e o decano das Comissões de Relações Exteriores tanto da Câmara quanto do Senado—esses quatro dão um aceno informal, indicando que não se oporão à transferência. Em seguida, o Poder Executivo avança com a notificação formal e com a venda, sabendo que não haverá entraves. Nunca houve um caso em que a venda de armas tenha sido interrompida durante o período de notificação do Congresso (durante o governo Trump, o Congresso aprovou uma resolução conjunta de desaprovação—o termo formal para a interrupção de uma transferência de armas—em protesto contra uma venda de armas para os Emirados Árabes Unidos, mas o presidente vetou).
Nas vendas comerciais diretas, o procedimento de notificação é semelhante, exceto pelo fato de que tudo fica a cargo do Departamento de Estado, que emite a licença de exportação para a empresa privada que vende os artigos de defesa. Antes de o Departamento de Estado emitir uma licença de exportação para essa venda, ele envia a mesma notificação de trinta dias ao Congresso—ou quinze dias para os aliados da Otan, Israel e outros parceiros próximos dos EUA. Uma vez decorrido o prazo da notificação do Congresso, a licença de exportação pode ser emitida e, em seguida, o processo de aquisição é iniciado: a empresa dos EUA pode construir o artigo de defesa ou fornecer os serviços de defesa para o exterior.
A notificação ao Congresso só é exigida por lei quando a venda atinge um determinado limite—esse limite é mais alto para os aliados da Otan e para os principais parceiros.2 Por exemplo, se houvesse uma venda militar significativa para a Índia de, digamos, US$ 14 milhões em equipamentos de defesa, o Congresso seria notificado, mas isso não ocorreria caso o comprador fosse um membro da Otan ou Israel.
DS: Que tipo de detalhes são apresentados ao Congresso?
SH: As notificações ao Congresso incluem informações detalhadas sobre a venda, incluindo o país destinatário e uma descrição da quantidade e dos tipos de equipamentos e/ou serviços que serão fornecidos. Agora, se um presidente quisesse contornar esse período de notificação, ele poderia aplicar a chamada exceção de emergência, que exige uma descrição detalhada ao Congresso da própria emergência que demanda a venda ou a emissão de uma licença de exportação de equipamentos e/ou serviços dos EUA com base em interesses de segurança nacional. Mas, de modo geral, há a cultura institucional de que o Congresso está familiarizado com as justificativas de política externa do Executivo, já que ele é o órgão que estabeleceu a estrutura jurídica que permite aos EUA fornecerem bilhões de dólares em armas a outros países. Portanto, como órgão, ele não exerce uma supervisão significativa dessas transferências de armamentos.
DS: Sabemos quantas vezes Israel passou por esse processo desde outubro de 2023? E qual é, aproximadamente, a linha do tempo desde a solicitação até a entrega?
SH: Pelo que sei, houve mais de cem transferências desde outubro. Na maioria dos casos, quando houve necessidade de notificação do Congresso, o trâmite foi realizado antes de 7 de outubro (o que significa que o processo de aquisição levou muito tempo), ou foram casos de transferências que não ultrapassaram o limite estabelecido por lei e, portanto, não ensejaram notificação. Além disso, sei de dois casos de FMS que foram enquadrados como exceção de emergência.
A questão da linha do tempo é complicada: não há uma linha do tempo para casos de FMS. Tudo depende da demanda, da produção e da burocracia. Por exemplo, a produção de munição aumentou, mas a demanda é tão alta, em grande parte devido à guerra na Ucrânia, que não está claro se o aumento da produção significa que a munição está sendo enviada de forma especialmente rápida a algum país por meio de FMS.
Os processos burocráticos podem priorizar determinados casos ou países. Determinada gestão presidencial pode exigir que os burocratas se apressem em finalizar a documentação relacionada a algum país específico. Possivelmente, é isso que o governo quer dizer quando afirma que está tentando agilizar as transferências para Israel: trata-se de passar mais rápido por esse longo processo de obtenção das aprovações.
Se o presidente realmente quiser agilizar a transferência de artigos de defesa, ele pode usar a Autoridade de Saque Presidencial, dispositivo que lhe permite acessar diretamente os estoques do Departamento de Defesa e transferir esse equipamento. Isso diminui o tempo que um país tem de esperar (já que não é necessário passar por todo o procedimento de aquisição). É o que o Executivo tem feito principalmente em relação à Ucrânia. É uma extensão da competência presidencial que permite ao mandatário destinar estoques do Departamento de Defesa para qualquer lugar do mundo. Quando há uso da Autoridade de Saque Presidencial, o processo não se enquadrado nem como FMS nem como DCS.
DS: Essa competência é diferente do manejo do estoque de reservas de guerra sobre o qual você escreveu?
SH: Sim. Enquanto a Autoridade de Saque Presidencial é uma competência estendida que confere ao presidente a prerrogativa de utilizar os estoques do Departamento de Defesa em qualquer lugar do mundo, a competência para estabelecer um estoque de reservas de guerra é do próprio Departamento de Defesa e permite a ele estocar suas armas em outro país para uso em momentos de emergência.
O Estoque de Reservas de Guerra em Israel é um estoque do Departamento de Defesa que data da década de 1980. Ele está fisicamente localizado em Israel e os bens armazenados lá estão disponíveis para uso do Departamento de Defesa ou para transferência para outro país. Ele se destina a tempos de guerra ou de emergência, mas não há requisitos legais específicos para o seu uso. Originalmente, só era permitido que o Departamento mantivesse estoques no exterior em países da Otan, mas, posteriormente, o Congresso expandiu a legislação para abranger os principais “aliados não pertencentes à Otan” (um termo legal que confere certos benefícios a esses países), o que inclui Israel.
O estoque de Israel foi usado para transferir projéteis para a Ucrânia, e sabemos de casos anteriores em que ele foi usado por Israel—em especial na guerra do Líbano em 2006 e na guerra de Gaza em 2014—, mas não há nenhum relatório público que indique que isso tenha ocorrido depois de 7 de outubro. Em parte, isso se deve ao fato de que tanto essas transferências quanto a sua política de implementação são, em geral, bastante opacas (no caso de 2014, por exemplo, a Casa Branca não estava ciente da transferência até depois de ela ter ocorrido, apesar de estar, simultaneamente, à frente de uma venda militar externa de US$ 3 milhões dos EUA para Israel). Embora estime-se que US$ 4,4 bilhões em equipamentos estejam armazenados lá, não há nenhuma exigência robusta de relatórios sobre esses estoques. No caso da Ucrânia, algumas evidências sugerem que a transferência foi concluída por meio de uma solicitação do governo dos EUA com a aprovação final do primeiro-ministro de Israel, o que indica um grau significativo de controle israelense sobre o estoque.
Grupos da sociedade civil pediram ao governo Biden que fosse mais transparente sobre o momento, o conteúdo e o embasamento jurídico das transferências de armas, como tem ocorrido em relação à Ucrânia por meio de comunicados do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa à imprensa. Os funcionários do governo com quem eu e outros conversamos recusam-se a estender essa prática a Israel. Portanto, não sabemos se eles usaram o estoque de reservas de guerra após 7 de outubro de 2023. Se houvesse uma emergência real, o presidente poderia usar a Autoridade de Saque para transferir rapidamente os estoques do Departamento de Defesa para Israel.
Mas o Departamento de Defesa está preocupado com o esgotamento de seus próprios estoques, tanto por causa da guerra na Ucrânia quanto porque o Congresso demorou muito para liberar mais dinheiro para reabastecê-los. O Congresso finalmente o fez no importante pacote de segurança internacional que mencionei anteriormente em relação a Israel, Taiwan e Ucrânia, que era um projeto de lei de apropriação.
DS: Você disse que não houve nenhum caso de desaprovação pelo Congresso de transferências de armas para Israel desde outubro.
SH: O Congresso jamais conseguiu bloquear uma transferência de armamentos.
DS: Isso significa que Israel está recebendo todos os equipamentos que solicita?
SH: Não. Meu entendimento, numa tentativa de interpretar o que está nas entrelinhas do posicionamento do governo até agora, em particular a partir da declaração dada por um general em março desse ano afirmando que Israel não está recebendo tudo o que pede, é de que o governo Biden não está necessariamente aprovando todos os pedido de venda militar externa. Essa é uma prerrogativa do governo. Ao mesmo tempo, a Casa Branca definitivamente não está sinalizando nenhum limite às solicitações de Israel, nem motivos para impor alguma limitação, com a única exceção das bombas de 2 mil libras, cuja transferência foi suspensa pelo presidente—o que é, obviamente, uma gota num balde d’água em comparação com a quantidade de artigos de defesa que continuam a ser enviados a Israel.
TIM BARKER: Você falou sobre a falta de transparência e as diversas exigências de notificação. Qual é a legislação elementar que disciplina a transparência do processo de transferência de armas?
SH: Isso depende da autoridade envolvida. No caso de vendas militares externas, a emissão da notificação ao Congresso para uma grande venda de armas é anunciada pela Agência de Cooperação de Segurança e Defesa em seu site, mas não sabemos nada sobre transferências abaixo do limite que exige a notificação simplesmente porque não há exigência de transparência. Imagino que mesmo que a Agência não publicasse as notificações em seu site, ainda assim poderíamos ter conhecimento das transferências de grande porte porque os membros do Congresso poderiam informar o público ou os jornalistas.
Mas, novamente, essas notificações são necessárias apenas em casos de transferências significativas, acima de determinado limite. É possível que haja um esforço para enviar várias remessas de artigos e serviços de defesa abaixo do limite, a fim de evitar o tipo de acesso à informação que acompanha as notificações ao Congresso. Uma maior transparência desse processo é defendida por grupos de direitos humanos, de proteção civil e grupos que apoiam o controle de armas.
A transparência depende especificamente da política do Poder Executivo: não é, de maneira alguma, uma decisão bipartidária. Com relação à Ucrânia, o governo Biden demonstrou uma tentativa bem coordenada, tanto internamente no Poder Executivo quanto com parceiros e aliados na Europa, de tornar esse processo o mais limpo, transparente e franco possível. Isso é algo exclusivo desse governo. Dito isso, ele optou por não fazer coisa semelhante no caso de Israel, apesar de Israel ser um dos principais destinatários de armas dos EUA.
Deixando de lado a questão de se o governo deveria estar enviando armas em primeiro lugar, seria de se esperar que o Poder Executivo tivesse a mesma abordagem que tem com a Ucrânia em relação a todos os parceiros e aliados ao redor do mundo.
TB: É impressionante a quantidade de informações básicas sobre transferências de armas que só estão no registro público por causa de vazamentos de algum tipo.
SH: Sim. O número que citei anteriormente—que houve centenas de transferências desde outubro—veio de um vazamento, não de uma revelação do Poder Executivo.
TB: Gostaria de perguntar sobre a suspensão da transferência de bombas especialmente grandes. O que acontece quando um governo quer retardar as transferências de armas ou usar esse processo como um modo de pressionar um parceiro?
SH: Até onde sabemos, a suspensão de transferências de bombas de 2 mil libras é a única vez nessa guerra em que o governo Biden usou publicamente sua considerável capacidade de influência. Após o ataque à World Central Kitchen (WCK) em abril, Biden respondeu com um telefonema particular a Netanyahu, no qual não teria anunciado que sua política estava mudando, mas teria ameaçado mudá-la. Depois desse telefonema, pareceu que o governo israelense tomaria medidas rápidas para abrir alguns pontos de acesso humanitário, mesmo que só para exibição, porque a Casa Branca estava indicando que não toleraria o assassinato de cidadãos estrangeiros de organizações humanitárias.
O governo Biden já havia tolerado a morte de dezenas de milhares de palestinos, mas foi só aí que Israel passou dos limites. Esse episódio ressaltou um fato óbvio: quando o governo usa a sua influência, pode alterar a trajetória de um conflito. O presidente se recusa a fazer mais do que isso porque entende que a abordagem de seu governo em relação a Israel é baseada em princípios.
A suspensão do envio de armamento refletiu certo desconforto por parte do governo com o lançamento de bombas de 2 mil libras em locais onde havia muitas pessoas. Claramente, essa suspensão não foi tão longe quanto deveria—pelo contrário, pareceu mais uma tentativa de livrar a cara do governo, uma vez que a administração ficou presa em uma espécie de “política sem saída”. Essa suspensão não teve nenhum efeito no sentido de interromper o derramamento de sangue na Palestina. O telefonema após o ataque à WCK em abril parece ter sido o uso mais eficaz da influência da Casa Branca até agora.
DS: Até onde vai a prerrogativa do Executivo aqui? Presumo que essas vendas podem ocorrer porque o Congresso aprovou mais orçamento para cobri-las. Isso está correto?
SH: A venda de armamentos pode ser feita com dinheiro que os EUA concederam a outro país—em geral por meio de financiamento militar externo, ou FMF, como descrevi anteriormente—, com dinheiro proveniente de auxílios públicos do orçamento estadunidense a que outro país tenha acesso, ou por qualquer outro meio de renda. Israel normalmente usa seu FMF, que é de US$ 3,3 bilhões por ano fiscal. Esse dinheiro é transferido para Israel no primeiro mês de cada ano fiscal e fica em uma conta que rende juros. Israel usou esses juros para pagar dívidas com os EUA, mas não pode usá-los para comprar artigos de defesa.
DS: Se essa é uma conta que serve para a compra de armas estadunidenses, até que ponto a prerrogativa do Executivo se estende sobre isso? O presidente poderia simplesmente impor um embargo de armamentos e impedir as vendas até que alguma condição seja atendida?
SH: Imagino que os advogados do presidente diriam que sim, ou diriam que é complicado, mas que é possível argumentar que a Constituição confere ao presidente esse poder. Creio que os membros do Congresso se oporiam a isso e diriam: “Não, nós temos a chave do cofre, nós é que decidimos quando outros países recebem dólares dos EUA e em que momento podem gastá-los”. Essa questão não chegou ao judiciário. Ela aparece muito em discussões de advogados que refletem sobre até que ponto o presidente tem autoridade para simplesmente não permitir o uso de recursos já autorizados e destinados pelo Congresso.
De certa forma, isso aconteceu com a Ucrânia no governo Trump, embora a questão de fundo tenha sido um quiproquó em torno de interesses próprios, não uma tentativa de fazer política externa. O Congresso autorizou e destinou assistência de segurança para a Ucrânia caso o país cumprisse determinados requisitos. O Poder Executivo acabou determinando que a Ucrânia cumpria esses requisitos e que deveria receber a assistência. Mas o então presidente Trump usou essa assistência de segurança como um suborno, em troca de informações que poderiam prejudicar seu oponente na disputa presidencial, o então ex-vice-presidente Biden. Esse é um caso recente em que o presidente reteve dinheiro aprovado pelo Congresso, mas isso no contexto de uma solicitação de interferência estrangeira em uma eleição nacional. Acontece que nenhum tribunal determinou o contexto específico em que o presidente está constitucionalmente autorizado a reter fundos que o Congresso destinou para assistência de segurança.
DS: Portanto, embora haja aí uma questão jurídica em aberto sobre a extensão do controle presidencial, Biden tem tanto poder sobre esse processo que conseguiu mudar a política israelense com um telefonema no qual ameaçou lançar mão desse mesmo poder.
SH: Bem, houve algumas propostas legislativas dos republicanos, mesmo depois do telefonema sobre a WCK, que basicamente tentavam estabelecer que o presidente não tem esse poder. Além disso, há divergências no Capitólio sobre qual a margem de manobra do Executivo para reter uma, duas, três ou até todas as transferências. Parte da discordância diz respeito a poderes legais e outra parte trata da natureza diversa dos conflitos—como casos em que a transferência de armas pode não estar de acordo com interesses de segurança nacional ou casos em que os EUA podem estar violando suas obrigações jurídicas internacionais ou domésticas ao transferir tais artigos.
DS: Ainda nesse assunto, você pode nos falar sobre a legislação Leahy e a disposição da Lei de Assistência Estrangeira que regula casos em que países estão restringindo o fluxo de ajuda humanitária?
SH: O Congresso já conta com um enquadramento jurídico, estabelecido por lei, para controlar as transferências quando o Poder Executivo tem conhecimento de violações ao direito internacional. Há um punhado de leis relacionadas à proibição de transferências de armamentos ou de fornecimento de assistência de segurança de modo mais geral a países que violam os direitos humanos ou as regulamentações do direito da guerra. As principais legislações relacionadas aos direitos humanos são as leis Leahy e a seção 502B da Lei de Assistência Estrangeira, enquanto a seção 620I da Lei de Assistência Estrangeira diz respeito ao fornecimento de ajuda humanitária.
Podemos começar com as leis Leahy. São duas. Há uma Lei Leahy para o Departamento de Defesa e uma Lei Leahy para o Departamento de Estado. As duas leis se aplicam ao gasto de dinheiro dos EUA em assistência de segurança a unidades de forças de segurança estrangeiras. Essas leis são muito restritas e só se aplicam a uma unidade de uma força de segurança estrangeira, e não a toda a força ou a todo o país. Elas são acionadas quando o governo dos EUA—seja o Secretário de Estado, seja o Secretário de Defesa—tem informações confiáveis de que a unidade de uma força de segurança estrangeira (isso não inclui forças não estatais, apenas forças estatais estrangeiras) cometeu uma violação grave dos direitos humanos. Havendo tais informações confiáveis, essa unidade não poderá receber mais nenhuma assistência de segurança dos EUA. Entretanto, ambas as leis preveem uma exceção a essa proibição. A exceção do Departamento de Estado exige que as violações graves dos direitos humanos pela unidade sejam reparadas, o que significa que os autores devem ser levados ao tribunal, processados e sentenciados. A exceção do Departamento de Defesa é mais branda, mas, por uma questão de coerência, os departamentos concordaram, por meio de um memorando, em realizar o que é chamado de processo de reparação de acordo com o padrão fixado para o Departamento de Estado (ou seja, os autores devem ser processados e sentenciados para que a exceção se aplique). Essas são as leis Leahy.
Por sua vez, a seção 502B da Lei de Assistência Estrangeira interrompe a assistência de segurança a um país inteiro se houver um padrão consistente de violações graves dos direitos humanos. A seção 502B já foi aplicada no passado, mas sua aplicação não é pública porque não há exigência de comunicação ao Congresso e nem de procedimentos de transparência que a denunciem. A cláusula de supervisão da seção 502B permite que o Senado ou a Câmara solicitem um relatório do Departamento de Estado no prazo de trinta dias sobre as práticas de direitos humanos de um determinado país. O senador Bernie Sanders tentou fazer um pedido desse tipo em dezembro do ano passado—para forçar a produção de um relatório e de um debate no Congresso—mas, infelizmente, ele não foi aprovado.
Por fim, há a seção 620I da Lei de Assistência Estrangeira, que não tem como objeto os direitos humanos, como as leis Leahy e a seção 502B, mas se aplica quando o governo de um país estrangeiro está direta ou indiretamente proibindo ou restringindo alguma forma de assistência humanitária fornecida pelos EUA. No caso de Israel, isso aparece de maneira imediata. O governo israelense anunciou e executou muito rapidamente um bloqueio após o 7 de outubro. Esse bloqueio persistente é a razão pela qual há denúncias de fome no território da guerra: as pessoas estão passando fome por causa do bloqueio israelense à assistência humanitária.
Até mesmo as autoridades estadunidenses ficaram frustradas com o fato de que funcionários do alto escalão do governo israelense não estavam permitindo que um carregamento de farinha e de outros produtos secos vindo da Turquia chegasse a Gaza. Esse foi um caso amplamente divulgado, e mesmo assim o Poder Executivo não interrompeu a assistência de defesa, apesar de a seção 620I proibi-la a todo o país nos termos da Lei de Assistência Estrangeira e da Lei de Controle de Exportação de Armas. Existe até uma exceção na lei caso o presidente forneça ao Congresso uma motivação detalhada com base em razões de segurança nacional, mas o governo Biden não reconheceu nenhuma violação da seção 620I por parte de Israel e, portanto, tal exceção nunca foi aplicada.
DS: Impedir a entrega de ajuda é uma violação muito concreta e inequívoca dos direitos humanos. Há muita documentação sobre as práticas arbitrárias de Israel, para falar de maneira eufemística, que limitam totalmente a quantidade de assistência que chega. Gostaria de perguntar a você sobre o relatório que o Departamento de Estado publicou analisando as práticas israelenses na guerra. Considero notável que, no relatório, eles tenham dito que há motivos para pensar que Israel está violando o direito humanitário internacional ou o princípio da distinção com seus bombardeios. Mas, basicamente, ele aprova as práticas de Israel de restringir a ajuda. À luz de todas essas evidências, em sua opinião, por que essa posição foi adotada?
SH: Há algumas coisas que eu gostaria de dizer sobre isso. Quando ocorreu o bloqueio em outubro, acredito que a questão da seção 620I—a legislação que trata da restrição da ajuda dos EUA—realmente pegou o Poder Executivo desprevenido. Essa legislação é bastante obscura: antes de outubro passado, ela raramente era aplicada ou discutida. Normalmente, quando o governo dos EUA está tentando transportar ajuda humanitária para outros países, ela chega ao destino, e o principal desafio é distribuir a ajuda nas áreas de conflito ativo. Essa logística é realmente difícil, e os EUA em geral contratam parceiros locais para levar a ajuda às pessoas nessas áreas. Mas, normalmente, os países não implementam bloqueios à assistência humanitária dos EUA ou à ajuda da ONU. Essa assistência normalmente chega a lugares onde a logística é difícil e onde há sérias preocupações de segurança, como a Somália. Portanto, a questão da seção 620I, referente ao bloqueio total de Israel em Gaza, parece ter pegado desprevenidos os advogados e os formuladores de políticas. Foi necessária a pressão de grupos da sociedade civil, que enfatizaram essa disposição legal, para que o Congresso começasse a fazer perguntas. A atenção do público a essa lei só começou a se intensificar no início de 2024.
Meses depois, em março, conversei com funcionários do Poder Executivo e eles disseram que ainda estavam discutindo a interpretação jurídica dessa lei. A questão jurídica central avaliada por eles era: o que configura uma assistência humanitária dos EUA? As contribuições dos EUA à ONU, que depois são fornecidas, via ONU, aos palestinos em Gaza, são equivalentes à assistência direta dos EUA? Isso é indicativo de uma abordagem jurídica purista; os advogados do Poder Executivo normalmente tentam interpretar as legislações a fim de garantir o máximo de flexibilidade ao Poder Executivo.
Com base em conversas separadas, uma segunda pergunta que sei que estava sendo feita dentro do Poder Executivo no final de março era: o que significa o trecho da lei que diz “proibir ou restringir de outra maneira”? As autoridades dos EUA disseram ao Congresso que estavam inclinadas a interpretar que “restringir de outra maneira” significava o mesmo que “proibir”—em outras palavras, a interpretar o texto de maneira limitada, de modo que a seção 620I só se aplicaria em caso de proibição total.
Vejamos a linha do tempo dos eventos relacionados à seção 620I. Em dezembro, o senador Van Hollen elaborou uma legislação para tratar da aplicação da seção 620I a Israel, embora seus termos fossem aplicáveis a todo o mundo. Em fevereiro, o presidente emitiu o Memorando de Segurança Nacional n. 20 (NSM 20), baseado no projeto de lei de Van Hollen. A meu ver, essa foi uma tentativa do governo Biden de apaziguar os legisladores democratas críticos que estavam tentando responsabilizar o Poder Executivo pelo que aparecia como um desrespeito à lei. Quando o memorando foi emitido, o secretário de imprensa do presidente declarou que ele não alterava nenhum padrão já estabelecido do Poder Executivo.
Há uma disposição na NSM 20 que exige garantias por escrito e confiáveis de conformidade com as leis internacionais e acesso assegurado à ajuda humanitária de países estrangeiros que recebem artigos de defesa dos EUA. A NSM 20 prevê também que o Poder Executivo informe ao Congresso se os países estão cumprindo a seção 620I. Essa exigência não está prevista na seção 620I, mas no memorando do presidente. Essa é uma boa notícia, pois isso exigiu que os advogados se posicionassem sobre essa lei e que os formuladores de políticas do Departamento de Estado decidissem sobre a conformidade ou não de Israel, o que significou muita deliberação sobre o que constitui assistência dos EUA e o que é “proibir” ou “restringir de outra maneira”. Também é possível que os advogados tenham aplicado um entendimento de que qualquer proibição ou restrição teria de ser arbitrária para constituir uma violação à seção 620I. Eles podem ter usado a doutrina da arbitrariedade—um padrão do direito internacional—como uma maneira de moldar a interpretação do direito doméstico. Não sei ao certo. O que quero dizer é que o Poder Executivo trabalhou de muitas maneiras na interpretação da seção 620I até maio, quando teve de apresentar o relatório que você mencionou ao Congresso.
Na época em que esse relatório foi apresentado, o governo supostamente havia conseguido pressionar Netanyahu a diminuir um pouco as restrições ao acesso humanitário. Essa provavelmente foi a razão pela qual o governo acabou se sentindo à vontade para declarar que a seção 620I não era aplicável, porque Israel não estava proibindo total ou arbitrariamente a ajuda humanitária dos EUA—como havia uma parcela de assistência entrando, qualquer proibição a outra parcela poderia ser considerada não arbitrária, por razões de segurança, por exemplo. Naturalmente, sabemos que há inúmeros relatos de coisas que arbitrariamente são vetadas de entrar em Gaza, mas Israel argumenta que isso ocorre por questões de segurança nacional.
Parece-me que tudo isso se resume ao fato de que os advogados do Poder Executivo procuram ser criativos para dar o máximo de flexibilidade possível ao presidente—especialmente quando o objetivo é evitar que a assistência a Israel seja interrompida.
DS: Quero ampliar um pouco enquadramento, mas ainda assim fazer uma pergunta jurídica. Um aspecto marcante da resposta do governo dos EUA a essa guerra foi a postura explícita adotada em relação aos órgãos de direito internacional. Sei que há muito tempo os Estados Unidos têm uma relação conflituosa com muitas das fontes formais do direito internacional e seus tribunais, mas depois que o Conselho de Segurança aprovou a resolução de cessar-fogo em março, com a abstenção dos EUA, um porta-voz do Departamento de Estado subiu ao púlpito e basicamente insinuou que a resolução do Conselho de Segurança não era vinculante. Considerando sua experiência no governo, você ficou surpresa com isso?
SH: Por conta de tudo o que havia ocorrido até aquele momento, não fiquei surpresa. Penso que a posição dos EUA é relevante principalmente porque fragiliza a postura do governo Biden em relação à ordem baseada em regras. Ao se abster de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU e, posteriormente, dizer que ela não é vinculante, quando muitos outros atores a consideram vinculante, os EUA fortalecem a narrativa de que estão desrespeitando de maneira hipócrita o direito internacional em relação a Israel e que continuarão fazê-lo. Obviamente, do ponto de vista jurídico, o Departamento de Estado instruiu o governo de que era razoável que ele afirmasse que a resolução não era vinculante, mas mesmo que acadêmicos de direito internacional digam que isso está correto, isso é algo secundário, pois essa linha ainda é prejudicial para outras políticas e objetivos dos EUA de promover a adesão ao direito internacional.
DS: Se há um argumento plausível a ser apresentado, faz sentido que os advogados o apresentem. Mas você acha que discussões semelhantes estão acontecendo em torno, por exemplo, das medidas preliminares da Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenadas no caso do genocídio, que é inequivocamente uma declaração de direito internacional? Gostaria de saber se você tem uma ideia de como ordens como essa são recebidas pelo governo e como ele é aconselhado sobre suas obrigações com relação às ordens da CIJ.
SH: Não acho que os pareceres da CIJ, inclusive o parecer consultivo de julho sobre a ocupação israelense, tenham sido bem recebidos por esse governo, principalmente por conta das restrições políticas autoimpostas sobre como os EUA abordam seu relacionamento com Israel. Os pareceres da CIJ, bem como o pedido do promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI) de mandados de prisão para autoridades israelenses de alto escalão, criam obstáculos jurídicos reais para os advogados do Executivo, que precisam analisá-los seriamente, uma vez que tratam de questões que não podem simplesmente ser descartadas. Enquanto outro país pode simplesmente ignorar tudo o que a CIJ ou o TPI diz, os advogados do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa se debruçam sobre as decisões e pedidos de mandados para entender maneiras de aconselhar o presidente sobre a forma como os EUA precisam satisfazer suas obrigações internacionais.
Foi por isso que fiquei realmente frustrada com a emissão do NSM 20 em fevereiro. A meu ver, foi uma tentativa de apaziguar os democratas do Congresso que estavam criticando o Executivo. Mas o que o memorando implicou para os advogados e formuladores de políticas dentro da burocracia do governo foi muita agitação, porque eles levam essas coisas a sério. Isso nunca resultaria na interrupção das transferências de armas para Israel, que, como sabemos, é a alavanca à disposição dos Estados Unidos para acabar com essa carnificina.
Assim como no caso do NSM 20, levará muito tempo para que os advogados e formuladores de políticas do Departamento de Estado lidem com as repercussões dos casos da CIJ e do pedido de mandados de prisão no TPI. Mas, claramente, pelo menos até o momento, eles não estão assumindo nenhuma posição que implique a interrupção da transferência de armas pelos EUA. Portanto, independentemente de como interpretemos isso, parece bastante claro que os advogados dos EUA não concordam com o que a CIJ disse ou com o que o TPI está fazendo. Se concordassem, teriam de aconselhar seus clientes a interromper a transferência de armas para Israel.
Tradução: Pedro Davoglio
A Lei de Controle de Exportação de Armas [Arms Export Control Act] de 1976 alterou a Lei de Assistência Estrangeira [Foreign Assistance Act ] de 1961 e a Lei de Vendas Militares Externas [Foreign Military Sales Act] de 1968. As três legislações representam a disputa política sobre a construção de uma ordem de defesa global liderada pelos EUA que dependa em primeiro lugar da assistência militar estadunidense na forma de equipamentos, munições e consultorias—e não de ocupações militares temporárias, como as que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, programas de espionagem não relatados ou da “nova intervenção militar dos EUA”, como na Guerra da Coreia. Para detalhes sobre essas legislações, ver: Congressional Research Service, “Transfer of Defense Articles: US Sale and Export of US-Made Arms to Foreign Entities”, mar. 2023. Disponível em: https://crsreports.congress.gov/product/pdf/R/R46337/5.
↩“A Lei de Assistência Estrangeira [Foreign Assistance Act] de 1974 alterou a Lei de Vendas Militares Externas [Foreign Military Sales Act] para incluir um limite de US$ 25 milhões para artigos e serviços de defesa. A Lei de Assistência à Segurança Internacional e Controle de Exportação de Armas [International Security Assistance and Arms Export Control Act] de 1976 acrescentou um limite de US$ 7 milhões em casos de equipamentos de defesa relevantes. A Lei de Segurança Internacional e Cooperação para o Desenvolvimento [International Security and Development Cooperation Act] de 1981 alterou o limite de US$ 7 milhões para US$ 14 milhões e o limite de US$ 25 milhões para US$ 50 Milhões. A Lei de Segurança Internacional e Cooperação para o Desenvolvimento [International Security and Development Cooperation Act] de 1980 incluiu serviços de projeto e construção com um limite de US$ 200 milhões”. Ver: Congressional Research Service, “Arms Sales: Congressional Review Process”, ago. 2024, nota 8. Disponível em: https://sgp.fas.org/crs/weapons/RL31675.pdf
↩
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