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  1. A verdadeira armadilha da dívida

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    Exibindo um broche em formato de motosserra na lapela de seu terninho verde, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva, aproveitou de uma coletiva de imprensa em Washington para declarar seu apoio ao atual governo argentino: “o país terá eleições, como vocês sabem, em outubro, e é muito importante que eles não abandonem a vontade de mudança.” Para não deixar dúvidas, acrescentou: “até agora, não parece o caso. Não vemos esse risco se materializando. Mas eu pediria que a Argentina mantenha o rumo.”1A Argentina terá eleições legislativas em 26 de outubro. Metade dos assentos na Câmara dos Deputados e um terço dos assentos no Senado serão disputados. Algumas províncias também devem eleger os deputados locais. Na Argentina, as eleições nacionais e locais podem acontecer tanto simultaneamente quanto em datas separadas.

    Após endossar publicamente as conquistas econômicas do governo de Javier Milei, Georgieva aprovou um novo resgate financeiro do FMI ao país, no valor de USD 20 bilhões—apesar de a Argentina não ter pagado um único dólar do empréstimo de USD 45 bilhões concedido em 2018, durante a presidência de Mauricio Macri, e formalizado em 2022 por Martín Guzmán através de um Extended Fund Facility (EFF).2Até fevereiro de 2025, a Argentina havia pagado USD 12,5 bilhões ao FMI (<)a href='https://www.clarin.com/economia/pagaron-fmi-us-12500-millones-intereses_0_U70hDEF2tL.html'(>)em juros(<)/a(>), mas nada do valor principal. A soma dos dois últimos empréstimos assegura à Argentina a posição incontestável de maior devedora do FMI, respondendo por 34% de todo o crédito atualmente concedido pelo Fundo. São cerca de USD 65 bilhões em principal, sem contar os juros. O valor é quase quatro vezes maior que o devido pela segunda colocada, a Ucrânia, país que enfrenta uma guerra que já dura anos.

    O relacionamento tóxico da Argentina com o FMI tem uma história longa e complicada. O país foi o último da América Latina a aderir à instituição, em 1956, e nos últimos 45 anos tem sido co-governado pelo Fundo por meio de um vaivém de Stand-by Arrangements (SBA), além de três empréstimos via EFF. Em outras palavras, quase dois terços da história econômica recente da Argentina se desenrolaram sob o olhar atento—e frequentemente intervencionista—do FMI.

    No capítulo mais recente, o presidente Javier Milei, apesar da pose de libertário, evoca um particular sentimento de déjà vu. Sua equipe econômica está longe de representar uma novidade para a política argentina. Ao contrário, é formada por um familiar elenco de tecnocratas que participaram de diversos experimentos neoliberais do passado—muitos dos quais desembocaram em crises espetaculares. Federico Sturzenegger, por exemplo, atual ministro da Desregulamentação e Transformação do Estado que presenteou Georgieva com o broche de motosserra, teve um papel central como secretário de Política Econômica durante o infame megacanje de 2001: um controverso swap de dívida que aprofundou a instabilidade financeira da Argentina e ajudou a desencadear o pior colapso econômico da história nacional.3Sturzenegger foi acusado formalmente por seu suposto envolvimento na operação do (<)em(>)megacanje(<)/em(>) quando era funcionário do Ministério da Economia no início dos anos 2000. Segundo as acusações, ele participou do planejamento e da execução do swap da dívida sem divulgar os riscos e as consequências adversas para o Estado argentino. Sturzenegger, junto a outros servidores e banqueiros internacionais, teria realizado manobras financeiras que priorizaram um alívio temporário da dívida externa, mas que, no fim, agravaram a situação fiscal do país. Após 15 anos de disputa legal, durante o governo Macri, o judiciário arquivou as acusações. Macri nomeou Sturzenegger como presidente do Banco Central quando ele ainda estava sob investigação, em 2016 (CIS, 2014; Infobae, 2016). Outras nomeações também reforçam esse mesmo padrão: figuras do governo Menem (1989-1999), como Guillermo Francos, e até Martín Menem, sobrinho do ex-presidente e atual presidente da Câmara dos Deputados, são personagens proeminentes do governo Milei.

    Da gestão de Macri (2015-2019), voltaram nomes como Patricia Bullrich, Santiago Bausili e, mais notavelmente, Luis Caputo. No passado, Caputo e Bausili atuaram como diretores do JP Morgan e do Deutsche Bank e foram sócios na consultoria Anker Latinoamérica. Em meio a tamanha reciclagem de quadros, a irônica composição do governo de Milei é bem ilustrada pelas antigas declarações do atual presidente sobre Caputo. Numa entrevista de 2018, Milei acusou Caputo de ser um “vendido” que teria “queimado USD 15 bilhões do FMI” e causado “um dos maiores desastres da história do Banco Central”. Hoje, Caputo é Ministro da Economia—e Bausili, seu antigo parceiro de negócios, é presidente do Banco Central.

    Nesse contexto, é inevitável questionar a decisão do FMI de aprovar mais uma linha de crédito para a Argentina. Emprestar novos bilhões de dólares à mesma equipe que, mais de uma vez, conduziu o país a crises econômicas severas só pode ser um ato de fé ou um sintoma de amnésia institucional. De fato, se implementado com sucesso, o novo empréstimo pode reescrever a história econômica da Argentina. Mas, em caso de fracasso, as consequências serão históricas não apenas para o país, mas para o próprio FMI. A dimensão da dívida argentina junto ao FMI representa riscos sistêmicos não só para o país, mas também para Fundo. Em uma avaliação ex-post do SBA de 2018, publicada em dezembro de 2021, o próprio FMI reconheceu que o empréstimo “criou riscos financeiros e reputacionais substanciais.” Nessa nova jogada de risco, a motosserra pode acabar cortando para os dois lados.

    Riscos reputacionais

    O sociólogo italiano Giovanni Arrighi teorizou que todo ciclo de acumulação liderado por uma potência hegemônica inclui uma fase inicial de expansão material e financeira, seguida por outra de estagnação e crise que, por sua vez, tende a provocar disrupções na governança global.4Arrighi, G. (1994). (<)em(>)The long twentieth century: Money, power, and the origins of our tim(<)/em(>)e. Verso. Disponível em português como (<)em(>)O longo século XX(<)/em(>), publicado pela editora Contraponto. Nos termos de Arrighi, hegemonia se refere à habilidade de determinado Estado de liderar e governar um sistema formado por diversas nações soberanas—o que, em geral, demanda que esse Estado tenha sucesso em reconfigurar o funcionamento do sistema em si.  

    Hegemonia, portanto, não é simplesmente sinônimo de dominação. Enquanto a dominação se apoia na coerção, a hegemonia é reforçada por uma liderança intelectual e moral, além da capacidade de acomodar diferentes conflitos em termos pretensamente universais. Um poder só é hegemônico quando tem legitimidade. A hegemonia global, portanto, emerge não só das relações de poder entre Estados, mas também da capacidade de um determinado Estado de representar interesses coletivos. Para Arrighi, a reivindicação dos Estados Unidos ao poder hegemônico global no pós-guerra se apoiou na liderança ideológica exercida por instituições como o FMI, o Banco Mundial e a própria ONU, criadas com o objetivo de promover a paz, fomentar o desenvolvimento econômico e conter a influência soviética. À medida que os EUA reorganizavam o “mundo livre”, as instituições de Bretton Woods e a ONU se tornaram instrumentos de sua hegemonia e, fora desse papel, tiveram suas funções bastante limitadas.

    Os EUA são os mais poderosos dos 191 países-membro do FMI. O país detém 16,5% dos votos da instituição: na prática, pode vetar até mesmo as decisões mais importantes do Fundo, que normalmente exigem uma maioria de 85% para serem aprovadas. A concentração do poder decisório revela a influência de um restrito grupo de economias poderosas sobre a atuação do Fundo: os cinco maiores membros somam 38,05% dos votos, enquanto os dez maiores somam 52,54%.

    Mais de oito décadas depois de sua criação, os sucessivos fracassos do FMI em estabilizar a economia global e oferecer caminhos de desenvolvimento para países do Sul Global, a exemplo da própria Argentina, são ilustrativos dos riscos financeiros e reputacionais aos quais a instituição está sujeita.5International Monetary Fund (IMF). (2021). Ex-post evaluation of exceptional access under the 2018 Stand-By Arrangement—Press release and staff report. (<)a href='https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2021/12/22/Argentina-Ex-Post-Evaluation-of-Exceptional-Access-Under-the-2018-Stand-By-Arrangement-511289'(>)https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2021/12/22/Argentina-Ex-Post-Evaluation-of-Exceptional-Access-Under-the-2018-Stand-By-Arrangement-511289(<)/a(>) Considerando o papel crescente da China como emprestador de última instância e a expansão de uma rede sinocêntrica de bancos de desenvolvimento, esse não é um problema de menor importância.

    Primeiros encontros

    Em 1944, a Argentina foi excluída dos acordos de Bretton Woods devido a preocupações com sua falta de alinhamento político com os EUA e sua neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. Durante a chamada Revolución Libertadora, a derrubada de Juan D. Perón do poder finalmente autorizou a Argentina a entrar para o clube.

    A longa história da Argentina com o FMI é marcada por sucessivos ciclos de endividamento, crise e reestruturação da dívida. Desde 1958, o país celebrou mais de vinte acordos com o Fundo—principalmente SBAs e EFFs—, totalizando mais de 133 bilhões em direitos especiais de saque (DES), o equivalente a cerca de USD 177 bilhões, dos quais 60% foram efetivamente desembolsados. Cada um desses acordos foi acompanhado pela imposição de políticas macroeconômicas de austeridade, controle da inflação, liberalização comercial e diversas exigências de reformas estruturais. 

    Os primeiros acordos com o Fundo, assinados entre as décadas de 1950 e 1960, tinham valores mais modestos e foram firmados com o objetivo declarado de promover a estabillização monetária e a acumulação de reservas. Na prática, acabaram introduzindo na Argentina o estilo de disciplina fiscal preconizado pelo FMI e promovendo a destruição de ativos estratégicos para o desenvolvimento econômico do país, como a rede ferroviária.6No início dos anos 1940, a Argentina tinha a maior rede ferroviária das Américas, totalizando 47 mil quilômetros. O primeiro acordo com o FMI, celebrado em 1958, exigia a eliminação da maior parte das ferrovias.

    Entre 1976 e 1983, uma ditadura militar apoiada pelos EUA e orquestrada por Kissinger foi responsável pelos primeiros experimentos de neoliberalização da economia do país—entre eles, a decisão do Banco Central da Argentina de estatizar cerca de USD 17 bilhões em dívidas privadas. A medida abriu caminho para a crise da dívida dos anos 1980, seguida pelo início do processo de desindustrialização do país e por políticas de ajuste estrutural que caminhavam de mãos dadas com medidas de repressão social. A crise da dívida latino-americana se deu num contexto de escalada das taxas de juro dos EUA, levando a Argentina a firmar uma série de Stand-by Arrangements com valores cada vez maiores. Os acordos incluíam exigências como a desvalorização cambial, a redução do setor público e o forte controle salarial—medidas que contribuíram com pressões recessivas em meio a um período de crescente inflação, instabilidade política e descontentamento social.

    Na década de 1990, a Argentina aderiu ao Consenso de Washington e embarcou em um período que viria a ser conhecido como “a era de relações carnais” com os EUA. As reformas de Carlos Menem, em especial a política cambial de conversibilidade que atrelava o valor do peso ao dólar, foram financiadas pelo SBA de 1991 e o EFF de 1992. As contrapartidas impostas pelo FMI incluíam privatizações em massa, liberalização comercial e consolidação fiscal. Já no final dos anos 1990, as vulnerabilidades se aprofundaram. O SBA de 1996 e o EFF de 1998 visavam sustentar a política cambial, mas o aumento crescente da dívida externa, somado aos choques externos da época, prepararam o terreno para uma crise devastadora.

    Na virada do milênio, enquanto a economia Argentina entrava em colapso, o país assinou um novo SBA no valor de DES 16,9 bilhões, seguido por uma Linha de Reserva Suplementar de DES 6,1 bilhões. O FMI exigiu a manutenção da austeridade fiscal e da política cambial, bem como uma reforma das leis trabalhistas. Essas medidas aprofundaram ainda mais a crise, culminando na moratória de 2001, a maior da história mundial até então.

    Em 2003, durante a transição pós-crise, a Argentina assinou mais dois SBAs para estabilizar a economia e iniciar a reestruturação da dívida. A política econômica, no entanto, começou a mudar de rumo, abandonando a austeridade e adotando caminhos mais pragmáticos de recuperação econômica. Em dezembro de 2005, o presidente Néstor Kirchner fez um anúncio histórico: a dívida de aproximadamente USD 9,9 bilhões com o FMI havia sido integralmente quitada. Kirchner ressaltou o papel do Fundo na crise econômica do país, afirmando que a Argentina estava “enterrando um passado ignóbil” de políticas econômicas impostas de fora para dentro. No ano seguinte, o término da relação foi simbolicamente representado pelo fechamento do escritório do FMI em Buenos Aires.

    “Voltaremos!”

    Kristalina Georgieva não foi a primeira diretora do FMI a expressar publicamente suas preferências políticas para a Argentina. Já em 2020, Mauricio Claver-Carone, então diretor-executivo dos EUA no Fundo e conselheiro de confiança do primeiro governo Trump para a política com a América Latina, havia declarado que “tudo que Trump fez no FMI foi para ajudar Macri e evitar que o peronismo voltasse à Casa Rosada”.

    Em 2018, sob a presidência de Mauricio Macri, a Argentina recorreu ao FMI para pedir um empréstimo de USD 57 bilhões—o maior volume já aprovado na história da instituição. Há quem diga que, apesar da evidente insustentabilidade, o novo acordo foi firmado para apoiar a reeleição de Macri em 2019. A impressão de interferência política deixada pelas negociações de 2018 maculou as expectativas de neutralidade da relação entre o FMI e a Argentina. 

    O empréstimo visava restaurar a confiança dos mercados no país, mas impunha duras condições à política econômica, como o congelamento da base monetária, um forte ajuste fiscal, e a liberalização da taxa de câmbio. O acordo foi formalizado a portas fechadas e em tempo recorde. A evasão do escrutínio público ensejou dúvidas acerca da legitimidade e da própria legalidade dos termos negociados. As políticas preconizadas pelo acordo não só pioravam a recessão e agravavam desigualdades sociais, fracassando no objetivo de estabilizar a economia, mas também violavam a legislação argentina e o próprio estatuto do FMI.

    De acordo com a Constituição argentina, grandes acordos financeiros internacionais—especialmente aqueles que envolvem a dívida soberana—devem ser aprovados pelo Congresso. No entanto, o governo Macri negociou os USD 57 bilhões (posteriormente reduzidos para USD 45 bilhões) sem obter ratificação prévia do legislativo.7A (<)em(>)Coordinadora de Abogadxs de Interés Público(<)/em(>) liderou as disputas jurídicas para declarar a nulidade do empréstimo de 2018. Apesar da ilegalidade, em 2022, Martín Guzmán, ministro da Economia de Alberto Fernández, regularizou os termos negociados por Macri por meio de um EFF aprovado pelo Congresso de maneira retroativa.

    Diversos especialistas, inclusive antigos servidores do FMI, denunciaram que o empréstimo violava uma série de previsões do estatuto do Fundo. Grande parte dos desembolsos de 2018 foi usada para sustentar o valor do peso argentino e financiar saídas de capital. O artigo I do estatuto do FMI prevê que a instituição deve garantir a estabilidade econômica e do balanço de pagamentos. O artigo VI, por sua vez, declara que “um membro não pode usar os recursos gerais do Fundo para cobrir uma saída de capital grande ou sustentada”. Mesmo assim, o próprio Banco Central da Argentina constatou que a maioria dos recursos foi utilizada para pagar investidores estrangeiros e viabilizar a retirada de capitais do país, ao invés de financiar investimentos produtivos ou reformas voltadas à mudança estrutural da economia.8Banco Central de la República Argentina (BCRA). (2020). Mercado de cambios, deuda y formación de activos externos 2015–2019. (<)a href='https://www.bcra.gob.ar/Noticias/publicacion-de-informe-mercado-cambios-deuda-2015-2019.asp'(>)https://www.bcra.gob.ar/Noticias/publicacion-de-informe-mercado-cambios-deuda-2015-2019.asp(<)/a(>) A avaliação ex-post do próprio FMI menciona o termo “fuga de capitais” vinte e uma vezes e atesta que isso “sabotou a recomposição das reservas internacionais”.

    Outras críticas ressaltaram que o acordo carecia de um plano macroeconômico crível para uma trajetória sustentável da dívida argentina. O próprio Fundo, na avaliação ex-post, admitiu que o SBA de 2018 “criou significativos riscos financeiros e reputacionais.” O documento do FMI termina listando cinco grandes “lições” para acordos futuros. Pouco mais de meia década depois, não parece que os aprendizados foram levados em consideração nas novas negociações com Milei.

    Primeiro, é essencial que [os planos] sejam baseados em premissas realistas. Segundo, os programas devem ser adaptados às circunstâncias do país, incluindo considerações de economia política, que podem justificar o uso de medidas não convencionais caso as políticas macroeconômicas tradicionais não sejam eficazes. Terceiro, a análise dos riscos subjacentes às principais decisões tomadas quando se faz uso do Exceptional Access Framework (EAF) deve ser claramente discutida e comunicada ao Conselho Executivo. Quarto, o compromisso firmado, que deve ser entendido em um sentido social mais amplo, não pode impedir uma avaliação honesta das alternativas de política econômica ou dos resultados do programa. Quinto, uma comunicação efetiva com o público é essencial para garantir o apoio necessário em diferentes esferas da sociedade e possibilitar um efeito catalisador das políticas. Por fim, deve haver uma repartição apropriada dos encargos associados ao custo dos acordos de EAF.

    O fracasso de Martín Guzmán

    Em 2021, Alberto Fernández encarregou o ministro da Economia Martín Guzmán de renegociar o polêmico empréstimo de Macri. Em meio à pandemia e à guerra na Ucrânia e diante de um panorama financeiro internacional em constante transformação, a negociação liderada por Guzmán foi alvo de duras críticas. O ministro não garantiu reduções substanciais nos juros ou no valor principal do acordo. Além disso, mais uma vez, as tratativas com o Fundo foram notavelmente discretas, excluindo até mesmo lideranças políticas de alto escalão e autoridades do corpo diplomático argentino, minando, assim, qualquer possibilidade de construção de um consenso interno.

    Apesar de denunciar a “jogatina financeira” do FMI e acusar a instituição de aprovar um acordo “fraudulento” e motivado por questões políticas, Martín Guzmán formalizou o problemático empréstimo de 2018 por meio de um EFF, basicamente substituindo a dívida original por uma nova, sem mudanças significativas nos termos do financiamento. O SBA original, duvidoso do ponto de vista jurídico, foi efetivamente legalizado por Guzmán, que se limitou a aceitar o adiamento dos pagamentos, sem contestar a validade do acordo em si. No mais, o ministro também se encarregou de subscrever a Lei 27.612, popularmente chamada de “Lei Guzmán”, que ressalta a necessidade de aprovação do Congresso para novos acordos financeiros internacionais, em especial aqueles firmados com o FMI.

    Guzmán tentou garantir um ajuste fiscal mais gradual, que conciliasse a recomposição das reservas com a manutenção dos gastos sociais—termos mais brandos em comparação com programas do FMI anteriores. No entanto, nenhum dos objetivos econômicos do EFF foi atingido. A estratégia conciliadora de Guzmán foi um fracasso e, em julho de 2022, o ministro renunciou. A inflação, que já estava alta, saiu completamente do controle e ultrapassou os 200% ao ano. A estratégia conciliadora de Guzmán foi um fracasso. A frustração pública com o aumento dos preços e a queda no padrão de vida preparou o terreno para a vitória eleitoral de Javier Milei no final de 2023. Nem mesmo a redução de sobretaxas em 2024, uma das principais bandeiras de Guzmán durante sua gestão da economia, pode ser lida como vitória tardia do ex-ministro: longe de representar uma solução para os problemas de legitimidade da dívida argentina com o FMI, a cifra anual a ser economizada denota uma disputa por troco de padaria e serve de cortina de fumaça para desviar as atenções do real problema.

    A própria “Lei Guzmán” se revelou bastante simbólica: Milei conseguiu contorná-la já em 2025 por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência, possibilitando a aprovação de um novo EFF no valor de DES 15,4 bilhões, cerca de USD 20 bilhões. A falta de resistência política à aprovação unilateral de um acordo tão substancial reflete a fragilidade de um arcabouço institucional argentino corrupto e decadente. 

    Uma segunda chance para Luis Caputo

    O EFF concedido a Milei tem duração prevista de 48 meses e desembolsos totais de USD 20 bilhões, cifra que equivale a 479% das cotas efetivamente integralizadas pela Argentina no FMI. O desembolso imediato de USD 12 bilhões se soma à dívida de USD 45 bilhões já existente. O novo acordo tem o objetivo de estabilizar a moeda argentina e viabilizar o pagamento de obrigações urgentes da dívida. A primeira revisão do acordo estava prevista para meados de junho deste ano—ao lado de um novo desembolso de aproximadamente USD 2 milhões—mas, já ciente de que as metas estabelecidas não serão cumpridas até lá, o FMI adiou o procedimento para o fim de julho. O episódio reforça, mais uma vez, a hipótese de que o empréstimo está longe de ser motivado por questões técnicas ou econômicas, mas representa um ato de pura discricionaridade política do Fundo. 

    Os USD 12 bilhões de dólares já desembolsados foram utilizados para adquirir passivos do Banco Central da Argentina, transferindo recursos do Tesouro—ou seja, do Ministério da Economia—para a autoridade monetária. Com esse “truque” financeiro, o valor total das reservas permaneceu estável: uma vez que são registrados como “depósitos vinculados”, recursos mantidos pelo Tesouro são contabilizados como reservas brutas. Ao serem transferidos para os ativos do Banco Central, esses recursos passam a ser registrados como reservas líquidas, disponíveis para eventuais intervenções da política cambial, que opera sob um regime de câmbio administrado. Isso abre novas possibilidades para operações de carry trade em um contexto de sobrevalorização do peso argentino, cenário bastante propício para futuras fugas de capitais. 

    No que diz respeito ao pagamento da dívida, o FMI enfatiza a necessidade de que a Argentina reconstrua suas reservas internacionais, que registram atualmente níveis baixíssimos. O Fundo ainda avalia que a retomada do acesso aos mercados internacionais e a gestão dos riscos globais demandam ajustes nos regimes cambial e monetário, incluindo uma remoção planejada e  gradual dos controles cambiais em vigor.

    Segundo o Índice Big Mac da The Economist, no início de 2025, o peso argentino era a moeda mais sobrevalorizada do mundo, registrando uma apreciação de 56,7% sobre o “valor justo” em relação ao dólar. Esse fenômeno vem contribuindo para uma desaceleração na liquidação das exportações de commodities. Em resposta às preocupações do agronegócio argentino, o ministro da Economia Luis Caputo sugeriu que os produtores façam uso de operações de carry trade para incrementar seus ganhos. Associações rurais do país reagiram à declaração do Ministro com reservas: 

    Nosso setor produtivo recebeu declarações preocupantes por parte de autoridades nacionais. Primeiro, fomos aconselhados a especular no mercado financeiro—uma atividade alheia à nossa missão principal. Nosso trabalho é gerar riqueza real e exportável, o que permitiu, ao longo dos anos, que sucessivos governos se apropriassem de um total de 200 bilhões de dólares.

    Ainda não está claro se e como o governo argentino conseguirá recapitalizar as reservas do Banco Central de forma sustentável, sem recorrer a mais endividamento externo. Até o momento, o governo tem feito uso de um esquema de blanqueo de capitales: regularização de ativos não declarados com anistia tributária. Essa política é amplamente criticada por viabilizar a lavagem de dinheiro em grande escala. Ao todo, USD 32 bilhões já foram blanqueados: USD 22 bilhões correspondentes a depósitos em espécie por meio de Contas Especiais de Regularização (CERA) e Agentes de Liquidação e Compensação (ALyC) e USD 10 bilhões referentes a outros ativos, como imóveis, veículos e ações. Coincidência ou não, Mariano Cúneo Libarona, atual o ministro da Justiça de Milei, assinou a defesa criminal de alguns dos mais destacados narcotraficantes da Argentina.

    Washington, Pequim e Buenos Aires

    Durante sua visita a Buenos Aires em abril deste ano, Scott Bessent, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, expressou forte apoio às reformas econômicas implementadas por Javier Milei, destacando o ajuste fiscal e as políticas monetária e cambial. Bessent enfatizou que o novo EFF do FMI, ao lado de empréstimos adicionais do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, são essenciais para a estabilização da economia argentina.

    Apesar do apoio às reformas, Bessent não omitiu sua preocupação com a crescente influência da China sobre a América Latina, descrevendo os empréstimos chineses para países do Sul Global como “predatórios”. O secretário sugeriu que a Argentina encerre sua linha de swaps cambiais com a China assim que acumular reservas suficientes—o valor total da linha é avaliado em USD 20 bilhões, dos quais USD 5 bilhões foram ativados até o momento. A figura a seguir mostra o impacto do swap cambial chinês para as reservas do Banco Central.

    Em resposta, a Embaixada da China em Buenos Aires lançou uma nota manifestando seu “profundo descontentamento” com as declarações de Bessente ressaltando que as parcerias da China com países em desenvolvimento, incluindo a Argentina, são mutuamente benéficas e livres de condicionalidades políticas. Essa troca de farpas sublinha o complexo equilíbrio das relações argentinas com os EUA e a China e reflete as tensões geopolíticas entre as duas potências. 

    A crítica de Bessent ao swap cambial de USD 5 bilhões com a China chega a ser jocosa quando vista ao lado dos elogios do secretário ao crescente endividamento da Argentina com o FMI, que já soma USD 65 bilhões. A discrepância entre os dois números impõe um ângulo alternativo para a análise do secretário do Tesouro americano: onde está a verdadeira armadilha da dívida—no Oriente ou no Ocidente?

    Um mês depois da visita de Bessent, em 16 de maio, o próprio Mauricio Claver-Carone, responsável pelo maior empréstimo da história do FMI durante o governo Macri, declarou: “o país depende do swap para poder sobreviver economicamente. Ou seja, a Argentina não é livre”. Em resposta, a embaixada da China classificou a fala de Claver-Carone como “cheia de clichês, preconceitos e manipulações característicos da Doutrina Monroe”.

    O próprio FMI reconhece que as garantias de aportes da China são vitais para a estabilidade econômica da Argentina, especialmente para refinanciar os USD 5 bilhões ativados da linha de swap com o Banco Central chinês e manter os investimentos do país asiático em projetos de construção de usinas hidrelétricas no país. A avaliação do Fundo contradiz diretamente a retórica de Bessent e Clever-Carone, revelando o descompasso entre os objetivos políticos dos EUA, o FMI e a realidade econômica da Argentina. 

    Enquanto isso, o Banco Central da Argentina vem declarando, tanto em reuniões oficiais quanto em conversas informais, que espera receber os USD 2 bilhões do FMI condicionados à revisão do acordo (agora adiada para julho) independentemente de ter atingido a meta de reconstrução das reservas internacionais incialmente impostas pelo Fundo. O governo acredita que os objetivos de cortar aposentadorias, eliminar ministérios estratégicos e encolher a classe média são suficientes para cumprir com o programa econômico imposto. Até o momento, no entanto, o destino do dinheiro economizado com tais medidas não está claro, já que o saldo positivo não vem sendo usado para recompor as reservas.

    Há uma ironia histórica por trás da disputa por legitimidade entre os credores da Argentina. Os experimentos neoliberais impostos pela ditadura de 1976, apoiada pelos EUA, e a posterior adesão ao Consenso de Washington na década de 1990 são grandemente responsáveis pelo processo de desindustrialização do país. Desde então, a Argentina se tornou uma economia exportadora de commodities: a participação da indústria da transformação no PIB caiu de cerca de 50% nos anos 1970 para cerca de 20% nos anos 2000. Ou seja, foi justamente o receituário neoliberal dos EUA que levou a Argentina a depender do mercado chinês. 

    Atualmente, a pauta exportadora—e principal fonte de divisas—da Argentina consiste principalmente de commodities como soja, carne e cevada. Em 2009, a China se tornou o segundo maior destino das exportações do país. Nos últimos anos, no entanto, essa relação vem enfraquecendo. Entre 2022 e 2023, as exportações para a China caíram de USD 7,9 bilhões para USD 5,2 bilhões. Em 2024, a China figurava em quarto lugar entre os maiores parceiros comerciais da Argentina e, em 2025, as exportações entre janeiro e maio ainda não haviam ultrapassado a cifra de USD 1 bilhão.9INDEC (2025). Estadísticas del Comercio Exterior. (<)a href='https://comex.indec.gob.ar/#/'(>)https://comex.indec.gob.ar/#/(<)/a(>)

    Mesmo assim, a China ainda é um parceiro comercial crítico, em particular para produtos como soja e carne—que não encontram demanda vinda dos EUA devido à forte competição com a produção norte-americana desses bens. Isso significa que, para conseguir honrar a dívida com o FMI, a Argentina depende do comércio com a China, não com os EUA. Ao mesmo tempo, a crescente dependência da exportação de commodities e da importação de produtos chineses manufaturados vem aumentando o déficit no comércio bilateral com Pequim. Em tempos de crises no balanço de pagamentos, os swaps cambiais têm sido fundamentais para manter a relação em pé. Após a renúncia de Guzmán, foi justamente a linha de swap chinesa que possibilitou à Argentina honrar o pagamento dos juros devidos ao FMI em 2023.

    Em meio a tudo isso, a estratégia chinesa de investimentos em infraestrutura no país, a exemplo da construção de novas hidrelétricas na Patagônia, tem mostrado retornos de curto prazo limitados. Até 2024, apenas 20% das obras da Usina Néstor Kirchner e 45% da Usina Jorge Cepernic estavam concluídas. Ademais, os EUA vetaram projetos nucleares com apoio chinês no país10Haro Sly, M. J., & Hurtado, D. (2023). Hacia la convergencia de trayectorias en ciencia y tecnología que se bifurcan: Desafíos de la cooperación de Argentina y China. In M. Andrés (Ed.), Argentina-China. 50 años de relaciones diplomáticas: Cooperación, desarrollo y futuro (pp. 115–133). Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovación y Academia China de Ciencias Sociales. (<)a href='https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/c_2023-05-08-argentina-china.pdf'(>)https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/c_2023-05-08-argentina-china.pdf(<)/a(>) e os projetos vinculados à adesão da Argentina à Iniciativa Cinturão e Rota ainda não saíram do papel. Esse cenário coloca em questão tanto a eficácia da estratégia chinesa em si quanto a sustentabilidade da dependência financeira argentina em relação a Pequim. 

    O contexto geopolítico e geoeconômico argentino sublinha os desafios à atuação do FMI como emprestador de última instância para países com características semelhantes. As crises de dívida que o Fundo se propõe a gerir—causadas, muitas vezes, por ele próprio—estão cada vez mais entrelaçadas com os riscos financeiros e reputacionais enfrentados pela própria instituição. 

    Como ressalta a teoria de Giovanni Arrighi, hegemonia envolve não apenas dominação coercitiva, mas também liderança intelectual e moral—refletida na capacidade de moldar as regras do sistema internacional para promover caminhos de desenvolvimento que representem interesses coletivos, não apenas nacionais. O relativo declínio da hegemonia dos EUA e o fracasso das instituições de Bretton Woods em promover modelos de desenvolvimento sustentáveis colocam o futuro da governança global em questão. Se, por um lado, o crescente papel da China como emprestador alternativo ao FMI e a ascensão de instituições financeiras sinocêntricas não romperam, até agora, com a lógica centro-periferia, por outro, já sinalizam que uma nova narrativa está surgindo.

    Os impactos indiretos causados pela disputa hegemônica sobre a Argentina, ao mesmo tempo em que minam a capacidade da China de concretizar seus projetos no país,  revelam a insuficiência da estratégia dos EUA de isolar Pequim. Paralelamente, o clima político doméstico restringe ainda mais a margem de manobra argentina nesse ambiente geopolítico conturbado: em um contexto de crescente instabilidade internacional, as reformas promovidas por Milei—alinhadas com a ortodoxia do FMI—aprofundaram o padrão de dependência da dívida externa do país. A baixa participação eleitoral nas eleições regionais de 2025 é reflexo do sentimento generalizado de desilusão com o sistema político e da crescente perda de confiança do povo argentino sobre a viabilidade de uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo.

    Até o momento, nenhuma força política relevante no cenário doméstico foi capaz de articular uma estratégica clara e pragmática para escapar da armadilha da dívida imposta por instituições financeiras ocidentais. Os partidos da oposição ao atual governo, incluindo diversas correntes do peronismo, têm se limitado à condenação retórica do empréstimo mais recente do FMI, sem propor alternativas concretas ou mobilizar uma resistência significativa. A classe política argentina parece não ter ideia de como construir um novo caminho de desenvolvimento e soberania econômica para o país. Por mais que movimentos sociais como os que lideraram a rebelião popular de 2001 sigam dispersos, os ventos da mudança ainda sopram desde as bases.

    Tradução: João Marcolin

  2. A jabuticaba financeira

    Comentários desativados em A jabuticaba financeira

    Em 2024, a atuação atipicamente contida do Banco Central do Brasil (BCB) no câmbio resultou em uma forte desvalorização do real frente a outras moedas emergentes, pressionando a inflação, especialmente no setor de alimentos – atualmente, o principal fator de desaprovação do governo Lula. Já em setembro do mesmo ano, para conter essa inflação, a autoridade monetária passou a elevar a Selic, que alcançou o patamar de taxa de juros real mais alta do mundo em janeiro de 2025, impondo um freio ao crescimento econômico.

    Contrariando a visão convencional que trata tais decisões como meramente técnicas, argumenta-se aqui que a atuação do BCB reflete os interesses de uma hegemonia financeira que subordina o Estado e os mercados à lógica do capital financeiro—em detrimento do endividamento público, das receitas do empresariado e do consumo da classe trabalhadora. 

    A apropriação financeira do Estado se expressa, sobretudo, na fixação de uma taxa Selic excessivamente elevada, que encarece o custo da dívida pública em benefício dos detentores de títulos. Já a extração de excedente do setor privado produtivo e das famílias ocorre por meio da prática de preços abusivos no mercado de crédito, que comprometem tanto as margens empresariais quanto o poder de compra da população. 

    As implicações políticas e econômicas dessa dinâmica são profundas: o controle dos órgãos públicos pela hegemonia financeira resulta numa verdadeira “bolsa-rentismo”; a cartelização do mercado de crédito provoca o aumento contínuo do endividamento e da inadimplência de empresas e indivíduos; e o câmbio, estruturalmente sobrevalorizado—e pontualmente desvalorizado pela elite financeira como instrumento de pressão política—aprofunda a tendência à desindustrialização e à primarização da economia brasileira.

    A hegemonia financeira que rege o país resulta de uma trajetória institucional singular em relação às práticas usuais de outros países, a ponto de se dizer que somos uma jabuticaba.1Resende, A. L. 2011, 16 de junho. “Juros: Equívoco ou Jabuticaba?” Jornal Valor Econômico 16 (06). De fato, o Brasil nunca conseguiu implementar plenamente as premissas ortodoxas que orientam as práticas internacionais de órgãos públicos como o Banco Central e o Tesouro Nacional, diferenciando-se tanto de países avançados quanto de outras nações em desenvolvimento. Mecanismos de indexação, a ausência de uma distinção clara entre o mercado monetário e o de títulos da dívida, além das elevadas taxas reais de juros, contrastam com o padrão observado em países centrais e economias emergentes, onde predominam a emissão de títulos prefixados, mercados segmentados e taxas de juros reais mais baixas.

    A financeirização brasileira e suas particularidades

    Para ilustrar como as particularidades institucionais destacam o Brasil no cenário internacional, o Gráfico 1 compara o retorno real da taxa básica de juros brasileira com o de outras nações em desenvolvimento que apresentam dinâmicas macroeconômicas semelhantes, em termos de dívida primária, inflação e risco-país. Os dados evidenciam como os juros no Brasil se diferenciam expressivamente dos três países selecionados. Um investidor que adquirisse títulos públicos brasileiros em 1999 teria acumulado, até o final de 2023, um retorno real mais de 4 vezes superior ao valor investido. Já na África do Sul, o retorno seria de 1,7 vezes, no México de 1,6 vezes e na Colômbia de 1,3 vezes.


    Explicar essa enorme disparidade requer abordar dois fatores centrais que moldaram a trajetória brasileira. O primeiro, de natureza interna, refere-se ao forte poder de coerção exercido pela elite nacional sobre as instituições públicas. O segundo, de caráter externo, está relacionado à posição periférica do Brasil no sistema monetário internacional. Notadamente, o arranjo brasileiro é fruto tanto da influência de uma elite econômica que, como destacou Florestan Fernandes, possui desde sua origem um forte caráter estamental—ou seja, adapta o Estado para atender a seus interesses particulares—2Fernandes, F. 2020. (<)em(>)A Revolução Burguesa: Ensaio de Interpretação Sociológica(<)/em(>). Editora Contracorrente. quanto da necessidade dessa elite de reagir aos dilemas típicos de países periféricos, como a crise da dívida externa e a inflação decorrente dela.

    Em termos históricos, dado o contexto da crise, derivada da brutal elevação dos juros de 1979 pelo Fed, proteger o capital nacional, mesmo que à custa da funcionalidade das instituições, preveniu a dolarização da economia brasileira, fenômeno observado na Argentina.3Paula, L. F. R. 1996. “Liquidez e Zeragem Automática: Crítica da Crítica(<)em(>).” Estudos Econômicos(<)/em(>) 26 (3): 411-439. http://www.revistas.usp.br/ee/article/download/116800/115354/. De fato, em momentos de crise e desvalorização das moedas nacionais, agentes econômicos tendem a buscar ativos denominados em moedas posicionadas no topo da hierarquia, como o dólar, que funciona simultaneamente como meio de pagamento internacional, reserva de valor e unidade de conta global.4Ver: Conti, Bernardo M. D.; Daniela M. Prates, e Dominique Plihon. 2014. “A Hierarquia Monetária e Suas Implicações para as Taxas de Câmbio e de Juros e a Política Econômica dos Países Periféricos.” Economia e Sociedade 23: 341–72.

    Assim, diante de um contexto inflacionário e da perda de atratividade dos títulos prefixados brasileiros, a indexação tornou-se um mecanismo essencial para preservar a demanda por ativos domésticos e conter a fuga de capitais para o dólar. Porém, esse processo deixou um legado: uma relação promíscua entre o capital financeiro e o Estado, peculiar ao Brasil, que levou as instituições públicas a se desviarem até mesmo das premissas ortodoxas em que alegam se basear, em prol de favorecer a rentabilidade financeira. Nesse percurso, Banco Central e Tesouro Nacional afastam-se progressivamente do objetivo do desenvolvimento nacional, priorizando cada vez mais os interesses rentistas do capital financeiro improdutivo. 

    O período de formação das jabuticabas (1964 e 1994)

    Entre 1964 e 1994, duas peculiaridades institucionais caracterizaram o sistema financeiro brasileiro: o mecanismo de zeragem automática, que elimina a função institucional do Banco Central de redirecionar capitais improdutivos para a esfera da produção; e a indexação de contratos, que substitui a prática comum de contratos prefixados. A implicação de ambos é a inviabilidade de uma política monetária efetiva no país, e o aumento do endividamento público. O mecanismo de zeragem automática, implementado pelo Banco Central e em vigor de 1976 a 1996, forneceu liquidez e rentabilidade em momentos em que a reprodução do capital na economia real era bastante arriscada. De maneira mais específica, eliminou o trade-off típico que orienta as decisões do sistema bancário tradicional: a escolha entre alocar recursos aos agentes da economia real (empresas e consumidores) por meio do mercado de crédito—que oferece retornos mais elevados (juros altos), mas envolve riscos de inadimplência—ou investir em títulos da dívida, mais seguros, mas com retorno reduzido. Com a zeragem automática, o capital ocioso era protegido e recebia rendimento garantido pelo Estado, sem a necessidade de correr riscos no mercado de crédito.

    Já a indexação teve início em 1964 com a emissão das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs), corrigidas pelo Índice Geral de Preços (IGP), e prosseguiu em 1986 com a introdução das Letras do Banco Central (LBCs), indexadas à Selic. Essas foram substituídas no ano seguinte pelas atuais Letras Financeiras do Tesouro (LFTs), também indexadas à Selic. Esses títulos foram lançados em um contexto de crescente pressão inflacionária.

    O processo que levou à criação das LFTs merece atenção especial, pois está diretamente relacionado à intensificação do rentismo no Brasil. As LFTs surgiram como resultado da sobreposição de competências no Banco Central, que passou a exercer funções tradicionalmente atribuídas ao Tesouro Nacional. Essa sobreposição favoreceu o rentismo ao impedir que o Tesouro realizasse um financiamento público mais barato, baseado em juros mais baixos, títulos prefixados e prazos mais longos, conforme as práticas internacionais. Esse fenômeno tem sido descrito como ‘efeito-contágio’,5Ver: Barbosa, F. D. H. 2006. “The Contagion Effect of Public Debt on Monetary Policy: The Brazilian Experience.” (<)em(>)Brazilian Journal of Political Economy(<)/em(>) 26: 231-238. ‘fusão de objetivos’ entre instituições6Dornelas, L. N. D., and F. H. B. Terra. 2021. (<)em(>)SELIC: O Mercado Brasileiro de Dívida Pública(<)/em(>). Campinas: Alínea. e, mais recentemente, como ‘falta de sinergia’.7Vieira Filho, L. A. M., and P. Rossi. 2023. “Dívida Pública e Falta de Sinergia entre o Tesouro e o Banco Central no Brasil no Período 2004/16.” (<)em(>)Brazilian Keynesian Review(<)/em(>) 9 (1): 29-52.

    Mais especificamente, em 1986, o Tesouro Nacional enfrentava dificuldades para captar recursos. Nesse contexto, o Banco Central interveio, lançando as LBCs, os primeiros títulos indexados à Selic com prazo de curtíssimo vencimento (overnight). Ao sinalizar ao mercado que a Selic se manteria elevada e ajustada em resposta à inflação, o Banco Central garantiu aos investidores margens atrativas, além de imunidade a riscos. Não por acaso, no ano seguinte ao seu lançamento, essas operações já representavam 71,3% da dívida mobiliária federal, subtraindo do Tesouro Nacional sua função de financiamento.8Empiricamente, isso pode ser constatado ao analisar a relação entre a base monetária e os títulos públicos da época. Segundo os autores: “Ele [o Banco Central] tinha explicitamente duas intenções diferentes, mas os meios foram concentrados na mesma operação: o controle dos juros via regulação da liquidez, um fim monetário; e o financiamento do governo, um fim fiscal. Dados dos fatores condicionantes da base monetária obtidos no Ipeadata mostram que, em 1986, as operações com títulos públicos contribuíram para a expansão da base monetária, fato que se inverteu a partir de 1987, com o aumento da aceitação das LBCs, contraindo a base monetária. Já a atuação do Tesouro contribuiu, de 1986 a 1990, para a expansão da base monetária, o que mostra que o Banco Central estava captando recursos tanto em função do controle da liquidez e dos juros, quanto para o financiamento do Tesouro” (Dornelas et al., 2021, p. 69). Ver também Fernandes, O. A., and F. A. Turolla. 2006. “Uma Revisão de Quarenta Anos da Dívida Mobiliária Interna (1964-2004).” Pesquisa & Debate 17 (2): 215-236.

    A predominância das LBCs forçou o Tesouro Nacional a lançar as atuais Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) no ano seguinte. Semelhantes às LBCs, as LFTs também eram indexadas à Selic, pois, do contrário, não receberiam aceitação no mercado.9Dornelas, L. N. D., and F. H. B. Terra. 2021. (<)em(>)SELIC: O Mercado Brasileiro de Dívida Pública(<)/em(>). Campinas: Alínea. A consolidação das LFTs criou um contexto institucional bastante brasileiro, no qual o custo do financiamento do Tesouro Nacional ficou subordinado às decisões do Banco Central. Isso porque qualquer aumento da taxa Selic eleva automaticamente o custo da dívida pública, devido à enorme quantidade de títulos pós-fixados cujas condições são alteradas por um órgão distinto do próprio Tesouro. 

    O período de formação dos canais rentistas (1994 em diante)

    Com o fim da crise da dívida externa e do dilema inflacionário, simbolizado pelo sucesso do Plano Real (1994), era esperado que o arranjo financeiro brasileiro passasse por um processo de normalização, ou seja, que essas jabuticabas institucionais deixassem de existir. Contudo, não foi isso que ocorreu.  De 1994 em diante, as particularidades foram apenas reconfiguradas.

    A impressão de normalização surgiu, sobretudo, com o fim do mecanismo de zeragem automática em 1996, em um contexto marcado pelo sucesso dos títulos indexados à Selic. Isso não foi mera coincidência: as LFTs oferecem resultados semelhantes aos do mecanismo de zeragem automática. Por meio delas, o Banco Central também consegue oferecer ao capital financeiro “acesso imediato” à dívida pública brasileira, cuja gestão deveria ser de competência exclusiva do Tesouro Nacional.

    Dessa forma, se até 1994 observamos um crescente protagonismo do Banco Central no nexo fiscal-monetário, o sucesso e manutenção das LFTs consolida esse papel: a indexação de uma parcela significativa da dívida pública à Selic permite que, ao elevar a taxa básica de juros, o Banco Central expanda imediatamente a dívida, beneficiando a rentabilidade do capital financeiro improdutivo.

    A diferença entre o antigo mecanismo de zeragem automática e as atuais LFTs reside no fato de que o acesso à dívida pública deixou de ser direto, o que dá origem aos canais rentistas que caracterizam as instituições de 1994 em diante. Notadamente, neste segundo período, canais rentistas tornam-se o principal meio pelo qual o sistema financeiro exerce a coerção necessária sobre as instituições públicas em prol do acesso privado à dívida pública, o que fundamenta a definição dos interesses financeiro-rentistas como hegemônicos, renovando completamente a interpretação das jabuticabas.

    Sob a ótica dos canais rentistas, as jabuticabas são mecanismos altamente eficazes em proteger a elite financeira nacional contra riscos internos e externos, ao mesmo tempo que asseguram uma lucratividade elevada e contínua. Nos mercados monetário e de títulos públicos, esses canais garantem preços administrados; no mercado de crédito, viabilizam a formação de preços sob condições monopolistas; e, no câmbio, a fuga de capitais atua como mecanismo de coerção, destinado a assegurar a preservação das jabuticabas. Assim, as dinâmicas dos três principais mercados financeiros permanecem estruturalmente subordinadas às demandas da elite financeira.São quatro os canais mais significativos: o primeiro, opera influenciando a emissão de títulos pelo Tesouro Nacional, que protege o setor financeiro contra os diversos contextos e riscos econômicos.10Bresser-Pereira, L. C., L. F. Paula, and M. Bruno. 2020. “Financialization, Coalition of Interests and Interest Rates in Brazil.” (<)em(>)Revue de la Régulation(<)/em(>) 27 (1): 21-31. (<)a href='https://doi.org/10.4000/regulation.16636'(>)https://doi.org/10.4000/regulation.16636(<)/a(>) Esse fato pode ser visualizado no Gráfico 2, que apresenta os três títulos mais emitidos entre 2000 e 2020. 

    Em períodos de maior estresse econômico, aumenta a emissão de títulos indexados à Selic, também conhecidos como “papéis da crise”, como exemplificado no período de 2015 em diante. Já em momentos de aceleração inflacionária (entre 2011 e 2015), há um aumento na emissão de títulos indexados ao IPCA. Somente em períodos de maior estabilidade macroeconômica, como entre 2004 e 2014, por exemplo, cresce a participação dos títulos prefixados. A existência de uma relação entre o contexto econômico e os tipos de títulos emitidos corrobora a alegação de que o Tesouro Nacional gera a dívida em resposta aos anseios do mercado.

    Ademais, é importante destacar que o período de maior emissão de títulos prefixados (2004-2014) evidencia uma tentativa do Tesouro Nacional de corrigir distorções no financiamento público. Durante esse intervalo, o Tesouro buscou prefixar os títulos, alongar os prazos e, consequentemente, reduzir o custo da dívida. No entanto, esse esforço foi minado pela atuação do Banco Central, que assumiu um novo protagonismo no nexo fiscal-monetário, favorecendo a rentabilidade do capital financeiro.

    Mais especificamente, ao intensificar as operações compromissadas, o Banco Central ofereceu ao mercado títulos de curto prazo, altamente líquidos e indexados à Selic, criando concorrência direta com os títulos prefixados do Tesouro, ampliando o poder de barganha do capital financeiro e dificultando a reestruturação do sistema de financiamento público.11Vieira Filho, L. A. M., e P. Rossi. 2023. “Dívida Pública e Falta de Sinergia entre o Tesouro e o Banco Central no Brasil no Período 2004/16.” (<)em(>)Brazilian Keynesian Review(<)/em(>) 9 (1): 29-52. Assim, o período representa mais um exemplo de um Banco Central que extrapola sua função institucional em prol do rentismo.12As operações compromissadas cresceram de menos de R$ 100 bilhões em 2006 para mais de R$ 1,2 trilhão em dezembro de 2016, sendo que, neste último ano, a maioria apresentava vencimentos de até três meses. Essa dinâmica preservou a preferência do mercado por instrumentos de curto prazo, mantendo a participação conjunta das compromissadas e LFTs na DBGG em 39,04%, praticamente o mesmo nível registrado em 2004 (Vieira Filho e Rossi, 2023).

    O segundo canal, demonstra que o Banco Central define a Selic com base nas expectativas divulgadas no Relatório Focus, que reúne as previsões do mercado financeiro. Esse canal destaca a forte influência dos regulados (instituições financeiras) sobre o regulador (Banco Central).13Ver: Barbosa, N. 2017. “Taxa Básica Real de Juro: Evolução e Perspectivas.” Apresentação no 14º FGV Economics Forum, São Paulo.

    Mais especificamente, o Relatório Focus apura as previsões do mercado sobre diversos indicadores econômicos, incluindo a taxa de juros esperada. Nesse contexto, os dados confirmam que a taxa esperada é um bom indicativo da direção da taxa efetiva, podendo ser considerada um preditor confiável da taxa de juros a ser fixada pelo Banco Central. Além disso, de maneira geral, a taxa esperada tende a ser superior à taxa efetiva, sugerindo que o mercado antecipa suas estimativas de juros no Relatório Focus, na expectativa de que o Banco Central adote suas previsões.14Bresser-Pereira, L. C., L. F. Paula, and M. Bruno. 2020. “Financialization, Coalition of Interests and Interest Rates in Brazil.” (<)em(>)Revue de la Régulation(<)/em(>) 27 (1): 21-31. https://doi.org/10.4000/regulation.16636.

    O terceiro canal rentista se caracteriza pelo aumento da receita do spread de crédito, o qual compensa as perdas nos mercados de títulos da dívida e monetário em um contexto de diminuição da taxa Selic. Mais especificamente, existe uma correlação inversa entre o spread de crédito e a taxa Selic nominal,15Mader, B. 2023. “The Rentier Behavior of the Brazilian Banks.” Brazilian Journal of Political Economy 43 (4): 893-913. como demonstra o Gráfico 3.

    Esse canal confirma que os bancos utilizam seu poder monopolista para encarecer o custo do crédito, compensando as perdas derivadas da queda da Selic. Um período paradigmático foi entre 2016 e 2020, quando, devido à crise, caíram as duas principais fontes de receita bancária: a de crédito e a de Títulos e Valores Mobiliários (TVM). Contudo, a lucratividade foi mantida, pois os bancos aumentaram o spread cobrado, transferindo o ônus da crise para os tomadores de crédito.16Ibidem.

    Esse ônus recaiu, principalmente, sobre as famílias.17Lavinas, L., E. Araújo, and P. Rubin. 2024. “Income Transfers and Household Debt: The Advancing Collateralization of Social Policy in the Midst of Restructuring Crises.” Brazilian Journal of Political Economy 44: 298-318. A partir de final de 2016, pela primeira vez na série histórica o saldo de crédito às famílias superou o das empresas não financeiras, prevalecendo de forma contínua e ininterrupta até o presente. São as famílias, portanto, e, em particular as de menor renda, que arcam com juros proibitivos.

    O quarto canal busca influenciar o câmbio, por meio da fuga de capitais. Desde a crise da dívida externa, a fuga de capitais se consolidou como uma estratégia da elite financeira para pressionar o Estado a atender aos seus interesses. Mais especificamente, além de contar com uma conta de capital e financeira conversível, o Brasil possui um dos mercados de derivativos cambiais mais desenvolvidos do mundo, o que amplia a capacidade especulativa dos investidores.18Paula, L. F. R. 2025. “Vulnerabilidade externa e especulação financeira.” (<)em(>)Jornal dos Economistas(<)/em(>) 428 (abril): 12–13. https://t.co/aeFdjue2nd. Essas condições estruturais permitem que o mercado financeiro pressione o real com a saída de capitais para o exterior sempre que o governo adota medidas de política econômica contrárias aos seus interesses. Esse movimento gera pressões inflacionárias, que, por sua vez, são utilizadas como ferramenta de coerção. Maior inflação justifica a elevação da Selic pelo Banco Central, elevando simultaneamente as receitas nos mercados monetário, de títulos da dívida e de crédito.

    Por fim, é possível obter uma visão sistêmica desses canais ao analisar as duas principais fontes de receita do setor bancário: (i) a receita proveniente de Títulos de Valores Mobiliários (TVM), que abrange as receitas associadas aos mercados de títulos da dívida pública e monetário, e (ii) a receita de spread de crédito. Como ilustrado no Gráfico 4, os canais rentistas operam de forma coordenada, pelo “mecanismo de compensação de receitas”.19Mader, Bruno. 2024. “Por que o Brasil Tem os Juros Mais Caros do Mundo?” In Financeirização: Crise, Estagnação e Desigualdade, organizado por Lena Lavinas, Norberto Montani Martins, Guilherme Leite Gonçalves, e Elisa Van Waeyenberge, 357–384. São Paulo: Editora Contracorrente. Além disso, dados indicam que esse mecanismo passou a operar também no curto prazo a partir de 2008.

    O nexo monetário-cambial-fiscal sob a perspectiva da Hegemonia Financeira

    A realidade monetária: canais rentistas em vez de shadow banking

    Se a financeirização dos países centrais ocorreu com a ascensão do shadow banking — num contexto em que a manutenção prolongada de taxas de juros reais baixas reduziu a capacidade do sistema bancário tradicional de gerar lucros com as típicas operações nos mercados de títulos da dívida e crédito, forçando os bancos a expandirem suas atividades para modalidades alternativas,20Braun, B., D. Gabor, P. Mader, D. Mertens, and N. Van der Zwan. 2020. “Central Banking, Shadow Banking, and Infrastructural Power.” In The Routledge International Handbook of Financialization, 241-252. Routledge. no Brasil, a dinâmica seguiu um rumo distinto. 

    Sem força política para se contrapor ao capital financeiro em sua configuração bancária, o Brasil manteve juros estruturalmente elevados e, consequentemente, não desenvolveu o shadow banking, mas sim um modelo de financeirização usurária, como evidenciam a formação dos canais rentistas.Destacam-se, aqui, as principais características que conferem privilégios ao capital financeiro dentro do arranjo brasileiro: juros elevados asseguram alta rentabilidade, enquanto os títulos indexados à Selic permitem ao Banco Central do Brasil oferecer proteção contra riscos macroeconômicos. A função dos juros elevados é autoexplicativa, mas a indexação de parte dos títulos à Selic merece uma análise mais detalhada. As LFTs no arranjo brasileiro geram distorções significativas no mecanismo de transmissão do chamado efeito riqueza. A literatura reconhece que, no Brasil, esse efeito opera de maneira invertida.21Pastore, Affonso Celso. 1996. “Por que a Política Monetária Perde Eficácia?” (<)em(>)Revista Brasileira de Economia(<)/em(>) 50 (3): 281–311. Contudo, como será exposto a seguir, é importante notar que essa inversão não foi um acidente, mas um projeto.

    Em teoria, quando um Banco Central aumenta as taxas de juros, o faz com dois objetivos principais: primeiro, reduzir o poder de compra dos detentores de capital; e, segundo, reduzir o poder de compra das famílias e empresários, com o intuito de conter o crescimento econômico e controlar a inflação. 

    O primeiro objetivo é alcançado porque os investidores que detêm títulos da dívida pública, especialmente aqueles com títulos prefixados antigos, cujas taxas de juros são abaixo das novas taxas mais elevadas, enfrentam perdas financeiras. Isso ocorre porque, ao tentar vender seus títulos antigos no mercado secundário, eles precisam aceitar descontos significativos em relação aos novos valores de mercado, ou seja, precisam arcar com deságios. O segundo objetivo é atingido porque o custo do crédito sobe, encarecendo o financiamento de famílias e empresas, o que desencoraja o consumo e os investimentos produtivos.

    No entanto, no contexto brasileiro, onde grande parte dos títulos da dívida pública é indexada à Selic, os detentores destes títulos não enfrentam perdas com o aumento das taxas de juros. Pelo contrário, seus rendimentos são protegidos ou até favorecidos, enquanto apenas o objetivo de reduzir o poder de compra das famílias e empresas é eficaz, uma vez que o aumento das taxas de juros impacta negativamente esses atores econômicos. Ou seja, no arranjo atual, o canal de transmissão do efeito riqueza segue funcional apenas para afetar negativamente as famílias e empresas, mas é obstruído em sua capacidade de impactar os detentores de capital financeiro. 

    Portanto, de forma análoga ao mecanismo de zeragem automática, as LFTs são uma nova maneira de conceder benefícios à elite rentista, que continua isenta das pressões que uma política monetária deveria exercer sobre o capital improdutivo, perpetuando assim uma estrutura de privilégios.

    A realidade cambial: a fuga de capitais como arma política

    O ano de 2024 é um exemplo marcante de como a fuga de capitais funciona como ferramenta de coerção: ao provocar inflação, oferece ao Banco Central a justificativa necessária para elevar a Selic e, assim, atender aos interesses do capital financeiro. Notadamente, diante de uma proposta fiscal do governo considerada excessivamente expansionista pelas elites financeiras, intensificou-se o movimento de ‘dolarização’. A desvalorização do real, por sua vez, resulta em uma redução significativa do poder de compra da classe trabalhadora, como observado no texto “a economia política da inflação brasileira.”22Parcela significativa da inflação é importada por meio do câmbio, dada a relevância das importações e exportações de bens intermediários e finais na economia brasileira. Como consequência, a desvalorização cambial eleva o custo da cesta de consumo dos trabalhadores.

    O Banco Central não permaneceu neutro nesse processo. Pelo contrário, suas ações (ou a falta delas) serviram aos interesses do capital financeiro, ajudando a criar as condições para justificar a elevação da Selic. Mais especificamente, desde 2023, com o início do terceiro mandato do governo Lula, a instituição se distanciou de sua atuação usual, optando por não intervir no câmbio para conter a desvalorização do real. Ademais, em 2024, o então presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também alimentou expectativas negativas sobre a economia, o que intensificou ainda mais o processo de desvalorização.

    Como resultado, o Brasil se destacou como uma das economias periféricas com a moeda mais desvalorizada, levando a inflação para além do teto, o que, finalmente, serviu como justificativa para a elevação da Selic a patamares estratosféricos. Conforme destacado em “Dólar Alto no Governo Lula: Razões e Impactos de uma Política Cambial Passiva”, há uma economia política que favorece explicitamente o sistema financeiro nesse processo     . 

    A realidade fiscal: a captura do serviço público pelo capital financeiro

    A transformação do papel do Estado nas políticas fiscais e sociais é outro processo crucial impulsionado pela hegemonia financeira, que passa a moldar essas políticas para atender prioritariamente aos interesses do capital financeiro. Nesse cenário, de um lado, temos a austeridade, que restringe o gasto público; de outro, o avanço das privatizações e, mais recentemente, das Parcerias Público-Privadas (PPPs), que emergem como a nova face das políticas sociais.23Fine, B. 2021. “Situating PPPs.” In (<)em(>)Critical Reflections on Public Private Partnership(<)/em(>), edited by J. Gideon and E. Unterhalter, 26-38. London and New York: Routledge.

    Esses dois fenômenos representam faces complementares de uma mesma lógica. No campo da política fiscal, a austeridade—entendida como a limitação dos gastos públicos primários, sem restrições ao pagamento de juros—funciona como uma ferramenta a serviço do capital financeiro, ao restringir todos os tipos de gastos, exceto aqueles voltados à rentabilidade financeira. Dessa forma, a austeridade reduz a competição entre os recursos destinados ao pagamento de juros e os alocados para serviços públicos essenciais, favorecendo deliberadamente o primeiro.

    Simultaneamente, essa lógica sustenta, no campo das políticas sociais, a justificativa para privatizações e PPPs. Notadamente, o sucateamento deliberado do Estado, por meio de restrições orçamentárias, reforça na opinião pública o argumento de que a mercantilização dos serviços sociais é necessária e inevitável, ampliando, assim, os mercados para a atuação dos agentes financeiros.

    Nessa perspectiva, os estudos da economista Lena Lavinas são paradigmáticos: entre 2013 e 2016, o Estado brasileiro iniciou um processo de delegação ao setor financeiro da prestação de benefícios relacionados à seguridade social. Esse movimento visava permitir que o setor financeiro acessasse e administrasse áreas como pensões, saúde e educação, convertendo esses direitos sociais em “colaterais”. Para a população, a principal consequência foi a mercantilização dos direitos sociais, com a imposição da lógica privada na qual o acesso a serviços essenciais tornou-se restrito àqueles capazes de arcar com seus elevados custos. Já para o setor financeiro, o resultado foi a expansão de operações e aumento expressivo das margens de lucro.24Lavinas, Lena. 2018. “The Collateralization of Social Policy Under Financialized Capitalism.” Development and Change 49 (2): 502–517.

    Não por acaso, o tema do endividamento crônico das famílias ganhou centralidade nas discussões recentes. Como destacado na análise do programa “Desenrola Brasil”, o crescente endividamento das famílias deixou de ser uma questão restrita aos endividados e inadimplentes, tornando-se uma problemática macroeconômica de interesse do Estado e, especialmente, do setor financeiro. 

    Reflexões para o debate desenvolvimentista brasileiro

    As instituições financeiras brasileiras operam predominantemente a serviço do capital financeiro, em detrimento do empresariado e do consumo da classe trabalhadora. Mais do que simples disfunções, as jabuticabas do arranjo institucional brasileiro são fruto de um processo de captura regulatória, por meio do qual o capital financeiro-rentista subordina o Banco Central e o Tesouro Nacional aos seus interesses privados, em prejuízo do desenvolvimento nacional. Esse fenômeno se manifesta de forma transversal na realidade macroeconômica, como evidencia o nexo monetário-cambial-fiscal.

    Em relação à política monetária, os canais rentistas mantêm o Brasil em uma condição estrutural de juros altíssimos e títulos indexados, oferecendo uma evidência empírica da tese de Florestan Fernandes sobre uma elite com capacidade de desvirtuar as funções públicas, principalmente do Banco Central. Como resultado, o Brasil frequentemente ocupa o topo do ranking mundial de juros, com cerca de um terço do PIB correspondendo a fluxos de juros.25Segundo os dados apresentados por Bruno e Caffé (2015), entre 1993 e 2003, o fluxo de juros recebido pelo sistema bancário-financeiro brasileiro alcançou 29% do PIB. Desse total, 21,5% foram destinados aos proprietários de ativos financeiros, como famílias e empresas não financeiras, enquanto 7,5% foram efetivamente retidos pelo próprio sistema bancário-financeiro. Sobre o tema, ver: Bruno, M., and R. Caffé. 2015. “Indicadores Macroeconômicos de Financeirização: Metodologia de Construção e Aplicação ao Caso do Brasil.” In População, Espaço e Sustentabilidade: Contribuições para o Desenvolvimento do Brasil, 1-21. Escola Nacional de Ciências Estatísticas, IBGE. (<)a href='https://doi.org/10.21579/ISBN.9788524043192_CAP2'(>)https://doi.org/10.21579/ISBN.9788524043192_CAP2(<)/a(>).Esse arranjo, por sua vez, inibiu a realização das contradições da própria teoria ortodoxa no país. Ao invés vez do Shadow Banking, no Brasil, convivemos com canais rentistas.

    No que tange à questão cambial, como evidenciado, a condição do Brasil como sistema monetário periférico é estrategicamente explorada pela elite financeira nacional. Manipulando a relação câmbio-inflação, essa elite busca, simultaneamente, preservar sua hegemonia doméstica e reforçar seu alinhamento com as doutrinas neoliberais predominantes no Ocidente.

    Mais especificamente, no caso brasileiro, a manutenção de uma elite financeira em sua própria moeda, cujo poder econômico interno cresce de forma desproporcional ao capital produtivo devido aos juros historicamente elevados, contribuiu para a consolidação do real como uma moeda valorizada em relação a outras moedas periféricas, oferecendo maior poder de importação à sua população. Contudo, essa dinâmica é habilmente explorada pela elite financeira: diante de projetos fiscais e monetários considerados excessivamente expansionistas, a dolarização e consequente desvalorização do real é utilizada como ferramenta de barganha política. Esse movimento reduz o poder aquisitivo da população por meio da inflação, funcionando como um mecanismo de coerção para alinhar a sociedade a projetos de austeridade.

    Em relação à questão fiscal, as implicações da austeridade, enquanto projeto político a serviço da elite financeira, manifestam-se, por exemplo, no resultado de 2024.26Banco Central do Brasil. Focus – Relatório de Mercado. Relatório de Mercado, 28 de fevereiro de 2025. Sem paralelo no mundo, o Brasil apresentou um déficit público no qual 95% decorrem do pagamento de juros, enquanto apenas 5% estão relacionados ao déficit primário — ou seja, aos gastos essenciais do governo em investimento, saúde, educação, segurança pública e assistência social, fundamentais para o bem-estar da população. 

    Dessa forma, os debates sobre responsabilidade fiscal tornam-se desproporcionais ao focarem exclusivamente na dívida primária, enquanto o principal fator, o gasto com juros, permanece amplamente ignorado. Nesse contexto, mídia e economistas tecnocráticos têm sido bastante bem-sucedidos em ocultar que os juros abusivos no Brasil são resultado de uma captura regulatória das instituições. Como os canais rentistas aqui expostos demonstram, a verdadeira reforma fiscal deveria focar, prioritariamente, na correção das operações do Banco Central e do Tesouro Nacional.

    Dado o forte caráter rentista da economia brasileira, o economista Miguel Bruno denomina a financeirização nacional de usurária. Ressaltam-se aqui, com implicações de magnitude que não podem mais ser ignoradas: desde 1980, o Brasil tem vivido um crescimento cronicamente baixo, acompanhado pela desindustrialização e pela primarização da economia. Mais recentemente, passou também a conviver com um endividamento insustentável de famílias e empresas não financeiras—27Dados da Serasa Experian de janeiro de 2025 mostram que 31,4% das empresas estão inadimplentes, percentual que sobe para quase 46% no caso dos consumidores adultos. Disponível em: (<)a href='https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/'(>)https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/(<)/a(>).—especialmente médias e pequenas—, enquanto as grandes corporações não financeiras experimentam uma crescente financeirização.28Como demonstrado por Mantoan et al. (2021), grandes empresas (não financeiras) apresentaram um crescimento significativo de suas receitas financeiras em comparação às típicas receitas operacionais nas décadas recentes. Fonte: Mantoan, E., V. Centeno, C. Feijó, and Financialization and Development Study Group (FINDE/UFF). 2021. “Why Has the Brazilian Economy Stagnated in the 2010s? A Minskyan Analysis of the Behavior of Non-financial Companies in a Financialized Economy.” (<)em(>)Review of Evolutionary Political Economy(<)/em(>) 2 (3): 529-550. Tudo isso contribui para a condição de desigualdade persistente que caracteriza o país.

    Esse contexto impõe a urgência de um novo projeto desenvolvimentista, capaz de romper com a trajetória atual e redirecionar o Brasil para um ciclo de crescimento mais inclusivo e sustentável. Mais especificamente, é necessária uma reforma financeira no país, fundamentada em um novo pacto social. Como exposto, o sistema monetário e de financiamento público brasileiro dispõe de tecnologias para proteger o capital financeiro, à custa de uma crescente dívida pública. A questão que se coloca é: por que essas tecnologias não poderiam ser aplicadas em projetos de desenvolvimento, redução da desigualdade e, mais urgentemente, em iniciativas de economia verde? As limitações a isso são de natureza política, e não econômica.

    Nesse sentido, em vez de simplesmente defender o fim das jabuticabas, a normalização das instituições e a implementação rigorosa das premissas ortodoxas — como seria o caso de uma luta pela prefixação da dívida brasileira—talvez o caminho mais adequado, diante da necessidade de uma transformação radical imposta pela crise ambiental, seja justamente o oposto: aproveitar o potencial monetário e fiscal brasileiro, mas direcioná-lo em prol do desenvolvimento sustentável. É necessário demonstrar que essa capacidade de financiamento estatal, atualmente capturada pelo rentismo, pode ser ampliada e reorientada para sustentar projetos desenvolvimentistas. O real não é o dólar, mas ele ainda possibilita margens de manobra, especialmente no atual cenário de alívio das restrições externas. Notadamente, dado o contexto de país periférico, o poder monetário brasileiro é um exemplo interessante do tipo de proteção que o Estado pode oferecer.

    Em termos gerais, essa posição não é distinta daquela defendida por Keynes. De forma especulativa, ele observou que “seria politicamente impossível, ao que parece, uma democracia capitalista organizar gastos na escala necessária para provar o meu ponto [o potencial transformador do gasto público], exceto em tempos de guerra”.29Keynes, John Maynard. “How to Pay for the War.” In Essays in persuasion, pp. 367-439. London: Palgrave Macmillan UK, 1940. Estudos sobre o papel do Estado norte-americano entre 1942 e 1945 confirmaram a sua hipótese: durante a guerra, os gastos públicos dispararam de 8%-10% para 40% do PIB, sendo que, em média, 23% desse montante foram destinados à aquisição de bens e serviços. Esse exemplo demonstra, de forma inequívoca, a capacidade do Estado de conduzir políticas expansionistas. Defendemos esse potencial, porém, não para a guerra, mas para o bem-estar social e o desenvolvimento sustentável, como a transição para uma economia verde. Seguindo essa lógica, um novo pacto social e financeiro, orientado para o desenvolvimento nacional, poderia utilizar o Estado para: (i) direcionar o investimento privado para pautas ambientais, garantindo proteção e rentabilidade a esses investimentos; (ii) criar redes de proteção social para os mais vulneráveis; (iii) realizar investimentos públicos estratégicos para expandir a produção; (iv) adotar medidas de gestão dos fluxos de capitais para regular e estabilizar o câmbio, entre outras medidas.30Não é o objetivo deste artigo expor uma proposta de governo em detalhes, mas vale ressaltar que uma articulação inteligente entre as políticas monetária, fiscal e cambial, com monitoramento contínuo dos gargalos de oferta e demanda, seria fundamental para viabilizar essa estratégia.

    Pode parecer utópico, mas a história mostra que momentos de crise são justamente aqueles em que mudanças se tornam indispensáveis. Diante desse desafio, a esquerda brasileira precisa, com urgência, apresentar uma alternativa que rompa com o modelo capturado pelo neoliberalismo e subordinado à lógica da austeridade — caminho que o PT ainda segue. Caso contrário, os resultados serão os mesmos: políticas de ajuste fiscal continuarão a alimentar o descontentamento social.31Hübscher, E., T. Sattler, and M. Wagner. 2023. “Does Austerity Cause Polarization?” British Journal of Political Science 53 (4): 1170-1188. Esse cenário aprofunda a insatisfação popular e reforça a sensação de um “país dividido”, onde eleitores frustrados com os partidos tradicionais buscam novas opções em legendas menores ou recém-criadas. Sem uma alternativa viável à esquerda, esse vácuo político tende, como se sabe, a fortalecer o avanço da extrema direita.

  3. Elos frágeis

    Comentários desativados em Elos frágeis

    Em uma drástica virada na política comercial dos Estados Unidos, o governo Trump não apenas impôs uma nova rodada de tarifas contra o México como ameaça aumentá-las ainda mais. As medidas vêm alarmando a indústria manufatureira e o governo mexicano. Caso sejam aplicadas integralmente, as tarifas podem causar interrupções imediatas nas principais zonas industriais do país, colocando em risco milhares de empregos e paralisando investimentos estratégicos.

    Essas ameaças, para o México, significam mais que o mero reflexo das motivações conjunturais de Trump—sejam questões migratórias, de segurança ou relacionadas aos benefícios da integração comercial. Elas revelam uma vulnerabilidade estrutural mais profunda do país: a enorme dependência em relação a um único parceiro comercial que, agora, está disposto usar as tarifas como ferramentas de coerção política. Essa instrumentalização do poder comercial dos EUA tem consequências diretas para a estabilidade da economia mexicana e para o funcionamento de cadeias de valor profundamente integradas entre os dois países.

    Um exemplo claro de politização do comércio transfronteiriço foi a recente disputa sobre o Tratado da Água, firmado em 1944. No dia 10 de abril, uma semana após entrarem em vigor as novas tarifas anunciadas no Liberation Day, Trump acusou o México de “roubar água dos agricultores texanos” e ameaçou impor uma tarifa adicional de 10% sobre todas as importações do país, além de sanções econômicas seletivas, caso as obrigações do tratado não fossem cumpridas. Esse uso arbitrário e imprevisível das tarifas vem gerando profundas incertezas a respeito do futuro do comércio bilateral entre os dois países norte-americanos, até mesmo no que diz respeito a acordos comerciais firmados há décadas.

    Em 2024, as exportações do México para os Estados Unidos bateram o valor recorde de US$ 495 bilhões—quase 30% do PIB mexicano. A pauta exportadora é especialmente formada por produtos manufaturados complexos, como como veículos, peças automotivas e eletrônicos. Esse sucesso comercial, no entanto, revela também o grau crítico de exposição da economia mexicana às decisões de Washington: uma só medida unilateral dos EUA é capaz de provocar, quase imediatamente, a paralisação de partes do setor produtivo do México. 

    Simulações realizadas pelo Observatório da Complexidade Econômica (OEC)1The OEC Tariff Simulator. Viktor Stojkoski, Pablo Paladino, Jelmy Hermosilla, and César A. Hidalgo. https://oec.world/en/tariff-simulator?exporter=mex&tariff=25 estimam que a imposição de tarifas de 25% poderia gerar, em apenas três anos, uma redução anual das exportações mexicanas de US$ 164 bilhões—valor equivalente ao total exportado pelo México para outros países que não os EUA. O impacto seria especialmente grave em regiões industriais dedicadas à produção para exportação, nas quais o emprego depende diretamente da estabilidade desse comércio bilateral.

    Fonte: https://oec.world/en/tariff-simulator?exporter=mex&tariff=25

    Nesse cenário, o México deve evitar cair no falso dilema entre aprofundar a integração regional ou buscar novos mercados. A única estratégia factível é dupla: fortalecer os laços econômicos com os EUA em setores-chave e, ao mesmo tempo, investir de forma acelerada em uma diversificação tecnológica e geográfica capaz de reduzir vulnerabilidades, ampliar capacidades técnicas e aumentar a margem de manobra do país diante de eventuais disrupções futuras. O nível crítico de exposição da economia mexicana só poderá ser contronado por meio de uma estrutura de crescimento mais autônoma, complexa e sustentável—evitando que o país fique preso a um modelo de integração precário, vulnerável a decisões unilaterais e cada vez mais incompatível com o grau de instabilidade do ambiente geopolítico.

    Do crescimento ao limite

    Nas últimas três décadas, a integração produtiva com os Estados Unidos tem sido o principal motor do crescimento industrial do México. Setores como o automotivo, o de eletrônicos e o de maquinário industrial prosperaram graças à proximidade geográfica e aos acordos comerciais vigentes, para além de um progressivo processo de especialização regional. No entanto, esse mesmo caminho que permitiu ao México subir degraus nas cadeias globais também deixou o país mais vulnerável. Os riscos se concentraram à medida que as vantagens competitivas se consolidaram: hoje, grande parte do aparato produtivo nacional depende de regras, decisões e condições externas sobre as quais o México tem cada vez menos controle. Quanto mais integrada está a economia mexicana, mais exposta ela fica a problemas originados fora do território nacional.

    Em 2024, o México exportou mais de 2,8 milhões de veículos leves para os Estados Unidos, alcançando uma participação de 15% nesse mercado.2S&P Global Commodity Insights. 27 de março de 2025. (<)em(>)European car makers’ body warns US tariffs threaten domestic production, exports(<)/em(>). S&P Global. Por trás desse número há uma complexa rede de fornecedores e montadoras distribuídos em ambos os lados da fronteira que dependem, em grande medida, da importação de peças essenciais—especialmente baterias, sensores de tecnologia avançada e semicondutores procedentes da Ásia e dos EUA. Essa estrutura fragmentada pode até ser eficiente em condições normais, mas, quando tarifas ou restrições tecnológicas entram em jogo, ela aumenta custos logísticos e expõe a indústria a interrupções imediatas.

    O anúncio da instalação de uma megafábrica da Tesla em Nuevo León é um exemplo emblemático disso. Com investimento estimado em mais de US$ 10 bilhões e a previsão de criação de 12 mil empregos diretos, essa planta é projetada para ser um ponto estratégico na cadeia de mobilidade elétrica da América do Norte.3 Forbes, 14 de dezembro de 2023. (<)em(>)Nuevo León aprueba 2,627 mdp en incentivos para fábrica de Tesla(<)/em(>). https://forbes.com.mx/nuevo-leon-aprueba-2627-mdp-en-incentivos-para-fabrica-de-tesla Porém, no atual cenário de tarifas generalizadas, o encarecimento da cadeia de suprimentos pode inviabilizar suas operações—além de desestimular novos investimentos de escala semelhante.

    Casos como o de Ciudad Juárez mostram o alcance territorial da vulnerabilidade econômica do México. Localizada na fronteira com os EUA, a cidade tem mais de 300 fábricas voltadas para a exportação, muitas delas integradas a cadeias de valor de produtos eletrônicos, peças automotivas e equipamentos médicos.4 INDEX Juárez. (2023). Boletín Económico e Industrial de la Industria Maquiladora. Consejo Nacional de la Industria Maquiladora y Manufacturera de Exportación. Uma interrupção abrupta das atividades afetaria imediatamente o emprego formal, o consumo local e as receitas fiscais do Estado. E esse não é um caso isolado: de Reynosa a Querétaro, diversas regiões industriais que dependem quase exclusivamente do livre acesso ao mercado estadunidense enfrentam riscos semelhantes.

    A indústria eletrônica de Jalisco representa ainda outra dimensão dessa dependência. Com  investimentos acumulados de mais de US$ 4,5 bilhões nos últimos 15 anos e mais de 100 mil empregos especializados, a região se consolidou como polo tecnológico estratégico para o  México.5El Economista. (<)em(>)Jalisco se confirma como Silicon Valley y capital de chips en América Latina(<)/em(>). https://www.eleconomista.com.mx/estados/jalisco-confirma-silicon-valley-y-capital-chips-america-latina-20241105-733019.html No entanto, mais de 80% dos semicondutores usados são importados da Ásia. Entre 2021 e 2022, durante a crise mundial na produção de chips, essa dependência resultou em perdas de mais de US$ 400 milhões em apenas seis meses, evidenciando os limites de um modelo de integração sem capacidade técnica local para a produção de componentes de alta tecnologia.

    A essa vulnerabilidade estrutural soma-se um gargalo logístico que aumenta ainda mais os riscos. A fronteira entre Nuevo Laredo e Laredo concentra cerca de 40% do comércio terrestre entre o México e os Estados Unidos—mais de US$ 211 bilhões anuais—, mas opera com uma infraestrutura sobrecarregada e é afetada pela lentidão dos processos alfandegários. Essa saturação gera custos adicionais estimados em mais de US$ 3,5 bilhões ao ano,6Instituto para la Competitividad y el Comercio Exterior de Nuevo Laredo (ICCE). (2022). Prontuario Socioeconómico Binacional 2022. Nuevo Laredo, Tamaulipas, México. Recuperado de https://anyflip.com/ivqr/ygor/ prejudicando a eficiência operacional de setores-chave, como o automotivo, o de eletrônicos e o equipamentos médicos.

    Fonte: https://oec.world/es/profile/subnational_usa/laredo-tx-2304


    O atual modelo de integração, baseado em eficiência e escala, tem sido bem-sucedido em termos de crescimento das exportações, mas seus limites são cada vez mais evidentes. Sem uma autonomia tecnológica significativa, uma base de fornecedores mais robusta e uma infraestrutura moderna, esse esquema fica demasiadamente vulnerável a choques externos. Em um contexto geopolítico marcado pela incerteza e pela tomada de decisões unilaterais, insistir nesse tipo de dependência sem fazer ajustes estratégicos compromete a capacidade do Estado mexicano de proteger sua base industrial e conduzir seu desenvolvimento econômico de forma soberana.

    Uma estratégia, duas frentes de ação

    A crescente exposição do México a decisões comerciais unilaterais evidencia que a mera manutenção do nível atual de integração regional não é suficiente: é preciso repensar a estratégia, reconhecendo suas limitações e aproveitando seus pontos fortes. Os setores mais dinâmicos do país—automotivo, eletrônico e médico-industrial—revelam tanto o potencial positivo quanto os riscos latentes de uma integração tão profunda. A questão não é mais se o México deve seguir apostando na integração ou se deve diversificar seus parceiros, mas como fazer ambas as coisas de forma complementar. Isso exige entender quais setores possuem mais vantagens consolidadas, quais enfrentam gargalos críticos e em que áreas é possível reduzir as vulnerabilidades sem prejudicar o que está funcionando bem.

    Essa abordagem não representa uma ruptura com os Estados Unidos, mas uma transformação qualitativa da relação entre os países. O México não é um mero fornecedor de baixo custo: é uma peça central da competitividade industrial da América do Norte. Setores como o de equipamentos médicos, peças automotivas e eletrônicos demonstram isso claramente. O que está em jogo não é só a manutenção do acesso ao mercado estadunidense, mas a redefinição dos termos desse acesso: a promoção de um modelo de integração com maior conteúdo tecnológico e capacidade de inovação nacionais e com cadeias de abastecimento mais robustas e preparadas para suportar choques externos sem comprometer a estabilidade produtiva.

    A indústria de equipamentos médicos é um exemplo concreto de integração produtiva de nova geração. Em 2024, o México se consolidou como principal fornecedor desses produtos para o mercado estadunidense, com exportações que ultrapassam os US$ 12 bilhões de dólares e uma taxa de crescimento anual superior a 25%. Empresas como Medtronic, Johnson & Johnson e Abbott construíram operações binacionais que combinam a eficiência manufatureira do México com as competências regulatórias, de pesquisa e desenvolvimento e de design dos Estados Unidos. Dados recentes mostram que o México contribui com 2,8% do valor agregado interno das exportações dos Estados Unidos, frente a 1,8% no caso da China e 0,4% no caso do Vietnã.7 Casas Alatriste, P., & Martínez, A. (2025, February 3). “America First” does not mean “America alone”. Diplomacy21 – Wilson Center. https://diplomacy21-adelphi.wilsoncenter.org/article/america-first-does-not-mean-america-alone

    Fonte: https://oec.world/es/profile/bilateral-country/usa/partner/mex#bi-balance

    Esse modelo reduz os custos operacionais em até 20% em relação aos fornecedores asiáticos, ao mesmo tempo em que aumenta a velocidade de resposta logística em um setor altamente sujeito a mudanças regulatórias.8National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, Health and Medicine Division, Board on Health Sciences Policy, Committee on Security of America’s Medical Product Supply Chain, Shore, C., Brown, L., & Hopp, W. J. (Eds.). (2022, March 3). Globalization of U.S. medical product supply chains (Chapter 3). In Building resilience into the nation’s medical product supply chains. National Academies Press. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK583730/ Além disso, as fábricas mexicanas cumprem rigorosas normas internacionais (FDA, CE, ISO 13485), o que lhes permite, para além de abastecer os EUA, competir nos mercados globais. Agora, o que importa para o comércio exterior do México não é apenas o nível de integração regional, mas a capacidade tecnológica e possibilidade de projeção para além da América do Norte. 

    Uma análise detalhada do comércio bilateral com os EUA revela o alto grau de interdependência entre os países. O México lidera as exportações de equipamentos médicos montados para os Estados Unidos, enquanto depende de insumos essenciais—como circuitos integrados controladores (HS 8542.31)—procedentes do mercado estadunidense. Em 2024, o México exportou mais de US$ 12 bilhões em equipamentos médicos para os Estados Unidos, que, por sua vez, enviaram mais de US$ 9,3 bilhões em componentes para o México. O resultado não demonstra um déficit ou uma perda, mas a existência de uma cadeia de valor compartilhada na qual um país fornece os “cérebros” e desenha os produtos e o outro monta, certifica e disponibiliza esses produtos para o uso clínico. 

    Esse modelo não é sustentado por tarifas ou retóricas nacionalistas, mas por regras claras, investimentos cruzados e confiança mútua. Sua disrupção não só prejudicaria os empregos e a competitividade, mas enfraqueceria a eficiência sanitária de toda a região, interrompendo um ecossistema produtivo que vai além das fronteiras individuais e depende de forte coordenação entre os países.

    O setor automotivo é outro exemplo. Em 2024, o México exportou mais de US$ 30 bilhões em peças automotivas para os Estados Unidos, o que representa mais de 40% do total das importações americanas. No entanto, a aparente liderança mexicana esconde uma fraqueza estrutural: a média de tecnologia nacional presente nesses produtos corresponde a pouco mais de 55%.9Secretaría de Economía (2023). Diagnóstico y Prospectiva de la Industria Automotriz. Gobierno de México. Disponível em: https://www.gob.mx/se/documentos/diagnostico-y-prospectiva-de-la-industria-automotriz Grande parte dos componentes mais sofisticados— sensores, semicondutores e  módulos eletrônicos—ainda é importada pelo México.

    Fonte: https://oec.world/en/profile/country/mex?selector343id=Import

    Agora, manter uma posição favorável na cadeia de suprimentos exige mais do que volume: demanda que o México faça uma transição da posição de montador para uma de gerador de valor. Para isso, instrumentos concretos são essenciais: incentivos fiscais vinculados ao aumento progressivo da participação tecnológica nacional, esquemas de coinvestimento em tecnologia com empresas âncoras e programas de capacitação técnica em setores-chave são alguns exemplos. Nas décadas de 1980 e 1990, a Coreia do Sul, por exemplo, adotou uma estratégia semelhante. Como resultado, a economia coreana deixou de ser mera fornecedora intermediária e virou potência industrial. O México pode adaptar esse tipo de experiência às suas particularidades internas. 

    Outro fator essencial para garantir maior autonomia é o planejamento estratégico da diversificação produtiva e comercial. O México já começou a receber investimentos relevantes em setores emergentes, como o de eletromobilidade. Um exemplo significativo é a instalação de uma fábrica da BMW no estado de San Luis Potosí, que prevê a produção, a partir de 2027,  de 140 mil baterias por ano.10BMW Group. (2023). (<)em(>)BMW Group incrementa la producción de vehículos eléctricos en la red de producción global: la plataforma ‘NEUE KLASSE’ también se construirá en la Planta de San Luis Potosí(<)/em(>). No entanto, o país ainda não conta com uma cadeia produtiva integrada: não tem capacidade de escala para refinar lítio, fabricar células de bateria ou montar sistemas completos.

    Nesse caso, a experiência da Polônia pode oferecer um roteiro útil. Em menos de uma década, o país criou um ecossistema competitivo de baterias elétricas sustentado por três pilares: incentivos fiscais direcionados, parques industriais especializados instalados em locais com vantagens logísticas e capacitação técnica acelerada em parceria com líderes globais, como a LG e a Northvolt.

    Fonte: https://oec.world/es/profile/bilateral-product/electric-batteries/reporter/pol?selector1147id=growthOption&selector1148id=last5Yea

    A experiência do Vietnã em produtos eletrônicos de ponta também oferece importantes lições. Apesar da abertura de centros de design em Guadalajara por empresas como a Intel e da expansão da capacidade de montagem da Foxconn, o México ainda importa mais de 75% dos semicondutores que consome. O Vietnã, por sua parte, aproveitou os acordos com a Samsung para desenvolver competências em encapsulamento, design intermediário e formação técnica especializada, avançando gradualmente na cadeia de valor. Em vez de um salto extraordinário, o progresso do Vietnã se baseou na definição de objetivos claros, realização de ajustes estruturais e no acúmulo progressivo de capacidades técnicas.

    Fonte: https://www.economia.gob.mx/datamexico/es/profile/product/diodes-transistors-and-similar-semiconductors

    O México não está começando do zero. O país forma mais de 120 mil engenheiros por ano,11 WorldAtlas. (2018, July 18). Countries That Produce the Most Engineers. Retrieved April 23, 2025, from https://www.worldatlas.com/articles/countries-with-the-most-engineering-graduates.html conta com zonas industriais conectadas a portos e pontos fronteiriços altamente movimentados e tem uma base industrial de manufatura que responde por mais de 18% do PIB.12Secretaría de Economía y del Trabajo. (2023). Industria manufacturera en México. Basado en datos del INEGI. Vantagens não faltam. Agora, é preciso criar uma estratégia certeira e coordenada para transformar essas vantagens em plataformas para o avanço produtivo. O segredo está em não dividir esforços, mas concentrá-los em setores nos quais o país pode crescer rapidamente, desenvolvendo competências fundamentais e abrindo novas rotas de inserção internacional.

    Investimento e escalabilidade

    Diversificação, no entanto, não é sinônimo de dispersão. Em um contexto de recursos limitados e competências ainda em desenvolvimento, o México precisa concentrar esforços nas oportunidades externas alinhadas às suas vantagens existentes e potenciais. A questão não é saber para que países exportar mais, mas quais setores e mercados permitirão ao México escalar a qualidade das exportações rapidamente, reduzir vulnerabilidades críticas e construir uma base tecnológica mais robusta. O Observatório da Complexidade Econômica (OEC) desenvolveu um modelo de potencial exportador que oferece orientações concretas: identifica nichos de alto impacto nos quais já existem condições para competir e pontos nos quais o investimento direcionado pode transformar lacunas atuais em plataformas de expansão.

    Diferente das abordagens que projetam o futuro do comércio com base no crescimento anterior ou na proximidade geográfica, o modelo proposto pelo OEC incorpora competências produtivas, vínculos tecnológicos e compatibilidade com a demanda dos países de destino. Ao cruzar esses fatores, identifica produtos e localidades com alto potencial de expansão. Os resultados apontam caminhos concretos para o planejamento estratégico da diversificação.

    • China: Peças automotivas, circuitos integrados e equipamentos médicos de tecnologia avançada
      Potencial estimado: mais de 3,2 bilhões de dólares em exportações adicionais.
    • Alemanha: Fabricação de automóveis, eletrônicos industriais e computadores
      Potencial estimado: mais de 2 bilhões de dólares.
    • Canadá: Peças automotivas, tecnologias digitais e equipamentos médicos
      Potencial estimado: mais de 2,5 bilhões de dólares.
    • Brasil: Veículos comerciais, peças automotivas de tecnologia avançada e produtos eletrônicos industriais 
      Potencial estimado: mais de 900 milhões de dólares.
    Fonte: oec.world

    Essas oportunidades não indicam somente novos destinos comerciais, mas representam rotas concretas para a redução da dependência dos Estados Unidos, para o aumento do conteúdo tecnológico das exportações e para a expansão da autonomia geoeconômica do país. Não se trata de competir no mercado internacional com preços baixos, mas de aumentar a qualidade, a sofisticação e a relevância estratégica do comércio exterior. Aproveitar esse potencial permitira ao México não só diversificar o comércio, mas redefinir seu papel nas cadeias globais de valor. Mas identificar essas oportunidades é só o primeiro passo. Aproveitá-las depende do desenvolvimento das competências necessárias para competir internacionalmente. Para ampliar as exportações de equipamentos médicos para a Alemanha ou para o Canadá, por exemplo, é preciso consolidar certificações internacionais (CE, ISO), adequar o modelo produtivo às estruturas regulatórias desses países e instalar laboratórios de testes avançados. Entrar em mercados como o de circuitos integrados na China ou na Alemanha, por sua vez, envolve investir em design eletrônico, encapsulamento e testes funcionais—capacidades ainda limitadas no ecossistema de produção nacional.

    Isso vale também para a infraestrutura. A exportação de produtos manufaturados complexos para a Ásia ou para a Europa não será viável sem rotas logísticas confiáveis, modernização de portos e acordos alfandegários que evitem potenciais atritos. As oportunidades podem estar bem mapeadas, mas continuarão fora de alcance se o governo mexicano não garantir as condições necessárias para aproveitá-las. A falta de uma conectividade fluida—tanto em termos de rodovias, ferrovias e portos quanto de regulamentação—não apenas encarece as operações, mas restringe a capacidade do país de se integrar às cadeias globais de maior complexidade tecnológica.

    É exatamente nesse ponto que a integração e a diversificação se cruzam: mais do que rotas paralelas, elas são partes de uma mesma estrutura produtiva. A escala alcançada em setores integrados aos Estados Unidos—como o automotivo, o eletrônico e o médico-industrial—oferece um ponto de partida concreto para identificar os elos das cadeias de valor de maior dependência externa e transformá-los em plataformas de expansão tecnológica e abertura comercial. Se o México orientar sua política de desenvolvimento produtivo para integrar capacidades e mercados, as vulnerabilidades de hoje podem se tornar as vantagens de amanhã.

    Isso pressupõe uma mudança na lógica atual: não basta só fortalecer o que já funciona, é preciso intervir estrategicamente nos pontos em que o México é mais vulnerável e que podem, ao mesmo tempo, abrir portas para novos setores e mercados globais—como os de semicondutores, baterias ou sensores de tecnologia avançada. Transformar esses pontos fracos em plataformas de sofisticação exige uma perspectiva integrada que coordene o desenvolvimento das competências tecnológicas, da escala industrial e do acesso comercial. Justamente nos setores em que há maior dependência, há também maior potencial de crescimento em escala—desde que o investimento seja focalizado. 

    Transformar potencial em política

    A transformação produtiva que o México precisa não será alcançada com programas dispersos ou incentivos desconexos. É preciso priorizar competências, mobilizar instrumentos públicos e articular Estado e setor privado em torno de um novo—e preciso—mapeamento de especializações. O que está em jogo não é apenas o aumento das exportações, mas a construção de uma economia mais autônoma, sofisticada e resiliente. Esse não é um processo que ocorre espontaneamente: exige visão política, capacidade de execução e uma estrutura institucional habilitada para sustentar esses esforços por um período mais longo que o dos mandatos presidenciais de seis anos.

    A base industrial do México cresceu em escala, mas não em densidade tecnológica ou em integração local. Hoje, menos de 1% das empresas mexicanas tem participação direta nas exportações,13OECD(<)strong(>).(<)/strong(>) (2023). (<)em(>)SME and Entrepreneurship Policy Review: Mexico 2023(<)/em(>). OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/1cc9eaec-en o que reflete uma falta de conexão estrutural entre o investimento estrangeiro e o ecossistema de fornecedores nacionais. Fechar essa lacuna exige coordenação e não improvisação. Isso implica vincular incentivos fiscais ao aumento da participação nacional em setores estratégicos, promover esquemas de coinvestimento tecnológico entre empresas globais e fornecedores locais e implementar programas de formação acelerada em tecnologias-chave. Não se trata de substituir importações indiscriminadamente, mas de desenvolver autonomia tecnológica em pontos críticos.

    A infraestrutura, por sua vez, faz mais do que simplesmente facilitar o comércio: determina quem pode participar dele. Hoje, gargalos logísticos e energéticos têm limitado a capacidade de expansão de regiões inteiras no México. Enquanto em alguns pontos fronteiriços importantes a significativa saturação gera altos custos adicionais, no sul, o atraso em infraestrutura energética—a rede elétrica é ineficiente, o sistema elétrico é instável e os custos são pouco competitivos em relação ao norte—impede a chegada de indústrias de ponta a zonas com grande potencial demográfico e industrial. Uma expansão estratégica da rede nacional combinada com investimentos em energia renovável e distribuição logística permitiria conectar a região sul-sudeste do país aos principais corredores industriais e abrir novas rotas para a diversificação territorial. Superar essas barreiras exige mais do que investimentos isolados: requer uma visão integrada que combine logística, modernização energética e conectividade digital, fazendo com que a infraestrutura efetivamente se traduza em coesão econômica e competitividade regional.

    A escala das transformações que o país requer não pode ser viabilizada sem um centro de gravidade institucional. Atualmente, a política industrial mexicana está fragmentada entre ministérios, fundos, programas e diferentes níveis de governo que operam sem uma orientação comum. Da Coreia do Sul à Polônia, experiências de modernização bem-sucedidas compartilham um princípio básico: sem coordenação política de alto nível, é impossível alinhar incentivos, mobilizar recursos e sustentar prioridades por um período maior que o mandato presidencial do momento. O México precisa de um órgão de governo que combine visão estratégica e capacidade operacional: um Conselho Nacional de Política Industrial subordinado diretamente à Presidência, que possa articular objetivos mensuráveis em termos de autonomia tecnológica e diversificação das exportações, coordenar orçamentos e regulamentações entre órgãos públicos e garantir a participação do setor privado, de governos locais e de clusters industriais. Não se trata de criar mais uma instância burocrática, mas de viabilizar uma estrutura institucional capaz de transformar as potencialidades produtivas nacionais em resultados concretos.

    Para o México, a ameaça tarifária não é um mero risco conjuntural. É o sintoma principal de uma vulnerabilidade estrutural mais profunda: um modelo de integração econômica que, embora bem-sucedido em termos de volume das exportações, foi construído sobre frágeis pilares de dependência tecnológica, concentração geográfica e articulação doméstica limitada.

    O futuro industrial do México não será definido somente pelo que o país exporta, mas pela forma como produz, pelos parceiros com quem integra essa produção e pela estrutura regulatória que a organiza. Em um mundo no qual o comércio não é mais regido pela eficiência, mas pelo poder, a dupla estratégia de integração e diversificação não é mera retórica política, é necessidade estrutural. O ultimato comercial dado por Trump no caso da disputa pela água deixa uma coisa muito clara: se as regras do jogo podem ser alteradas em uma coletiva de imprensa, não há acordo comercial capaz de garantir estabilidade. 

    O México possui setores estratégicos, competências emergentes e uma sólida base industrial que pode ser ampliada. Diagnósticos não faltam. Nesse momento, o que falta é ação continuada e vontade política duradoura. As decisões tomadas nos próximos anos definirão se o país avançará em direção a uma economia mais resiliente, complexa e soberana ou se perpetuará um modelo vulnerável, exposto ao risco constante de interrupções e à crescente incerteza global.

    Tradução: Luiza Mançano

  4. É preciso dar um jeito, meu amigo

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    No dia 1º de setembro de 2013, em um editorial que se tornaria famoso, o jornal carioca O Globo reconheceu que seu apoio ao golpe militar de 1964 havia sido um erro. O texto foi escrito no contexto das grandes e confusas manifestações que tomavam as ruas do país naquele momento (conhecidas como “Jornadas de junho de 2013”), nas quais uma das palavras de ordem mais ouvidas era “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. Além disso, era o período de atuação da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 pela presidenta Dilma Rousseff para investigar as graves violações contra direitos humanos ocorridas durante a ditadura.

    Reconhecendo como verdadeiro o grito das ruas, o jornal justificava de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “república sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que contagiava vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais. O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações.

    A presença pública e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final da Segunda Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos. Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. No campo, a emergência das Ligas Camponesas, e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.

    Trabalhistas, católicos, comunistas, entre diversas outras forças políticas, disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre negados, como a lei do 13o salário e a sindicalização no campo.

    Operação limpeza

    Em um contexto marcado pela Guerra Fria, pela descolonização dos países africanos e asiáticos e pelos impactos da Revolução Cubana na América Latina, a  presença pública dos trabalhadores na década de 1960 significava, para muitos, a antessala do comunismo. Não por acaso, o golpe e seus preparativos contaram com o vital apoio do governo dos Estados Unidos. A desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes sindicais do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente João Goulart (nunca perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada. A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13 de março, foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião realizadas à época e ocultadas durante muito tempo mostravam que a maioria da população apoiava Jango e suas reformas. 

    O golpe acabou com tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização. Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”. A chamada “Operação limpeza” desencadeada pelo novo regime invadiu e dilapidou o patrimônio dos sindicatos. Nos primeiros anos após o golpe, mais de mil entidades sindicais tiveram suas direções removidas pelo governo. O movimento operário foi um alvo prioritário da primeira onda repressiva no imediato pós-golpe e dirigentes sindicais e trabalhadores ativistas de todo o país foram particularmente atingidos. Diversas lideranças foram presas, cassadas e algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.

    Os mundos do trabalho eram preocupação central da jovem ditadura. Embora tenham enfraquecido bastante o Ministério do Trabalho, os militares e seus aliados não pretendiam acabar com os sindicatos, mas sim afastá-los de qualquer influência considerada política e torná-los parceiros na construção de um modelo de desenvolvimento econômico autoritário. A ideia era capacitar as entidades sindicais nas cidades e no campo para atuar no treinamento da mão de obra trabalhadora e como instituições assistenciais nas áreas de saúde, lazer e previdência.

    Em um primeiro momento, tiveram grande apoio de setores conservadores católicos. Também o sindicalismo norte-americano viu no golpe uma oportunidade única de influenciar os sindicatos no Brasil. Por meio de entidades como o Instituto Cultural do Trabalho (ICT) e o Instituto Americano de Desenvolvimento do Sindicalismo Livre (Iadesil), promoveu cursos e diversas atividades de intercâmbio no país. Logo, no entanto, tensões com o governo militar e com muitos sindicalistas brasileiros esvaziaram as expectativas dos estadunidenses. De qualquer forma, vários dos interventores colocados à força pelo golpe militar conseguiram ganhar alguma legitimidade e formar grupos políticos que controlariam os sindicatos por anos a fio. No jargão sindical, eram comumente chamados de “pelegos”.

    Entidades empresariais, como a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), celebraram a nova era. Exasperados com a presença dos trabalhadores na esfera pública e suas crescentes demandas por direitos no período imediatamente anterior a 1964, bem como incomodados com o incremento da organização operária nos locais de trabalho, empresários, gerentes e supervisores viram no golpe a chance da “revanche patronal”. Além da repressão direta a dirigentes sindicais e líderes conhecidos, milhares de trabalhadores ativistas, delegados de base ou mesmo mero simpatizantes dos sindicatos e de organizações de esquerda foram demitidos e, graças às infames “listas negras”, tiveram imensas dificuldades para conseguir novos empregos. A aliança entre empresários e a polícia política (o famigerado Departamento de Ordem Política e Social, conhecido pela sigla DOPS) vinha de longe, mas se tornou ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguição passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e capangas a serviço de latifundiários. 

    Fabricando o milagre

    A nova política trabalhista do governo do primeiro ditador instalado pelo golpe, o General Castelo Branco (1964-1967), consolidou-se com um plano arquitetado pela coalizão de civis tecnocratas e militares, formulado especificamente pelos ministros Roberto Campos, do Planejamento, e Octávio Bulhões, da Fazenda: o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG). O programa tinha como objetivo principal conter o processo inflacionário e acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico por meio da livre iniciativa de mercado. O controle dos salários era um aspecto essencial do plano. Não por acaso, estima-se que entre 1964 e1968 tenha ocorrido uma queda real de cerca de 30% no valor do salário mínimo. Aos trabalhadores eram pedidos “sacrifícios” em nome da almejada estabilidade econômica.

    Novas leis visando o controle salarial, a contenção de greves e protestos e o fim da estabilidade por tempo de serviço deram um arcabouço institucional para as medidas anti-trabalhistas do regime. Também criaram um ambiente econômico que facilitava enormemente as demissões e a rotatividade da mão de obra. Essa política econômica era pouco popular. A expressão “arrocho salarial” se tornou lugar comum entre os trabalhadores e mesmo os sindicalistas que apoiavam o novo regime tinham dificuldades em defender várias dessas medidas. Muitos passaram a criticar o governo. Castello Branco se via reiteradamente obrigado a repetir, em vão, que “a Revolução”—termo pelo qual os militares e seus apoiadores denominavam o golpe—“não era contra os trabalhadores”.

    A insatisfação crescente, a radicalização de setores da esquerda e os movimentos de massa desencadeados por estudantes em 1968 criaram um ambiente propício para o crescimento do protesto dos trabalhadores. Greves começaram a pipocar no campo e na cidade. As paralizações dos metalúrgicos em Contagem, Minas Gerais, e dos canavieiros na cidade de Cabo, Pernambuco, surpreenderam e assustaram o governo, que acabou aceitando parte das reivindicações. Já a famosa greve dos metalúrgicos de Osasco, em São Paulo, foi exemplarmente reprimida. Com a decretação do Ato Institucional n. 5 e fechamento do regime, o medo e o controle social passaram a definitivamente dominar a sociedade brasileira.

    O ano de 1968 não marcou apenas o aprofundamento da ditadura e o início de sua fase mais repressiva. Foi também o momento em que a economia brasileira superou a crise dos anos anteriores e adentrou um período de forte crescimento, o que deu popularidade ao regime. Beneficiando-se de uma conjuntura global bastante favorável ao fluxo de investimentos e empréstimos internacionais, a política econômica—propagandeada como “milagre econômico brasileiro”—levou o país a taxas de crescimento anuais superiores a 10% por anos consecutivos.

    O país atraiu o investimento direto de empresas multinacionais, em particular, no setor industrial de bens de consumo duráveis. De fato, para além dos incentivos fiscais e da ampliação do crédito para as empresas, o próprio clima repressivo de arrocho salarial e de contenção das demandas sociais era um fator decisivo para os industriais nacionais e estrangeiros, favorecidos pela intensa exploração de uma mão-de-obra abundante e barata cujo protesto era fortemente cerceado.  O “milagre” também era embalado pela política nacionalista da ditadura que imaginava “integrar” e transformar o país numa potência internacional: o “Brasil Grande”. Assim, amplos investimentos em infraestrutura, em particular nas áreas de transportes, telecomunicações e energia, marcariam aqueles anos.

    O milagre não completou uma década: o ano de 1973 marcaria uma inflexão na política econômica do regime. O aumento dos preços do petróleo determinado pelos países produtores provocou uma crise de dimensões globais. Diante da instabilidade internacional, o governo do Ernesto Geisel, ditador que tomou posse em março de 1974, decidiu colocar o “pé no acelerador” da economia para garantir crescimento, popularidade e força política. O II Plano Nacional de Desenvolvimento procurava ajustar a economia nacional ao novo momento de crise do petróleo, redobrando a aposta na industrialização, em particular nos setores de bens de capital e na infraestrutura energética. O governo ditatorial dos militares procurava completar o processo de industrialização do país. Para tanto, lançava mão, de forma afutoritária, vários mecanismos empregados pelo Estado desde a década de 1930, como o planejamento, o protecionismo e o largo uso de empresas estatais.

    Essa industrialização acelerada, no entanto, era acompanhada de dois flagelos que marcariam a economia brasileira durante quase duas décadas: a inflação e o endividamento externo. Esses problemas ficaram evidentes quando duas gigantescas crises internacionais atingiram o país em cheio: uma nova crise do preço do petróleo em 1979 e a crise da dívida externa latino-americana no início dos anos 1980.  Ocorridas durante o governo do último ditador, João Batista Figueiredo, as crises conjugadas e o receituário proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) provocaram uma brutal recessão econômica, ampliaram o desemprego, disseminaram a fome e azedaram de vez o humor popular em relação ao regime dos militares.   

    Modernização conservadora

    A ditadura também pretendia redimensionar a questão agrária no país, sem alterar a estrutura fundiária, tema tão fundamental nos debates políticos das décadas anteriores. O regime impulsionou uma enorme transformação no mundo rural brasileiro, estimulando a transformação dos latifúndios em empresas, a expropriação de pequenos camponeses, a migração de agricultores, em particular do sul do país (vistos como empreendedores e etnicamente superiores em relação às populações racializadas) e a ocupação de novas fronteiras agrícolas no Centro-Oeste e na região amazônica—institucionalizando a relação entre elites agrárias e forças conservadoras que perdura até hoje. A expressão “modernização conservadora” se consagraria como uma síntese da política econômica da ditadura como um todo.

    Apesar do ambiente repressivo, da censura e da retórica nacionalista do governo, a alta concentração de renda, a intensificação dos problemas sociais e a inflação eram denunciadas por sindicalistas, intelectuais e setores da sociedade civil como o “outro lado” do “milagre”. De qualquer forma, a propaganda oficial divulgava uma imagem do Brasil do “milagre” como um país promissor em que migrantes rurais, agora na cidade, trabalhavam na construção civil, nas fábricas, enquanto suas mulheres, como empregadas domésticas em lares de classe média poderiam adquirir hábitos “civilizados” e “modernos”. Fuscas, geladeiras e aparelhos de televisão eram os símbolos daquela era. 

    De toda forma, apesar do crescimento econômico e das brechas para alguma mobilidade social, as profundas desigualdades sociais do país eram percebidas por milhões de trabalhadores como a marca dominante do regime militar e um denominador de identidades e demandas em comum no final dos anos 1970 e início dos 1980. O crescimento econômico aumentou a concentração de renda, beneficiando empresários, uma alta classe média gerencial, profissionais liberais e os estratos superiores da burocracia estatal. As políticas de arrocho salarial e de controle social murcharam o peso da massa salarial no PIB nacional. A ditadura entregava um país em que os ricos eram ainda mais ricos e os pobres ainda mais pobres. O crescimento da inflação a partir de meados dos anos 1970 ampliou a sensação de perda e empobrecimento. 

    A ditadura dos generais chegava ao interior das fábricas, fazendas, canteiros de obras e locais de trabalho como a ditadura dos patrões e feitores. A experiência cotidiana do trabalho foi sentida com o temor do despotismo gerencial. O trabalho era vivido como um espaço de superexploração. Ritmos intensos com longas jornadas recheadas de horas extras, frequentemente com riscos à saúde e à integridade física. Nos anos 1970, o país chegou a ser o “campeão mundial de acidentes de trabalho”, naturalizados numa lógica de descarte humano e violências corriqueiras.

    O fim daquela década foi marcado por uma dupla crise. De um lado, a deterioração do modelo econômico dos militares: o esgotamento do “milagre”. De outro, um crescente desgaste político e perda de legitimidade. Apesar de ainda controlarem o processo político, com a proposta de uma distensão lenta e gradual, os militares, na segunda metade da década de 1970, viam o crescimento da oposição e a mobilização de numerosos setores sociais demandando o fim do regime e a volta da democracia. 

    Ditadura e formação de uma “nova” classe trabalhadora

    A década de 1970 também era um momento de profundas metamorfoses nos mundos do trabalho. Uma classe trabalhadora mais ampla e ainda mais multifacetada e diversificada emergiu no Brasil ao longo daqueles anos. As transformações econômicas e sociais que vinham das décadas anteriores e as variadas tradições políticas e culturais presentes no movimento dos trabalhadores reconfiguraram os processos de formação e identidade de classe. As greves no final da década e sua politização em um contexto de luta contra a ditadura militar deram visibilidade e autorreconhecimento para essa “nova” classe trabalhadora, fenômeno que atravessou as várias categorias profissionais e regiões do país.

    Era, sobretudo, uma classe trabalhadora marcada por intensos processos de urbanização e migração. Se em algum momento da década de 1960 a maior parte da população do país passou a morar em cidades, em 1980 já tínhamos 68% de brasileiros vivendo no mundo urbano. As periferias das capitais e as cidades no seu entorno, as chamadas regiões metropolitanas, tornaram-se os lugares “típicos” de moradia de milhões de trabalhadores. As favelas, fenômeno ainda mais antigo e também estigmatizado pela precariedade, racialização e autoconstrução de moradias, também se periferizaram naqueles anos. 

    A “espoliação urbana” foi central na vida de milhões de trabalhadores, mas as periferias e favelas também foram espaços fundamentais para a construção de sensibilidades e sociabilidades, trocas culturais e formação de identidades nas quais as experiências de moradia e de trabalho constituíam um universo comum de lutas por direitos e reconhecimento. Não por acaso, foram nas periferias e favelas que se desenvolveram naqueles mesmos anos uma intensa vida associativa e experiências organizativas que renovaram o repertório de ação coletiva da classe trabalhadora e seu impacto no espaço público do país durante a redemocratização e nas décadas seguintes.

    A classe trabalhadora forjada naqueles anos também era marcada pelas migrações internas. Estima-se que, entre 1950 e 1980, quase 40 milhões de brasileiros tenham tido algum tipo de experiência migratória, em particular deixando as regiões rurais e dirigindo-se para as cidades. O Nordeste e Minas Gerais são popularmente conhecidas como as regiões de onde saíram a maior parte desses migrantes rurais, em particular para as áreas metropolitanas das grandes cidades do Sudeste. 

    Tratava-se também de um país jovem com uma classe trabalhadora jovem. Embora as taxas de natalidade começassem a declinar rapidamente, a idade média dos brasileiros em 1980 ainda era de cerca de 20 anos. No mesmo ano, por volta de 70% da população com mais de 15 anos não tinha a educação primária completa e a entrada no mercado de trabalho era precoce. Era também um mundo do trabalho com maior presença feminina no emprego formal. A participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil saltou de 21% em 1970 para quase 28% em 1980. Premidas pelas dificuldades do orçamento familiar e por mudanças em um mercado de trabalho aquecido, essas jovens trabalhadoras ocupavam funções mal remuneradas, com pouca perspectiva de promoção e socialmente consideradas pouco qualificadas. Eram mais facilmente demitidas e o casamento e a maternidade dificultavam a admissão e a manutenção nos empregos. Em 1973, o salário médio feminino era 60% inferior ao masculino.

    Apesar dessa condição subordinada das mulheres, sua presença no mercado de trabalho impactava as relações de gênero e desafiava as visões tradicionais sobre o lugar delas na sociedade. A crescente emancipação econômica feminina teve um papel central na transformação dos modelos familiares e na arena pública. Não é possível entender tanto os movimentos de mulheres e a onda feminista do final dos anos 1970 quanto a emergência de movimentos sociais em geral na redemocratização sem compreender o lugar e a ação dessas mulheres trabalhadoras.

    A década de 1970 consolidou a estruturação de um mercado de trabalho complexo e diversificado. As políticas desenvolvimentistas do regime impulsionaram a indústria de transformação, o setor de energia e a construção civil como os setores que seriam o alicerce da economia naqueles anos. Ocupações e profissões nessas áreas cresceram e passaram a ter um papel particularmente destacado no mercado de trabalho, com destaque para metalúrgicos, trabalhadores da construção civil, trabalhadores do setor de energia e transportes, além da ampliação do funcionalismo público em geral.

    A busca por dignidade, respeito e autonomia estava no ar em milhares de locais de trabalho Brasil afora no final dos anos 1970. Ela unia milhões de trabalhadores que se sentiam humilhados, oprimidos e explorados. Quando as primeiras fábricas e usinas entraram em greve, muitos perceberam que era possível lutar, protestar e reivindicar uma vida diferente.

    Na segunda metade dos anos 1970, mesmo cerceada pela repressão ditatorial, uma onda associativa tomava conta dos bairros da classe trabalhadora no Brasil. Sociedades Amigos de Bairro, Associações de Moradores, clubes de mães, coletivos de ajuda mútua, grupos reivindicando saúde, educação e transportes públicos, entre várias outras organizações, compunham um mosaico de associações populares que se proliferaram em todo o país. Fragmentadas, dispersas geograficamente e com práticas de resistência cotidianas e miúdas, essas associações foram, paulatinamente, criando mecanismos de autorreconhecimento, constatando experiências comuns e construindo uma identidade coletiva. Durante a redemocratização, esse autointitulado “movimento popular” começou a atuar de forma mais ampla, ocupando o espaço público com protestos, manifestações e passeatas e articulando-se com lideranças das oposições no mundo político, ao mesmo tempo que chamava a atenção das autoridades, particularmente no nível local.

    Os setores progressistas da Igreja Católica tiveram papel fundamental nesse processo. Presente na vida política brasileira desde antes do golpe de 1964, a esquerda católica tornou-se hegemônica em diversos setores da Igreja entre o final da década de 1960 e início dos anos 1970 e foi um ator central tanto na oposição ao regime militar quanto na reconfiguração da atuação da classe trabalhadora na esfera pública nos anos da redemocratização. Como um fenômeno internacional, com particular presença na América Latina, a chamada “Teologia da Libertação” articulava um conjunto de práticas e teorias que representariam uma guinada da Igreja à esquerda e um compromisso com a emancipação social. As comunidades eclesiais de base (CEB’s), ao lado das pastorais temáticas (operária, da terra, dos indígenas, etc) foram os fenômenos que melhor simbolizaram a ação da Igreja Católica progressista naqueles anos.

    No entanto, essa efervescência associativa não deve ser exagerada. Apesar do caráter informal da relação dos setores populares com os movimentos sociais e das ausências de dados sobre as variadas formas de como as pessoas se associam, era uma parcela minoritária da população que efetivamente estava organizada. As antigas hierarquias de dominação social continuavam a ser muito poderosas e questões como a violência urbana despertavam reações bastante conservadoras e autoritárias, inclusive nas periferias e favelas—tema que seria cada vez mais explorado pela direita política nos anos vindouros. De toda forma, era evidente um salto qualitativo na participação popular, na politização da classe trabalhadora e na construção de um imaginário coletivo “do direito a ter direitos”.

    Sindicalismo e redemocratização

    No final da década de 1970, era o sindicalismo o movimento social que melhor catalisava a insatisfação e as demandas populares, ao mesmo tempo que articulava uma identidade coletiva e uma linguagem comum. E foram as greves massivas e disseminadas do período o repertório de ação coletiva que mais deu visibilidade a essa presença dos trabalhadores na arena pública e nas lutas políticas pela redemocratização do país.

    Os metalúrgicos do ABC paulista foram protagonistas centrais desse movimento. ABC paulista é o nome dado a um conjunto de municípios industriais no entorno da cidade de São Paulo. Desde o final dos anos 1950, se instalou nessa região um parque industrial em torno da produção automobilística que, para muitos, era o símbolo da modernidade capitalista brasileira. Foi ali que sucessivas greves nos anos de 1978, 1979 e 1980 impactaram fortemente as lutas sociais e o processo de redemocratização.

    Apesar da pressão patronal e da repressão policial, essas paralisações foram massivas e entusiasmantes. Em plena ditadura, era impressionante ver milhares e milhares de trabalhadores, simples “peões”, lutando por seus direitos e desafiando os militares e poderosas empresas multinacionais. As imagens das assembleias repletas no Estádio de Vila Euclides, comandadas por Lula, um carismático e emergente líder popular, eram transmitidas para todo o país por jornais e canais de televisão recém liberados de várias amarras da censura governamental.

    Mas os movimentos de protesto dos trabalhadores estiveram longe de se resumir somente aos metalúrgicos do ABC. A paralisação do ABC e as imagens de Vila Euclides simultaneamente catalisaram e impulsionaram uma das mais impressionantes ondas grevistas da história do Brasil. Além de setores com antiga tradição sindical, como os trabalhadores industriais, de transporte e do petróleo, greves de trabalhadores rurais, bancários, servidores públicos, professores, entre outros, tomaram conta do país, com a participação de milhões de pessoas, apesar da pressão e das tentativas de controle por parte do governo militar.  Somente em 1979, mais de 3 milhões de trabalhadores e trabalhadoras paralisaram suas atividades em algum momento nas 246 greves que varreram o país de norte a sul, nas cidades e no campo. 

    Apesar da recessão econômica e da diminuição das greves, o começo da década de 1980 foi um momento intenso para o sindicalismo e os movimentos sociais em geral. Foi uma época de reorganização e institucionalização. A emergência pública das lutas sociais no final da década de 1970 havia mobilizado milhões de pessoas e milhares de novos militantes haviam surgido. A oposição ao regime politizou de forma inédita muitos daqueles movimentos sociais e a reorganização partidária e o ocaso da ditadura abriam espaço para novos arranjos e alianças políticas, que variavam muito local e regionalmente.

    A ditadura, em seu crepúsculo, era desafiada por um amplo e diversificado leque de movimentos sociais e políticos. A oposição ao regime era pluriclassista, mas seus setores mais aguerridos e combativos se identificavam como membros da classe trabalhadora e clamavam não apenas por um Estado de Direito formal, mas por uma “verdadeira democracia” que reconhecesse a dignidade do trabalho e os direitos humanos, que combatesse as desigualdades sociais e que construísse um país justo e democrático.

    As diferentes estratégias e vozes oposicionistas confluíram para um amplo movimento entre o final de 1983 e 1984. Vinte anos depois de instalado à força, o regime militar enfrentava gigantescas manifestações políticas em que milhões de brasileiros em todo o país exigiam a volta da democracia. Os movimentos sociais populares e o sindicalismo tiveram papel ativo e fundamental na mobilização das massas durante a campanha das Diretas Já. Mas, assim como a campanha, foram derrotados. Dividiram-se em diferentes caminhos em relação à articulação política que envolveu setores majoritários da oposição e correntes do regime ditatorial e que acabou vencedora na transição da ditadura para a democracia levando ao poder a chapa Tancredo Neves e José Sarney.

    O impacto dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais na arena pública, no entanto, ainda estava longe de se esgotar. Embora muitos analistas, cientistas políticos e historiadores da redemocratização tendam a negligenciar esse papel, reforçando uma visão elitista de que a transição política teria sido fundamentalmente conduzida no interior de quartéis e gabinetes, é impossível compreender a história do país nos últimos 40 anos sem compreender o lugar da classe trabalhadora, suas organizações, lideranças e lutas naqueles anos.

     


  5. A transição que não cabe no portfólio

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    Em um recanto bucólico da cidade de Grande Manchester, na Inglaterra, um singular experimento financeiro vem sendo desenvolvido. Até pouco tempo atrás, a renda da família proprietária da fazenda Yate Fold, perto de Bolton, vinha majoritariamente da produção de laticínios. O pasto era de baixa qualidade e o mercado de produtos orgânicos se tornava cada vez mais instável. Mesmo assim, todas as manhãs, pai e filho ordenhavam as oitenta vacas da propriedade, o que comumente resultava em jornadas de trabalho superiores a 70 horas semanais.

    Hoje, a Yate Fold abriga um dos dos vinte e cinco “bancos de habitat” concebidos pela gestora de ativos britânica Gresham Gouse. Essa “nova classe de ativos de infraestrutura”, como são chamados pelo diretor-geral da empresa, foi possibilitada pela Lei Ambiental de 2021 do Reino Unido, que exige que incorporadoras comprovem um aumento mínimo de 10% de biodiversidade em terras nas quais estão construindo—o termo técnico é “ganho líquido de biodiversidade”. Os bancos de habitat permitem que, ao invés de fazer isso diretamente no local da obra, as construtoras comprem “Unidades de Biodiversidade” e cumpram com as obrigações legais em outros lugares. 

    Como parte do esquema, o Environment Bank, empresa de portfólio que faz parte do Fundo Britânico de Infraestrutura Sustentável da Gresham House, arrenda terras agrícolas de baixa produtividade e manejo intensivo por um período de 30 anos para criar novos habitats de biodiversidade, como áreas florestais e zonas úmidas. Para isso, envia seu time de ecologistas aos locais dos bancos de habitat para que ajudem os proprietários das terras no processo de recuperação. No caso de Yate Fold, a introdução de uma nova raça de gado promoverá um modelo de pastagem mais sustentável, garantindo a conservação e, ainda, “a valorização do preço da carne”, segundo avaliação do proprietário da fazenda. 

    Enquanto isso, empresas como a Aldi, a National Grid e até mesmo o Everton Football Club já começaram a correr atrás do licenciamento necessário para comprar Unidades de Biodiversidade do Environment Bank. À medida que aumenta a biodiversidade de determinado banco de habitat, aumenta também o número de Unidades de Biodiversidade que podem ser atreladas a ele—na prática, isso possibilita ao Environmental Bank comercializar um número maior de Unidades de Biodiversidade e eleva, assim, o valor do “ativo de biodiversidade” da Gresham Gouse.

    O que poderia haver de ruim nisso? Todo mundo faz uma graninha—ou economiza, no caso dos incorporadores—em troca de restaurar a flora e a fauna que há séculos não são vistas em terras agrícolas esgotadas. Mas, infelizmente, as coisas não são tão simples. No grande rol de projetos destinados a tornar a natureza “investível”, há razões de sobra para acreditar que iniciativas desse tipo terão ainda menos sucesso do que aquelas voltadas a descarbonizar os setores de energia e transporte—não só porque o financiamento disponível é insignificante se comparado à cifra destinada a tais setores, mas também em razão do grau de incerteza que envolve a gestão desses “ativos de biodiversidade”. Olhar para o quadro geral dos fluxos de financiamento climático—bem como para os demais setores e demandas materiais envolvidos na transição verde—nos permite identificar as limitações fundamentais do regime de governança climática vigente e avaliar potenciais alternativas. 

    O preço da investibilidade

    Os bancos de habitat são a última novidade de uma série de políticas públicas e instrumentos financeiros “verdes” desenvolvidos na última década. Por trás desse tipo de proposta está a propagação de um consenso arrebatador entre governos e comentaristas econômicos acerca do regime correto para a promoção da transição verde.

    O lema desse regime é “investibilidade”. Isso significa que a escolha por se envolver em determinada atividade econômica ou implementar determinada política pública depende de uma resposta positiva à seguinte pergunta: esse projeto será capaz de atrair financiamento privado? Partindo dessa premissa, governos e bancos de desenvolvimento nacionais e multilarerais buscam amenizar a percepção de risco para investimentos relacionados a infraestruturas fundamentais para a descarbonização—de parques eólicos e usinas termossolares a fábricas de veículos elétricos. Entre os instrumentos empregados estão mudanças nas políticas fiscal e monetária—como concessão de subsídios, garantias de crédito barato e isenções tributárias—e intervenções de caráter regulatório para criar condições de mercado mais favoráveis ou estáveis—como garantias de acesso à rede pública de eletricidade. O objetivo é sempre o mesmo: amparar a caminhada do capital financeiro em direção a classes de ativos de menor risco.

    Em grande parte, o regime da investibilidade é uma continuidade de experimentos anteriores de governança subordinada ao mercado, fundados na premissa de que a internalização do prejuízo ambiental futuro em cálculos de custo levaria atores do mercado a comprar, vender e investir de formas menos danosas ao planeta. Mas ele também reflete as transformações do capital financeiro e a distribuição da propriedade nos mercados globais desde a crise financeira de 2008, caracterizadas pela ascensão de um “capitalismo de gestores de ativos” e, concomitantemente, por uma mudança do papel do Estado na gestão econômica—que deixou de ser responsável por consertar os mercados em momentos de crise para se encarregar de criar e assegurar ativamente suas condições. Agora, o potencial prejuízo da crise climática não é mais suficiente para mobilizar investidores. Eles precisam estar seguros de que determinado investimento é não apenas mais barato, mas também mais lucrativo que outro. 

    Seria impreciso afirmar, no entanto, que essa abordagem não produz resultados. No setor de energias renováveis, há diversos casos em que os esforços públicos de redução dos riscos de investimentos em infraestrutura tiveram sucesso em mobilizar o financiamento privado. A questão é que, frequentemente, esse “sucesso” acaba reforçando assimetrias de poder entre investidores, prestadores de serviços públicos e o próprio Estado e, ainda, exacerbando desigualdades entre donos dos ativos de infraestrutura, em geral localizados no Norte global, e comunidades que vivem nos territórios em que esses ativos são efetivamente instalados.

    Mesmo assim, o império do regime de investibilidade na transição energética não vem funcionando na escala nem no ritmo necessários para salvar o planeta. Para cada caso de sucesso apontado nos relatórios anuais dos bancos de desenvolvimento e nas estratégias industriais dos governos, há muitas histórias de fracasso em atrair o interesse dos investidores. Isso é ainda mais comum no caso de projetos que não envolvem subsídios diretos, ainda que as condições regulatórias e os termos financeiros impliquem riscos menores—e lucros potenciais maiores—em relação a cenários de ausência de intervenção estatal. 

    A paisagem completa

    O fator que mais depõe contra o regime da investibilidade é a persistência—e a velocidade do crescimento anual—do chamado “déficit de financiamento para alcançar emissões líquidas zero”, métrica que se consolidou após a adoção do Acordo de Paris, em 2015. Em 2022, uma análise feita pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) concluiu que os investimentos necessários para limitar o aquecimento global a menos que 1,5 °C até 2050 deveriam ser de três a seis vezes superiores aos níveis então verificados. O Climate Policy Institute estima que, para alcançar emissões líquidas zero em nível global, seriam necessários investimentos anuais de US$ 6,2 trilhões de dólares entre 2023 e 2030 e US$ 7,3 trilhões até 2050—totalizando quase US$ 200 trilhões. Enquanto isso, o primeiro registro de investimentos climáticos anuais superiores a US$ 1 trilhão data de 2022. Paradoxalmente, o déficit de financiamento segue sendo a principal justificativa para a estratégia de redução de riscos na busca pela transição verde.

    Como se não bastasse a escala de investimentos ainda necessários, há, também uma gritante desproporção no direcionamento do financiamento não apenas para a descarbonização, mas para a adaptação às mudanças climáticas e para a recuperação da biodiversidade—essencial para os esforços de mitigação da crise.

    Dados da Climate Policy Initiative revelam que, do financiamento total destinado à mitigação da mudança climática, os recursos privados foram massivamente canalizados para os setores de energia e transporte, que responderam por 44% e 29%, respectivamente, de toda a cifra investida entre 2021 e 2022. Enquanto isso, menos de 4% do total foram direcionados aos demais setores responsáveis por grandes emissões, como a agricultura e a indústria, apesar de o IPCC reconhecer que essas são áreas com maior potencial de contribuir para a mitigação do que as de energia e transporte. Ainda mais chocante é o fato de que, enquanto o financiamento para mitigação somou US$ 1,15 trilhão entre 2021 e 2022, a cifra destinada à adaptação ou a atividades de benefício “duplo” no mesmo período—o que inclui medidas voltadas à proteção e restauração de matas nativas—representou um décimo desse valor: US$ 114 bilhões, dos quais apenas 2% vieram do setor privado.

    No que diz respeito à biodiversidade, o fracasso em atingir as metas globais pode ser atribuído, mais uma vez, ao abismo entre o financiamento necessário e o gasto efetivo. Estima-se que os invesitimentos necessários para reduzir as perdas de biodiversidade foram entre cinco a sete vezes inferiores ao nível exigido. E, como já destacado por economistas ambientalistas, apesar da inerente incompatibilidade entre as estratégias de conservação da natureza—que exigem atividades de pequena escala e cultivo paciente—e as prioridades do capital financeiro—retornos de curto prazo, idealmente em grande escala—, também elas foram foram progressivamente dominadas pelo regime da investibilidade.

    Se a pouca atratividade dos investimentos em energia solar e eólica, como afirma Brett Christophers, foi o que solapou o sucesso da transição para fontes renováveis até agora, o cenário para os outros setores é desolador. A lógica da investibilidade evidencia como os bancos de habitat no Reino Unido e experimentos semelhantes dificilmente deixarão de ocupar uma posição marginal na atração de financiamento privado—não serão, portanto, a bala de prata para a questão da biodiversidade propagandeada por seus proponentes.

    A verdade é que projetos de sequestro de carbono envolvendo o manejo de vegetação nativa, transições agrícolas e recuperação da natureza são, de fato, cercados de profundas incertezas, especialmente relacionadas ao próprio colapso ambiental. Mesmo no caso do Reino Unido, que nem de longe figura entre os mais afetados pela crise planetária até o momento, é impossível saber como um pedaço de terra responderá a tentativas de restauração da vida selvagem, uma vez que a mudança climática tem impactos diretos sobre o padrão de migração das espécies. Além disso, talvez a maior fragilidade dos ativos de biodiversidade seja a ausência de uma mercadoria paupável na ponta final do investimento. O valor do crédito—ou o número de Unidades de Biodiversidade, no caso dos bancos de habitat—depende integralmente da manutenção do sistema de governança em que esses ativos estão inseridos. O cálculo desse valor, portanto, está sob risco constante de revisão ou contestação social. Em um cenário global no qual o abandono de compromissos climáticos é cada vez mais comum, a mera boa-fé dos agentes reguladores dificilmente será suficiente para convencer Wall Street. 

    Em geral, iniciativas de combate à crise climática ligadas ao manejo da vegetação nativa e à agricultura afetam os atores resposáveis pela degradação ambiental em um prazo muito mais curto e em áreas muito mais abrangentes do que, por exemplo, aquelas ligadas à descarbonização dos setores de energia e transporte.1Christophers apresenta uma das justificativas para esse foco na energia no capítulo de abertura de (<)em(>)The Price Is Wrong(<)/em(>): “O gás cujas emissões são mais danosas é o dióxido de carbono (CO(<)sup(>)2(<)/sup(>)). Por sua vez, o grosso das emissões antropogênicas de CO(<)sub(>)2(<)/sub(>) deriva da queima de combustíveis fósseis—carvão, petróleo e gás natural. E a atividade responsável pela queima da maior parte dos combustíveis fósseis é a geração de eletricidade”. A energia e a eletricidade são as maiores culpadas pelo aquecimento de nosso planeta e, portanto, segundo esse argumento, são as maiores merecedoras de nossa atenção. De vez em quando, embora com menor frequência, talvez, nesta nova aurora de negacionismo climático descarado e capitulação desmedida, também ouvimos a reprimenda de que pôr em foco a adaptação à mudança climática e o sequestro de carbono traz o risco de legitimar a inação de poluidores corporativos, que podem se safar e persistir em seu “(<)em(>)drill, baby, drill(<)/em(>)” ao apontar para o financiamento com créditos de carbono de seus projetos de plantio de árvores nos trópicos. Para além dessa linha de pensamento específica, os interesses epistêmicos daqueles que estudam a economia política da transição verde os inclina a, com muita leniência, pesquisar mais sobre energia e transporte do que, digamos, sobre reflorestamento e agricultura. Quando seguimos o dinheiro, vimos que é nos setores de energia e transporte que boa parte da ação acontece hoje. Reflorestamento e agricultura também são locais críticos de poder corporativo e de contestação a ele, mas é na transição energética e dos transportes, em particular, que a geopolítica, as lutas dos atores em cena e os choques entre Estado e grandes finanças são mais visíveis e mais vigorosos, para quem observa a partir das metrópoles da Europa e da América do Norte. Também são essas as batalhas setoriais que mais chamam a atenção da mídia que consumimos—o que não é nenhuma surpresa, dados os seus interesses: a ascensão e a queda de um produtor sueco de baterias têm mais chances de chegar à capa do (<)em(>)Financial Times(<)/em(>) que a luta das comunidades indígenas pelo plantio florestal no Chile. O fato de que a produção de combustíveis fósseis poder continuar e até mesmo se expandir paralelamente ao crescimento de infraestruturas dedicadas a energias renováveis é, certamente, um problema existencial. Mas quando a instalação de infraestrutura renovável não exige a substituição imediata de ativos ligados a combustíveis fósseis—a construção de um parque eólico e de uma plataforma de fracking podem acontecer simultaneamente em duas áreas de um mesmo estado dos EUA, por exemplo—, o capital financeiro não enxerga a primeira como uma ameaça à segunda. Ao menos em tese, o declínio no volume de combustíveis fósseis pode ser “administrado” gradativamente, com o passar do tempo, garantindo que os mercados terão tempo para se preparar. Mas essa premissa não é válida para iniciativas de transição verde que competem com usos correntes das mesmas terras e infraestrutura. Muitos projetos de expansão das florestas nativas, por exemplo, exigem o fim da produção de celulose ou do plantio de árvores voltadas à comercialização de madeira, atividades lideradas por empresas poderosas e, muitas vezes, oligopolistas. Dinâmicas semelhantes podem ser observadas em setores como agricultura e mineração, onde os “riscos de transição” que afastam investidores potenciais incluem os custos iniciais de adaptação ou substituição de tecnologias e infraestruturas atualmente existentes, o que implica também a redução da produção no curto prazo. 

    A investibilidade é uma escala em que os interesses dos investidores são contingentes em relação a uma enorme diversidade de riscos e incertezas materiais, à habilidade deles em administrá-los e à habilidade dos governos para sinalizar que tais riscos foram ou podem ser reduzidos.

    Olhar para quem o mercado ignora

    Apesar da existência de algumas vozes críticas, pesquisadores e analistas interessados na economia política das transições verdes no Norte global têm se concentrado maciçamente nos setores de energia e transporte. Em muitos países do Sul, ao contrário, a relação entre preservação da natureza e resistência ao colapso planetário está, há tempos, no cerne da literatura ambiental. 

    Analisar as diferenças quantitativas e qualitativas dos fluxos de financiamento climático entre os diferentes setores da transição é fundamental também para ajudar a esclarecer as limitações do regime de investibilidade dentro de setores específicos. Tentei, em minha pesquisa, fazer algo nesse sentido, partindo da premissa de que as iniciativas setoriais inseridas em estratégias nacionais de transição verde desenvolvidas por diversos governos desde o Acordo de Paris são caracterizadas por diferentes graus de investibilidade.

    Na maioria dos casos, alcançar a neutralidade de carbono exigiria a implementação integral das políticas previstas nesses planos. Mas, analisando os exemplos práticos, é possível notar que o grau de esforço voltado à implementação de cada uma delas, independentemente da importância da contribuição efetiva que cada uma poderia ter, variava consideravelmente. Em algumas áreas políticas—com destaque para o hidrogênio verde—, governos haviam investido grandes somas para recrutar equipes especializadas e bem equipadas para gerenciar e coordenar investimentos públicos e projetos de infraestrutura. Em outras áreas, como o reflorestamento com árvores nativas no Chile e a agricultura alternativa na Dinamarca, no entanto, o progresso foi comparativamente mais fraco e mais lento, ainda que, no contexto doméstico, esses setores fossem mais importantes para a mitigação. O investimento público vinha sendo majoritariamente canalizado para aqueles setores da transição considerados mais investíveis, seguindo o critério de oferecer as maiores garantias possíveis para atrair financiadores privados.

    O desenvolvimento desigual da capacidade estatal entre os setores críticos em nível planetário é preocupante não apenas pelo que representa para a busca da neutralidade de carbono no presente, mas também porque aprisiona os caminhos futuros à abordagem contemporânea. É evidente que o papel do Estado não está gravado em pedra; conjunto de organizações que formam os governos contemporâneos está em constante evolução e adaptação. Mas existe um grau de dependência de trajetória: o que os governos fazem ou não hoje importa para aquilo que poderão fazer amanhã.

    Para além de aprofundar a compreensão de como as transições verdes estão se desdobrando, a economia política desses outros setores-chave em nível planetário também permite identificar outras abordagens de governança possíveis—maneiras alternativas de organizar nossas economias que não deixassem de ser benéficicas para a transição dos setores mais investíveis. Quais recursos precisamos para recuperar nas terras agriculturáveis menos produtivas na Grande Manchester ou nas florestas nativas da Patagônia? Como podemos fazê-lo, em escala, na ausência dos flertes contingentes do capital financeiro? Sem o engodo da investibilidade, o capital financeiro não poderá nos aprisionar.


  6. Planejamento indicativo verde

    Comentários desativados em Planejamento indicativo verde

    Transições energéticas em todo o mundo estão diante de um impasse. Com a proposta do governo Trump de revogar a Lei de Redução da Inflação e a mobilização da extrema direita europeia contra a legislação climática existente, a eficácia de um ambientalismo baseado em estratégias de mercado de proporcionar mitigação climática real e sem demora parece cada vez mais improvável. Enquanto o relógio do clima avança, democracias liberais são empurradas em direção a progressismos verdes vagos e cautelosos ou recrudescimentos agressivos e autoritários do modelo de crescimento liderado pelo capitalismo fóssil.

    Nesse contexto, em meio a previsões climáticas preocupantes e à falta de resolução das disputas políticas pelo futuro das economias desenvolvidas, nunca foi tão importante vislumbrar caminhos realmente viáveis para a transição verde. Embora alguns economistas da esquerda tenham começado a recorrer a ideias como “planejamento econômico democrático” ou “planejamento ecossocialista” para descrever as instituições capazes de realizar essa transição, o imperativo do planejamento—determinar metas nacionais e internacionais relativas ao tamanho e à composição da produção bruta de vários setores econômicos e alcançar os níveis de gastos públicos e privados necessários para gerar as respostas desejadas em termos de oferta—não tem a reestruturação revolucionária das economias como pré-requisito para a redução de emissões de gases do efeito estufa.1Durand, Cédric, Elena Hofferberth e Matthias Schmelzer. 2024. “Planning Beyond Growth: The Case for Economic Democracy within Ecological Limits”. (<)em(>)Journal of Cleaner Production(<)/em(>) 437: 140351. (<)a href='https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2023.140351'(>)https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2023.140351(<)/a(>). Sobre “planejamento democrático”, ver Nishat-Botero, Yousaf. 2024. “Planning’s Ecologies: Democratic Planning in the Age of Planetary Crises”. (<)em(>)Organization(<)/em(>) 31 (7): 1035–1057. (<)a href='https://doi.org/10.1177/13505084231186749'(>)https://doi.org/10.1177/13505084231186749(<)/a(>). Sorg, Christoph e Jan Groos. 2025. “Rethinking Economic Planning”. (<)em(>)Competition & Change(<)/em(>) 29 (1): 3–16. https://doi.org/10.1177/10245294241273954. Ao contrário, como argumentamos recentemente, a próxima transição energética pode ser planejada pelos Estados como existem hoje, a despeito das limitações que o capital privado—corporações multinacionais, agências de classificação de risco, investidores em títulos soberanos e investidores institucionais globais—pode impor a isso. Na verdade, o planejamento pode ser a via mais direta para que os Estados recuperem o controle sobre o capital privado em benefício do interesse público.

    A abordagem de planejamento que propomos é de natureza mais indicativa. É responsiva e complementar às instituições políticas, em vez de tentar suplantá-las, como propuseram tantos programas de transição para o socialismo no século XX. Trata-se da continuidade da longa tradição de planejamento indicativo das sociedades do pós-guerra, amplamente esquecida durante a era do neoliberalismo. A história das economias mistas herdadas da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial mostra que o planejamento econômico e a coordenação intersetorial são possíveis em democracias liberais que administram economias predominantemente capitalistas. Quando a dimensão hierárquica do planejamento permaneceu fortemente integrada aos processos deliberativos das autoridades políticas existentes, a evolução dessas economias mistas como políticas democráticas lhes permitiu alcançar suas mais resilientes configurações.

    Em economias mistas, portanto, o único caminho lúcido para escapar do impasse vigente na política climática global é o compromisso irredutível do Estado com o planejamento econômico. Definimos “planejamento econômico verde” como um sistema de coordenação que abrange arquiteturas macrofinanceiras, políticas industriais e capacidades de planejamento previamente existentes do setor privado. Trata-se de uma forma de gestão política: se adaptadas para ações climáticas ousadas, nossas economias mistas de hoje podem estar tecnicamente equipadas para promover, em um curto espaço de tempo, o hipercrescimento de setores verdes e a eliminação gradual de setores intensivos em carbono.

    Historicamente, na Dinamarca, na França, na Holanda e no Japão, a forte coordenação entre Estados e elites empresariais levou a uma série de arranjos de planejamento econômico bem-sucedidos. A China, economia de crescimento mais rápido do mundo (ainda que não democrática), é outro exemplo de planejamento estatal associado a um setor privado altamente empreendedor—e muitas estratégias chinesas não precisam da existência de Estado-partido para serem implementadas. A persistência de determinados modelos de planejamento até o presente sugere quais estratégias podem ser mais facilmente adotadas pelas democracias capitalistas de hoje.

    Lições históricas: um manual para o presente

    Durante o século XX, o planejamento não foi uma exclusividade soviética, tampouco uma medida estritamente ligada a economias de guerra. No período pós-guerra, diversos governos capitalistas definiram objetivos econômicos transformacionais, facilitaram a negociação entre atores econômicos e influenciaram ativamente as projeções de mercado por meio de instrumentos como crédito estatal, políticas monetárias, subsídios, compras públicas e regulamentação. Ao projetar metas desejadas de investimento e produção para a economia como um todo, esses Estados “indicavam” como o capital privado poderia obter lucros em sincronia com os objetivos nacionais. O emprego desses instrumentos por diferentes países teve variados graus de incentivo e coerção: holandeses e japoneses adotaram modelos de planejamento indicativo menos coercitivos e direcionados do que os franceses, por exemplo.

    Nos Países Baixos, o planejamento indicativo se traduziu em planos geográficos flexíveis para padrões de investimento ideais, com a participação de instituições corporativistas no processo decisório.2Mastop, Hans e Rienk Postuma. 1991. “Key Notions Underlying Dutch Strategic Planning”. (<)em(>)Built Environment(<)/em(>) 17. Os planos eram coordenados por instituições governamentais nos níveis municipal, provincial e nacional, sendo que cada uma dessas instâncias desenvolvia sua própria competência de planejamento. Ainda que fosse receptivo à participação de grupos organizados, esse modelo acabou criando uma camada de planejadores de elite especializados e amplamente isolados do escrutínio público ou da interferência política. Embora se distancie da lógica mercadológica das abordagens contemporâneas de descarbonização, por focar no desenvolvimento territorial em vez do intersetorial, essa forma de planejamento seria fraca demais para os propósitos de hoje.

    O planejamento indicativo francês, em contrapartida, era mais abrangente e politizado, tendo como objetivo não só o alinhamento das decisões de investimento territorial aos interesses de atores organizados, mas também a transformação estrutural da economia nacional.3Kindleberger, Charles P. 1967. (<)em(>)Europe’s Postwar Growth: The Role of Labor Supply(<)/em(>). Cambridge, MA: Harvard University Press. Os planos eram divididos em três partes: concepção tecnocrática, controle democrático e implementação tecnocrática. Metas de crescimento nacional eram definidas pelo Ministério das Finanças e pelo Comissariado de Planejamento (composto por divisões econômicas e setoriais). O Comissariado reunia comitês temáticos específicos, responsáveis por traçar estratégias para alcançar as metas do plano. Os resultados desse processo inicial eram, então, submetidos à avaliação de um órgão corporativista formado por duzentos representantes de vários grupos de interesse, bem como ao Conselho Superior de Planejamento, que incluía ministros do governo, federações patronais e centrais sindicais. A implementação do plano envolvia a participação de empresas privadas e estatais dos setores de finanças, ferrovias, aviação e eletricidade. Coordenadas sob regras de autonomia, essas empresas precisavam ser convencidas pelo aparato burocrático de que aderir ao plano era realmente vantajoso.

    Grandes ativos estatais foram um elemento-chave desse esquema. Como demonstrou o economista Eric Monnet, dois quintos da renda nacional e metade do investimento bruto durante o período do pós-guerra vinham do Estado.4Monnet, Éric. 2012. “Monetary Policy without Interest Rates: Evidence from France’s Golden Age (1948–1973) Using a Narrative Approach”. (<)em(>)EHES Working Papers(<)/em(>) nº 32. European Historical Economics Society. Aproveitando que controlava o crédito, o Estado usou o aparato de planejamento para selecionar os setores que se beneficiariam de financiamento barato e de longo prazo. O Comissariado de Planejamento, o Conselho de Crédito, o Banco Central e os bancos estatais atuavam em sincronia, envolvendo agentes privados no processo. O Banco Central Francês, por exemplo, mediante instrumentos como alocação e políticas seletivas de crédito, desempenhou um papel crucial na orientação do crescimento econômico, na modernização industrial e na transformação estrutural, levando a França aos mais altos postos do prestígio industrial global na década de 1970.5Monnet, Éric. 2018. (<)em(>)Controlling Credit: Central Banking and the Planned Economy in Postwar France, 1948–1973(<)/em(>). Cambridge: Cambridge University Press. Após a crise do petróleo de 1973, a transformação sistêmica do setor energético francês foi absolutamente espetacular, alcançando a ampla substituição das fontes fósseis pela energia nuclear em pouco mais de quinze anos, mesmo com um aparato de planejamento já bastante afetado pela liberalização.6Hecht, Gabrielle. 2009. (<)em(>)The Radiance of France: Nuclear Power and National Identity after World War II(<)/em(>). Cambridge, MA: MIT Press. Foi um modelo de Estado desenvolvimentista no qual o governo, atuando como banqueiro, planejador e proprietário de ativos industriais essenciais, dirigiu, da manufatura à infraestrutura, transformações estruturais. O Estado liderava esse processo, mas o capital privado tinha ganhos tão substanciais que efetivamente convenciam seus representantes a participar do planejamento: entre 1954 a 1974, retornos marginais sobre o capital em cada setor apresentaram correlação positiva em em todos os anos da amostra.7Monnet, Éric. 2012. “Monetary Policy without Interest Rates”.

    O sucesso da economia japonesa do pós-guerra, por sua vez, resultou de uma estratégia no meio do caminho entre Holanda e França. Como a França, o Japão utilizou o planejamento indicativo durante a fase de indústria nascente; mas, ao contrário do Estado francês, audaciosamente dirigista, o aparato de planejamento do japonês tinha ambições indicativas mais modestas, limitando sua intervenção à imposição de restrições aos cartéis, à garantia de financiamento público de longo prazo para a política industrial e à participação em equipes de pesquisa de diversas empresas.8Sato, Kazuo. 1990. “Indicative Planning in Japan”. (<)em(>)Journal of Comparative Economics 14(<)/em(>) (4): 625–647. O fato de ter o Estado organizando a eliminação gradual das indústrias em declínio, como a do carvão, já na década de 1960, foi essencial para o planejamento verde no Japão. Assim como na França, o planejamento japonês começou a se desenvolver em um contexto de militarismo e catástrofe, com a criação de uma agência de planejamento em 1937, quando já se antecipava a iminência da guerra. Como consequência da guerra, a imensa escassez de bens e a destruição industrial generalizada garantiram a continuidade do planejamento econômico durante a ocupação estadunidense e, de maneira mais sutil, depois que o Japão recuperou sua independência, em 1952. Assim como a França, até os últimos momentos que precederam a era neoliberal, o Japão elaborou planos indicativos de cinco anos e adotou instrumentos baseados em gastos, impostos, crédito público e orientação administrativa para colocá-los em prática. Esses planos contribuíram para a diversificada e complexa expansão industrial japonesa em setores novos e de alto valor agregado ao mesmo tempo em que estabilizaram o crescimento e equilibraram o ciclo econômico. Mas, ao contrário da França, o grau de dirigismo institucional centralizado na fase de implementação era mais limitado.

    Da Europa Ocidental ao Japão, o planejamento indicativo lançou as bases para a recuperação no pós-guerra e para a subsequente modernização industrial, com a coordenação de políticas macrofinanceiras e industriais liderada por burocracias centrais operando entre os imperativos da responsabilização e da autonomia tecnocrática. O que levou esse sistema de planejamento à crise no final da década de 1970 foram os processos combinados de estagflação, não previstos pelos dispositivos de prognóstico dos planejadores, além da financeirização da dívida pública e da ascensão ideológica do neoliberalismo. Hoje, países que levam a descarbonização a sério têm muito a ganhar com a reconstrução dessas capacidades de planejamento sobre os pilares das experiências seletivas de planejamento setorial que sobreviveram nos interstícios do neoliberalismo.

    Estado de desenvolvimento verde

    O modelo francês de coordenação intersetorial encontra nas políticas chinesas a sua expressão contemporânea. Como a China é responsável por 90% do crescimento das emissões globais desde 2015, o redirecionamento dos recursos monetários e financeiros do país para a economia verde tem importância planetária.9Helveston, John e Jonas Nahm. 2019. “China’s Key Role in Scaling Low-Carbon Energy Technologies”. (<)em(>)Science(<)/em(>) 366: 794–796. (<)a href='https://www.jstor.org/stable/26845194'(>)https://www.jstor.org/stable/26845194(<)/a(>). Felizmente, o governo chinês se lançou em uma histórica transformação ecológica de seu aparato de planejamento, produzindo resultados notáveis, entre eles a maior descarbonização do mundo no setor de transportes e a maior expansão de infraestrutura de energia limpa registrada até o momento. Mesmo com Trump encerrando a participação dos Estados Unidos na transição verde—e provavelmente carregando alguns aliados consigo—, a poderosa máquina de investimentos da China permanece predominantemente voltada para a descarbonização.

    A versão chinesa do “ambientalismo desenvolvimentista” é estruturada por planos de cinco anos e cumprida por canais macroeconômicos, administrativos e financeiros atuando sob uma combinação de controle administrativo e incentivos corporativos, fazendo com que o modelo se beneficie tanto da centralização quanto da descentralização.10Thurbon, Elizabeth, Sung-Young Kim, Hao Tan e John A. Mathews. 2023. (<)em(>)Developmental Environmentalism: State Ambition and Creative Destruction in East Asia’s Green Energy Transition(<)/em(>). Oxford: Oxford University Press. Nesse sentido, as instituições chinesas de planejamento dependem da mobilização das partes interessadas de baixo para cima, nos níveis provincial e municipal, com poucos mandatos centralizados no que diz respeito à implementação das políticas.11Zhang, Marina, Mark Dodgson e David Gann. 2022. (<)em(>)Demystifying China’s Innovation Machine: Chaotic Order(<)/em(>). Oxford: Oxford University Press. Governos provinciais e municipais dotados de instituições financeiras próprias, que incluem empresas de capital de risco voltadas à inovação, trabalham com empresas públicas e privadas numa grande teia de experimentos econômicos12Li, Xuan e Cornel Ban. 2025. “Financing Technological Innovation in China: Neo-Developmental Financial Statecraft through Government Guidance Funds”. Trabalho apresentado no Global Development Policy Center. Boston, MA. No prelo. que, apesar de todas as ineficiências, colocou a China em uma posição de liderança em termos de inovação, implementação doméstica e supremacia global no setor de tecnologia limpa.13Helveston, John e Jonas Nahm. 2019. Na busca por práticas de planejamento mais efetivas, mecanismos de coordenação como os da China, responsáveis por um sistema nacional de inovações tecnológicas que chegam rapidamente à produção em massa e ao varejo—frequentemente abalando as bolsas de valores ocidentais—merecem uma análise atenta. Em vez de ser tratado como anomalia exótica, o sistema chinês deveria ser estudado em profundidade.

    Talvez a característica mais surpreendente seja a dependência do sistema de planejamento chinês de uma arquitetura macrofinanceira semelhante à francesa: alocação de crédito em condições favoráveis para setores estratégicos definidos pelos planos periódicos e controle público das instituições financeiras sistemicamente importantes. Atuando no interior desse arranjo, o Banco Popular da China foi pioneiro na política monetária verde, reduzindo o custo de capital para atividades e atores econômicos verdes.14Macaire, Camille e Allain Naef. 2023. “Greening Monetary Policy: Evidence from the People’s Bank of China”. (<)em(>)Climate Policy(<)/em(>) 23 (1): 138–149. (<)a href='https://doi.org/10.1080/14693062.2021.2013153'(>) https://doi.org/10.1080/14693062.2021.2013153(<)/a(>). Desde 2015, a forma como o planejamento indicativo intersetorial do governo—apoiado por recursos e incentivos (“cenouras”) de bancos e empresas estatais—tem sido direcionado para recalibrar a economia e transferir investimentos para indústrias de ponta no setor de tecnologia limpa revela uma inédita combinação das ideias de Marx e Schumpeter.15Li, Xuan e Cornel Ban. 2025. Nesse processo, apesar da forte instrumentalização das redes financeiras globais pelos Estados Unidos com o objetivo de restringir a ascensão da China,16Petry, Johannes. 2024. “China’s Rise, Weaponized Interdependence, and the Increasingly Contested Geographies of Global Finance”. (<)em(>)Finance and Space(<)/em(>) 1 (1): 49–57. (<)a href='https://doi.org/10.1080/2833115X.2023.2296439'(>) https://doi.org/10.1080/2833115X.2023.2296439(<)/a(>). a financeirização passou a ser conduzida pelo Estado como um instrumento para acelerar a descarbonização.17Beck, Kasper Ingeman e Mathias Larsen. 2025. “Financialization and an Emerging ‘Green Investor State’: Examining China’s Use of State-Backed Funds for Green Transition”. (<)em(>)Regulation & Governance(<)/em(>) 19 (2). (<)a href='https://doi.org/10.1111/rego.12625'(>)https://doi.org/10.1111/rego.12625(<)/a(>).

    Vale destacar que o regime de financiamento de inovação da China é dominado por empresas de capital de risco estatais, e não privadas, desafiando relatos céticos que questionam a capacidade do Estado autoritário chinês de promover a inovação tecnológica verde de baixo para cima. Para alcançar isso, a China depende fortemente da conversão em larga escala e de cima para baixo de ativos estatais em capital de risco de maneira integrada aos processos de planejamento central e provincial. Além disso, depende da execução de investimentos geográfica e setorialmente direcionados, viabilizada pelas várias instâncias administrativas existentes no interior do Estado.18Li, Xuan e Cornel Ban. 2025.

    Vias democráticas

    Quando se é cético em relação à capacidade de coordenação, pode-se pensar que as democracias são muito fragmentadas, muito lentas, muito… democráticas para sustantar formas robustas de planejamento. Sob essa ótica, o Estado-partido chinês é considerado um guia inadequado para os governos ocidentais. No entanto, como argumenta Thea Riofrancos, as democracias são bem adequadas ao planejamento porque, por serem sistemas mais transparentes e responsáveis, permitem fluxos de informações precisos e reduzem os incentivos à divulgação imprecisa de resultados da ação estatal.19Riofrancos, Thea. 2025. “The Perils of Climate Alarmism”. (<)em(>)Journal of Democracy(<)/em(>) 36 (1): 169–174. (<)a href='https://dx.doi.org/10.1353/jod.2025.a947892'(>)https://dx.doi.org/10.1353/jod.2025.a947892(<)/a(>). A elogiada transformação do sistema energético da Dinamarca é prova disso.20Sperling, Karl, Frede Hvelplund e Brian Vad Mathiesen. 2011. “Centralisation and Decentralisation in Strategic Municipal Energy Planning in Denmark”. (<)em(>)Energy Policy(<)/em(>) 39 (3): 1338–1351. (<)a href='https://doi.org/10.1016/j.enpol.2010.12.006'(>) https://doi.org/10.1016/j.enpol.2010.12.006(<)/a(>). Ao unir centralização e participação popular, o país conseguiu aliar eficiência e legitimidade. A Dinamarca tem o sistema energético mais sustentável e seguro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), resultado de um processo de planejamento energético desenvolvido desde a década de 1970. A Agência Dinamarquesa de Energia (DEA) está no centro administrativo do aparato de planejamento. Ela implementa planos plurianuais para todos os setores relevantes de produção, transmissão e utilização de energia no país. A elaboração fica por conta do Ministério da Energia, que fornece à DEA Planos Nacionais de Energia e Clima já discutidos com atores democráticos (partidos políticos representados no legislativo dinamarquês) e tecnocráticos (agências de regulação dos serviços públicos, órgãos oficiais de estatística e institutos de meteorologia, por exemplo). Com os planos em mãos, a DEA usa modelos matemáticos para criar diferentes cenários de implementação e os submete à apreciação de municípios, empresas e fornecedores independentes que atuam como produtores de energia. No final, após uma última rodada de consultas regionais com os países nórdicos e a União Europeia, o Parlamento Dinamarquês debate e aprova cada plano.

    O modelo de administração adotado pela DEA permite que os planos plurianuais sirvam de base para decisões relacionadas a subsídios, empréstimos, subvenções e isenções fiscais (e, respectivamente, aumentos de impostos sobre combustíveis fósseis), bem como para regulamentações favoráveis a investimentos em energia renovável e desfavoráveis a setores poluentes.21Krog, Louise, and Kyle Sperling. 2019. “A Comprehensive Framework for Strategic Energy Planning Based on Danish and International Insights”. (<)em(>)Energy Strategy Reviews(<)/em(>) 24: 83–93. (<)a href='https://doi.org/10.1016/j.esr.2019.02.005'(>) https://doi.org/10.1016/j.esr.2019.02.005(<)/a(>). O planejamento verde dinamarquês maximiza a contribuição democrática não apenas em nível nacional, mas também em nível municipal, no qual grande parte da política industrial verde se desenrola. Usando garantias de empréstimos da estatal Energinet.dk, a gricultores e moradores de municípios produtores de energia foram organizados em cooperativas, o que deu à política uma faceta democrática ainda mais forte.22Sovacool, Benjamin K. 2013. “Energy Policymaking in Denmark: Implications for Global Energy Security and Sustainability”. (<)em(>)Energy Policy(<)/em(>) 61: 829–839. (<)a href='https://doi.org/10.1016/j.enpol.2013.06.106'(>)https://doi.org/10.1016/j.enpol.2013.06.106(<)/a(>). À medida que a evolução dessa transformação passou a exigir investimentos financeiros maiores, a base econômica que sustentava esse modelo—mais comunitário e democrático—foi corroída. Um Estado redutor de riscos passou a existir paralelamente ao Estado planejador, ainda que a erosão do planejamento democrático tenha sido mais uma escolha do que uma fatalidade.23Kirkegaard, Kirch, Tom Cronin, Sophia Nyborg e Peter Karnøe. 2023. “Paradigm Shift in Danish Wind Power: The (Un)Sustainable Transformation of a Sector”. (<)em(>)Journal of Environmental Policy & Planning(<)/em(>) 23 (1): 97–113. (<)a href='https://doi.org/10.1080/1523908X.2020.1799769'(>)https://doi.org/10.1080/1523908X.2020.1799769(<)/a(>). O caso de descarbonização do setor energético da Dinamarca é um exemplo de como a centralização não precisa levar a impulsos autoritários. Ao contrário, a lição dinamarquesa é justamente que um processo acelerado de centralização pode ser acompanhado de uma ampliação da participação democrática, tanto em relação ao processo de planejamento em si quanto em termos de coletivização dos resultados.

    E agora, para onde vamos?

    O planejamento verde não é apenas um compromisso teórico. Ao contrário, tem exemplos práticos de sucesso em meio a adversidades históricas bastante específicas: guerra, recuperações pós-guerra, crises energéticas e até mesmo o colapso do socialismo de Estado. No entanto, esses casos também ilustram como, sob um sistema capitalista, a legitimidade do planejamento intersetorial frequentemente depende de crises existenciais. Há um risco de que a urgência da catástrofe acabe capturando as elites e dando voz a tendências autoritárias. Exatamente por isso, é essencial que haja uma agenda de pesquisa do planejamento econômico verde voltada a investigar os caminhos possíveis para equilibrar desafios geopolíticos e legitimidade democrática.

    Essa agenda pode se desdobrar em três dimensões. Primeiro, precisamos de um trabalho mais detalhado sobre as instituições de coordenação hierárquica que historicamente caracterizaram o planejamento indicativo, a fim de oferecer mais do que meros esquemas teóricos de instituições de planejamento verde. Estudos de caso permitiram, por exemplo, sugerir caminhos para que essas instituições de coordenação empreguem instrumentos relacionados a condições de crédito, garantias de liquidez público-privada (liquidez emitida por instituições financeiras e lastreada por bancos centrais), capacidade de socializar funções de inovação, maior propriedade estatal em finanças e energia, ou capacidade de atrair e coagir o financiamento privado para alinhar as metas estatais de descarbonização aos incentivos comerciais. Sob essa ótica, a descarbonização pode ser encarada como parte de um sistema hierárquico funcional que tem as instituições de coordenação do planejamento estatal no topo, o regime macrofinanceiro no meio e a política industrial ou as políticas econômicas destinadas ao setor privado na base. As incertezas geopolíticas de hoje fizeram com que esse tipo de capacidade estatal, que vinha de uma trajetória de queda desde seus dias áureos no pós-guerra, voltasse a ser reivindicada. A questão é que a compreensão de seu atual significado é bastante incipiente. Nesse cenário, é essencial reconciliar a natureza hierárquica das instituições de coordenação com os imperativos da competição geoeconômica e da legitimidade democrática.

    Em segundo lugar, o planejamento econômico verde indica que as grandes corporações que lideram emaranhados de operações multinacionais talvez sejam os laboratórios experimentais perfeitos para a revisão da antiga objeção neoclássica de que as interações de mercado são simplesmente complexas demais para que o Estado as planeje. Na verdade, nas economias capitalistas, uma abordagem de planejamento microfundamentada, munida dos instrumentos de cálculo atuais, poderia contornar elegantemente as objeções liberais ao cálculo socialista.24Morozov, E., 2019. Digital socialism? The calculation debate in the age of big data. New left review, 116, 33–67. Sem dúvida, extrapolar o planejamento do nível empresarial para a coordenação intersetorial como defendemos é um desafio hercúleo. Tecnocracias, frequentemente limitadas por sua própria inércia institucional, podem instintivamente recuar diante da gigantesca escala dessa tarefa. No entanto, numa era de revoluções tecnológicas, objeções dessa natureza não podem simplesmente encerrar a conversa. Ao contrário, devem nos conscientizar de que chegamos a um ponto de inflexão na história, no qual as próprias ferramentas dessa revolução, como a inteligência artificial, podem ser recrutadas para servir aos objetivos da descarbonização. Afinal, se levarmos as promessas da inteligência artificial a sério, seu grande feito certamente não será dominar apenas os chatbots, mas também as ferramentas de cálculo empregadas pelos planejadores.

    Outro fator crucial é que a dimensão hierárquica do planejamento deve se restringir à fase de implementação. Na França, a faceta democrática do planejamento poderia ter sido dificuldada pelo próprio ambiente democrático do país, marcado por um amplo pluralismo político e por ferrenhas disputas entre grupos de interesse diversos. Ainda que tenha nascido à sombra do poder tecnocrático, o desenvolvimento do sistema de planejamento ao longo dos anos mostrou que estava à altura desses desafios, particularmente durante os “Trinta Anos Gloriosos” (1940-1970). Notavelmente, tecnocratas, comunistas, liberais, capitalistas, sindicalistas e acadêmicos sentavam à mesa juntos. Antes que a lógica hierárquica da implementação assumisse o controle, a fase de deliberação pública era repleta de debates vigorosos e, muitas vezes, francamente desagradáveis. No entanto, foi precisamente esse processo contencioso que conferiu legitimidade ao sistema de planejamento, demonstrando que um engajamento democrático robusto poderia não só coexistir com uma coordenação econômica eficaz, mas de fato sustentá-la.

    Em terceiro lugar, se nossas premissas estiverem corretas, Estados com instituições frágeis e um grau de articulação público-privada insatisfatório fariam bem em fortalecer primeiro as instituições e só então dar o pontapé inicial do planejamento verde, porque o fracasso nesse âmbito acarretaria não apenas riscos de reveses operacionais, mas também de perda de legitimidade do planejamento em sentido mais amplo. Isso dito, deficiências dessa natureza não são imutáveis. A mobilização política tem o potencial de preencher essas lacunas, e pesquisas em torno dessa agenda poderiam explorar, de forma bastante oportuna, como essa mobilização poderia se desenrolar sob as pressões simultâneas da competição geoeconômica e da degradação climática.

    Em quarto lugar, há uma necessidade premente de aprofundar o escopo do planejamento nos países do Sul global, onde as restrições estruturais são enormes—de camisas de força impostas pelos regimes comerciais globais e regionais ao protecionismo geopolítico das economias centrais, passando pela implacável financeirização da dívida pública. O desafio é, de fato, descomunal, mas as oportunidades de descobrir estratégias de planejamento que libertem os países dessas restrições e abram caminhos para um desenvolvimento sustentável e equitativo são tão grandes quanto. O contexto histórico atual pode fazer com que essas promessas soem vazias, mas poucas pessoas que estudaram a Coreia ou Singapura na década de 1950 teriam esperado ver Estados desenvolvimentistas de alto desempenho florescerem ali a partir da década de 1960.

    Por último, mas não menos importante, o planejamento econômico verde, apesar de todas as suas promessas, carrega consigo o espectro do exagero tecnocrático e da captura corporativa, um dilema conhecido por qualquer pessoa que tenha familiaridade com a história da porta giratória entre governos e mercados. O desafio é responder a algumas perguntas muito claras: que instrumentos podem ser usados pelos Estados democráticos para impor limites rígidos à captura corporativa sem desencadear uma greve de investimentos que acabe travando as próprias transformações sustentáveis? Se o financiamento privado é coautor da arquitetura macrofinanceira da descarbonização, quais as ferramentas disponíveis para que as instituições de planejamento mantenham os financiadores sob controle? Ainda, quando setores de alta emissão enfrentarem as inevitáveis consequências dos projetos de transição, como garantir que os trabalhadores e as comunidades que deles dependem sejam democraticamente representados e adequadamente compensados, sem que o sacrifício do caráter democrático do projeto vire um dano colateral da sua própria implementção? E, finalmente, como as instituições de planejamento podem incorporar e estimular práticas verdes democraticamente desenvolvidas em prefigurações municipais e regionais, como sugere a emergente teoria do planejamento do decrescimento,25Durand, Cédric, Elena Hofferberth e Matthias Schmelzer. 2024., ao mesmo tempo em que garantem a homogeneidade territorial que a descarbonização efetiva implica?26Savini, Federico. 2024. “Strategic Planning for Degrowth: What, Who, How”. (<)em(>)Planning Theory(<)/em(>) 0 (0). (<)a href='https://doi.org/10.1177/14730952241258693'(>)https://doi.org/10.1177/14730952241258693(<)/a(>).

    Essas não são meras perguntas retóricas; elas tocam no cerne de como a economia política deve evoluir para enfrentar a crise climática. As respostas, se surgirem, exigirão que rompamos nossos redutos de pesquisa para encarar de frente o terreno desordenado e disputado da governança climática. A pauta de pesquisa que propomos se baseia na tradição do planejamento indicativo não apenas para mapear as complexidades do planejamento verde, mas para alcançar um horizonte normativo no qual aspirações democráticas sejam não apenas preservadas, mas também amplificadas diante dos desafios ambientais existenciais.

    O Estado verde deve emergir das cinzas tanto do Estado redutor de riscos quanto do seu antagonista fóssil, não como um anacronismo, mas como um instrumento de sobrevivência. A escolha será clara: planejar um futuro de resiliência ou nos resignar ao caos e aos perigos de uma adaptação climática sob regimes autoritários.

    Esse ensaio é uma adaptação de um artigo publicado na edição de abril da New Political Economy.

    Tradução: Heci Regina Candiani

  7. Coordenação no caos

    Comentários desativados em Coordenação no caos

    Os primeiros 100 dias do segundo governo de Trump já indicaram que os próximos meses, talvez anos, serão marcados por ainda mais incertezas e crescente fragmentação política e econômica. As ameaças de Trump de utilizar tarifas e sanções comerciais para resolver disputas diplomáticas foram proferidas num cenário de contínua competição estratégica entre os Estados Unidos e a China—competição que o presidente prometeu intensificar. Mas, apesar das incertezas e da aversão do Republicano à ação climática, políticas industriais “verdes” provavelmente vieram para ficar, abrigadas sob um guarda-chuva mais amplo de incentivo industrial dos governos nacionais à construção de capacidade tecnológica.

    Mas, ao mesmo tempo em que se tornaram um consenso em diferentes agendas governamentais, o conteúdo das políticas industriais verdes varia consideravelmente, especialmente no que diz respeito aos mecanismos de coordenação. No âmbito das ações domésticas unilaterais, a China é o exemplo mais extraordinário: seu investimento industrial em setores verdes foi tão significativo que provocou uma onda de novas políticas industriais no Ocidente. Pesquisadores do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington estimaram que, entre 2009 e 2023, a China concedeu mais de US$ 230 bilhões em incentivos somente para a produção de veículos elétricos, o que rendeu ao país uma posição de liderança mundial no setor. Além disso, o investimento industrial chinês se estende a muitos outros setores, verdes ou não.

    Nos últimos anos, diversos esforços nacionais para apoiar setores verdes foram canalizados para a produção de energia limpa e o desenvolvimento tecnológico, em função tanto da necessidade urgente de combater a mudança climática quanto da ansiedade crescente em relação à dominação chinesa sobre esses setores. Sob pressões geopolíticas e domésticas, tanto as economias avançadas do Norte global quanto as economias emergentes e em desenvolvimento do Sul têm procurado assegurar competitividade econômica por meio da captura de parcelas das tecnologias da transição energética e seus insumos. Em meio a subsídios, tarifas, controles de exportação e rastreamentos de investimentos, a garantia de materiais e financiamento para a transição tornou-se ainda mais relevante.

    Temendo perder a liderança tecnológica em energia limpa, as economias avançadas expandiram suas políticas industriais verdes para correr atrás do prejuízo. Um exemplo simbólico é a Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act), nos Estados Unidos, que, apesar da aversão pública de Trump, resistirá em alguma medida, em parte graças aos pesados subsídios que concede a distritos controlados pelos Republicanos. Da mesma forma, em nível regional, o Green Deal Europeu é um arcabouço abrangente para tornar o consumo energético da União Europeia neutro em emissões até 2050, coordenando as políticas públicas dos Estados-membro de modo a promover energia limpa e incentivar subsídios à tecnologia verde. Soma-se a isso o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (Carbon Border Adjustment Mechanism), uma tarifa imposta sobre importações intensivas em emissões destinada a proteger os setores industriais da UE que pagam um preço sobre o carbono emitido—instrumento que gerou revolta entre países exportadores, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento.

    Os países em desenvolvimento não estão muito atrás: a Índia instituiu “Incentivos ligados à Produção” para expandir a produção doméstica em setores verdes, como o de painéis solares, ao mesmo tempo em que impôs barreiras não-tarifárias à importação de equipamentos solares chineses. Em um esforço para desenvolver a produção e o processamento locais, países ricos em minerais na América Latina, na África e no Sudeste Asiático impuseram ou ameaçaram impor proibições de exportação de minerais críticos sem processamento.

    Esses esforços nacionais e regionais têm níveis variados de comprometimento e avanço tecnológico e diferentes desenhos de políticas públicas. Considerando que uma transição energética globalmente integrada comandada exclusivamente por preços e vantagens comparativas é bastante improvável e tendo em vista as grandes lacunas de financiamento existentes, algum grau de especialização e cooperação entre os países será necessário. Nisso, instituições multilaterais e acordos plurilaterais certamente terão um papel a cumprir. Políticas industriais verdes coordenadas ou transnacionais poderiam ser utilizadas para promover o desenvolvimento de tecnologia energética limpa em diferentes regiões do Norte e do Sul global. O desafio central dos próximos anos será negociar e implementar essas estratégias coordenadas em um contexto geopolítico em constante transformação.

    Por que precisamos de políticas verdes coordenadas?

    Políticas verdes coordenadas são essenciais em um mundo caracterizado por capacidades e recursos desiguais entre as nações. No caso da produção de tecnologia verde—e da produção em geral—alguns países têm recursos e expertise, outros não. Essa diferença sempre estará presente, mesmo se os fluxos de comércio global mais liberalizados diminuírem. Por exemplo, as reservas de lítio, um componente crucial da tecnologia das baterias, estão concentradas em um número pequeno de países. Uma abordagem coordenada pode ajudar a racionalizar as cadeias de fornecimento, garantindo que os países envolvidos se beneficiem mutuamente de suas vantagens e recursos. A fragmentação, ao contrário, pode levar a ineficiências, como a duplicação de tecnologia e a perda de oportunidades de colaboração.

    A coordenação também pode ajudar a adaptar a tecnologia e a produção para atender aos contextos e prioridades locais. Enquanto países como a China lideram a corrida com políticas e investimentos ambiciosos, outros ficam para trás por conta de restrições fiscais ou falta de vontade política. Cresce o entendimento de que um Estado proativo é necessário para levar adiante a transição verde, na medida em que ela demanda um expressivo gasto estatal destinado à política industrial verde.1Bentley Allan, Joanna I. Lewis, and Thomas Oatley, “Green Industrial Policy and the Global Transformation of Climate Politics,” (<)em(>)Global Environmental Politics(<)/em(>) 21, 4 (2021): 1–19. https://doi.org/10.1162/glep_a_00640 Isso é, contudo, um desafio para países do Sul Global com capacidade fiscal limitada. A coordenação pode preencher essa lacuna, com a construção de capacidade local e oportunidades econômicas por meio do intercâmbio de financiamento, recursos e expertise.

    Por fim, uma política industrial transnacional possibilita incentivar, em diversos níveis, a inovação, que é o fundamento da energia limpa e da política industrial verde. A colaboração global em política industrial facilitaria a difusão de tecnologia e conhecimento entre regiões, ajudando economias menos avançadas a promover a transição para tecnologias mais limpas e eficientes sem que ninguém precise reinventar a roda. A colaboração permitiria ganhos de escala que, por seu vez, reduziriam os custos de pesquisa e desenvolvimento, produção e implementação de tecnologias limpas.

    Embora políticas industriais verdes sejam cruciais para a ação climática global, elas enfrentam desafios consideráveis, decorrentes de interesses nacionais divergentes, assimetrias de informação, disparidades econômicas, inconsistências regulatórias e tensões geopolíticas. Esses desafios são acentuados por pretensões variadas de promoção do interesse nacional em diversos países, do “America First” à ambição indiana de desenvolvimento por “Atmanirbharata”, ou autossuficiência. Medidas protecionistas podem dificultar a colaboração, comprometendo políticas industriais coordenadas.

    Além da geopolítica, assimetrias de informação são um desafio comum para qualquer tipo de política industrial. Com nações lutando por supremacia tecnológica, a dificuldade em determinar o equilíbrio adequado entre subsídios, incentivos e barreiras regulatórias e institucionais nunca foi tão grande. Além do necessário “enraizamento”—laços de informação e circuitos de responsabilização entre governos e empresas—, uma camada adicional de articulação entre os governos em si é também fundamental. Nesse sentido, é possível que os arcabouços institucionais domésticos e internacionais existentes sejam insuficientes para lidar com a complexidade envolvida na coordenação dessas políticas.

    Operacionalizando uma política industrial verde transnacional e coordenada

    Nesse contexto fragmentado, a expansão da produção de energia e de tecnologia pode se dar de três formas: unilateralmente, multilateralmente, ou bilateral e plurilateralmente (ver Figura 1). Cada abordagem tem vantagens e desvantagens que impactam a forma como diversos governos serão capazes de promover seus interesses de política industrial de forma efetiva e ambientalmente sustentável.

    Figura 1: Política industrial verde coordenada: diferentes abordagens

    No centro: Política industrial verde coordenada. Enfoque unilateral; enfoque multilateral; enfoque plurilateral; plataformas dos países; bilateral/trilateral.
    A abordagem unilateral

    Medidas de política industrial unilaterais são implementadas individualmente por países visando necessidades e prioridades domésticas—ou seja, são mais menos o feijão com arroz da política pública. Uma abordagem unilateral pode ser particularmente interessante se prioridades domésticas e eleitorais estiverem alinhadas. Governos podem priorizar interesses nacionais enfrentando diretamente questões econômicas prementes, como a criação de empregos e a segurança energética. Ainda, políticas públicas unilaterais podem ser implementadas de maneira relativamente rápida em comparação com aquelas decorrentes de acordos multilaterais ou bilaterais, reduzindo eventuais entraves burocráticos. E, finalmente, uma abordagem unilateral não significa a ausência de participação estrangeira: a ascensão da China na produção de veículos elétricos, por exemplo, dependeu da parceria entre empresas estrangeiras e locais.

    Mas há também, claro, desvantagens. Uma abordagem unilateral pode causar uma onda desreguladora, com países diminuindo exigências para atrair investimento, criando um nivelamento por baixo e potencialmente comprometendo a sustentabilidade de seus objetivos a longo prazo. Pode, ainda, criar uma colcha de retalhos regulatória: um ambiente regulatório tão desarticulado que dificulta a operação de empresas multinacionais privadas, porque gera maiores ineficiências e aumenta os custos.

    A abordagem multilateral

    Esforços multilaterais para promover políticas industriais podem ser coordenados por meio de bancos de desenvolvimento e fundos como o Banco Mundial, o Fundo Verde do Clima e o Fundo Global para o Meio Ambiente. Essa abordagem permite a colaboração entre diferentes nações por meio de instituições multilaterais que, frequentemente, têm orçamentos maiores—e, por isso, maior tolerância a riscos—que os próprios países que atendem. Isso é crucial para o investimento em setores emergentes, como o de energia limpa, em que os custos iniciais e a incerteza de retorno podem afugentar o investimento privado. Além disso, essas organizações oferecem considerável expertise técnica e apoio institucional para países em desenvolvimento. As molduras institucionais existentes também podem ser usadas para que nações mais ricas auxiliem países em desenvolvimento a navegar pelas complexidades da política industrial.

    As críticas a essas instituições, no entanto, argumentam que elas promovem uma agenda alinhada ao Consenso de Washington e contrária à intervenção do Estado na economia, além de serem incapazes de induzir o financiamento climático na escala necessária em países em desenvolvimento. Consequentemente, há um risco de que essa abordagem perpetue relações tradicionais e paternalistas entre doadores e beneficiários, submetendo países em desenvolvimento aos padrões estabelecidos pelas nações doadoras e limitando sua autonomia para formular políticas públicas adequadas à singularidade de seus contextos nacionais. Além disso, os próprios organismos multilaterais enfrentam o desafio de equilibrar interesses de diferentes governos nacionais—sujeitos a flutuações geopolíticas e inércias burocráticas—, dificultando a formação de consensos e a efetiva implementação de políticas por meio de seus mecanismos financeiros.

    Abordagens bilaterais e plurilaterais

    Acordos bilaterais e plurilaterais envolvem a colaboração entre duas ou mais nações, tais como as iniciativas conduzidas pelo Quad (EUA, Japão, Índia e Austrália), os BRICS, a coalizão EUA-Índia-África ou as recentes Parcerias para a Transição Energética Justa (JET-P). Esses arranjos são comumente caracterizados por um enfoque mais flexível e estratégico.

    Os acordos bilaterais e plurilaterais permitem que países com interesses semelhantes se unam, criando coalizões capazes de reagir a oportunidades estratégicas e econômicas com maior rapidez. A maior agilidade é particularmente vantajosa para setores em rápida evolução, como o de energia limpa. Essas coalizões podem facilitar investimentos direcionados em tecnologia e infraestrutura alinhados com os interesses específicos das nações participantes, fortalecendo a resiliência econômica geral.

    No entanto, é possível que as coalizões bilaterais e plurilaterais não tenham o mesmo nível de expertise e recursos das organizações multilaterais—muitas não possuem sequer um secretariado ou orçamento independentes—dificultando a implementação efetiva de políticas industriais que exigem articulações complexas entre empresas e governos. Além disso, essas coalizões são vulneráveis a mudanças de liderança política ou alterações nas prioridades nacionais de seus membros.

    Há cada vez menos dúvidas de a transição verde depende da proatividade do Estado. Isso implica gastos públicos massivos direcionados a políticas industrais sustentáveis, como ilustra o caso da China. 2No caso de países em que o Estado não tem a capacidade de fornecer o investimento adequado, a literatura argumenta que a implementação da política industrial depende de fluxos financeiros internacionais. Ver: Seth Schindler, Ilias Alami, and Nicholas Jepson, “Goodbye Washington Confusion, hello Wall Street Consensus: Contemporary state capitalism and the spatialisation of industrial strategy,” (<)em(>)New Political Economy(<)/em(>) 28, 2 (2023): 223–240. https://doi.org/10.1080/13563467.2022.2091534 Em economias do Sul global movidas a carvão, como África do Sul, Indonésia, Vietnã e Índia, entre outras, o ritmo estagnado do desenvolvimento industrial verde indica que serão necessários investimentos fiscais muito maiores ou volumes significativamente mais altos de fluxos financeiros internacionais.

    Muitas dessas economias receberam JET-Ps desenhadas por países do Norte global para fornecer apoio financeiro à transição verde. Ainda que tenham sido desacreditadas por alguns críticos como soluções superficiais, em um mundo fragmentado, as JET-Ps podem ser elementos vitais para uma política verde coordenada, justamente porque envolvem um esforço colaborativo estratégico entre governos, setores industriais e parceiros internacionais, contribuindo para a construção de redes comerciais para a tecnologia verde e estabelecendo mecanismos transnacionais de intercâmbio de conhecimento e de boas práticas. Especialistas vêm celebrando as JET-Ps como plataformas nacionais orientadas pelo clima, alinhando objetivos climáticos nacionais e internacionais e ajudando a destravar o financiamento público—e, potencialmente, também o financiamento privado internacional. As JET-Ps representam bem a essência do plurilateralismo: fomentam a colaboração significativa, a ação direcionada e uma abordagem flexível, diferente de muitas estruturas multilaterais. Isso faz delas mecanismos mais práticos para enfrentar os complexos e diversos desafios da transição energética global.

    Em busca de um futuro sustentável

    Dada a importância estratégica das tecnologias de energia limpa no combate à mudança climática e no incentivo ao desenvolvimento econômico e diante do desafio dos países de equilibrar prioridades domésticas e demandas de cooperação internacional, políticas industriais coordenadas nunca foram tão urgentes.

    Dentre as diferentes formas de ação, as abordagens plurilaterais são as mais promissoras. A Aliança Solar Internacional, por exemplo, lançada em 2015, é uma parceria plurilateral que busca promover a energia solar em nações ensolaradas do Sul Global. Até o momento, mais de 120 países aderiram a essa iniciativa para desenvolver infraestrutura de energia solar. Da mesma forma, JET-Ps, ainda que enfrentem, por enquanto, desafios de financiamento e implementação, poderiam se revelar um instrumento-chave de coordenação plurilateral da política industrial verde, buscando atender às demandas de países com diferentes níveis de desenvolvimento e capacidade industrial. Enquanto o governo Trump decidiu, no início do ano, retirar o apoio estadunidense às JET-Ps, outras nações—incluindo a Alemanha e o Japão—intensificaram o financiamento aos projetos em andamento. Isso ilustra como uma coordenação efetiva deve ser sensível e capaz de se adaptar a mudanças geopolíticas bruscas.

    Por meio do incentivo à colaboração, do investimento em inovação e da priorização de práticas sustentáveis, os governos podem enfrentar desafios de política industrial enquanto promovem o crescimento econômico e manejam questões estratégicas. O futuro da produção de energia limpa depende da nossa capacidade de coordenar esforços transnacionais, garantindo que a transição para uma economia sustentável seja não apenas viável, mas também justa.

    Tradução: Lucia del Picchia

  8. Abril é o mais cruel dos meses

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    Há mais de uma década, investir nos EUA tem sido uma boa aposta. A indústria tecnológica americana, empresas altamente lucrativas, consumidores insaciáveis e uma política fiscal favorável ao crescimento tornaram o país uma opção muito atraente e contribuíram para a narrativa de que sua economia é inabalável. Isso tem sido chamado de “excepcionalismo comercial dos EUA”, fenômeno que parece ter chegado a um repentino fim.

    O aumento dos rendimentos dos títulos soberanos de um país enquanto sua moeda se enfraquece é um padrão raramente observado fora dos mercados emergentes.

    Abril foi o mês mais cruel. Na sequência dos anúncios intermitentes de Trump sobre tarifas, além da erosão geral do Estado de Direito no país, os investidores ficaram realmente assustados. Em episódios anteriores de turbulência no mercado, o porto seguro dos títulos do Tesouro americano foi o destino de investidores que fugiram de ativos “de risco”. Agora, os investidores se desfizeram das ações de empresas americanas em um ritmo recorde e, em uma reviravolta dramática, em meados de abril, os rendimentos do Tesouro aumentaram (em outras palavras, os títulos soberanos dos EUA foram vendidos) e o dólar enfraqueceu simultaneamente. Essa combinação de enfraquecimento da moeda e dos títulos soberanos implica uma falta de confiança raramente vista em economias desenvolvidas—o desastroso “mini-orçamento” de Liz Truss em seu breve mandato como primeira-ministra do Reino Unido é uma exceção—, muito menos no país emissor da moeda de reserva mundial. Os títulos “seguros” dos EUA seguem realmente seguros sob um rei louco?

    A independência do Federal Reserve é crucial para as suposições do mercado sobre a estabilidade americana. Quando Trump ameaçou “demitir” o presidente do Fed, Jay Powell, os mercados reagiram violentamente. A ameaça foi retirada, mas Trump tem opinado desde então que as taxas de juros devem ser reduzidas. Além disso, a prerrogativa de nomeação por Trump de um novo presidente quando o mandato de Powell terminar, em maio de 2026, significa que as preocupações com a independência do Fed persistirão. Como Larry Summers disse ao Wall Street Journal, intimidar o Fed não altera as taxas, mas deixa os mercados “nervosos, o que significa taxas mais altas no longo prazo”.

    Com o governo Trump mantendo até agora suas tarifas altíssimas contra Pequim, o mundo inteiro enfrenta a perspectiva de uma guerra econômica entre os EUA e a China e a desintegração das cadeias globais de abastecimento. Desacoplamento é um termo impróprio e banal. Como escreveu Isabella Weber, a expressão sugere um processo como “desacoplar dois vagões de trem: limpo e simples”. Na verdade, “é mais como arrancar órgãos de um corpo vivo”. Tal evento, se realmente ocorrer, será catastrófico para a saúde da economia global, prejudicando os norte-americanos, hostilizando aliados e retardando a estabilização climática planetária.

    Uma série de fatores, em grande parte controlados pela política instável da Casa Branca, estão aumentando as chances de uma recessão nos EUA.
    Fonte: Apollo

    Hegemonia

    As afirmações sobre o fim da hegemonia estadunidense não são novas, mas é novidade a própria Casa Branca declarar que não será mais uma parceira confiável em matéria de segurança, comércio ou emissão da moeda-reserva.

    Não há nenhum hegemon substituto à espera para preencher o vazio deixado pelos Estados Unidos nos assuntos globais. E definitivamente não há um substituto óbvio para o dólar. Como observa Dario Perkins, da TS Lombard, a diversificação e a desdolarização marginais não significam o fim do status do dólar como moeda-reserva. O dólar americano “tem poderosos efeitos de rede”. O comércio continuará sendo faturado na moeda, “principalmente porque é apoiado por mercados profundos de financiamento em dólares”.

    O sistema foi construído pelos EUA para atender aos seus próprios interesses e crenças. “O arquiteto, o mestre planejador, o desenvolvedor do sistema multilateral de integração econômica baseado em regras”, como disse o ministro das Relações Exteriores de Cingapura, Vivian Balakrishnan, “decidiu que agora precisa se engajar na demolição total do mesmo sistema que criou”.

    Os países e os investidores não estão apenas respondendo aos impulsos dramáticos e caóticos da Casa Branca de Trump, mas também tomando medidas para reduzir a dependência em relação aos EUA nos próximos anos. Nos anos 2020, essas medidas podem se basear no ressurgimento da política industrial, do intervencionismo econômico e de uma repulsa mais ampla ao tipo de globalização liberal que prevaleceu desde a Segunda Guerra Mundial. O neomercantilismo—definido por Eric Helleiner como a “crença na necessidade do protecionismo comercial estratégico e outras formas de ativismo econômico governamental para promover a riqueza e o poder do Estado na era pós-smithiana”—está de volta, e os Estados estão remodelando a ordem global.

    Fonte: Bridgewater

    O G20 responde

    Os países do G7 e do G20 estão tomando medidas de capitalização e de proteção contra uma mudança fundamental no poder dos Estados Unidos. Estão fortalecendo suas economias domésticas com financiamento do déficit e direcionando investimentos para os setores verde, de defesa e digital.

    A monumental mudança na política fiscal alemã permitirá agora investimentos em clima, defesa e, se as promessas forem cumpridas, infraestrutura social. A provisão permitiu mais de 100 bilhões de euros a nível da União Europeia para apoiar a manufatura limpa, ao mesmo tempo em que a Comissão apresentou uma proposta para investir 800 bilhões de euros em gastos comuns com defesa.

    No Canadá, talvez o maior antagonista entre os aliados dos Estados Unidos, Mark Carney fez campanha com uma plataforma de fortalecimento e segurança e prometeu aumentar ampliar a defesa e a manufatura verde. Ele pretende colaborar com a Europa em matéria de segurança e unificar um mercado interno mais amplo, flexibilizando as regras comerciais entre as províncias canadenses.

    À medida que as tensões entre os EUA e a China se aceleraram durante o primeiro mandato de Trump, as potências médias emergentes começaram a usar o não alinhamento como moeda de troca para a modernização industrial e para garantir melhores acordos comerciais.

    Desde 2020, grandes países em desenvolvimento têm lançado políticas industriais para fortalecer, tornar mais ecológicas e modernizar suas economias. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva lançou a Nova Indústria Brasil para alavancar oportunidades de manufatura com a matriz elétrica amplamente limpa e os recursos naturais do país. Junto com outros países latino-americanos, o Brasil defende o argumento do “powershoring” para atrair indústrias estrangeiras e nacionais, posicionando-se como produtor de bens de capital intensivo em energia em todos os setores, como refino de metais e fabricação de máquinas para as cadeias de suprimentos de energia eólica e baterias. A presidente do México, Claudia Sheinbaum, especialista em sistemas energéticos, anunciou e financiou o Plano México para investimentos estratégicos com metas de desenvolvimento sustentável e conteúdo nacional como resposta às tarifas dos EUA.

    Presidenta Claudia Sheinbaum: “O Plano México é o caminho que, tenho certeza, nos levará a um México com mais empregos bem remunerados, com menos pobreza e desigualdade, com mais investimento e produção, mais inovação, com uma pegada de carbono menor, que respeita o meio ambiente e aumenta nossa autossuficiência e soberania”.

    O resto do mundo

    Em outros lugares, os governos estão descobrindo que têm menos margem de manobra. No Sudeste Asiático, ministros se esforçam para apaziguar a Casa Branca e, ao mesmo tempo, manter relações com seu parceiro econômico mais importante: a China. O Vietnã, que se beneficiou do jogo de “gato e rato” de contornar as tarifas sobre as exportações chinesas para os EUA, está reprimindo o transporte de mercadorias, ao mesmo tempo em que enfatiza sua estreita relação com os EUA. O Camboja está tentando seguir uma linha semelhante. O delicado equilíbrio que os vizinhos da China têm mantido para preservar as garantias de segurança dos EUA, já enfraquecidas na última década, se sustenta agora sobre bases extremamente precárias.

    Mas, para os países de baixa renda e altamente endividados—aqueles que mais estão sujeitos à subordinação financeira internacional—, as opções são ainda mais difíceis. Não supreende que tenham imediatamente procurado apaziguar a Casa Branca com promessas de importar mais produtos dos EUA em troca da redução de tarifas. Uma semana após o “dia da libertação”, a Casa Branca informou que mais de cinquenta países haviam solicitaram negociações sobre tarifas.

    Fonte: FMI

    Se esses países serão de fato ouvidos pela Casa Branca é outra história. A maior indústria empregadora do Lesoto é a têxtil, e seu maior mercado de exportação é os EUA. Quando o prazo de 90 dias anunciado por Trump expirar, em meados de junho, o pequeno reino sem litoral enfrentará tarifas de 50%. O ministro do Comércio do Lesoto, Mokhethi Shelile, disse à emissora sul-africana SABC News que não sabia ao certo o que iria acontecer. “Não tive uma boa experiência em tentar marcar reuniões”, afirmou. É possível que “após três meses, nem sequer tenhamos conseguido sentar com o governo norte-americano para negociar”.

    O ministro da Agricultura da Costa do Marfim, Kobenan Kouassi Adjoumani, não mencionou apaziguamento ou retaliação, mas destacou que o custo das tarifas terá de ser repassado aos consumidores. Ele também expressou esperança de que o fortalecimento dos laços com a Europa possa ajudar a compensar as tarifas de 21% sobre suas exportações de cacau.

    Pequim

    Enquanto isso, a China aprovou um aumento de 7,2% nos gastos com defesa para “proteger firmemente” a segurança nacional. A apresentação, em janeiro, pelo DeepSeek, de um supermodelo de linguagem (sem propriedade intelectual) já ameaçava a suposta predominância dos Estados Unidos nesse campo; agora, a perspectiva de mais tecnologia e inovação chinesas impulsionando o crescimento faz com que os EUA pareçam ainda mais vulneráveis.

    Mas a China não está se preparando para substituir o papel dos EUA no cenário mundial. O governo central chinês tem suas próprias maneiras de construir poder estratégico. O presidente Xi traçou uma agenda de oito pontos destinada a apoiar as economias em desenvolvimento do Sul global, que vai desde a cooperação científica com o Brasil e com nações africanas até a redução das barreiras comerciais para países menos desenvolvidos. No entanto, embora a China tenha entrado em cena para preencher algumas das lacunas deixadas pela saída repentina dos EUA dos programas globais de saúde e desenvolvimento da USAID, vem atuando em uma escala muito menor. O governo central não demonstrou nenhuma intenção de aumentar o tipo de financiamento externo que os EUA e outros países do G7 fornecem, nem de se tornar um verdadeiro emissor de moeda-reserva.

    Reorientação diplomática

    Em resposta aos recentes acontecimentos, foram lançadas várias alianças e investimentos que ignoram os EUA, incluindo uma proposta para tornar mais ecológico o maior bloco comercial do mundo, a Parceria Econômica Regional Abrangente, e o primeiro diálogo econômico em cinco anos entre seus principais membros, China, Japão e Coreia do Sul. A Unão Europeia quer fortalecer e tornar mais ecológicos seus acordos comerciais com o México, Canadá e Brasil, e está em contato com os Emirados Árabes Unidos para firmar um novo acordo de livre comércio. Uma aliança entre os países da ASEAN e o Conselho de Cooperação do Golfo será discutida pelos chefes de Estado de Cingapura, Arábia Saudita e Indonésia.

    Nas relações internacionais, no comércio, na segurança e nos mercados de capitais, os temas são os mesmos: em vez de décadas de dependência dos EUA e de seus ativos, o resto do mundo agora busca diversificar, descarbonizar, defender e desdolarizar.

    Não está claro como uma ordem global unipolar liderada pelos EUA poderia ser reparada. Reformas em instituições como o Banco Mundial e o FMI fracassaram mas, mesmo com a cooperação dos EUA, qualquer mudança na arquitetura formal exigiria novos níveis de confiança e compromisso entre a Europa e a China, em particular, e com outros países e blocos poderosos, incluindo Japão, Brasil e os países do Conselho de Cooperação do Golfo.

    O Brasil e a África do Sul estão liderando os esforços diplomáticos por meio de suas presidências do BRICS, da COP30 e do G20 em 2025. A discussão sobre uma nova arquitetura comercial e financeira, capaz de proporcionar espaço político para buscar uma transformação estrutural verde, está agora se acelerando. Os países em desenvolvimento não estão passivos na policrise, mas tentando ativamente lutar pelo controle de seus destinos. Com Trump destruindo a ordem mundial, repentinamente há mais espaço para esses países trabalharem com a China, a Europa e o Leste Asiático.

    As coisas mudaram para sempre— mesmo que todas as tarifas de Trump sejam revogadas amanhã e mesmo que os republicanos entrem em declínio político em 2028. As conexões causais entre desdolarização, diversificação e descarbonização permanecem obscuras. Mas os Estados são atores estratégicos que não vão esperar pela certeza antes de agir para equilibrar a hostilidade de Washington, proteger as instituições multilaterais que apoiam seus modelos de crescimento e investir de forma anticíclica em caso de recessão global. Os EUA estão ficando mais pobres e mais fracos à medida que desmantelam o próprio sistema que construíram. Agora, isolados em um continente banhado por combustíveis fósseis, a questão é se eles ficarão observando em silêncio enquanto outros sobem em direção às alturas solares ou se terão o poder de esmagar a primavera.

    Tradução: Hugo Fanton

  9. BYD global

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    Tarifas de importação costumam ser adotadas em dois momentos-chave do desenvolvimento de uma economia nacional: ou na fase inicial ou na fase inicial da industrialização, quando se tenta proteger e fortalecer indústrias nascentes, ou na fase de declínio, quando as elites tentam adiar a decadência que se aproxima. A caótica guerra comercial de Donald Trump é um claro exemplo do segundo caso. No entanto, em meio ao forte recuo da hegemonia estadunidense, vem surgindo um arranjo geoeconômico e geopolítico alternativo: uma globalização com características chinesas e movida a bateria. Nesse processo de reordenação, a China está pronta para ser protagonista, tendo a tecnologia verde como motor. A enorme expansão internacional de seu setor de veículos elétricos (VEs) é o exemplo mais evidente disso. 

    Se, até recentemente, a qualidade dos veículos elétricos chineses foi ridicularizada por gente como Elon Musk, hoje, sua excelência é incontestável. Além disso, a supremacia tecnológica da China está se traduzindo rapidamente em domínio de mercado, a ponto de ameaçar ultrapassar outros líderes não apenas do mercado de VEs, mas do setor automotivo como um todo. Isso traz consequências sísmicas para a geografia econômica internacional.

    A BYD é o exemplo mais significativo dessa expansão internacional. Depois de surpreender os analistas com seu aumento global de vendas no fim de 2023, a BYD agora está à frente da Tesla, que até recentemente era líder incontestável do setor de VEs. Em 2024, enquanto o valor das ações e as vendas da empresa de Musk caíram, a BYD acumulou sucessos: registrou um recorde de vendas de 4,3 milhões de carros elétricos, um aumento de 41%. Agora, está confortavelmente à frente da Tesla na categoria geral de veículos de nova energia (NEVs, na sigla em inglês), que inclui veículos elétricos a bateria (BEVs) e veículos elétricos híbridos plug-in (PHEVs). De acordo com os últimos relatórios, a BYD está praticamente empatada com a Tesla em vendas de BEVs: enquanto a Tesla vendeu 1.790.000 unidades, a BYD vendeu 1.764.000—um aumento de 12% em relação ao ano anterior. Tendo em vista as taxas de crescimento anual superiores a 50% e o enorme potencial inexplorado do setor de VEs, é razoável esperar que, na próxima década, a BYD ultrapasse a Toyota como a líder mundial em automóveis.

    Uma coisa é certa: ela já se comporta como uma empresa que busca o domínio mundial em seu setor. Até recentemente, o setor automotivo e de VEs chinês era, em geral, um fenômeno doméstico, com a maior parte dos veículos vendidos para o mercado interno. Agora, as empresas chinesas estão expandindo sua produção em todo o mundo, em escala e velocidade sem precedentes. Na Indonésia, na Tailândia, no Paquistão, na Turquia, na Hungria, no Brasil e no México, fábricas de veículos elétricos—algumas capazes de produzir mais de 100 mil unidades por ano—estão sendo instaladas para atender à crescente demanda por VEs chineses que, além da alta qualidade, são cerca de 20% mais baratos do que os ocidentais.

    Um fator decisivo para essa expansão é o esforço para mitigar o risco potencial de tarifas de importação e outras barreiras comerciais em um ambiente de crescente protecionismo. Ao montar seus carros em fábricas no exterior, as empresas chinesas esperam driblar as taxas de importação que inviabilizariam a competitividade internacional de seus produtos. Mesmo assim, a instalação de fábricas no exterior ainda é uma operação delicada, que depende não apenas de cálculos complexos da própria empresa sobre perspectivas futuras, mas também de desenvolvimentos geopolíticos e diplomáticos. Mapear a expansão internacional de uma empresa como a BYD, portanto, nos permite compreender aspectos relevantes da estratégia de relações internacionais da China.

    De Shenzhen para o mundo

    A sede oficial da BYD e o coração industrial da empresa estão localizados na agora famosa cidade de Shenzhen, no Delta do Rio das Pérolas, perto de Hong Kong e Cantão—região destinada a se tornar a Palo Alto do século XXI. Criada em 1979 numa área pantanosa que abrigava uma vila de pescadores, Shenzen foi a primeira Zona Econômica Especial da China, estabelecida por Deng Xiaoping como parte de suas políticas de “Reforma e Abertura” (改革开放, Gaige Kaifeng). A cidade rapidamente se tornou um centro global de fabricação de bens eletrônicos, abrigando muitos fabricantes de equipamento original (OEM, na sigla em inglês), a exemplo da Foxconn, que produz para várias marcas internacionais, como Apple, Sony e Dell. Firmas chinesas—Huawei, Xiaomi, Hisense e Oppo—também se instalaram nessa nova Zona Econômica Especial, assim como corporações de internet, como a Tencent.

    Em 2000, a BYD inaugurou seu primeiro grande parque industrial no distrito de Kuichong, em Shenzhen. Na época, não era uma empresa automotiva: produzia baterias para bens eletrônicos de consumo da Motorola e da Nokia. A companhia foi fundada por Wang Chuanfu, cientista e empresário com doutorado em química de baterias, cujo patrimônio líquido atual é de US$ 23 bilhões. A notável transformação da BYD de uma empresa de baterias em uma de automóveis foi, em parte, facilitada pela aquisição da antiga estatal Tianjin Qinchuan Auto Manufacturing. O primeiro carro produzido pela BYD foi o F3, um sedã compacto tradicional com motor de combustão interna, feito na fábrica de Changsha, em Hunan, onde os custos de terra e mão de obra eram menores em comparação com Shenzhen e cuja localização possibilitava um envio mais fácil e barato para norte do país. No entanto, tanto em termos de fabricação de baterias quanto de montagem efetiva, Shenzhen continuou sendo o verdadeiro centro de produção de veículos elétricos.

    Atualmente, a BYD conta com cinco fábricas em Shenzhen, algumas delas agrupadas em torno da “BYD Road”, no distrito de Pinghsan. Ali, mais de 500 mil carros dos modelos Tang, Qin e Dolphin são montados todos os anos. Além de Shenzhen e Changsha, há grandes fábricas em Qinzhou, Guangxi (que produzem cerca de 100 mil veículos por ano), em Fuzhou, Fijian (150 mil veículos), em Xangai (pelo menos 150 mil carros) e em Tianjin (200 mil). Juntas, essas fábricas são responsáveis pela maior parte dos quase 2 milhões de veículos elétricos produzidos anualmente na China.

    Até o início da década de 2020, a produção de VEs da BYD tinha como foco principal o mercado doméstico, enquanto suas operações no exterior estavam voltadas à produção de ônibus e caminhões, que são os veículos da BYD mais presentes em muitos países fora da China. Até 2024, 87% dos veículos de nova energia da BYD foram vendidos internamente. O sucesso da BYD se deve não somente ao tamanho do mercado chinês, mas também à forma como, ao concentrar estrategicamente todas as suas operações essenciais—como pesquisa e desenvolvimento, fabricação de componentes (incluindo baterias e semicondutores), montagem de veículos e logística da cadeia de suprimentos—no território nacional, ela conseguiu desenvolver amplas economias de escala por meio da integração vertical.

    O alto grau de diversificação e sofisticação tecnológica da China foi facilitado por políticas industriais dirigidas pelo Estado—como aquelas adotadas sob os auspícios do plano Made in China 2025—, com o uso de subsídios, investimento em pesquisa e outros incentivos destinados a acelerar o desenvolvimento tecnológico do país. O mercado chinês, dinâmico e ávido por inovação—atualmente, 50% dos veículos novos vendidos são elétricos—serve como uma poderosa plataforma de lançamento para empresas como a BYD, a Xiaomi e a Geely, que agora buscam o domínio mundial. Em 2023, suas vendas de NEVs no exterior cresceram impressionantes 77%. O entusiasmo, no entanto, foi atenuado pela taxa de crescimento de 2024, de apenas 6,7% em comparação com o ano anterior. Em 2025, há um risco de estagnação das vendas. Se não garantirem uma parcela substancial do total de vendas no exterior, a sustentabilidade econômica dessas empresas será ameaçada.

    A corrida dos VEs no Sul e Sudeste Asiático

    Além da “Rota da Seda”, parte da Iniciativa Cinturão e Rota que atravessa a Ásia Central, a China busca implementar o que vem chamando de “Rota da Seda Marítima”, empreendimento que conectaria portos chineses—Xangai, Fuzhou, Guangzhou e Shenzhen—a portos e infraestruturas logísticas no subcontinente indiano. A partir daí, o acesso ao Oriente Médio, ao Mediterrâneo e a portos europeus como Pireu, Triste, Roterdã e Hamburgo estaria garantido.

    Esse corredor litorâneo é reconhecido há muito tempo como um importante vetor de poder geopolítico. Para a China, essa rota comercial adquiriu importância inigualável após a guerra da Ucrânia, que interrompeu muitas vias de comércio continentais e fez com que alguns projetos da Cinturão e Rota fossem adiados ou tivessem sua escala reduzida. O eixo comercial que vai do Estreito de Malaca até o Mediterrâneo ocidental e se estende de Indonésia, Tailândia, Índia, Paquistão até o Oriente Médio, o norte da África e a União Europeia abrange uma área que concentra metade da população mundial e que, no devido tempo, será responsável por uma parcela significativa do mercado de VEs. Portanto, não surpreende que exatamente ao longo desse corredor—pontuado por alguns dos principais portos controlados por empresas chinesas como a COSCO—estejam sendo construídas algumas das mais importantes fábricas chinesas de VEs.

    Na fronteira sul da China, a BYD está aumentando a presença no Camboja, correndo atrás das concorrentes Ford, Hyundai e Toyota, e no Vietnã, onde está construindo uma fábrica de US$ 250 milhões no parque industrial de Phu Ha. A planta vietnamita deverá produzir 150 mil veículos por ano e há a possibilidade de construção de uma segunda fábrica para explorar ainda mais os baixos custos de mão de obra do país. Na vizinha Tailândia—o segundo maior mercado de automóveis do Sudeste Asiático—, a BYD está investindo US$ 500 milhões em uma fábrica no Corredor Econômico Oriental de Rayong, com capacidade anual prevista de 150 mil veículos. Do outro lado do Mar de Java, a empresa investiu US$ 1 bilhão em uma nova fábrica em Subang, Java Ocidental. As operações estão programadas para começar em 2026, com uma meta de produção anual de 150 mil veículos destinados principalmente ao enorme mercado interno do país: 285 milhões de consumidores, que devem comprar 2 milhões de VEs por ano até 2030. E tanto a BYD quanto outras automotivas chinesas não estão investindo apenas em montadoras, mas também na cadeia de suprimentos e em logística. Enquanto isso, o governo chinês injeta dinheiro na construção de infraestrutura na região, fomentando a cooperação econômica e promovendo a diplomacia cultural. Esses casos ilustram como o governo Chines está bastante ciente da importância estratégica dessa região na “periferia sul” da China, que gostaria de ver se tornar um centro confiável para “friendshoring” e parcerias de longo prazo.

    A Índia é um caso à parte. Atualmente um grande importador de produtos chineses, o país pretende desenvolver sua própria capacidade tecnológica, o que inclui um setor de VEs. Para tanto, a Índia já começou a restringir os investimentos chineses. Uma consequência significativa disso é que, hoje, a BYD tem uma única fábrica em todo o país: localizada em Tamil Nadu, produz apenas 10 mil veículos por ano. Em resposta à aversão da Índia à influência chinesa, a BYD e suas irmãs se voltaram para o Paquistão, que abriu suas portas com entusiasmo para os investimentos chineses em VEs a fim de se tornar um centro global de exportação. Em colaboração com a empresa paquistanesa Mega Motors, a BYD planeja instalar uma fábrica em Karachi. A planta, já em construção e com inauguração prevista para 2026, produzirá inicialmente 50 mil carros por ano para o mercado paquistanês, com possibilidade de ampliação—a expectativa é de que, até 2030, 50% dos carros vendidos no país sejam elétricos. A BYD já comercializa três modelos no Paquistão: o Atto 3, o Seal e o Sealion. Além disso, fez uma parceria com a HubCo, maior empresa privada de fornecimento de serviços essenciais do país, para construir uma rede de estações de carregamento rápido. Esse caso é ilustrativo da visão de longo prazo e do foco em infraestrutura da BYD, bem diferentes da atitude de seus concorrentes ocidentais—tanto empresas quanto governos—que, em detrimento próprio, tendem a adotar uma visão curto-prazista.

    Ofensiva industrial e estratégia de sedução na Europa

    As empresas chinesas de VEs estão de olho nos mercados em expansão do Sudeste Asiático e do Sul da Ásia, mas o grande troféu são os ricos mercados de automóveis da Europa: o continente, que inclui a UE e o Reino Unido, é o terceiro maior mercado de automóveis e o segundo maior mercado de VEs depois da China, com 1,5 milhão de veículos registrados em 2024 (uma ligeira queda em relação ao ano anterior, em parte devida ao fim dos subsídios alemães). A China está interessada em aumentar as vendas na Europa, mas também deseja ter relações mais próximas com a região—que enxerga como potencial parceira no desenvolvimento de uma ordem multipolar. As tarifas de importação da União Europeia sobre os VEs chineses, no entanto, dificultam a tarefa.

    No fim de 2023, houve aumento das tarifas aos VEs da China. A BYD foi impactada por uma tarifa de 17%, acrescentada ao imposto de importação padrão de 10% já em vigor; outras empresas chinesas foram afetadas por percentuais ainda mais altos: 18,8% para a Geely e 35% para a SAIC—por conta de auxílio estatal ou de subsídios que Bruxelas considera desleais. Uma consequência possivelmente não intencional dessas políticas protecionistas é que elas criam incentivos para que as empresas chinesas evitem as tarifas abrindo fábricas na Europa. Uma tática comum já utilizada pelas empresas de automóveis é enviar “kits desmontados” para um determinado país, para a montagem e venda no mercado interno. Esses kits são classificados como componentes e, em geral, pagam uma tarifa mais baixa do que os produtos prontos. Isso também é mais eficiente do ponto de vista da cadeia de suprimentos: é mais fácil transportar um carro desmontado. No entanto, as autoridades locais podem ver nisso uma tática de evasão e exigir que, para se qualificar como local, um carro precise incorporar maior valor agregado e conteúdo locais. Em resposta a essas questões, a BYD e outras empresas chinesas de VEs elaboraram uma estratégia de relacionamento e investimento de longo prazo, desenvolvendo centros de P&D no continente e firmando parcerias de longa duração com fornecedores. Além disso, a BYD também está jogando a carta do soft power, patrocinando eventos e fazendo campanhas de comunicação para se aproximar dos cidadãos europeus.

    Até agora, o investimento mais significativo da BYD na Europa ocorreu na Hungria, país conhecido por sua robusta cadeia de suprimentos automotivos e pela estreita relação com a China. Os números são impressionantes: 44% de todo o investimento estrangeiro direto chinês na União Europeia vai para a Hungria e a BYD está concluindo a construção de uma grande fábrica em Szeged, perto da fronteira com a Sérvia e a Romênia. Espera-se que o investimento de 1 bilhão de dólares resulte na produção—e não simplesmente na montagem—de 150 mil a 200 mil carros por ano, que deve começar em meados deste ano. Para garantir a cadeia de valor local, a BYD firmou uma parceria com a francesa Forvia, a sétima maior fornecedora de tecnologia automotiva do mundo, para abastecer a fábrica de Szeged. A fábrica, no entanto, está agora sujeita a uma investigação da UE por auxílio estatal desleal, o que poderia forçar a empresa a reduzir sua capacidade ou vender parte de seus ativos.

    Se essas apurações revelam algum grau de vulnerabilidade, não restringem os ambiciosos planos de expansão da BYD. A empresa já iniciou a construção de uma segunda fábrica para aumentar sua produção europeia. Uma nova planta em Manisa, perto de Izmir, tem inauguração prevista para meados de 2026, com capacidade anual de 150 mil carros. A posição da Turquia nos limites da Europa é essencial nesse sentido. Embora não faça parte do mercado único da UE, ela é parte fundamental de sua área alfandegária. Isso significa que um carro montado na Turquia é poupado de tarifas pesadas. A “cooperação estratégica” entre Turquia e China, explicitada na recente adesão à Iniciativa do Cinturão e Rota, torna o país uma escolha natural para a expansão europeia da BYD.

    Além disso, uma terceira fábrica na Europa está sendo cogitada. Houve rumores de que a Itália seria um possível local, dado o interesse de seu governo em diversificar os fabricantes para compensar o declínio na produção da Stellantis (controladora da Fiat). As reuniões iniciais com a BYD foram pouco promissoras, mas há relatos de que a Chery está interessada em investir na Itália. Relatórios mais recentes indicaram que a Alemanha é o local mais provável para essa terceira fábrica da BYD na Europa. Fábricas de automóveis da Volkswagen e de outras firmas alemãs que estão prestes a fechar podem ser os terrenos mais atraentes para o investimento de empresas chinesas. Obter acesso à infraestrutura produtiva da Alemanha, bem como à sua posição no centro do mercado europeu, seria uma vantagem para qualquer empresa chinesa em busca de expansão.

    A BYD não deseja simplesmente construir algumas fábricas na Europa: pretende se posicionar como um parceiro amigável do continente. Os executivos da BYD têm afirmado com frequência que a empresa quer “se tornar europeia”. Na prática, isso significa investir em uma produção abrangente (não apenas em montagem), estabelecer centros de pesquisa e desenvolvimento—como o que está previsto para o Reino Unido—e promover uma robusta cadeia local de suprimentos. A reunião no início deste ano entre os representantes da BYD e 300 fabricantes italianos de componentes automotivos em Turim é ilustrativa da maneira como a BYD se envolve com os agentes econômicos locais, apresentando-se como um parceiro confiável interessando em investimentos de longo prazo.

    África e América Latina: a última fronteira

    A África e a América Latina podem não estar entre as prioridades da expansão da BYD, mas são áreas de crescimento visadas. O investimento chinês na Ásia e na América Latina vem aumentando, particularmente em portos, infraestrutura logística e na indústria extrativista. A onda de VEs oferece à China a oportunidade de aproveitar as relações econômicas e diplomáticas já estabelecidas e construir uma vasta presença industrial e logística, o que poderia ter implicações geopolíticas importantes em termos de aproximar essas regiões ainda mais da órbita chinesa e afastá-las de Washington.

    Na África, os planos ainda estão em fase inicial. Até o momento, a única fábrica de grande porte em estudo pela BYD seria na África do Sul. A BYD também teve discussões preliminares sobre a construção de fábricas no Egito e no Marrocos. Um obstáculo para a introdução de VEs na África é a limitada infraestrutura de carregamento e manutenção existente, bem como a falta de uma estrutura regulatória de apoio e incentivos para VEs por parte dos governos. No entanto, as coisas estão lentamente mudando. As classes médias africanas em países como Ruanda e Nigéria já adquiriram um gosto por veículos elétricos, enquanto a Etiópia proibiu a importação de carros a gasolina. Espera-se que novas fábricas de automóveis sejam abertas na próxima década.

    Já nas Américas, os planos da BYD estão em um estágio mais avançado. Tendo decidido evitar os mercados dos Estados Unidos e do Canadá—onde Biden e Trudeau já impuseram tarifas de importação de 100%—a BYD e outras empresas chinesas de VEs estão ganhando espaço nas Américas Central e do Sul. No Brasil, a BYD adquiriu uma antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, e investiu US$ 1 bilhão para transformá-la em uma instalação de última geração para a produção de VEs—embora a construção da fábrica tenha sido interrompida depois que uma investigação revelou que 163 trabalhadores chineses estavam vivendo ali em condições análogas à escravidão. A Great Wall Motors e a Chery estão estabelecendo fábricas no Brasil, que é um centro de produção e distribuição de automóveis para a América do Sul. Além disso, a BYD discute a possibilidade de instalação de uma nova fábrica no México. Não surpreendentemente, a iniciativa já causou alarme entre as elites dos Estados Unidos, que alegam que o México pode se tornar vítima da supremacia tecnológica chinesa.

    Com instalações no México, fabricantes chineses que pretendam vender para os Estados Unidos poderiam evitar as tarifas punitivas aplicadas aos bens produzidos na China e ter direito à tarifa mais baixa de 25% aplicada aos carros mexicanos, aumentando assim sua competitividade. No entanto, há risco de que uma fábrica tão próxima da fronteira dos Estados Unidos possa resultar em um vazamento de tecnologia para o maior adversário estratégico da China. A ameaça é vista com tanta seriedade que as empresas chinesas de VEs consideram adiar seus planos de investimento na América Latina, uma vez que nessa região (como em outras) o setor automotivo representa uma área decisiva no cabo de guerra geopolítico entre as grandes potências do mundo.

    Uma globalização com características chinesas e movida a bateria

    A BYD e suas irmãs estão capitaneando uma das maiores ondas de expansão internacional da história do setor automotivo. Caso a China ultrapasse os Estados Unidos como líder da globalização, é de se esperar que a nova linha virá do governo chinês. Isso significará uma ênfase maior em questões de ordem e estabilidade de longo prazo do que a dada por Washington nos últimos anos. As principais fábricas da BYD estão localizadas em países como Paquistão, Indonésia, Turquia e Brasil—todos signatários da Iniciativa Cinturão e Rota ou membros dos BRICS. Sob a égide chinesa, a cooperação econômica anda de mãos dadas com a parceria entre Estados, apesar das grandes diferenças ideológicas.

    Essa variedade de globalização é impulsionada por uma recuperação da “integração vertical” em oposição ao sistema de “produção flexível” que dominou o fim do século XX. Também ganha prioridade a estabilidade de longo prazo e a formação de consenso entre os países envolvidos. As práticas de “localização” adotadas por empresas como a BYD as posicionam como agentes benignos focados na criação de empregos e no avanço da transição verde.

    Mas, é claro, a realidade é mais complexa. Relatórios sobre a condição dos trabalhadores na fábrica de Camaçari, no Brasil, destacam práticas exploratórias que visam contornar a influência dos sindicatos sobre a produção industrial. Ainda, embora encorajados por sua impressionante liderança tecnológica em muitos campos, CEOs e políticos chineses continuam preocupados com novas investidas protecionistas no bojo de uma crescente guerra comercial global e com o risco de transferências reversas de tecnologias em países como a Índia e o México. Para os países que recebem investimentos chineses, essas preocupações também fornecem uma lição útil: exigir que as empresas chinesas interessadas em seus mercados façam parcerias com empresas locais é a melhor maneira de transformar o investimento estrangeiro em uma alavanca para a autonomia e não para a dependência.

    Tradução: Pedro Davoglio

  10. Reconstruir o multilateralismo

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    Mais do que uma definição rigorosa de governança global, a “ordem baseada em regras” é uma comunidade confessional que comunga de fervorosa fé nas boas intenções da influência global do poder econômico e político dos Estados Unidos. Essa não é, no entanto, a perspectiva mais popular. A história mais famosa—de acordo com figuras como Paul Krugman, para citar um exemplo recente—é que, após a Segunda Guerra Mundial, a Pax Americana “decidiu não manipular o sistema a seu favor” e, em vez disso, cultivou um modelo de governança hegemônica assentado na decência, na benevolência e na moderação. 

    A ascensão de Donald Trump à Casa Branca através dos pantanosos terrenos dos mega negócios imobiliários e dos reality shows demonstra que ele próprio nunca perdeu muito tempo com esses valores, nem com as armadilhas internacionalistas típicas dos membros mais alardeados da tal “ordem”. Agora, a singularidade dessa trajetória pessoal está começando a bater mais forte.

    Desde 17 de janeiro, as principais instituições de cooperação internacional, tanto domésticas quanto multilaterais, têm sido alvo de uma enxurrada de decretos presidenciais, e a expectativa é de que venham ainda mais. Essas ações certamente têm algo de perverso e talvez envolvam um tanto de loucura. Mas elas também encarnam uma crença no poder regenerador e na capacidade tecnológica das empresas estadunienses em tornar a América great again—e uma determinação em garantir que esse projeto não seja obstruído por forças oposicionistas no país ou no exterior. 

    As agressivas medidas tarifárias anunciadas em 2 de abril, data rotulada por Trump, sem nenhuma ironia, como o “Dia da Libertação”, foram consideradas um ataque direto às estruturas da governança global. Economistas não tardaram em ridicularizar a aritmética e a lógica por trás da ideia de que as “tarifas recíprocas” trariam de volta aos Estados Unidos os empregos na área de manufatura perdidos nos últimos anos, mapeando os potenciais danos aos mercados, empresas e famílias que as medidas poderiam causar. Muito disso é senso comum, mas o fascínio tecnocrático da resposta pode acabar colocando o carro na frente dos bois: o que está em jogo não é um conjunto de políticas bem formuladas para redirecionar ganhos comerciais, mas um projeto político destinado a reestruturar o poder dos EUA.

    Em um artigo recente no Financial Times, Gillian Tett retoma Albert Hirschman para relembrar como a política comercial historicamente andou de mãos dadas com a coerção econômica e a manutenção do poder nacional. E se há uma coisa que Trump entende é a eficácia do bullying para alcançar seus próprios objetivos.

    As investidas de Trump se dirigiram a todos aqueles que, teoricamente, “desfalcaram” os Estados Unidos—dos antigos aliados da Europa Ocidental, passando por alguns dos países mais pobres do mundo, aos pinguins que habitam as inóspitas Ilhas Heard e McDonald—e a seus antecessores no Salão Oval que, afirma, permitiram que isso acontecesse. Ainda assim, não há dúvida de que a China é o principal alvo tanto do ataque ao sistema de comércio internacional quanto da disposição do presidente para usar a ameaça de novas tarifas para convencer outros países a se unirem em uma aliança contra o país asiático. O anúncio da pausa de noventa dias nas tarifas, com exceção daquelas direcionadas à China, feito apenas uma semana após o Dia da Libertação, é sinal de que o conflito está longe de terminar.

    A indisciplinada coalizão de interesses comerciais por trás da gestão pode enfrentar dificuldades para sobreviver ao turbulento ambiente de incertezas produzido até agora—sem falar nos desafios que terá para cumprir as promessas de campanha feitas às famílias trabalhadoras do país. Fora do campo doméstico, parece ainda mais improvável que a China seja realmente intimidada a se submeter economicamente aos EUA. Se há uma certeza, no entanto, é a de que o ambiente econômico global ficará mais desafiador, especialmente para países do mundo em desenvolvimento. Mais cedo ou mais tarde, países pobres e altamente endividados sofrerão, mesmo com a possível influência compensatória de um dólar enfraquecido. 

    A eclosão de um ambiente econômico internacional mais hostil, no entanto, antecede Trump: começa com a crise financeira global, se não antes. Além disso, a disposição de usar sua dominância econômica como arma tem sido característica da posição hegemônica dos EUA há mais tempo ainda, embora com eficácia irregular e talvez até decrescente em um mundo com polos de influência concorrentes. Há anos que a força da cooperação internacional e a confiança nos acordos multilaterais vêm sendo minadas por uma combinação erosiva entre coerção econômica e relações transnacionais assimétricas—recentemente disfarçadas de acordos de livre comércio e parcerias econômicas entre países do Norte e do Sul global.

    Normalidade?

    Nesse cenário, é preocupante o apelo dos defensores da ordem internacional existente por um “retorno à normalidade” e, em especial, para que grandes empresários contribuam para reverter o ataque de Trump ao “capitalismo baseado em regras”. Até o momento, esse apelo caiu em ouvidos surdos. Mas a reação em si é ilustrativa do quanto a “ordem” se afastou dos princípios fundadores do sistema multilateral no pós-guerra.

    Para aqueles que se reuniram em Bretton Woods em 1944, a instabilidade financeira, o contágio econômico e a violência política do período entreguerras eram motivos de profunda preocupação com as ambições descontroladas do capital privado e o poder de autocorreção do livre mercado. Em vez disso, entendiam que a construção de um mundo próspero e pacífico só seria possível mediante políticas públicas ativas, um forte poder regulatório, uma maior cooperação e a rejeição de práticas de “bullying econômico”. Dedicadas instituições multilaterais foram criadas com essa finalidade. Nas palavras de Jamie Martin, um novo modelo intervencionista de organização do capitalismo, baseado no New Deal, deveria ser “expandido para o mundo todo”. E, como Eric Helleiner demonstrou, esse projeto foi concebido com o apoio fundamental—ainda que amplamente esquecido nos dias de hoje—dos países do Sul global.

    O sistema homônimo que se desenvolveu a partir dos Acordos de Bretton Woods nunca correspondeu aos seus ideais originais. O poder hegemônico utilizou as instituições ali criadas tanto unilateralmente, para apoiar os interesses estadunidenses, quanto, quando necessário, para intimidar membros refratários a cumprir as regras. A rejeição pelo Congresso dos EUA da Carta de Havana para uma Organização Internacional do Comércio fez com que as preocupações de países em desenvolvimento sobre os vieses do novo sistema e as assimetrias na divisão internacional do trabalho do pós-guerra fossem amplamente ignoradas. Para os países mais avançados, no entanto, o sistema proporcionou algum grau de estabilidade econômica e espaço político suficiente para permitir uma recuperação das disrupções forçadas pela guerra, taxas de crescimento econômico sem precedentes, números de empregos consistentes e ganhos tangíveis de bem-estar para a população. 

    A partir do final da década de 1960, o sistema de Bretton Woods enfrentou crescentes tensões macroeconômicas e distributivas provocadas por uma combinação entre desequilíbrios comerciais, pressões fiscais e descontentamentos no chão de fábrica. Em resposta, Richard Nixon tomou a decisão unilateral, em 1971, de desvincular o dólar do sistema de câmbio fixo. Isso deu início a um processo de fragmentação que assistiu à expansão e prosperidade de bancos internacionais que reciclavam “petrodólares” e culminou em uma “desintegração controlada” do regime do pós-guerra. Esse processo seguiu até o fim daquela década sob o olhar atento do Fed, que aumentou as taxas de juros e permitiu o fortalecimento do dólar, e com forte apoio político de Ronald Reagan.

    De forma semelhante ao momento atual, a decisão do Fed provocou uma considerável turbulência no mercado e um clima de descontentamento no mundo dos negócios. Até o fim de 1982, a economia entrou e saiu de sucessivas recessões. Ainda assim, um ataque combinado à organização dos trabalhadores e à solidariedade entre países em desenvolvimento ajudou a acabar com as pressões inflacionárias remanescentes, restaurar as taxas de lucro e abrir caminho para empresas e financistas recém-liberados para buscar oportunidades de investimento do redor do mundo.

    No final da década de 1980, os resultados já eram visíveis. O regime econômico internacional, em total sintonia com os desejos de livre circulação do capital e apoiado por ferramentas políticas como medidas de austeridade, não demonstrava qualquer mal-estar em relação ao aumento crítico da desigualdade, da insegurança e do endividamento que provocou. As instituições multilaterais diligentemente apoiaram o que o então diretor do FMI descreveu como um “sistema aberto e liberalizado de fluxos de capital”. Por meio da adoção de programas de empréstimos condicionados a reformas políticas, essas instituições priorizaram frontalmente a abertura do Bloco Oriental e do Sul global aos fluxos de capital privado. Ainda que a tentativa do Fundo de reformar os artigos de seu estatuto que consagravam os controles de capital tenha fracassado em razão da crise financeira asiática, já na década seguinte os EUA lograram inserir exigências dessa natureza em tratados de comércio e investimento.  

    A promessa de que a liberalização do capital inauguraria uma era de investimento produtivo inclusivo e estabiilidade financeira, no entanto, não foi cumprida. Pelo contrário, começando com a crise de poupanças e empréstimos de meados da década de 1980, passando pelas crises do México, do Leste Asiático e da Rússia e chegando até o choque da pandemia de Covid e suas consequências, a turbulência financeira tem sido característica permanente do mundo hiperglobalizado.

    Crise e reforma

    O estouro da bolha imobiliária dos EUA em 2008 e suas consequências globais provocaram apelos pela reconstrução de amortecedores contra a desordem dos fluxos de capital no sistema econômico internacional e pelo fortalecimento da cooperação internacional. Um “novo Bretton Woods” foi defendido pelo presidente francês Nicolas Sarkozy e pelo primeiro-ministro britânico Gordon Brown, que esperavam que um G20 renovado pudesse cumprir a promessa. Não foi o que aconteceu. Em vez disso, uma vez que os bancos que estavam no coração da crise foram salvos, o sistema vigente foi normalizado e, num mundo de dinheiro fácil, uma nova coalizão de agitadores financeiros—hedge funds, private equity e gestoras de ativos—levou ampla vantagem.

    Com seu espaço fiscal reduzido pela austeridade e seduzidos pelos portfólios em constante expansão desses novos agentes financeiros, governos de países ricos e pobres firmaram uma série de acordos de parceria para o fornecimento de bens e serviços públicos. De forma ainda mais ambiciosa, na COP26 de 2021 em Glasgow, uma aliança financeira liderada por Michael Bloomberg e Mark Carney sugeriu que essas “parcerias público-privadas” poderiam destravar mais de US$ 130 trilhões para proteger o planeta dos efeitos da crise climática. O impacto do anúncio e o tamanho da cifra inauguraram um novo consenso sobre os mecanismos ideais para o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável. 

    “Lamentável” foi a palavra que o economista-chefe do Banco Mundial escolheu para descrever essa década de mobilização de capital privado como prioridade. Nem o valor absoluto e nem o custo-benefício dessa mobilizacão subscreveram qualquer mudança significativa. Agora, insistir nessa estratégia fará pouco para combater a agenda de Trump, fazer os investimentos necessários para manter a temperatura global em um patamar seguro ou lidar com o fardo sufocante da dívida que um número crescente de países em desenvolvimento enfrenta. O mundo tem pouco a ganhar com mais do mesmo. E, como sugerido por Daniela Gabor, é bastante provável que a nova administração em Washington proponha uma variedade ainda mais nefasta desse modelo de parcerias para o futuro. 

    Como evitar isso? Os apelos dos defensores da arquitetura liberal da governança global contra o ataque populista da direita falham por dois motivos. O primeiro é que são incapazes de explicar como, ao longo das últimas três décadas, seus próprios programas alimentaram o crescimento de forças nacionalistas. O segundo é que ignoram sua própria incapacidade de responder às múltiplas crises que o mundo enfrenta hoje com medidas e recursos coordenados, eficientes e tempestivos.

    Multilateralismo renovado

    Para atingir as metas climáticas e promover melhorias significativas na vida da maior parte da população global, é necessário que a agenda de reformas seja, como é o desafio que se propõe a enfrentar, multidimensional—e, além disso, ancorada em uma sólida base pública de financiamento, investimento, serviços e políticas. Assim como ocorreu após a crise financeira de 2008, o ímpeto reformista provocado pelo choque da pandemia perdeu força ao longo do tempo—e, pelo menos nos EUA, foi revertido. Mesmo assim, é possível observar alguns movimentos positivos. Em 2024, sob a presidência brasileira, o G20 destacou a rede de instituições financeiras de desenvolvimento (DFIs) como ator fundamental para liderar a luta contra a pobreza e a crise climática. A cúpula do Rio de Janeiro defendeu o potencial das DFIs para impulsionar o investimento público, fortalecer o planejamento da transição energética e coordenar os esforços de diferentes países para atingir metas climáticas e de desenvolvimento. Embora tenha recebido menos atenção, um relatório independente do Grupo de Especialistas da Força Tarefa sobre clima do G20, chamado “Um planeta verde e justo”, traçou os caminhos a serem seguidos pelo setor público para promover a industrialização verde em nível nacional e internacional. Em essência, esses movimentos exigem um retorno aos princípios fundamentais do multilateralismo.

    Como parte dessa agenda, instituições financeiras multilaterais devem se concentrar em estreitar parcerias com instituições públicas semelhantes que estejam alinhadas com prioridades climáticas e de desenvolvimento. Uma década de conversa sobre blended finance deve dar lugar a um novo programa de colaboração institucional para fomentar um empurrão no investimento público. Essa abordagem é mais bem posicionada para mobilizar um tipo de capital privado paciente e inovador e reflete uma disposição de compartilhar riscos e recompensas dos investimentos em um ambiente político favorável, mas responsável.

    As DFIs têm mais de US$ 23 trilhões em ativos. A inclusão de bancos centrais, fundos soberanos e fundos públicos de pensões amplia ainda mais a rede de financiamento público. Até o momento, no entando, falta uma estrutura institucional que possibilite a cooperação entre esses órgãos públicos para alavancar seus ativos. A possibilidade de fortalecer a cooperação entre bancos multilaterais de desenvolvimento (MDBs) e bancos nacionais de desenvolvimento (NDBs) é particularmente importante. Antes de mais nada, a redução do custo de capital é fundamental para que os países em desenvolvimento tomadores de empréstimos possam fazer os investimentos necessários para transformar suas economias de maneira sustentável.

    As condições favoráveis que os NDBs têm para obter financiamento dos MDBs—o que pode ajudar a reduzir riscos que os NDBs não conseguem gerenciar sozinhos, em especial o risco cambial—são essenciais para a criação de genuínas parcerias “publico-públicas”. Além disso, as chances de que essas instituições afetem positivamente a transformação necessária nas áreas mais relevantes seriam fortalecidas pelo alinhamento estreito com as prioridades dos governos e o apoio de um ambiente político predisposto a promover a inovação e possibilitar a implementação de projetos bem-sucedidos.

    Mais de cinco décadas depois que os países em desenvolvimento buscaram construir uma Nova Ordem Econômica Internacional por meio do sistema das Nações Unidas e setenta anos depois que a Conferência de Bandung lançou o movimento não alinhado, um grupo de instituições lideradas pelo Sul global está posicionado para dar um novo salto. A criação do Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS) teve como base um modelo de parceria com bancos nacionais de desenvolvimento para projetos verdes. Os BRICS reunirão todos os seus bancos nacionais de desenvolvimento no final do ano. O Banco Islâmico de Desenvolvimento e o Banco Interamericano de Desenvolvimento fizeram esforços semelhantes. Também o fez o Banco Europeu de Investimento, sugerindo que um espírito inovador ainda pode ser encontrado no Norte global.

    Esses esforços são, obviamente, apenas uma parte de uma agenda mais ampla para reconstruir o multilateralismo sobre bases públicas sólidas. A reconfiguração necessária não sairá da diplomacia de bastidores ou das grandes cúpulas. Assim como nas décadas de 1930 e 1940, novas coalizões políticas em âmbito global, regional e nacional são essenciais para apoiar uma reforma sistêmica e resistir aos poderosos interesses que sustentam alianças políticas em torno do apoio à livre circulação de capital, às grandes corporações e à economia do carbono. O fato de que, diferentemente da década de 1940, essas novas coalizões precisarão lidar com a agenda abertamente hostil de um hegemon perverso é o desafio político da nossa era.