Category Archive: Análises

  1. Estado e desenvolvimento

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    Nas últimas décadas, afirmou-se uma retomada da política industrial na economia mundial. Sua base essencial foi a reação dos Estados Unidos à ascensão da China, cuja produção industrial, quer medida pelo valor da produção total, quer pelo valor adicionado, superou a estadunidense. Essa é uma circunstância inteiramente nova para a economia global, já que a polarização entre os Estados Unidos e União Soviética—que perdurou de 1945 até a diluição do bloco soviético em 1991—era essencialmente política: a disputa pela tecnologia mais avançada se circunscrevia ao terreno das armas. A nova polarização em torno da tecnologia nem sempre é destacada nas análises geopolíticas, que sublinham a fragmentação mundial e a emergência de diversas plataformas de negociação, como o G20 e os BRICS, por exemplo. Entretanto, quando se hierarquiza a disputa a partir da competição pelas tecnologias centrais, o antagonismo que se impõe é a entre os EUA e a China. Os demais países reagem a esse confronto.

    A retomada da política industrial ganhou maior legitimidade e abrangência nos EUA e em diversos países da União Europeia (UE), ainda que neste continente o retorno do planejamento industrial priorize a redução das emissões de carbono. Na China, o planejamento e as políticas industriais verticais foram essenciais à transição iniciada por Deng Xiaoping em 1978, modelo que marcou também os grandes saltos industriais ocorridos no Japão, na Coreia do Sul e em Taiwan. Estratégias semelhantes, ainda que com menor capacidade de coordenação, também se difundiram em diversos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e especialmente na Índia. Os últimos anos marcam, portanto, uma retomada da política industrial entre países que dela se afastaram no auge do neoliberalismo e sua evolução como ferramenta econômica entre países que historicamente a praticaram.

    Em outros países periféricos, entre eles o Brasil, a reação à ascensão chinesa foi distinta. Se no âmbito político o progresso chinês ampliou a capacidade de negociação internacional por meio da criação de plataformas como os BRICS (bloco em processo de expansão e diversificação geográfica), no âmbito econômico, contribuiu para uma evolução contraditória entre os planos da macroeconomia, da estrutura produtiva e do meio ambiente. A ascensão chinesa favoreceu a redução das restrições de balanço de pagamento e a expansão da demanda agregada—o chamado “efeito demanda”.1 No entanto, também ampliou a primarização da atividade econômica, o que tornou o Brasil fortemente dependente em commodities, na acepção da UNCTAD. Essa mudança na pauta exportadora não decorreu exclusivamente de características estruturais e das políticas econômicas adotadas internamente, mas se afirmou a partir da evolução dos mercados externos, o que também contribuiu para a ampliação do processo de desindustrialização e desnacionalização da economia.

    O desenvolvimento chinês gerou impactos contraditórios para o Brasil, contribuindo para a configuração de um modelo de crescimento distinto do que marcou a fase mais industrializante do país—sobretudo na década de 1970—, mais convergente com o seu padrão histórico, assentado na especialização primário-exportadora. Esse padrão vem perseverando em que pesem as diversas políticas industriais introduzidas—ainda que de forma fragmentada—em todos os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), incluindo o atual, porque criou coalizões sociopolíticas que dificultam muito um processo de mudança estrutural. O desafio atual é construir uma trajetória de desenvolvimento sustentável que, ao mesmo tempo, gere emprego e renda, reduza as desigualdades sociais e leve a uma redução significativa do desmatamento, a principal contribuição do país à mudança climática. Promover essas transformações implica também a retomada e rediscussão das relações do Brasil com a China. Xi Jinping esteve no Brasil em novembro de 2024 para a reunião do G20. Há uma discussão em curso sobre novas iniciativas de cooperação, inclusive dos termos de um eventual ingresso no Brasil na Iniciativa Cinturão e Rota, que já envolve uma centena de parceiros (na América Latina, quase todos os países estabeleceram memorandos de entendimentos, com exceção de Brasil, Colômbia e México).

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    A crescente rivalidade entre EUA e China é comumente atribuída a mudanças no plano da geopolítica. Mas a virada essencial se projetou no momento em que a complementaridade econômica estabelecida entre os países nos anos 1990 foi extinta,2 dando lugar ao antagonismo entre interesses nacionais, assentado não apenas numa perspectiva geopolítica distinta, mas também nos interesses e estratégias de grandes grupos econômicos—privados e estatais. Enquanto havia ampla complementaridade entre as empresas chinesas, especializadas na produção em atividades intensivas em mão de obra, e as estadunidenses, detentoras de marcas e tecnologia, as relações econômicas eram apoiadas por lobbies no Congresso americano que garantiam à China a renovação do status de “Nação mais Favorecida” no GATT.3 Com o catch-up tecnológico chinês e a estratégia voltada à tecnologia endógena adotada nos anos 2000, pressões internas para o endurecimento comercial contra a China passaram a ser exercidas nos EUA pelas mesmas empresas que antes apoiavam o regime chinês. Empresas estadunidenses desfizeram seus lobbies e passaram a endossar a posição mais belicista do Pentágono contra o país asiático. 

    A mudança de percepção dos grupos econômicos a respeito da China está por trás da retomada da política industrial americana. Trata-se de uma perspectiva clássica de nacionalismo econômico, defendido pelos governos e apoiado pelas empresas que experimentam ameaças a suas parcelas de mercado. Nos documentos que definiram a estratégia econômica do Joe Biden, defendia-se que os EUA precisavam adotar uma moderna estratégia industrial adequada a tempos de competição estratégica com grandes potências. Essa argumentação está presente no preâmbulo das leis de investimentos de emprego e infraestrutura, de criação de incentivos para a produção de semicondutores e da lei de redução da inflação, aprovadas entre 2021 e 2022.4 A digitalização e as tecnologias verdes são consideradas estratégicas. Embora os Estados Unidos tenham uma posição muito superior à da China na indústria de semicondutores (ainda que o país asiático venha evoluindo muito rapidamente), nas áreas de tecnologia verde, a China lidera com grande capacidade de se tornar um produtor praticamente monopolista em diversas áreas. Como a evolução dessas tecnologias depende do acesso a minerais estratégicos (como as terras raras, o lítio, o nióbio etc.), o  próprio conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, destacou o risco de que as cadeias de suprimento de energia limpa sejam armamentizadas—como ocorreu com o petróleo nos anos 1970 ou com o gás natural na Europa em 2022.

    É no setor de semicondutores que se localiza a disputa tecnológica contemporânea mais importante na economia global, e é nessa cadeia de suprimentos que os EUA tem usado todo o seu arsenal de políticas mercantilistas—entre elas, estratégias que poderiam ser interpretadas como medidas de sabotagem visando minar a capacidade de produção e de progresso tecnológico chinês. As políticas estadunidenses de semicondutores e outros materiais estratégicos possuem elementos compulsórios que, em nome da segurança nacional, buscam disciplinar os mercados. Elas mostram uma vez mais o acerto da percepção de Adam Smith, de que a segurança nacional vem na frente dos interesses do mercado. Essas políticas recebem, evidentemente, diversas críticas de economistas liberais e de instituições como a OMC, mas fato é que, tanto no passado como agora, o governo dos EUA promove ou desrespeita as leis comerciais internacionais segundo seus interesses domésticos, quase sempre referidos como elementos de segurança nacional.

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    A mudança climática assumiu uma dimensão essencial na reconfiguração da política industrial contemporânea, mas se assentou num momento de grande acirramento de conflitos econômicos e geopolíticos: ao mesmo tempo em que a redução dos índices de CO2 constitui um bem público universal, o mundo se encontra imensamente fragmentado e desigual em termos de renda e de condições de vida, desigualdade que aumentou entre e intrapaíses. Isso torna muito difícil estabelecer uma mesma régua para as políticas universais que o planeta exige, na medida em que os países possuem condições muito diferenciadas. Mesmo assim, há caminhos de planejamento doméstico que podem abrir portas para países periféricos. 

    A política industrial de hoje, assim como aquela que se afirmou historicamente, inclui uma grande variedade de instrumentos, como financiamentos diferenciados do comércio externo, empréstimos governamentais, prioridades estabelecidas por bancos de desenvolvimento, assistência financeira diferenciada nos mercados internacionais, compras públicas voltadas para a produção doméstica, garantias de empréstimos e tarifas diferenciadas. A priorização de atividades econômicas estratégicas também está presente em quase todas as experiências nacionais. O que há de comum entre esses instrumentos é que eles possuem uma forte dimensão política, de forma que, para serem adotados de forma coesa e eficaz, necessitam reunir recursos políticos para sustentar, em nome de uma perspectiva geral do país, escolhas que não necessariamente se confundem com aquelas tomadas pelo mercado, mesmo em relação a setores cujos preços podem ser alterados por decisões políticas.

    Algumas políticas recentemente implementadas na China e na Índia revelam o amplo protecionismo que veio se afirmando no planejamento industrial asiático. Na década de 2010, a brasileira Embraer, por exemplo, começou a produzir jatos comerciais na China. Dez anos depois, decidiu fechar as operações porque o governo chinês estava mais interessado na promoção de um avião com tecnologia nacional e criou um conjunto de circunstâncias comerciais e institucionais que tornavam não competitivos os custos de produzir os aviões da Embraer no país. Um outro exemplo fundamental: a China é talvez o maior produtor das terras raras do mundo. Já nos anos 1990, Deng Xiaoping observou que o país não tinha petróleo, mas tinha esse recurso estratégico composto por diversos minerais utilizados em painéis solares, motores elétricos, semicondutores, aviônicas e afins. No início, a China se tornou um grande exportador, mas posteriormente reduziu substancialmente as exportações, desenvolvendo o downstream de toda a cadeia com a produção de células fotovoltaicas e painéis solares. Recentemente, a Indonésia proibiu a exportação de cobalto e, com isso, atraiu diversas firmas chinesas para produzir baterias no país. Nas últimas décadas, a Índia também adotou um grande programa de estímulo à aviação doméstica por meio de compras governamentais de aviões de guerra, estabelecendo condicionalidades que favorecem fornecedores locais e estimulando a exportação de partes, componentes e aviões acabados. A partir desta política, a Índia se transformou num significativo exportador de aviões. 

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    A evolução da política industrial nos EUA e na Europa e as políticas nacionais-desenvolvimentistas voltadas à inovação, industrialização e diversificação produtiva na Ásia contrastam fortemente com a direção de política econômica que se consolidou no Brasil. O país se tornou um grande exportador de petróleo, soja, carne, ferro e diversos outros minerais, e um grande importador de bens de capital e eletrônicos procedentes da China.5

    No Brasil, a discussão predominante sobre a desindustrialização se baseia essencialmente na parcela do valor da transformação industrial no PIB. Mas essa é uma medida imprecisa se não se controlar as outras variáveis relevantes que afetam esta razão, como as transformações em outros setores e a dinâmica do crescimento da economia mundial. Em quase todos os países ricos em recursos naturais, houve tanto uma queda na parcela da manufatura quanto um aumento na parcela das exportações primárias em relação à de manufaturados. Medidas como a participação do valor adicionado do setor manufatureiro nacional no setor manufatureiro mundial são menos ambíguas: no Brasil, entre 2012 e 2022, houve um declínio de 0,73% ao ano.6

    Embora a questão da desindustrialização tenha sido amplamente discutida no país, há pouca ênfase sobre o processo da desnacionalização. Na última década, o Brasil figurou como um dos maiores recipientes mundiais de investimento direto estrangeiro (IDE). Em todo o mundo, esse processo de desnacionalização tem implicações sobre os limites das políticas industriais destinadas a promover as empresas nacionais. A baixa presença dessas empresas nas áreas mais distantes dos recursos naturais dificulta, no plano político, a adoção de políticas industriais voltadas aos novos setores e ao processo de inovação. 

    A retomada de um programa industrializante é, portanto, um desafio central, e enfrenta velhos e novos obstáculos. Em primeiro lugar, integrar as velhas cadeias produtivas que foram desfeitas e reduzir o déficit de infraestrutura básica constitui uma antiga tarefa desenvolvimentista, mas que se afirma hoje num contexto bastante distinto. O Brasil está comprometido no Acordo de Paris e estabeleceu uma meta de emissão líquida zero até 2050. Ao mesmo tempo, precisa resgatar o atraso tecnológico no setor manufatureiro. Face a estes desafios, o país conta com alguns ativos muito positivos, como a matriz energética limpa. Com efeito, para os grandes países que mais crescem no mundo, como a China e a Índia, reduzir a dependência do carvão na matriz energética já teria significativo impacto para a redução da emissão de CO2. O Brasil, com sua base hidrelétrica maior, e agora contando uma forte expansão de parques eólicos e energia solar, pode viabilizar um aumento da produção industrial com uma energia muito mais limpa.7 A questão da eletricidade no país, no entanto, é não apenas relacionada à expansão da oferta, mas ao preço. A energia no Brasil é cara e a política de preços é complexificada diante dos processos de privatização da Eletrobras e do tipo de diversificação e composição atual da oferta, com a presença significativa, para além da energia hídrica, da eólica e da solar e das fontes baseadas em gás que as complementam. Dado os limites da hidroeletricidade, a expansão da oferta demandará mais investimentos nas fontes renováveis, e reduzir o preço da tarifa é um desafio distributivo fundamental.8

    Ainda assim, o país reúne boas possibilidades na produção de veículos elétricos, principalmente de motores híbridos. Hoje, o Brasil exporta para a China manganês, nióbio, níquel, lítio, grafite e bauxita. A questão relevante é internalizar segmentos importantes das cadeias produtivas destes veículos. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de 2023 e a Nova Indústria Brasil (2024) já incluem uma política de industrialização do lítio. Embora em pequenas dimensões, a chinesa BYD começou a produzir baterias na zona franca de Manaus, sinalizando perspectivas para um programa de produção industrial combinando motores elétricos com o etanol e o biodiesel.

    No entanto, para além da questão industrial, o desafio ambiental principal do país não é representado pelas emissões relacionadas à matriz energética, mas por aquelas provenientes do desmatamento. O Brasil é um razoável emissor de gases de efeito estufa. Do ponto de vista setorial, a agricultura e a pecuária são os grandes responsáveis, e o uso e manejo de terras e o desmatamento constituem as principais externalidades de sua expansão. O forte desmatamento ocorrido no governo de Jair Bolsonaro deveu-se à desregulação que favoreceu uma expansão selvagem. Com o novo mandato de Lula, em 2023, houve redução do desmatamento e uma retomada de mecanismos de fiscalização. Esta evolução positiva, entretanto, é insuficiente e tende a ser cada vez menos significativa se as trajetórias de expansão e acumulação predominantes permanecerem inalteradas. A dificuldade desta questão é que o seu enfrentamento confronta o poder político dos grandes proprietários do agronegócio. O Brasil já aprovou a criação de um mercado de carbono, mas, em razão da força do agro no Congresso, o sistema “cap and trade” proposto exclui a agricultura, responsável pela maior emissão de gases.9

    O que distingue hoje a experiência dos EUA, da China e de diversos países asiáticos face aos desafios comerciais e tecnológicos é um comprometimento forte do governo e de seus órgãos de planejamento com uma política industrial voltada à inovação e à mudança estrutural. Nesses países, a política industrial se afirmou como política econômica prioritária. No Brasil, o PAC, a Nova Indústria Brasil e o Plano de Transformação Ecológica (2023), bem como as cartas de intenção visando a cooperação tecnológica com a China assinadas em 2024, procuram responder a estes desafios a partir de uma realidade econômica caracterizada pela desindustrialização e pela forte dependência de commodities na pauta exportadora. Esses programas priorizam e elegem a infraestrutura, o desenvolvimento produtivo, a reindustrialização a diversificação exportadora, a digitalização, a inteligência artificial, o complexo industrial da saúde, a descarbonização e a bioeconomia como áreas prioritárias para a alocação de investimentos e esforços de pesquisa e desenvolvimento. A questão fundamental é que, para serem eficazes e se transformarem em projetos de investimento com impactos sobre a estrutura produtiva, além de coordenação, esses programas requerem escala, recursos fiscais, créditos direcionados, políticas comerciais estratégica e mecanismos de indução, como compras governamentais voltadas para a inovação. 

    Ao longo dos governos anteriores do PT, existiram nominalmente diversas políticas industriais voltadas à mudança estrutural. Entretanto, implementadas em um período caracterizado por elevada expansão do agronegócio exportador, essas políticas se revelaram muito frágeis para confrontar os processos de desindustrialização e regressão da estrutura industrial. Os investimentos em infraestrutura—base essencial para a produtividade sistêmica do país—, objetivo central do novo PAC, iniciara, alguma retomada, mas em patamar estruturalmente baixo face às necessidades brasileiras (tendo em vista sua longa estagnação), especialmente se comparados com os países em transformação. Se, nos anos 1970, esses investimentos atingiram cerca de 10% do PIB, hoje, representam aproximadamente 2,6%, e a expectativa de expansão depende em grande parte de incertas iniciativas baseadas em regime de parcerias público-privadas. Sem uma elevação da capacidade de investimento do Estado (os da União se mantêm estagnados há anos), qualquer processo de transformação estrutural ou não inicia ou ocorre de forma desequilibrada e assimétrica.

    A inclusão dos investimentos públicos em infraestrutura estratégica—como os do PAC—em metas fiscais sobre despesas primárias—como a que vigora no país—é um limite que torna a expansão de gastos dessa natureza dependente de fluxos privados de investimentos e IDEs que dificilmente atendem, em termos de volume ou direção, o processo de transformação desejada. É indiscutível que o BNDES, após uma sequência de governos na qual perdeu o seu foco histórico na indústria e reduziu sua importância como emprestador de longo prazo, assumiu no terceiro mandato de Lula um novo protagonismo, com forte comprometimento com a industrialização e com a mudança estrutural, desenvolvendo iniciativas financeiras em linha com as prioridades estabelecidas pela Nova Indústria Brasil e pelo Plano de Transformação Ecológica. Ainda assim, sua expansão como investidor de longo prazo encontra limites em relação à dependência do Tesouro Nacional. De toda forma, o impacto do banco de desenvolvimento sobre o processo de mudança depende não apenas de novos mecanismos de financiamento que permitam uma expansão do crédito, mas também das decisões de investimento privado e de empresas estatais.

    Além disso, a retomada da política industrial requer maior interdependência público-privada, de forma a viabilizar uma articulação maior entre governo, empresas de tecnologia, universidades e laboratórios de pesquisa. Existem importantes iniciativas de negociação com empresas estrangeiras, a  exemplo da parceria da BYD com laboratórios da Universidade de Campinas para o desenvolvimento de tecnologias de painéis solares.10 O Brasil é hoje um grande importador de painéis solares que, por sua vez, constituem o principal produto exportado pela China. A produção local destes equipamentos e a internalização de parte desta cadeia produtiva, assim como a produção de baterias e de parte da cadeia produtiva de veículos elétricos e híbridos, são oportunidades que o Brasil pode aproveitar utilizando instrumentos como tarifas, financiamento e compras governamentais. Há também perspectivas relacionadas a investimentos da firma chinesa em big data e inteligência artificial, com importante potencial de impacto na infraestrutura da tecnologia da informação e comunicação (TIC).

    Outra oportunidade para o Brasil é a produção em grande escala de bioetanol, biodiesel, biocombustível de aviação e hidrogênio verde, tendo em vista a demanda mundial e as capacitações tecnológicas já existentes. Em geral, as áreas prioritárias destacadas nos memorandos de entendimento de cooperação tecnológica com a China, especialmente a bioenergia e a TIC, poderiam reforçar a articulação entre pesquisa e investimento no país. Tendo em vista a crescente rivalidade entre os EUA e a China, o Brasil poderia aumentar sua capacidade de negociação comercial e diplomática para atrair projetos de alta tecnologia das potências rivais e aumentar o conteúdo local dos investimentos das empresas chinesas e norte-americanas, numa direção semelhante à seguida pelos próprios EUA, China e outros países asiáticos. A expansão desses projetos, entretanto, depende não apenas da capacidade de negociação, mas das iniciativas e contrapartidas financeiras internas, da ampliação dos recursos disponíveis no BNDES e na Finep11 e daqueles destinados aos laboratórios de pesquisa das universidades. 

    Por fim, há uma questão institucional sobre a relação entre Estado e mercado. Como se discutiu anteriormente, a política industrial nos EUA, na China e nos países asiáticos incluiu não apenas a discriminação seletiva de setores e atividades, mas também a política de compras públicas voltadas para as inovações. No Brasil, as compras públicas foram  historicamente importantes em diversas áreas, a exemplo do setor petroquímico nas compras relacionadas à saúde pública. Mas, nos últimos tempos, têm sido uma política fortemente dominada por questões de eficiência e de transparência,12 visando essencialmente a obtenção menores preços, sem maiores considerações de médio prazo para o desenvolvimento tecnológico. Em síntese, o problema central percebido há algum tempo por Maria da Conceição Tavares13 para um renovado Estado Desenvolvimentista parece ainda bastante atual:

    A questão é o próprio poder do Estado, […] não basta uma burocracia de planejamento, não bastam bancos e empresas estatais. Para que um plano de desenvolvimento funcione é necessário que haja um grau de articulação econômica estrutural e um controle sobre os investimentos e as políticas públicas globais que, por sua vez, implicam um elevado grau de articulação política no seio do Estado e alguma forma de pacto social.

     

  2. Deslegitimado pela lei, abandonado pela base?

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    A reforma trabalhista de 2017 no Brasil se insere em um movimento de rebaixamento de direitos trabalhistas verificado em escala internacional nas duas primeiras décadas do século XXI e, especialmente, após a crise financeira de 2008.1 Esse movimento representou um retorno à agenda dos anos 1990, quando a ascensão de governos neoliberais colocou na ordem do dia políticas de flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho sob o pretexto de que seriam imprescindíveis para combater o desemprego e a informalidade. Apesar da ineficácia das medidas então adotadas, elas vêm sendo, há mais de quatro décadas, reiteradamente apresentadas como forma de estimular o crescimento econômico e de solucionar os problemas do mercado de trabalho em diferentes países.

    Há uma série de pesquisas que mostram o equívoco dessas teses e os impactos negativos de políticas que reduzem o papel da regulação pública e das instituições encarregadas de proteger os trabalhadores e as trabalhadoras.2 As reformas aprofundaram a precarização do trabalho devido à proliferação de contratos instáveis e que garantem menos direitos, geraram insegurança para quem trabalha e aumentaram as desigualdades sociais afetando, consequentemente, a organização e a representação sindical. O caso brasileiro não fugiu a essa regra. Cinco anos após a implementação da reforma, as taxas de sindicalização no país se reduziram para 8,4%, o que equivale a 8,4 milhões de pessoas sindicalizados em 2023, em um universo de 100,7 milhões de ocupados. É o menor percentual da série iniciada em 2012, quando a taxa de sindicalização era quase o dobro (16,1%).3

    Vários fatores, simultâneos e interrelacionados, atuam para produzir esse resultado, que não pode ser atribuído exclusivamente à reforma trabalhista. São fatores de ordem econômica, política e ideológica, que contribuem para deslegitimar e desacreditar os sindicatos, levando à indiferença, quando não ao afastamento, dos trabalhadores em relação às organizações constituídas para representá-los. Mas ainda que a reforma não seja um fenômeno isolado, nem se limite às medidas adotadas em 2017, ela constitui um marco e uma dimensão fundamental desse processo. A taxa de sindicalização caiu de 16% para 14,4% entre 2012 e 2017 e para 11% em 2019, o que indica o impacto decisivo da reforma nessa trajetória de queda.4 O número dos sindicalizados diminui em todos os setores de atividade econômica, inclusive no setor público, onde a sindicalização é tradicionalmente mais elevada, passando de 28,1% para 18,3% entre 2012 e 2023. A situação é mais dramática entre os trabalhadores precários, pois a fragilidade das ocupações, embora não impeça a sindicalização, a torna mais difícil: os empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada registram uma taxa de sindicalização de 3,7%, os conta própria de 5,0% e os empregados em serviços domésticos de 2,0% em 2023.5

    A redução na taxa de sindicalização é mais expressiva entre os jovens: em 2022, a sindicalização da população situada na faixa etária entre 15 e 29 anos encontrava-se em 5,0%.6 Muitos jovens ingressam no mercado de trabalho em ocupações precárias e não conseguem se inserir em vínculos mais estáveis e protegidos com o passar dos anos. Isso os torna suscetíveis à ideologia do empreendedorismo e refratários à organização coletiva, impondo desafios de monta ao movimento sindical.

    A reforma trabalhista contribuiu para esse cenário de diversas maneiras. Em primeiro lugar, porque os contratos precários inibem a organização do trabalhador, dados os baixos salários, a maior rotatividade no emprego e a baixa cobertura de direitos a eles associados. Em segundo lugar, porque a multiplicação de formas contratuais dificulta a percepção de um sentido de pertencimento comum e, portanto, a criação de uma identidade coletiva. Em terceiro lugar porque, embora o foco da reforma de 2017 sejam os direitos trabalhistas, ela tem uma dimensão claramente anti-sindical, com várias medidas que visam contornar o papel dos sindicatos.

    De volta aos anos 1990?

    As mudanças aprovadas no governo Temer em 2017 retomaram, em grande medida, projetos formulados nos anos 1990 e argumentos disseminados desde então para promover a perspectiva de flexibilização de direitos. A lei 13.467 (que instituiu a reforma) foi antecedida pela lei 13.429, que autorizou a ampliação das possibilidades de terceirização, complementando o pacote de mudanças adotadas em 2017. Ambas fundamentam-se na premissa de que a CLT é ultrapassada e arcaica, caracterizada por um excesso de leis que “engessam” a liberdade patronal, restringem a livre iniciativa e desincentivam a contratação.

    Partindo de dados concretos, relacionados às transformações do capitalismo, às mudanças na estrutura produtiva e às inovações tecnológicas -intensificadas com a uberização e o desenvolvimento da inteligência artificial -constroem-se mistificações, a exemplo da necessidade imperiosa de “modernizar” as relações de trabalho, expressão frequente entre empregadores, políticos e articulistas da grande imprensa em suas manifestações favoráveis à reforma. O discurso da modernização é uma forma de justificar a diferenciação de direitos e a adaptação das normas trabalhistas às condições econômicas dos distintos setores de atividade. Ele se associa à tese da segurança jurídica, invocada como um mantra para atacar uma legislação trabalhista supostamente promotora de injustiças, e para denunciar o “ativismo” dos tribunais que, conforme a visão dos empregadores, desrespeitariam a lei e a intenção dos legisladores ao proferir suas decisões. O pressuposto de que o entendimento direto entre as partes interessadas possibilitaria às empresas “empreender com segurança”, “atendendo as vontades e as realidades das pessoas”7 nada mais é do que uma forma de legitimar a substituição da lei pelo contrato -um contrato a ser celebrado, se possível, de modo individual e não coletivo -desresponsabilizando as empresas pelo conjunto da força de trabalho que emprega e o Estado pelo bem-estar dos cidadãos.

    Todos esses argumentos foram sustentados pelo ministro Ives Gandra Martins Filho, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) por ocasião das mudanças introduzidas em 2017. Segundo ele, a reforma asseguraria “prestígio à negociação coletiva” e “quebra[ria] a rigidez da legislação”. Além disso, a máxima de que “é preciso flexibilizar direitos sociais para haver emprego” foi novamente entoada, sob a justificativa de que “nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direitos”. Sem Estado e sem direitos, o que resta ao indivíduo é a capacidade de empreender e competir, conforme a lógica da concorrência e as regras do mercado.

    Dimensões da precarização

    A reforma de 2017 atacou as instituições públicas de regulação do trabalho, para evitar ou minimizar sua intervenção nas relações de trabalho. Assim, as normas relativas à saúde e à segurança do trabalhador foram afrouxadas, a fiscalização das empresas reduzida e o acesso à Justiça do Trabalho dificultado. Ela também legalizou práticas outrora consideradas ilegais, reconhecendo novas modalidades de contratação precárias. Algumas dessas modalidades possibilitam a formalização do trabalho, mas expõem o trabalhador à insegurança e à vulnerabilidade. Esse é o caso do contrato intermitente, por meio do qual o empregador é autorizado a utilizar o tempo de trabalho de acordo com suas necessidades, sem que seja obrigado a garantir a seus empregados uma jornada definida e de lhes assegurar uma remuneração correspondente ao salário mínimo vigente. Por outro lado, algumas dessas formas de contratação fragilizam o vínculo de emprego. A possibilidade de contratar prestadores de serviços, como autônomos permanentes estimula a burla, pois permite a substituição de assalariados por falsos autônomos e transfere para o trabalhador, convertido em empreendedor de si mesmo, o ônus de assegurar sua proteção social.8

    Os contratos precários promovem a despadronização da jornada e da remuneração, uma vez que buscam eliminar os tempos mortos, considerados “não produtivos” na medida em que não contribuem para a valorização de capital. Ampliam-se as incertezas na vida de quem trabalha quanto às horas de trabalho, de repouso e ao rendimento a ser auferido ao final do tempo disponibilizado à empresa, já que a remuneração pode variar conforme a demanda por trabalho e o modo de se contabilizar a jornada. Assim, estar à disposição da empresa deixa de ser considerado tempo de trabalho, pois o relógio de ponto só começa a girar se as horas trabalhadas geram lucro ao empregador. Trata-se, portanto, de uma forma de aumentar a produtividade em detrimento das garantias e da proteção ao trabalhador.

    O rebaixamento da remuneração, de um lado, e a substituição de assalariados por autônomos, MEIs ou PJ, de outro, reduzem as contribuições previdenciárias, impactando as receitas da seguridade social. Nesse sentido, esses contratos afetam tanto os indivíduos contratados quanto a coletividade, já que o Estado perde recursos destinados ao financiamento de políticas públicas, o que fortalece o discurso em prol da austeridade. Desencadeia-se, assim, um processo contínuo de reformas no campo trabalhista e previdenciário, e de corte de gastos, especialmente no campo da saúde e da educação, restringindo os direitos sociais de gerações futuras. Além dos contratos precários diminuírem a arrecadação, os trabalhadores com vínculos precários têm dificuldades para contribuir de forma contínua e, sem acumular o tempo de contribuição necessário, não conseguem exercer seu direito à aposentadoria.

    A reforma também autorizou a inversão da hierarquia dos instrumentos normativos, permitindo que a norma menos favorável aos trabalhadores se imponha sobre as demais. Ao invés de fortalecer os sindicatos, essa medida possibilita a redução de direitos garantidos em lei com a anuência sindical. Isto porque a derrogação da lei pela negociação, que estava no horizonte dos “reformadores” desde a década de 1990, foi, finalmente, autorizada. Assim, a prevalência do negociado sobre o legislado não passa de artifício para ocultar o verdadeiro objetivo da reforma: reduzir os custos do trabalho, uma vez que até 2017 os acordos e convenções prevaleciam sobre a lei, desde que fossem mais favoráveis do que os patamares estabelecidos pela legislação. A descentralização da negociação passa a ser atrativa para os empregadores, já que os acordos não mais precisam necessariamente melhorar as condições de trabalho. Nesse sentido, o argumento do estímulo à negociação coletiva dissimula o alvo a ser alcançado com a negociação: a renúncia de direitos.

    Obstáculos à ação sindical

    A reforma esvazia as prerrogativas sindicais ao possibilitar a homologação da rescisão contratual sem a intermediação sindical. Ora, o acompanhamento dos sindicatos é fundamental para que o trabalhador não seja lesado e não abra mão de direitos no momento da demissão. O mesmo ocorre ao facultar, aos trabalhadores cujos salários são duas vezes superiores ao teto da previdência, a possibilidade de negociarem individualmente alguns direitos, supondo que são capazes de negociar em pé de igualdade com seus empregadores. A individualização da negociação promove a diferenciação entre os trabalhadores conforme seu poder de barganha e torna os sindicatos dispensáveis aos olhos do trabalhador. O deslocamento do lócus da definição das regras que regem a relação de emprego para o mercado, para âmbitos inferiores de negociação, como o interior da própria empresa ou até mesmo para indivíduos, reduz o poder dos sindicatos. Além disso, a possibilidade de se criar comissões destinadas a representar os trabalhadores no local de trabalho e a negociar em seu nome não apenas introduz uma concorrência com os sindicatos como amplia o poder do empregador de determinar unilateralmente as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho.

    Ainda que algumas dessas formas de contratação, como o contrato intermitente, tenham pouca incidência no mercado de trabalho, o que demonstra a falácia de seu potencial de geração de empregos, elas trazem desafios significativos à organização sindical. A diversificação contratual -que ocorre inclusive no setor público, anteriormente protegido por um regime próprio de contratação-e a liberalização da terceirização de qualquer tipo de atividade minam as bases de representação, pois fragmentam e pulverizam os coletivos de trabalhadores. Ser assalariado, autônomo ou terceirizado altera as condições objetivas em que se trabalha e afeta as condições subjetivas dos sujeitos, incidindo sobre a forma pela qual eles se vêem (ou não se vêem) enquanto trabalhadores e trabalhadoras, as relações que estabelecem com seus colegas e sua disposição a aderir aos sindicatos. Enquanto os assalariados formais têm direitos assegurados, os autônomos em uma relação de emprego disfarçada trabalham sem direitos e sem proteção sindical e os tercerizados, via de regra, recebem salários mais baixos e menos benefícios que os assegurados pela empresa tomadora de serviços. Além disso, a terceirização fragmenta coletivos de trabalho em categorias profissionais distintas, o que, segundo a legislação sindical brasileira, faz com que sejam representados por sindicatos diferentes. Estes, via de regra, são mais frágeis do que aqueles que representam os não terceirizados e negociam convenções coletivas menos protetivas.

    O teletrabalho e outras formas de trabalho remoto -modalidades pouco praticadas nos primeiros anos pós-reforma, mas que se expandiram durante a pandemia da Covid 19 devido às exigências de isolamento social - acrescentam uma dificuldade adicional à capacidade dos sindicatos de organizar trabalhadores submetidos a diferentes formas de contratação: a dispersão territorial. O trabalho por plataforma também contribui para isso, bem como para o distanciamento dos trabalhadores em relação ao sindicato, uma vez que não estão reunidos em um mesmo local de trabalho, o que repercute sobre as formas de sociabilidade e a construção de redes de solidariedade, impondo obstáculos à organização e à ação coletiva.

    Outro aspecto a ser destacado é que a ideologia neoliberal sobre a qual a reforma está alicerçada difunde-se entre os trabalhadores, fomentando ilusões quanto ao poder das capacidades e liberdades individuais, alimentando expectativas de autossuficiência e o sonho de ter seu próprio negócio. Ao apregoar as vantagens do trabalho autônomo, a ideologia do empreendedorismo distancia o trabalhador da organização coletiva e da luta por direitos. Isso fragiliza o sindicalismo de duas formas: pelo estímulo ao individualismo e à competitividade, e pelo enfraquecimento da solidariedade, afinal, trata-se de assumir os riscos inerentes à livre iniciativa para conquistar uma posição no mercado. O empreendedorismo vem sendo usado para justificar a precariedade e o rebaixamento de direitos, e isso produz um efeito desmobilizador. Além disso, o culto à meritocracia torna os sindicatos, bem como qualquer forma de associação, supostamente desnecessários, já que tudo passa a depender do esforço e da competência dos indivíduos. Também é importante mencionar as campanhas de difamação dos sindicatos, as práticas antissindicais promovidas pelas empresas, bem como o próprio ambiente político-ideológico que se conformou a partir do crescimento do conservadorismo e da extrema direita, sobretudo durante o mandato de Jair Bolsonaro (2019-2022), marcado por posicionamentos contrários ao movimento sindical e a movimentos sociais progressistas.

    Mas nenhuma hegemonia é absoluta. Há rachaduras, fissuras, por meio das quais se constroem organizações e se realizam ações em defesa de direitos, embora não sem conflitos e contradições. Ao mesmo tempo em que sofrem o impacto da ideologia neoliberal, os trabalhadores vivenciam cotidianamente situações de exploração e precarização, o que lhes mostra a necessidade de se organizar para se manter no mercado de trabalho e reduzir sua vulnerabilidade. Ocorre que essa organização não se dá necessariamente sob a forma sindical. Os trabalhadores mais fortemente expostos ao trabalho precário, como os informais e falsos autônomos, vêm constituindo organizações alternativas aos sindicatos, como associações, cooperativas e coletivos. De um lado, há uma crença bastante difundida no Brasil de que os informais e autônomos não “têm direito” de se sindicalizar. De outro, verifica-se um movimento de deslegitimação e de rejeição da forma sindicato pois, dadas as suas condições de trabalho, os trabalhadores precarizados,      via de regra, não se sentem representados pelo sindicato. As próprias características da estrutura sindical brasileira contribuem para essa percepção, pois as regras que regem a organização sindical no Brasil facilitaram a existência de entidades cartoriais e burocratizadas,      ao assegurar o monopólio da representação na base e fontes seguras de financiamento, dos quais o mais importante era o chamado “imposto sindical”. Conforme visão bastante disseminada, os sindicatos seriam ineficientes, só estariam interessados em cobrar taxas dos filiados e em preservar sua estrutura burocrática, sem defender os interesses desses setores. 

    Mas quais seriam esses interesses e a quem devem ser apresentados? Não há consenso a esse respeito. Enquanto a experiência de uma parcela dos informais e falsos autônomos lhes permite desmistificar o discurso da autonomia e da liberdade de empreender, reivindicando seu reconhecimento como trabalhadores junto ao Estado e ao patronato, outros mantêm-se presos a essa perspectiva, constituindo associações não para defender direitos trabalhistas, mas para melhorar sua situação “no mercado”, em um modelo semelhante ao de um clube de vantagens e benefícios para produtores e consumidores: no caso de parcela dos entregadores e motoristas de aplicativos, por exemplo, trata-se de obter descontos na compra de motos e automóveis, no preço da gasolina, além de seguros de automóvel, motocicleta, de vida e para as mercadorias transportadas. Para outras categorias, como as cuidadoras de idosos e crianças, destacam-se iniciativas voltadas para promover a valorização profissional, a prestação de serviços ou até mesmo a intermediação da força de trabalho.9 Ou seja, há uma diversidade muito grande de situações e perspectivas a serem consideradas, que compreendem tanto os valores da solidariedade quanto os benefícios individuais como razões para a organização coletiva. Do mesmo modo que há sindicatos mais ou menos representativos, mais ou menos atuantes e com perfis político-ideológicos distintos, há diferentes tipos de associação, sendo que algumas inclusive não descartam a possibilidade de vir a se transformar em sindicatos para melhor exercer a tarefa de organizar, representar e mobilizar os trabalhadores.  

    As mudanças na estrutura ocupacional e a ampliação de modalidades de contratação autorizadas pela reforma trabalhista, associadas à concorrência advinda de outras formas de organização, contribuem para reduzir a taxa de sindicalização, o que ilustra parte das dificuldades enfrentadas pelos sindicatos. Outros obstáculos se expressam na redução dos acordos e convenções coletivas. A despeito da retórica de que a reforma representaria um estímulo à negociação coletiva, diversas pesquisas realizadas a partir do Mediador, sistema de registro dos instrumentos coletivos mantido pela Secretaria de Relações de Trabalho do governo federal, demonstram que o número de instrumentos normativos negociados diminuiu após a reforma, perfazendo uma queda de 19% no caso dos acordos e de 10% no caso das convenções coletivas, entre 2012 e 2022.10

    Além das dificuldades para fechar acordos, seus resultados tendem a ser piores. O processo de negociação é marcado por uma maior pressão patronal para instituir cláusulas que rebaixam as condições de trabalho, nos termos das mudanças introduzidas na legislação após a reforma. Observa-se a intensificação da negociação de temas de interesse patronal, com a retirada de cláusulas de interesse dos trabalhadores e a introdução de cláusulas desfavoráveis a eles. Ganham proeminência os temas relativos às formas de contratação, especialmente a terceirização, e à jornada de trabalho, com destaque para a introdução da jornada 12×36, a redução do intervalo intrajornada e facilidades para a implantação de banco de horas, inclusive por acordo individual, possibilidade assegurada pela reforma.11

    Por outro lado, muitos acordos e convenções coletivas passaram a prever taxas, a serem cobradas de todos os trabalhadores beneficiados pelo processo de negociação, como uma espécie de contrapartida pelo trabalho realizado pelos sindicatos. A chamada taxa negocial tornou-se uma estratégia para tentar compensar a perda de receita, pois a reforma condicionou a cobrança do imposto sindical- uma das três contribuições previstas na legislação brasileira- à anuência prévia por parte do trabalhador. Essa medida seguiu as diretrizes de decisões do judiciário que, desde 1998, no âmbito do TST, e a partir de 2003, no STF, restringiu a cobrança das duas outras contribuições compulsórias (a confederativa e a assistencial) aos trabalhadores filiados, por entender que sua obrigatoriedade fere a liberdade de sindicalização. A decisão do STF foi revista em 2023, pois com o fim da obrigatoriedade do imposto a partir da reforma, os sindicatos perderam praticamente todas as fontes de financiamento anteriormente garantidas, só lhes restando a mensalidade paga voluntariamente por um número cada vez mais reduzido de sindicalizados.12A partir dessa revisão, os sindicatos podem cobrar contribuições de todos os trabalhadores, mesmo dos não filiados, desde que aprovadas em assembleias de base.

    A redução de recursos afetou a capacidade do sindicalismo promover ações junto a sua base e apoiar movimentos sociais na defesa de direitos de cidadania. Os sindicatos passaram a reduzir suas despesas, demitindo funcionários, vendendo patrimônio, cortando serviços e gastos com comunicação, ao mesmo tempo em que adotaram iniciativas visando aumentar sua receita, a exemplo de campanhas de sindicalização. Contudo, a filiação de novos trabalhadores esbarra em vários obstáculos, como a proliferação de diferentes tipos de contrato e as questões de ordem subjetiva anteriormente apontadas, que levam à indiferença ou à uma visão negativa sobre os sindicatos.13

    Como enfrentar a reforma e os desafios que se apresentam ao movimento sindical?

    Desde 2017, a reforma tem suscitado críticas por parte do movimento sindical. Embora uma parcela não desprezível dos dirigentes sindicais tenha assumido o discurso da modernização das relações de trabalho e se iludido com a ideia de que a prevalência do negociado sobre o legislado pudesse fortalecer os sindicatos, a revogação da reforma foi uma proposta assumida por ampla maioria.14

    A proposta de revogação consta na Agenda Prioritária da Classe Trabalhadora: democracia, soberania e desenvolvimento com justiça social, documento assinado por sete centrais sindicais15 e apresentado aos candidatos às eleições de 2018. O documento em questão defende a revogação dos aspectos negativos da reforma, o que sugere duas possibilidades: a existência de aspectos positivos na mesma ou a ausência de consenso entre as centrais com relação ao que deve ser revogado.

    A posição favorável à revogação dos “marcos regressivos” da reforma foi retomada em plena pandemia, durante a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), organizada pelo Fórum das Centrais Sindicais para debater Emprego, Direitos, Democracia e Vida.16 A bandeira da revogação ressurgiu com força na campanha presidencial de 2022. Depois de ter acenado com a possibilidade de incluir a revogação em seu programa de governo, Lula recuou, passando a falar em rever pontos da reforma, para contemplar os setores do movimento sindical que defendiam essa posição.17 Depois de assumir o governo, Lula criou um grupo de trabalho tripartite para debater um novo marco regulatório para as relações de trabalho, mas a discussão não avançou. A revogação continua a ser um projeto distante, pois nenhuma medida prática foi adotada nesse sentido.

    Enquanto isso, além da queda na sindicalização, os sindicatos continuam enfrentando dificuldades para mobilizar sua base. Isso é mais evidente quando se trata de direitos e pautas políticas mais amplas, já que a participação em manifestações tem sido muito pequena, o que revela um baixo engajamento em torno de demandas que extrapolam a esfera econômico-corporativa e uma tendência à despolitização. O fiasco do 1º de maio de 2024 foi expressão disso. A marcha a Brasília em defesa da pauta da classe trabalhadora, realizada no mesmo mês, também não empolgou, tendo reunido principalmente dirigentes e militantes sindicais. Mas a própria capacidade de mobilizar em torno de pautas diretamente relacionadas à categoria foi afetada. As greves, que haviam aumentado significativamente entre 2011 e 2016, passando de 555 a 2.114 ao ano, se reduziram drasticamente a partir de então, chegando a 649 em 2020, no auge da pandemia. Esse resultado está relacionado a uma série de fatores, como as mudanças estruturais no mercado de trabalho, agravadas pela crise econômica e pela própria crise sanitária, mas o aumento da informalidade e de vínculos de emprego disfarçados, potencializados após a reforma trabalhista, não pode ser desconsiderado nesse processo, uma vez que deixa os trabalhadores em uma condição mais frágil e vulnerável para aderir à luta reivindicativa. É claro que isso não os impede de fazer greve, como demonstra o “breque dos apps” realizado pelos entregadores em 2020, mas impõe desafios à sua organização. Apesar da recuperação dos indicadores de greve no pós-pandemia, eles ainda estão abaixo dos registrados entre 2013 e 2018: foram 1.132 greves em 2023.18 As greves mantêm a tendência de prevalência de pautas defensivas, em prol da manutenção das condições de trabalho vigentes na categoria ou contra o descumprimento de direitos. A intensificação da precarização do trabalho repercute no conteúdo das reivindicações apresentadas, bem como na duração das greves, que tendem a ser mais curtas, a maioria se encerrando no mesmo dia de sua deflagração.

    Outra questão a ser considerada diz respeito aos diferentes sentidos das mobilizações realizadas. As disputas em torno da regulação do trabalho por aplicativos nos permitem ilustrar as diferentes posições assumidas por sindicatos e associações constituídas para representar esses trabalhadores, divididas entre a defesa da CLT, do trabalho autônomo e de uma terceira via, que garanta algum nível de direitos. Depois de ter instituído um grupo de trabalho tripartite para elaborar propostas destinadas a regulamentar o transporte de bens, de pessoas e “outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”, o governo apresentou um Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024) restrito ao transporte de passageiros em veículos de quatro rodas e bastante controverso. Um contingente expressivo de trabalhadores tem recusado a regulamentação proposta, considerando que o modelo de “autonomia com direitos” defendido pelo governo representa um atentado à sua liberdade de empreender. Motoristas e entregadores, temerosos de que as regras propostas sejam estendidas a eles, promoveram manifestações em diversas capitais do país contra o projeto. Chama a atenção, nessas manifestações, não apenas as críticas àquilo que é considerado uma intervenção indevida do governo como também um rechaço aos sindicatos e centrais sindicais,19 que se apresentam como representantes desses trabalhadores na mesa de negociação, apesar da base não ser sindicalizada.

    É nesse sentido que afirmamos que o movimento sindical foi fragilizado pela legislação, mas também, de uma certa maneira, abandonado pelos trabalhadores que se propõe a organizar. Sucessivos movimentos de flexibilização e precarização do trabalho, cujo ápice foi a reforma trabalhista de 2017, enfraqueceram os sindicatos, que têm mostrado dificuldades para se reaproximar das bases, especialmente nos segmentos mais precarizados. Mas, apesar das dificuldades, os sindicatos não estão fadados ao desaparecimento. A julgar por uma pesquisa recente, parece haver espaço para a sindicalização crescer, pois 19% dos trabalhadores entrevistados “nunca participaram, mas gostariam de participar de algum sindicato”,20 o que revela um potencial de recuperação nos indicadores atuais. Além disso, a campanha contra a escala de trabalho 6 X 1, lançada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT)21 pode ser uma oportunidade para o movimento sindical incorporar uma demanda que interessa aos setores precários, melhorando sua imagem junto a esses trabalhadores. Não se pode esquecer que a redução da jornada é uma bandeira histórica do movimento sindical e que a luta pela redução da jornada para 40 horas semanais sem redução salarial esteve presente na pauta das centrais desde o primeiro governo Lula. Não ter o protagonismo na condução da campanha deflagrada pelo VAT impedirá o sindicalismo de se somar a esse movimento?

    Este artigo retoma e atualiza argumentos desenvolvidos em outros textos, especialmente: Galvão, Andréia; Krein, José Dari. A contrarreforma trabalhista e a fragilização das instituições públicas do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. v.53, p.89-106, 2018. Galvão, Andréia.Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos In: José Dari Krein et al., (Org.) Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 199-223.

  3. Ramificações Energéticas

    Comentários desativados em Ramificações Energéticas


    A Petróleos de Venezuela (PDVSA) é um elemento fundamental para o governo de Nicolás Maduro e para o projeto chavista em sentido amplo. Apesar de controlar as maiores reservas de petróleo bruto no mundo, a capacidade de produção da estatal venezuelana caiu drasticamente desde 2014. Em 2013, quando o petróleo correspondia a 96% das exportações do país, a Venezuela produzia 3 milhões de barris por dia. Desde então, a produção diária caiu mais de 70% e, atualmente, não passa de 800 mil barris, afetando gravemente o financiamento dos programas sociais do Estado venezuelano. Somando-se a isso, a hiperinflação desencadeou uma crise em todos os setores, exacerbada ainda mais pela turbulência política que marcou a última eleição.

    A dimensão da crise reflete o papel central do setor de petróleo e gás no modelo de desenvolvimento venezuelano. Dependente do petróleo como principal exportação, a economia do país está sempre vulnerável a choques externos que têm potencial imediato de afetar os programas sociais e os índices de desemprego. Desde o mandato inaugural de Chávez, em 1999, as transformações na relação entre o Estado e o setor de petróleo e gás têm se baseado no controle direto do setor pelo governo. Mas, na medida em que os investimentos e a produção caíam ao longo dos anos 2000, a promessa do modelo chavista, fundamentada na combinação de um maior controle sobre a indústria financeira com a ampliação do Estado de bem-estar social, já dava sinais de problemas.

    Mais recentemente, transformações geopolíticas em torno da indústria do petróleo têm imposto restrições à política venezuelana. Os Estados Unidos começaram a impor sanções ao governo de Maduro em 2014 e, cinco anos depois, impuseram medidas adicionais contra a PDVSA e o Banco Central da Venezuela. Essas sanções prejudicaram as finanças da PDVSA, levando Maduro a procurar garantir a sobrevivência do governo estreitando relações com outros parceiros, como a China, a Rússia e o Irã. A estratégia de realinhamento geopolítico, no entanto, não alterou o modelo de desenvolvimento do país, e o futuro do governo Maduro segue atrelado à dependência da Venezuela no petróleo.

    Desenvolvimento e dependência

    Desde a perfuração do poço Barroso II em 1922, que revelou o potencial petrolífero do país, a indústria do petróleo tornou-se o principal eixo da economia e da política venezuelanas. O boom petrolífero transformou profundamente a república. Com o fim das ditaduras e o advento da democracia, a segunda metade do século XX foi caracterizada pela rápida urbanização e modernização, quase exclusivamente financiadas pelas receitas do petróleo. Entre as décadas de 50 e 70, a expansão econômica foi notável, com altas taxas de crescimento do PIB e melhorias substanciais na qualidade de vida dos cidadãos. A PDVSA foi fundada em meio a este contexto, em 1976.

    Resumidamente, o boom do petróleo permitiu a expansão da infraestrutura e dos serviços públicos e, pela primeira vez, possibilitou a ascensão da classe média. Além disso, a nacionalização da indústria petrolífera com a criação da PDVSA garantiu o controle estatal sobre as receitas do setor, incentivando o aumento dos gastos públicos mesmo na ausência de uma base fiscal sólida. O Estado tornou-se o principal fornecedor de bens e serviços, enquanto o setor privado ficava para trás. Esse modelo lançou as bases de um estado rentista, sustentado pelas receitas petrolíferas, que inspiraria e sustentaria o chavismo nos anos vindouros.

    A crescente dependência de petróleo deixou o país cada vez mais vulnerável às flutuações do mercado internacional, como as crises da década de 1970 evidenciaram. Ao assumir a presidência pela segunda vez, em 1994, Rafael Caldera enfrentou uma crise bancária que devastou o sistema financeiro. Em resposta, Caldera recorreu ao FMI para implementar a chamada “Agenda Venezuela”. Com o objetivo de estabilizar a economia, seu governo forçou uma liberalização do setor de petróleo, permitindo à PDVSA liderar os investimentos e recuperar seu crescimento em 1997.

    Entre 1989 e 1998, a PDVSA posicionou-se como uma das cinco maiores empresas petrolíferas do mundo, com crescimento de 7,5% ao ano, e a produção atingiu a marca de 3,3 milhões de barris por dia. Desde sua criação até 1999, a empresa destacou-se como uma líder global de inovação na indústria de hidrocarbonetos. 1

    A queda nos preços de petróleo durante a crise financeira asiática de 1997-1998 forçou o país a criar um Fundo de Estabilização Macroeconômica e a privatizar estatais para mitigar a volatilidade. Apesar dos esforços, a deterioração institucional persistiu, e a insatisfação social generalizada preparou o terreno para a vitória eleitoral de Hugo Chávez em 1998.

    Estado petroleiro de bem-estar

    Com a ascensão de Chávez em 1999, o controle sobre o setor de petróleo tornou-se uma ferramenta política, financeira e geopolítica essencial para o governo. Chávez intensificou o controle do governo sobre a PDVSA e, na medida em que utilizava as receitas da estatal para expandir as proteções sociais, foi levando o modelo de estatismo petrolífero do século XX ao extremo. O resultado foi a consolidação da dependência nacional dos controles cambiais e das receitas de petróleo.2

    A mudança nas relações entre o Estado e a PDVSA foram baseadas em duas inovações jurídicas: a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, promulgada em 1999, e a Lei dos Hidrocarbonetos Orgânicos de 2001. A Constituição marcou o início do que o chavismo nomeou “Quinta República”, enfatizando o princípio da soberania nacional sobre os recursos do subsolo. Na prática, as mudanças determinaram que as reservas de hidrocarbonetos são propriedade do Estado. Embora essa regulação já tivesse sido estipulada em leis anteriores, a nova Constituição enfatizava o papel do Estado para evitar que o poder executivo fosse excluído das decisões sobre o setor.

    As mudanças legais também transformaram a relação entre a PDVSA e o modelo de bem-estar social. Em 2003, a PDVSA passou a financiar projetos sociais no valor de US$549 milhões ao ano. Dois anos depois, foi criado o Fundo Nacional do Desenvolvimento (FONDEN), financiado por holdings do setor petrolífero. A PDVSA, agora pressionada por maiores compromissos financeiros, ainda fazia frente ao custo crescente dos programas sociais.

    A chegada de Nicolás Maduro à presidência em 2013 não trouxe nenhuma mudança expressiva na gestão da empresa. Em julho de 2014, os preços do petróleo caíram 76%, acelerando a queda na produção e nos investimentos do setor. Consequentemente, os programas sociais financiados pela atividade da estatal sofreram cortes significativos: o orçamento foi reduzido de US$13 bilhões em 2013 para US$5,3 bilhões em 2014.

    Dependentes das receitas do petróleo, os programas sociais colapsaram diante da queda dos preços. A crise social que se seguiu em meio ao aumento das taxas de pobreza resultou na escassez de bens e serviços e no maior êxodo populacional na história moderna da região. Durante o primeiro mandato de Maduro, as exportações de petróleo correspondiam a 90% do total do país, mas o valor das receitas caiu drasticamente.3 Em 2019, a produção de petróleo foi apenas um sétimo do que havia sido em 1976.

    O impacto das sanções

    As sanções econômicas impostas à Venezuela deterioraram ainda mais a produção da PDVSA. O objetivo das sanções era reduzir drasticamente as receitas da petroleira para forçar uma alteração na relação do governo com a gestão da estatal. Até 2017, os Estados Unidos eram o principal destino do petróleo venezuelano. Mesmo em 2015, quando as sanções já haviam começado, a Venezuela ainda era o terceiro mais importante fornecedor de petróleo do mercado dos EUA, atrás do Canadá e da Arábia Saudita. O efeito prático das sanções foi forçar o realinhamento geopolítico da Venezuela.

    No geral, as sanções reduziram drasticamente a capacidade do Estado venezuelano de operar nos mercados globais, bem como as receitas do petróleo, agravando ainda mais a crise interna. A possível reativação ou intensificação das sanções existentes no futuro próximo pode dificultar qualquer tentativa de revitalização do setor energético nacional, crucial para um país cuja economia ainda luta para se recuperar de anos de má gestão e isolamento internacional.

    As sanções de 2017 afetaram diretamente o setor petrolífero, proibindo a PDVSA de acessar os mercados financeiros dos Estados Unidos. Assim, ao mesmo tempo em que enfrentava restrições à venda de petróleo bruto, a estatal também perdia a capacidade de refinanciar dívidas. Em janeiro de 2019, em paralelo à autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino, os Estados Unidos congelaram cerca de US$7 bilhões em ativos da PDVSA, além de bloquear mais de US$11 bilhões em receitas previstas.

    Para garantir receitas adicionais, Maduro recorreu à exploração de fontes não-convencionais de recursos e à venda de ativos estratégicos. Dois novos projetos foram introduzidos: a exploração do Arco Mineiro do Orinoco e a introdução do “petro”, uma criptomoeda lastreada nas reservas de petróleo. Ambos os projetos fracassaram, sem conseguir atrair a confiança dos investidores ou oferecer uma solução sustentável para a crise de liquidez do país.4

    O “petro” fracassou devido à desconfiança generalizada na moeda, agravada pelas restrições que encontrou após seu lançamento.5 Enquanto isso, a exploração do Arco Mineiro do Orinoco beneficiou principalmente os altos escalões do governo e das forças armadas, além de aliados internacionais como os grupos rebeldes Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC)6, bem como a companhia militar privada russa conhecida como Grupo Wagner.7

    Em 2021, o valor das exportações venezuelanas atingiu um mínimo histórico: US$3,2 bilhões, dos quais US$104 milhões correspondiam à exportação de ouro. O petróleo foi removido do registro de exportações legais e passou a ser vendido em mercados clandestinos através de triangulações com navios-tanque russos que cruzavam o oceano para enviar petróleo bruto à Índia. De lá, o petróleo era reexportado para outros países asiáticos, especialmente a China, a preços substancialmente descontados. Essas operações—que não são contabilizadas nos números oficiais—foram prejudicadas pela invasão russa à Ucrânia e pelas sanções ao petróleo russo, que impactaram indiretamente a Venezuela.

    Realinhamentos geopolíticos

    Em um contexto de isolamento internacional e colapso econômico, Maduro teve que recorrer às alianças estratégicas forjadas por Chávez, apoiando-se em um bloco geopolítico que permitiu que a Venezuela contornasse parcialmente as sanções, mantendo uma receita mínima de petróleo e, acima de tudo, garantindo a sobrevivência do chavismo em meio a um ambiente internacional hostil. Na busca por novos parceiros, o principal trunfo de Maduro continua sendo o setor petrolífero nacional.

    Sob Chávez, o governo venezuelano utilizou os recursos da estatal de petróleo para fortalecer laços com determinados países da América Latina, Caribe, Eurásia e África. Um exemplo notável é a iniciativa Petrocaribe, que buscou coordenar políticas energéticas na América Central e no Caribe. A Venezuela fornecia petróleo à região com taxas de juros baixas e planos de pagamento de até 25 anos, recebendo commodities e produtos agrícolas em troca. No entanto, a iniciativa foi criticada por sua falta de transparência e pela desconfiança nas transações. A maior parte dos países membros quitou boa parte de suas dívidas entregando produtos com valor de difícil mensuração.8

    A China tem sido um importante parceiro estratégico para a Venezuela. O pilar da relação entre os dois países é um acordo de troca de fundos financeiros por petróleo, iniciado durante o governo Chávez. A partir de 2007, a Venezuela começou a receber empréstimos chineses respaldados por acordos de dívida lastreados em petróleo, e o Fundo Conjunto China-Venezuela é um exemplo paradigmático. No total, a China forneceu cerca de US$67 bilhões em empréstimos para a Venezuela, que foram pagos sobretudo com remessas de petróleo bruto. Entretanto, com a queda da produção de petróleo ao longo dos anos 2010, esses acordos têm se tornado cada vez mais insustentáveis. Ainda que os acordos tenham sido mantidos sob Maduro e Xi, seu conteúdo têm se tornado cada vez menos relevante devido às mudanças no setor. O volume de petróleo enviado à China despencou, forçando Caracas a renegociar as dívidas em mais de uma ocasião. Apesar desses desafios, Pequim continua apoiando Maduro, ainda que de forma mais cautelosa. Em vez de novos empréstimos, a China tem oferecido investimentos em projetos de infraestrutura e tecnologia, além de vendas de equipamentos militares, mas sob condições mais restritivas que anteriormente.9

    Em 2023, a China e a Venezuela assinaram um acordo mútuo para promover e proteger os investimentos. Três anos antes, a estatal China Aerospace Science and Industry Corporation (CASIC) assumiu o transporte de petróleo bruto venezuelano como forma de compensar parte da dívida do país sul-americano. Mas a relação entre ambos não se limita à mera transferência de recursos—há uma estratégia mais ampla em jogo. Ao participar de projetos de infraestrutura, mineração e telecomunicações, a China adquiriu uma presença significativa em setores-chave da economia venezuelana, como o setor militar e o de telecomunicações, com empresas como Huawei e ZTE.

    A Rússia também tem sido um aliado-chave na sobrevivência do governo Maduro, não só apoiando seu setor energético mas também fornecendo assistência diplomática e militar. A relação entre Moscou e Caracas se intensificou em resposta às pressões dos Estados Unidos e da União Europeia. Para a Rússia, a Venezuela representa uma oportunidade estratégica de desafiar a influência dos Estados Unidos em seu próprio hemisfério.

    A estatal petrolífera russa Rosneft desempenhou um papel fundamental na comercialização do petróleo bruto venezuelano, especialmente após a imposição das sanções dos Estados Unidos. Em 2020, a Rosneft vendeu sua parcela venezuelana à companhia de segurança RN-Okhrana-Ryazan, que é controlada pela Roszarubezhneft, do governo russo. Essa transação permitiu que a Rússia continuasse a explorar os campos petrolíferos venezuelanos por meio do órgão que reúne as petroleiras russas, o Consórcio Petroleiro Nacional (CPN). Empresas afiliadas da Rosneft, como a Rosneft Trading e a TNK Trading International, sofreram sanções por facilitar o comércio de petróleo venezuelano,10 em uma clara tentaiva dos EUA de evitar que ambos os governos se beneficiassem dessas transações.11

    Através de uma extensa rede de empresas e transações, a Rosneft ajudou Maduro a contornar as sanções, garantindo um fluxo constante de exportações de petróleo. Os principais destinos foram os mercados asiáticos, que correspondiam a 64% do total exportado em 2023, antes do governo Biden aliviar temporariamente as sanções.12

    Para além de Rússia e China, uma das alianças geopolíticas mais surpreendentes foi aquela com o Irã. Com suas refinarias em frangalhos e sob a pressão das sanções, Maduro buscou regularizar o suprimento de combustível com a ajuda do Irã, que também enfrenta um severo regime de sanções internacionais. Desafiando as restrições impostas pelos Estados Unidos, o Irã enviou vários carregamentos de combustível para a Venezuela, inaugurando uma nova fase de cooperação entre dois governos isolados pelo Ocidente. Em troca, a Venezuela concedeu ao Irã acesso a ouro e outros recursos estratégicos.

    A cooperação entre Caracas e Teerã vai além dos carregamentos: o Irã tem fornecido assistência técnica, peças e materiais para a reativação das refinarias venezuelanas, em uma tentativa de atenuar o colapso da indústria petroquímica do país. As relações com a Rússia e o com o Irã também carregam um peso simbólico importante. Ao se apresentar como um aliado de potências euroasiáticas em oposição à hegemonia dos EUA, Maduro garante ao seu governo uma imagem de resistência no cenário internacional, perpetuando a narrativa multipolar promovida por Chávez.

    Nesse processo de realinhamento político impulsionado pelas sanções, a Venezuela adotou um circuito de evasão sofisticado, vendendo petróleo através de frotas não reguladas e com transações liquidadas na moeda chinesa, o renminbi. Esse arranjo permitiu à Venezuela continuar exportando petróleo bruto apesar das restrições, contando com sistemas financeiros alternativos que, alheios ao controle ocidental, minam a efetividade das sanções.13

    Horizontes incertos

    Em 2023, o governo Biden suspendeu temporariamente algumas sanções para incentivar eleições livres. Após longas negociações e ao menos seis encontros em Doha, o Acordo de Barbados foi celebrado entre o governo de Maduro e a coalizão de oposição. Entretanto, as sanções voltaram a ser aplicadas em meados de 2024 em resposta à decisão do Tribunal Supremo de Justiça de ratificar a cassação dos direitos políticos de María Corina Machado, que liderava as primárias da oposição para a eleição presidencial.

    A ameaça da reimposição das sanções ronda a continuidade do projeto chavista. As negociações em andamento poderiam atingir um ponto crítico no dia 10 de janeiro de 2025, quando Nicolás Maduro deve assumir seu próximo mandato como presidente. A reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos também aumenta as incertezas, já que ele pode optar por restabelecer as sanções que foram suspensas e aumentar ainda mais a pressão de Washington sobre Caracas.

    Paralelamente, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos renovou a Licença Geral 41, permitindo que a Chevron continue suas operações na Venezuela até abril de 2025, com algumas restrições. Isso sugere que Washington adota uma estratégia ambígua: enquanto mantém alguns canais econômicos abertos para empresas estadunidenses, exerce pressão política e econômica sobre o governo venezuelano. Essa dinâmica inevitavelmente influenciará as decisões políticas em Caracas.

    À luz da situação geopolítica, a necessidade urgente de revitalizar o setor energético em meio ao colapso econômico se impõe diante do governo venezuelano. A exploração de novos poços no Cinturão do Orinoco—que abriga as maiores reservas de petróleo no mundo, historicamente subexploradas—é o pilar da atual tentativa de reverter a tendência de queda da produção. A colaboração com a Chevron, autorizada pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos em 2022, viabilizou a retomada dos planos de perfurar trinta novos poços na região até 2025. Quando concluída, a expansão poderá aumentar em 35% a capacidade produtiva conjunta da Chevron e da PDVSA, atingindo 250 mil barris por dia. Ainda assim, as sanções impõem algumas restrições à Chevron, que não pode expandir as operações para novos campos nem distribuir dividendos para a PDVSA. Essas limitações preservam a influência de Washington nas decisões estratégicas, enquanto a PDVSA tenta buscar maior autonomia.

    Além disso, a exportação de gás natural da Venezuela para a Colômbia e a descoberta de petróleo na Guiana também se tornaram questões cruciais. As exportações de gás natural para a Colômbia são significativas não apenas do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista político, já que a Colômbia se ofereceu para mediar a crise de legitimidade do governo venezuelano, enquanto a Venezuela atua como garantidora dos diálogos de “Paz Total” do presidente colombiano Gustavo Petro. Contudo, o papel duplo como mediadores e garantidores também desgasta as relações entre os dois países, intensificando pressões políticas internas e externas que ameaçam o projeto de comércio internacional. Além disso, a capacidade de produção de gás da Venezuela e o estado de seus gasodutos levantam dúvidas sobre a viabilidade do projeto.14

    Enquanto isso, a recente descoberta de petróleo na Guiana e o aumento de sua produção petrolífera intensificou uma disputa territorial de longa data entre os dois países, especificamente na região de Esequibo, rica em recursos e dotada de uma zona econômica exclusiva para exploração de reservas em alto mar. Enquanto a Guiana deu início à exploração desses campos com o apoio de multinacionais como ExxonMobil e Chevron, a Venezuela intensificou suas reivindicações sobre a região, criando mais uma fonte de instabilidade regional e risco geopolítico.

    Por enquanto, Maduro segue apostando no petróleo. Em um ambiente internacional adverso, o governo ainda vê o petróleo e a PDVSA como meios de sobrevivência, utilizando esses ativos para manter alianças e explorar novos mercados que possam gerar receitas essenciais para a manutenção do poder em meio à pressão externa e à crise interna.

    Tradução: João Marcolin


  4. O “greenwashing” dos ajustes estruturais

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    Em um sistema financeiro global sustentado pelo dólar, aumentos na taxa de juros do Fed podem deixar grande parte dos países do Sul global à beira de impetuosas crises de dívida. O elevado nível de exposição dos países do Sul a riscos externos e a necessidade de que contraiam dívidas denominadas em dólar são resultado de uma arquitetura financeira internacional corrompida e desigual—diante da crise climática, tamanha assimetria na inserção internacional pode gerar consequências de longo prazo para uma transição energética global. A nível doméstico, a dívida soberana limita severamente a capacidade de financiamento de uma agenda climática ambiciosa e, a nível internacional, torna o Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição que costuma estar no centro das negociações de dívida, cada vez mais relevante para a política climática global. 

    Países do Sul global têm poucas opções para lidar com o sobreendividamento. A busca por alívio geralmente obriga a nação devedora a firmar um acordo com o FMI, e a negociação da reestruturação é amplamente moldada pelas análises de sustentabilidade da dívida do próprio Fundo. O apoio do FMI não vem sem amarras: a imposição de rigorosas condicionalidades sobre a execução da política econômica doméstica e de severas medidas de austeridade costumam ser parte do conteúdo dos “ajustes estruturais” que o Fundo exige de sua clientela. 

    Atualmente, 44 países têm um acordo vigente com o FMI e, considerando que cerca de dois terços dos países de renda baixa e média estão sob ameaça de sobreendividamento, é possível que o número aumente ainda mais. É um cenário que ampliaria o grau de influência do FMI sobre a condução da política econômica de países do Sul global para patamares não vistos há décadas. A adoção de condicionalidades e recomendações ligadas à política climática pelo FMI visa consolidar um novo papel para o Fundo, agora, na linha de frente da política climática global, ditando o ritmo da transição ecológica com consequências que vão muito além de seus devedores. 

    Os choques de Volcker e a crise de dívida soberana dos anos 1980 estabeleceram as condições para que o FMI inaugurasse uma era de ajustes estruturais compulsórios que disseminaram as prescrições do “Consenso de Washington” pelo mundo, prejudicando seriamente as perspectivas de desenvolvimento de longo prazo para uma miríade de países. Ainda que a retórica do FMI tenha mudado nos últimos anos, em termos práticos, houve poucas alterações nas imposições vinculadas a seus programas de empréstimos, bem como nos marcos regulatórios que as sustentam. Em vez de atuar como mediador imparcial de um mecanismo de resolução de dívidas, o papel cumprido pelo FMI é o de bater o martelo em favor dos credores, implementando programas de ajuste que priorizam o pagamento da dívida em detrimento do bem-estar da população de seus países-membros. 

    No que diz respeito à agenda climática do FMI, quem dá as cartas é o mesmo grupo de países documentadamente responsável por causar a própria crise. A abordagem adotada pelo Fundo abre espaço para que poluidores históricos se esquivem de suas responsabilidades, minando a possibilidade de uma transição energética justa. Sem reformas estruturais e nos padrões de governança, é possível que a virada climática do FMI seja mais do que uma espécie de greenwashing da tradicional agenda de austeridade?

    Subordinação financeira e armadilhas de dívida

    O acúmulo insustentável de dívidas no Sul global é uma característica inerente à desigualdade da arquitetura financeira internacional, conformada por um sistema que opera majoritariamente em dólares. Uma vez que a maior parte do comércio e das transações internacionais ocorrem na moeda estadunidense, muitos dos empréstimos tomados pelo Sul global são compulsoriamente denominados em dólares. Mudanças nos fluxos financeiros, geralmente desencadeadas por eventos não controlados por esses tomadores de empréstimos, podem gerar problemas de liquidez ainda maiores e agravar crises de endividamento. Em 2022, por exemplo, em razão da política monetária contracionista do Fed, o serviço da dívida externa de países em desenvolvimento ultrapassou os US$ 443 bilhões—o dobro do ano anterior. 

    Mais de 3 bilhões de pessoas vivem em países que gastam mais com juros da dívida externa do que com saúde e educação. Ainda assim, é possível contar nos dedos os países que buscaram uma reestruturação da dívida. A maioria segue honrando os pagamentos, mesmo em situações nas quais a insustentabilidade da dívida é evidente. Em geral, recorrer ao FMI é a única opção para quem que não consegue mais quitar suas dívidas. É comum que os países adiem essa decisão, mesmo em cenários nos quais o orçamento fiscal está comprometido a ponto de impossibilitar até o pagamento de salários do funcionalismo público, como aconteceu com o Quênia e a Nigéria: em 2022, ambos gastavam quase todas as receitas do governo com serviços da dívida. 

    O desequilíbrio de poder na governança global consagrou um sistema que limita consideravelmente a autonomia fiscal e de planejamento político dos países do Sul global, problema que é ainda mais agravado pela crise climática. O crescente ônus da dúvida não só compromete o financiamento de serviços públicos básicos, mas é também um obstáculo para que esses países priorizem investimentos direcionados à transição climática e ao desenvolvimento. 

    O que o Norte oferece como financiamento climático ao Sul se traduz, majoritariamente, na contração de novos empréstimos. Dos US$ 100 bilhões anuais que os países ricos se comprometeram a “mobilizar” para o financiamento climático em 2020, 73% tomaram a forma de dívida adicional. Enquanto isso, a lacuna de financiamento necessário para o cumprimento de metas climáticas e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não para de crescer. 

    Países ficam encurralados entre o risco da dívida, a perpetuação do subdesenvolvimento e a exacerbação da vulnerabilidade a choques externos. Os crescentes encargos da dívida externa corroem a capacidade dos governos de investir em resiliência doméstica. Os casos do Suriname, Chade e Equador são exemplificativos da dificuldade de romper com esse ciclo vicioso—três nações que se tornaram dependentes da exploração e exportação de combustíveis fósseis para acessar moeda forte e conseguir arcar com o serviço da dívida externa denominada em dólar. Na Argentina, o FMI incentiva a expansão do fracking como forma de gerar de receitas para o pagamento da dívida. 

    Apesar do reconhecimento dos fóruns internacionais de que os países menos responsáveis pela crise climática não deveriam arcar desproporcionalmente com os custos de seus efeitos, o apoio financeiro para que lidem com perdas e danos causados por desastres climáticos—cada vez mais frequentes e graves—ainda não se materializou. Na prática, os países afetados por desastres climáticos geralmente precisam contrair novos empréstimos para lidar com as consequências de eventos extremos. Quando o Paquistão foi atingido por enchentes de proporções recordes em 2022, em meio a uma crise econômica e de endividamento, promessas de apoio da comunidade internacional tomaram as manchetes globais. No entanto, novamente, a maior parte da ajuda tomou a forma de mais empréstimos

    A crise gerada pela pandemia de Covid-19 já havia escancarado os impactos da desigualdade na arquitetura financeira internacional. Os países ricos, emissores de moedas fortes, responderam ao choque aumentando os gastos discricionários para cerca de 10% do PIB. Já os países em desenvolvimento, mesmo partindo de níveis gerais de endividamento mais baixos do que o grupo anterior, só conseguiram aumentar os gastos discricionários em cerca de 3% a 4% do PIB. Na maioria dos casos, os países ricos também tiveram acesso a liquidez por uma rede de acordos de swap entre bancos centrais—operações de custo baixo e sem nenhuma condicionalidade.

    “Greenwashing” o ajuste estrutural 

    Nos últimos anos, o FMI reconheceu publicamente que as mudanças climáticas representam uma ameaça à subsistência das pessoas e à estabilidade econômica dos países. Levou alguns anos, mas em 2021 a instituição finalmente anunciou sua estratégia climática—uma boa notícia, à medida que o Fundo é capaz de acelerar a tomada de consciência dos gestores públicos sobre a necessidade de abordar os riscos postos pela crise climática. Mas, considerando que o papel do FMI é o de credor global de última instância para países em desenvolvimento e tendo em vista a prática consolidada de imposição de condicionalidades àqueles que procuram sua ajuda, a influência conquistada pela instituição na concepção e implementação de políticas climáticas em escala global parece desproporcional. Segue a dúvida: é mesmo papel do FMI liderar a política climática, especialmente em relação aos países em desenvolvimento?

    O FMI vem se esforçando para melhorar sua imagem, ampliando a abrangência dos tópicos investigados no âmbito do seu departamento de pesquisa e publicando autocríticas referentes à reforma estrutural e às medidas de austeridade. Entre outros assuntos, o Fundo anunciou uma estratégia voltada à questão de gênero e se envolveu em debates sobre proteção social e desigualdade. A nova retórica, no entanto, não reflete a prática. 

    A relutância dos países em recorrer ao apoio do FMI é demonstrativa da impopularidade da instituição entre aqueles que precisam de auxílio financeiro. Desacelerações econômicas prolongadas, instabilidade política e aumentos expressivos da pobreza são a norma entre os clientes do Fundo. A política climática do FMI não pode ser apartada desse histórico. Os programas de ajuste estrutural continuam sendo a regra para os empréstimos do Fundo, e não parece haver planos de que a instituição reformule essa abordagem ou abandone a combinação de austeridade e reformas de mercado como recomendações de praxe.

    O próprio conteúdo da estratégia e das diretrizes climáticas anunciadas pelo FMI é preocupante. Os documentos basicamente sugerem a adaptação da agenda política tradicional do Fundo à linguagem climática. A estratégia política é concentrada em ajustes de preço e de mercado, como a precificação global de carbono. A lógica subjacente é que encontrar “o preço certo” e “criar um ambiente propício para os investidores” seriam medidas suficientes para incentivar o setor privado a responder à altura e fazer os ajustes necessários para enfrentar as mudanças climáticas. 

    Em geral, a agenda climática do Fundo é muito semelhante ao velho Consenso de Washington: uma combinação de austeridade, estímulos à desregulamentação das condições de trabalho e do mercado e liberalização do comércio e das finanças. Isso é reflexo do antigo entendimento do FMI sobre a estratégia mais eficiente de crescimento econômico, agora, com algum grau de reconhecimento de que determinadas compensações que mitiguem os efeitos sociais negativos dos ajustes são dignas de consideração. A aposta no cenário favorável ao investimento como solução é respaldada por economistas neoclássicos e validada por modelos de crescimento embasados em suposições econômicas equivocadas que, em geral, não são amparados por evidências empíricas. 

    O FMI fornece regularmente aconselhamento a nível nacional para todos os seus membros, por meio de relatórios de supervisão, conhecidos como “consultas do artigo IV”. Em geral, esses relatórios delineiam as bases para eventuais empréstimos do Fundo, situação na qual os conselhos assumem a forma de condicionalidades. Um recente relatório sobre a África do Sul é ilustrativo da adaptação climática da retórica tradicional de ajuste estrutural para que as recomendações sejam vistas de forma mais amigável. 

    Os caminhos propostos pelo Fundo para uma “transição justa” que reduza a dependência do país de combustíveis fósseis envolvem recomendações como reformas trabalhistas que garantam regimes laborais mais flexíveis, erosão da proteção social e redução de salários. São medidas que prejudicam frontalmente os direitos dos trabalhadores do país, baseadas em análises questionáveis sobre o funcionamento do mercado de trabalho. O documento ainda recomenda a privatização de serviços públicos e a desregulação dos mercados como instrumentos necessários à indução do crescimento, o que afirma ser um pré-requisito para um “futuro verde e de resiliência climática”. 

    Como parte de seu compromisso com o clima, o FMI lançou também um novo fundo, o Resilience and Sustainability Facility (RSF). O objetivo é conceder empréstimos de maturidade longa para que os países invistam em reformas que aumentem sua resiliência a riscos de longo prazo (como aqueles relacionados à crise climática). Há, porém, uma grande ressalva: o acesso ao novo fundo é exclusivo aos países que já tenham um empréstimo comum do FMI vigente. A vinculação do RSF aos programas clássicos de austeridade torna o novo mecanismo ineficaz, pois implica que os governos continuarão privados do espaço fiscal necessário para arcar com o financiamento da transição climática. 

    Ainda que o FMI sacudisse a poeira das atuais recomendações climáticas e superasse a precificação do carbono como tábua de salvação da crise, as condicionalidades tradicionais continuariam prejudicando uma transição justa. A política climática do FMI lhe permite propagandear seus novos programas como sendo “verdes”, desviando de críticas dessa natureza enquanto preserva suas práticas tradicionais. 

    Mudança sistêmica

    A arquitetura do FMI e do Banco Mundial é resquício de uma ordem mundial estabelecida há oitenta anos na Conferência de Bretton Woods. Embora tenham sido instituições criadas para promover a estabilidade global, o sistema multilateral “baseado em regras”, ou seja, a ordem internacional liberal, impediu que países em desenvolvimento tivessem uma voz significativa na definição dessas próprias regras. O histórico de atuação de ambas as instituições, refletido na sua relutância em promover reformas estruturais significativas, é o modelo da governança global por excelência. São instituições blindadas da responsabilização pelas consequências que provocam aos países que recorrem a elas. 

    De acordo com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), por exemplo, é responsabilidade dos poluidores históricos prover o auxílio financeiro necessário à transição energética para países em desenvolvimento: o ônus financeiro deve ser proporcional às contribuições históricas para a mudança climática. No FMI, esses mesmos poluidores históricos aos quais se refere a UNFCCC são classificados como países de “economia avançada”, que controlam quase 60% do poder de voto do total de membros da instituição—o que lhes garante o controle sobre decisões referentes ao clima. 

    Não é impossível, no entanto, que o FMI ofereça apoio financeiro sem amarras: a alocação de US$ 650 bilhões sob a rubrica dos Special Drawing Rights (SDRs, na sigla em inglês) em 2021 foi um exemplo disso. O uso dos SDRs pode servir como ponto de partida para a criação de um mecanismo global de fornecimento de liquidez que amplie os recursos disponíveis para países em desenvolvimento. Mas a história dos SDRs também é ilustrativa da necessidade imperiosa de reformar a governança do Fundo: até agora, os EUA sozinhos já exerceram algumas vezes seu direito a veto em pedidos de alocação adicional de SDRs, além de terem obstruído esforços paralelos de reforma das regras de distribuição desses recursos. 

    Em última análise, há motivos para tratar com ceticismo o objetivo elusivo do FMI de “catalisar” o investimento privado. Reformas centradas em desregulamentar, liberalizar e privatizar, em paralelo à moldura tradicional de austeridade econômica, limitam severamente a autonomia política dos países em desenvolvimento. A adoção de políticas industriais verdes e a liderança do setor público nas transições ambientais permanecem fora do alcance desses países. Exemplos recentes de modelos de desenvolvimento bem-sucedidos, como o dos “Tigres Asiáticos” nos anos 1980 e, mais recentemente, o da China, têm um aspecto em comum: são países que subiram degraus da escada de renda por meio de estratégias de política industrial, evitando prescrições de ajuste estrutural. 

    Para o Sul global, a necessidade de uma reforma sistêmica está bastante clara. O G77 (grupo que atualmente inclui 134 países em desenvolvimento) convocou, para 2025, uma “Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento” (FfD 4, na sigla em inglês)1 na ONU. Reformas estruturais da arquitetura financeira internacional, restrições à evasão fiscal a nível global, transferências de tecnologia necessárias para a transição energética e mudanças nos acordos comerciais são tópicos centrais da agenda. 

    O objetivo é estabelecer, por meio da ONU, uma arquitetura multilateral para o alívio de dívida, permitindo aos países que enfrentam crises insustentáveis de endividamento buscar ajuda fora do FMI, por meio de processos menos enviesados em favor dos credores. A agenda da FfD 4 também propõe fontes de financiamento acessíveis e de longo prazo, com condições semelhantes àquelas usufruídas por países ricos. Partindo dessas mudanças e de uma reforma da governança que reequilibre o balanço de poder na instituição, é possível que o FMI retome sua função original de oferecer apoio emergencial de liquidez e abandone o padrão das condicionalidades adotados desde a década de 1980. 

    A FfD 4 representa uma alternativa viável aos ajustes estruturais “verdes” do FMI, mas colocará à prova o compromisso retórico do Norte global com o multilateralismo e com a ordem liberal internacional. E o enfrentamento desses problemas sistêmicos no âmbito da arquitetura financeira global será essencial para qualquer ação climática futura. 

    Tradução: Glenda Vicenzi

  5. Adaptação da economia iraniana às sanções

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    O boom de petróleo no final da década de 2000 criou obstáculos significativos para os industriais iranianos. Na mesma proporção em que aumentou o valor das exportações de petróleo, o rial se valorizou, os salários reais aumentaram e bens estrangeiros inundaram o mercado iraniano. As famílias de classe média aproveitaram o seu recém-descoberto poder de compra, adquirindo com gosto cosméticos franceses, eletrodomésticos coreanos e vestuário turco, enquanto rejeitavam marcas domésticas. Foi assim que o Irã contraiu um tipo clássico da “doença holandesa”: a bonança do petróleo solapou a base industrial do país. Em virtude do rial forte, os programas de redistribuição da riqueza para as classes mais baixas do Irã, iniciados pelo presidente populista Mahmoud Ahmadinejad, ampliaram o déficit comercial e desencadearam um boom inflacionário nos setores de habitação e serviços. Porém, quando o governo Obama golpeou o setor financeiro e energético com pesadas sanções em 2012, empurrando o Irã para a recessão, houve uma mudança de rumo.

    As sanções atingiram um setor industrial já debilitado, acelerando a estagnação da produção industrial iraniana, que persiste até hoje. Porém, a volatilidade da diplomacia estadunidense—relaxamento das sanções decorrente do Acordo Nuclear com o Irã em 2015, reimposição de sanções sob a administração Trump em 2017—também produziu efeitos desiguais para os fabricantes iranianos. Alguns dos principais atores experimentaram quedas significativas na produção. Os fabricantes de automóveis iranianos produziram cerca de 1,5 milhão de veículos em 2017, quando o país ainda se beneficiava do relaxamento das sanções. No ano passado, o número caiu para 1,2 milhão de veículos. No caso do setor automotivo, as sanções limitaram o acesso a insumos industriais essenciais, reduzindo tanto a quantidade quanto a qualidade dos carros e caminhões iranianos produzidos a cada ano.

    Outros fabricantes resistiram às sanções tirando vantagem de seus efeitos macroeconômicos, incluindo a desvalorização da moeda e a redução das importações. Isso, paradoxalmente, tornou o capital nacional iraniano capaz de reverter os efeitos da “doença holandesa”. Um exame mais detido do setor nacional de eletrodomésticos no Irã revela o grau significativo com que as firmas podem se adaptar a sanções, criando novo valor econômico em economias que, do contrário, seriam excessivamente oneradas pelas medidas coercitivas. Essas adaptações contradizem a visão comumente sustentada de que a resiliência a sanções surge da alocação de investimento estatal e da política industrial de cima para baixo. No Irã, pelo contrário, a resiliência parece ser um fenômeno de baixo para cima, liderado pelo capital privado oportunista. De fato, o modo como as firmas se adaptam às sanções pode influenciar tanto a política econômica nacional quanto o regime internacional de sanções de maneiras inesperadas. Atualmente o que freia a indústria iraniana de eletrodomésticos não são os efeitos das sanções sobre a produção, mas os efeitos do excesso de capacidade sobre a concorrência dos preços. Muitos fabricantes iranianos só conseguem sobreviver em um mercado protegido, significando que essas firmas são capazes de se opor ativamente ao tipo de liberalização do mercado inerente ao relaxamento das sanções.

    Fabricação nacional

    A indústria iraniana de eletrodomésticos despontou durante a primeira onda de industrialização na década de 1960. Em meados dos anos 1970, marcas nacionais como Arj e Azmayesh já eram itens básicos dos lares iranianos e, devido a sua boa qualidade e características competitivas, eram inclusive exportadas para mercados regionais. Após a Revolução Islâmica em 1979, essas fábricas foram nacionalizadas. Pouco depois, a irrupção da guerra Irã-Iraque impediu a continuidade dos investimentos e da modernização. As marcas nacionais se tornaram a opção de preço baixo e baixa qualidade para os consumidores iranianos.

    Em meados da década de 2000, quando houve uma aceleração do crescimento econômico no Irã, marcas estrangeiras ingressaram num mercado cada vez mais segmentado. Famílias de alta renda equipariam suas casas com aparelhos de marcas como Bosch da Alemanha e De Longhi da Itália. Famílias de renda intermediária se apegariam às marcas coreanas importadas LG e Samsung. Famílias de baixa renda escolheriam marcas iranianas, cujos aparelhos não eram competitivos em termos de qualidade, mas sim em termos de preço.

    Em torno de 2017, as principais marcas coreanas passaram a dominar o mercado iraniano, sendo responsáveis por 65% do mercado de refrigeradores e 77% das vendas de máquinas de lavar, de acordo com dados de mercado compilados por GfK. A fatia do mercado em poder dos coreanos cresceu em função da intensificação das sanções ocidentais contra o Irã, particularmente após 2012, quando as marcas europeias reduziram seu campo de atuação no país.

    Então, em 2018, tudo mudou. A administração Trump se retirou do acordo nuclear com o Irã, voltando a impor sanções secundárias dos EUA contra o país. A política de “pressão máxima” de Trump teve um impacto dramático sobre a economia iraniana. Entre os primeiros efeitos figura uma vertiginosa desvalorização do rial, na medida em que Trump congelou o acesso do Irã a suas reservas cambiais e estrangulou as exportações de petróleo, fonte primária de receitas em moeda forte. Em esforço para racionar a moeda forte e defender a nova taxa cambial, o governo iraniano introduziu a proibição de importação de mais de 1.300 bens, incluindo eletrodomésticos, efetivamente cerrando o mercado para marcas estrangeiras. Antes da medida protecionista imposta pelas autoridades iranianas, essas marcas já tinham enfrentado dificuldades para manter suas operações de vendas no Irã, na medida em que os bancos internacionais começavam a cortar laços com seus correspondentes iranianos.

    A combinação de políticas protecionistas e sanções intensificadas forçou as marcas estrangeiras a sair do mercado iraniano de eletrodomésticos, revertendo duas décadas de consolidação. Os fabricantes iranianos de eletrodomésticos, bem como investidores oportunistas sem experiência no setor, rapidamente identificaram a oportunidade. Não havia dúvida de que a retomada das sanções reduziria o crescimento econômico do Irã e a inflação alta corroeria o poder de compra das economias domésticas. Porém, eletrodomésticos- um item essencial para o lar- é intransigente. Repentinamente, três quartos do mercado iraniano de eletrodomésticos estava disponível, representando uma oportunidade de US$12 bilhões.

    Os fabricantes iranianos de eletrodomésticos começaram a investir pesado na nova capacidade de produção. Para satisfazer as necessidades de consumidores que antes compravam marcas importadas, os fabricantes de aparelhos passaram a adicionar novas características a eles. O investimento não ficou limitado a atores já estabelecidos. O mercado de eletrodomésticos contou com muitos estreantes, levando a um cenário fortemente fragmentado. Atualmente há, no Irã, 140 firmas produzindo refrigeradores e 100 produzindo máquinas de lavar, de acordo com cifras compiladas pelo Ministério da Indústria, Mineração e Comércio. As firmas nacionais agora dominam o mercado de eletrodomésticos. Marcas estrangeiras continuam a estar disponíveis, mas os produtos chegam na forma de importações paralelas, que tendem a ser mais dispendiosas do que as marcas produzidas localmente devido à contínua desvalorização da moeda. Ademais, aos produtos importados por vias não oficiais faltam as garantias e a assistência pós-venda que passaram a ser oferecidas pelos produtores iranianos. Esses fatores pulverizaram a fatia antes em poder dos atores estrangeiros. Em 2022, a quota combinada da LG e da Samsung no mercado iraniano de refrigeradores foi de apenas 8%. As duas marcas coreanas foram responsáveis por apenas 13% das vendas de máquinas de lavar.

    Fatia de mercado de refrigeradores no Irã (2022) - Marcas nacionais e estrangeiras

    Tradução da imagem:
    Participação no mercado de refrigeradores do Irã
    Vermelho: empresas domésticas
    Azul e cinza: empresas estrangeiras

    Fatia de mercado de máquinas de lavar no Irã (2022) - Marcas nacionais e estrangeiras
    Tradução da imagem:
    Participação no mercado de máquinas de lavar no Irã
    Vermelho: empresas domésticas
    Azul e cinza: empresas estrangeiras

    Paralelamente à fragmentação do mercado causada pelo dramático aumento da quantidade de fabricantes nacionais de eletrodomésticos, dados do Ministério da Indústria, Mineração e Comércio mostram que a capacidade de produção também aumentou explosivamente. O setor de eletrodomésticos é agora o segundo que mais contribui para o valor agregado industrial, superado apenas pelo setor automobilístico. Tanto para refrigeradores quanto para máquinas de lavar, o volume total da produção era estável nos anos anteriores a 2018. Porém, após uma queda inicial na produção devido a interrupções na cadeia de suprimentos, o choque das sanções estimulou um crescimento significativo nos volumes de produção. As firmas iranianas produziram 2,7 milhões de refrigeradores em 2022, o dobro de 2017, que totalizara 1,35 milhão. A produção de máquinas de lavar atingiu 1,6 milhão em 2022, vindo de cerca de 900 mil em 2017. As autoridades iranianas elogiaram o setor de eletrodomésticos por adicionar empregos a um mercado de trabalho que, de outra forma, estaria debilitado.

    Se houve um ganhador no mercado de eletrodomésticos do Irã, de resto fragmentado, esse foi a marca Entekhab, responsável por 40% do mercado de máquinas de lavar e 27% do mercado de refrigeradores. A companhia, que produz aparelhos de preço intermediário, estava bem posicionada para expandir a produção depois que as sanções voltaram a ser impostas ao Irã. Durante décadas, a Entekhab produziu aparelhos Daewoo sul-coreanos sob licença. Em 2018, ela inclusive tentou comprar a divisão de eletrodomésticos da Daewoo pela segunda vez (a primeira tentativa ocorreu em 2010). O negócio acabou não se concretizando, mas foi um sinal da ambição da Entekhab e do desejo de obter acesso a propriedade intelectual valiosa.

    A Entekhab também tem uma parceria com a marca Haier, fabricante chinês de aparelhos. Isso posicionou a empresa para o crescimento depois que as sanções fizeram marcas como a LG e a Samsung deixarem o mercado iraniano. A Entekhab pôde explorar a cadeia de suprimentos chinesa quando buscou incrementar a produção. Nesse meio tempo, seus concorrentes estavam às voltas para se livrarem de fornecedores europeus, japoneses e coreanos, que em grande parte pararam de exportar para o Irã devido ao risco de sanções. E mais importante: a Entekhab era uma companhia experiente que dispunha de um histórico de localização da cadeia de suprimentos e dinheiro vivo para investir. Houve muitos estreantes no mercado iraniano de eletrodomésticos, mas a maioria carecia dessas significativas vantagens competitivas. Nesse quesito, nenhuma outra firma iraniana no mercado de eletrodomésticos atingiu uma escala similar.

    Tradução da imagem:
    Produção de eletrodomésticos
    Total de unidades produzidas (em milhões)
    Verde: refirgeradores
    Azul: máquinas de lavar
    Linha vermelha: marco temporal das políticas de “pressão máxima” de Trump

    Excesso de capacidade e política industrial

    Embora as autoridades iranianas possam, em algum momento, ter-se preocupado com a possibilidade de as sanções prejudicarem a capacidade de produção dos fabricantes de eletrodomésticos, o crescimento rápido e descoordenado do setor levou, em vez disso, ao excesso de capacidade. O Majles Research Center[Centro de Pesquisas Majles], que é associado ao parlamento iraniano, estima que a atual capacidade de produção total anual de refrigeradores está em torno de 10,5 milhões de unidades, ao passo que a demanda doméstica máxima é de menos de 3 milhões de unidades por ano. Como as sanções restringiram as exportações, a significativa capacidade de produção não usada representa recursos desperdiçados.

    Em um relatório recente sobre o setor, o Majles Research Center adverte que os fabricantes iranianos de eletrodomésticos estão em uma corrida para o fundo do poço. O relatório conclui: “O livre ingresso na indústria de eletrodomésticos levou a que muitas licenças de funcionamento fossem expedidas nas últimas décadas. No entanto, essa liberdade de ingresso impediu que as empresas se beneficiassem de economias de escala. Explorar economias de escala é necessário para atingir uma produção competitiva de alta qualidade”. Em outras palavras, as empresas iranianas foram bem-sucedidas em aumentar a capacidade de produção sob sanções. Porém, a mobilização de capital privado sob sanções reflete um sucesso parcial. No geral, volumes recordes de produção poderiam indicar que o mercado de eletrodomésticos do Irã deu de ombros às interrupções causadas pelas sanções. Porém, no nível das firmas, muitos fabricantes de eletrodomésticos estão lutando com margens de caixa negativas, na medida em que enfrentam uma concorrência intensa num mercado fragmentado. Empresas de um setor em que a produção cresceu podem perder dinheiro do mesmo modo que as de setores em que as sanções restringiram a produção ou as vendas. Desse modo, o excesso de capacidade se tornou uma dor de cabeça inesperada para os formuladores de políticas iranianos.

    Enquanto em muitos países a política industrial implica o uso de subsídios para “aglomerar” o capital privado em setores estratégicos que carecem de investimento, o Irã tem lutado para manter os gastos do governo devido à pressão exercida pelas sanções. Em um contexto em que o investimento do governo é inerentemente restrito, a alocação eficiente de investimento privado é crucial e a política industrial deveria dirigir o foco para a coordenação de falhas nos setores em que o capital privado foi implementado de modo oportunista. As falhas de coordenação evidentes no setor de eletrodomésticos iraniano também deixam claro como, apesar dos apelos para criar uma “economia de resistência” em face das sanções, os formuladores de políticas econômicas iranianos não souberam utilizar a política industrial para controlar e direcionar o comportamento adaptativo das empresas do setor privado. Esse fracasso também criou círculos de apoio entre vários tipos de fabricantes nacionais que se opõem ao tipo de liberalização do mercado inerente ao alívio das sanções – minando a crença central dos formuladores de políticas ocidentais de que as sanções podem estimular mudanças de comportamento em países como o Irã por meio de pressão de baixo para cima, inclusive de lobbies empresariais.

    Quando surgiram os primeiros rumores, em 2021, de que o Irã poderia concordar com um acordo de libertação de prisioneiros com os Estados Unidos, o qual resultaria também na liberação de reservas congeladas mantidas em bancos da Coreia do Sul, uma dúzia de fabricantes de eletrodomésticos escreveu uma carta aberta sem precedentes ao líder supremo Ali Khamenei, com a solicitação de que qualquer acordo desse gênero não levasse à revogação da proibição de importações, mantendo empresas como LG e Samsung fora do mercado. Os signatários se opunham “à importação de marcas internacionais quando a produção local atende as necessidades quantitativas e qualitativas do mercado nacional”. Curiosamente, a carta mencionou Richard Nephew, uma autoridade da administração Obama e que é visto por amplos setores no Irã como o arquiteto principal do programa de sanções dos EUA, reputação que conquistou depois da tradução de seu livro A arte das sanções para a língua persa.

    O grupo de fabricantes de eletrodomésticos alegou que “saturar o mercado nacional com marcas coreanas e japonesas se alinha com os objetivos de Richard Nephew”, presumivelmente porque levaria ao subdesenvolvimento da base industrial do Irã. À medida que o debate sobre a proibição de importações continuava, autoridades-chave, entre as quais o ministro da indústria Abbas Aliabadi, manifestaram apoio à sua revogação, motivadas pela ira pública contra a carta. Aliabadi comentou que, “em um mercado perfeitamente competitivo, não há necessidade de impor tais restrições físicas”. Por ora, porém, essa política permanece em vigor.

    Ainda se verá se os formuladores de políticas iranianos conseguirão transformar o mercado de eletrodomésticos fragmentado do Irã em um mercado competitivo. Esses formuladores de políticas poderiam lançar um programa de racionalização para melhorar as capacidades dos fabricantes nacionais e prepará-los para competir com marcas estrangeiras, inclusive em mercados de exportação. Avaliações recentes da política industrial e de sua aplicabilidade aos desafios econômicos atuais observam o valor potencial das medidas de “controle de ingresso”, as quais garantem que apenas empresas qualificadas tenham permissão para operar em setores estratégicos. O relatório do Majles Research Center observa que a “ausência de políticas industriais efetivas na indústria de eletrodomésticos levou a uma grande quantidade de licenças expedidas, muitas das quais resultaram em firmas que operam como montadoras com qualidade mínima”. O fato de tais medidas não terem sido adotadas indica os limites da capacidade estatal no Irã.

    Nos seus estudos da resiliência econômica de economias sob sanções como o Irã e a Rússia, os formuladores de políticas do Ocidente equivocadamente veem resiliência como decorrência de políticas promulgadas por Estados centralizados que se vangloriam de deter um controle significativo sobre a economia. A economia iraniana não foi derrubada pelas sanções. Porém sua resiliência, amplamente centrada no setor industrial, foi gerada por adaptações no nível das empresas, e não por diretrizes lideradas pelo Estado. No Irã, o resultado econômico foi sustentado por firmas oportunistas que tiraram vantagem das condições criadas pelas sanções e das políticas protecionistas involuntárias que essas sanções provocaram. Porém, essas adaptações no nível das empresas já atingiram amplamente seus limites na economia sob sanções, e os formuladores de políticas iranianos têm sido incapazes de apresentar uma política industrial responsiva. As consequências desses desenvolvimentos para as futuras negociações envolvendo sanções não deveriam ser ignoradas: um segmento crucial do lobby de negócios do Irã se converteu em beneficiário inesperado da guerra econômica global.

  6. O que foi a Bidenomics?

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    O slogan de uma “economia moderna puxada pela oferta” foi adotado pelo governo Biden seis meses antes de qualquer menção à frase “Inflation Reduction Act”. Quando discursou no Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2022, Janet Yellen, secretária do Tesouro americano, explicou que a diferença dessa “economia moderna puxada pela oferta” de Biden da versão anteriormente implementada por Reagan era o foco no aumento da produtividade e da participação da força de trabalho por meio de gastos públicos e de uma maior tributação do capital, para criar uma “expansão da oferta…que distribua a expansão da renda nacional de forma mais igualitária”. “Três aspectos da agenda Biden” abordariam “problemas estruturais de longo-prazo, particularmente a desigualdade”: a reforma de setores-chave de serviços sociais, como os de assistência a crianças e idosos, o aumento do gasto público com educação e a reforma dos impostos corporativos. Só o que faltava, disse Yellen, era a aprovação da “legislação Build Back Better, pendente de análise pelo Congresso”.

    Seis meses depois, a passagem pelo Congresso transformou a “economia moderna puxada pela oferta” em algo totalmente diferente. Discursando em Detroit em setembro de 2022, Yellen delineou três pilares alternativos para definir o que seria, de acordo com o governo, a tal “economia moderna”. No lugar do aumento da participação da força de trabalho por meio de licenças remuneradas, limitações ao preço de creches, ensino público para pré-escolas e reforma de asilos, entrou a “resiliência a choques globais”. No lugar de maior financiamento para faculdades públicas para aumentar a produtividade do trabalho, entraram subsídios para empresas. E, no lugar dos impostos corporativos, entrou a “justiça econômica”. Agora, o sentido da “economia moderna do lado da oferta”, explicou Yellen, tinha virado “reduzir os riscos econômicos e de segurança nacional” representados por “países como a China”.

    O que provocou tamanha mudança?

    Ainda no início de 2021, o incentivo às soluções do setor público para problemas de desigualdade, estagnação salarial e legitimidade política começou a esbarrar na aliança entre capital e Estado que controla a política fiscal dos Estados Unidos. No final de 2022, o projeto já tinha se transformado num amálgama de créditos fiscais para empresas, concessões de tecnologia direcionadas e uma modernização da infraestrutura que havia sido amplamente adiada. O programa resultante—legalmente definido pela tríade de Infrastructure Investment and Jobs Act, CHIPS and Science Act e Inflation Reduction Act—foi aprovado num contexto de margens muito estreitas de negociação com o Congresso, barreiras procedimentais, restrições ideológicas inerentes à política fiscal estadunidense e um renascimento dos gastos com defesa em meio à formação de um novo consenso de Guerra Fria. Acima de qualquer coisa, imperou a profunda influência do poder corporativo sobre o governo federal—que determinou, em última instância, a natureza dos gastos que seriam tolerados pelo sistema político dos EUA. 

    O horizonte de ação do programa se transformou no desenvolvimento de capacidades tecnológicas (e militares) verdes, numa agressiva política de segurança nacional e na priorização do lucro da atividade econômica em detrimento da reforma social. Em meados de 2023, o governo já havia adotado um novo slogan para definir o programa: Bidenomics. Mas, à medida que o sistema político estadunidense se voltava às eleições de novembro de 2024—em meio a números recordes de despejos e de falta de moradia, a uma corrida acirrada entre aumentos salariais e de preços e a um mercado de trabalho progressivamente mais flexível—, a retórica da Bidenomics criou uma confusão irremediável sobre a natureza da recuperação pós-pandemia. Uma expansão fiscal estava em andamento, mas principalmente na forma de créditos fiscais para empresas, enquanto escolas públicas eram alertadas do risco de corte de pessoal e fechamento. Os gastos militares estavam garantidos—para uma política externa que convida a acusações de genocídio na Corte Internacional de Justiça. Quando, no final de julho, Biden anunciou sua saída da corrida eleitoral e a vice-presidente Kamala Harris passou a encabeçar a chapa democrata ao lado de Tim Walz, governador de Minnesota, a promessa esquecida do Build Back Better e sua aposta no setor de serviços como instrumento para remodelar a economia política estadunidense voltaram a aparecer como recurso da campanha. Mas qual era a promessa? E como ela se transformou numa síntese de segurança nacional?

    Os dois polos da política fiscal 

    O controle da inflação na década de 1970 estabeleceu os termos da disputa pelo orçamento federal que define os limites modernos enfrentados pelo governo dos EUA. A flutuação da inflação entre os dois picos registrados durante as guerras da Coreia e do Vietnã—ambos controlados pelo governo—levou economistas do crescimento a conclusões sobre as responsabilidades administrativas e regulatórias do governo que hoje seriam consideradas radicais. Essas conclusões provocaram recomendações como a imposição de controles de preços em tempos de paz, a elevação de impostos sobre o capital e sobre a renda no topo da distribuição, o incentivo às negociações salariais por sindicatos e a estatização: as ferramentas de planejamento econômico necessárias para conciliar pleno emprego e estabilidade de preços, para elevar o padrão de vida dos trabalhadores sem provocar riscos inflacionários. 

    Mas, apesar do liberalismo heroico dos anos 1970, a inflação da década acabou sendo controlada não por um grau maior de intervenção pública, mas pela celebração do empreendedorismo privado. O programa de estabilização econômica priorizou instrumentos como a desregulamentação de preços, extinção dos sindicatos, cortes de impostos para o topo, tetos de gastos e independência retórica da política monetária. Entre 1978 e 1989, o Congresso reduziu a alíquota de impostos sobre as empresas de maior faturamento de 48% para 34%, sobre os ganhos de capital de 40% para 28% e sobre a renda do topo da distribuição de 70% para 38%. A concorrência entre um crescente setor não sindicalizado e empresas ainda sindicalizadas permitiu ao capital a apropriação de uma parcela cada vez maior dos ganhos de produtividade. Essas transformações reformularam de maneira fundamental o entendimento comum a respeito do método ideal para alcançar um crescimento econômico estável.

    Embora esse novo senso comum tivesse o objetivo declarado de estimular o crescimento, a parcela do investimento privado no PIB diminuiu ao longo da década de 1980. De início, os economistas encontraram uma explicação na política fiscal deficitária de Reagan: em 1975, em resposta aos grandes déficits anuais registrados em períodos de recessão, o então presidente do Fed, Arthur Burns, alertou que as taxas de juros poderiam subir e que “empresas privadas e consumidores poderiam ser expulsos” do mercado de crédito. William Simon, então secretário do Tesouro, repetiu a ameaça de Burns no final dos anos 1970. Enfim, a partir de 1979, Paul Volcker, presidente do Fed nomeado por Jimmy Carter, cumpriu a promessa. A “Reaganomics” pouco fez para aliviar a relação do Tesouro com o mercado de crédito. O Tesouro se embrenhou num aumento aparentemente não planejado da dívida pública, com uma média anual de US$ 167 bilhões—o aumento total somou US$ 1.5 trilhão.1 E, à medida que isso engendrou novas formas de poder político, houve um aumento qualitativo da aversão das grandes empresas aos gastos públicos deficitários.2

    Nas décadas de 1960 e 1970, quando os EUA se ajustavam à reconstrução da Europa Ocidental e do Japão, para muitos formuladores de política, os déficits fiscais ilustravam o risco que o poder de barganha dos trabalhadores representava para o valor do dólar—que afundava após a adoção não planejada do câmbio flutuante em 1973. Mas, depois de Reagan, como os déficits passaram a resultar de cortes de impostos mais do que de aumento de gastos, sua relevância política mudou. Essa foi uma época marcada por déficits sem precedentes, mas o crescimento do emprego era lento e o dólar estava mais forte do que nunca. O trabalho organizado estava em um processo de contração quase universal. Para o mundo dos negócios estadunidenses, as altas taxas de juros suplantaram a disciplina do trabalho como justificativa para os humores do mercado.3 Em resposta, em 1985 e 1987 o Congresso estabeleceu metas legais de déficit, culminando na Lei de Execução Orçamentária de 1990. A partir da gestão de Bill Clinton, os democratas adotaram a limitação de novos gastos públicos à arrecadação de receitas—regra que ficou conhecida como “pay-as-you-go”, ou PAYGO. A autoridade orçamentária foi reduzida à conciliação contábil.4 Nesse novo clima político, a formação de coalizões para lutar contra a expansão de gastos não relacionados à defesa—em nome da redução dos déficits anuais—e, ao mesmo tempo, cortar impostos para estimular o crescimento da renda e do emprego se tornou uma condição para a garantia de governabilidade. 

    No entanto, a abordagem PAYGO do crescimento econômico era pouco mais do que mera retórica de racionalização. A política fiscal dos anos de George W. Bush sabotou a teoria de que o aumento da dívida pública repelia o investimento privado e incentivava maiores taxas de juros. O Congresso reduziu novamente os impostos em 2001 e 2003, deixando a alíquota corporativa inalterada, mas reduzindo a alíquota de ganhos de capital para 15% e a alíquota máxima para pessoas físicas para 35%. De 2002 a 2006, a emissão de dívida do Tesouro foi, em média, de US$ 300 bilhões por ano, mas as taxas de juros permaneceram em mínimos históricos. Como a dívida voltou a crescer gradualmente em resposta à Crise Financeira Global, muitos economistas liberais continuaram argumentando que o desequilíbrio fiscal colocava em risco a recuperação econômica e defendendo reformas nos programas de seguridade social para manter a “confiança” no valor dólar—aquele mesmo papel usado como ativo de reserva em todo o mundo. Apesar do apetite global insaciável por investimentos nos Estados Unidos, a antiga teoria do investimento que enfatizava a natureza política da distribuição funcional da renda foi simplesmente substituída pela obsessão com as rígidas preocupações dos grandes proprietários da dívida pública e com as necessidades do empresariado: redução de impostos e custos trabalhistas.

    Uma vez que as empresas têm se apropriado, desde os anos 1980, da maior parcela da renda bruta nacional, a redução da carga tributária para pessoas físicas do topo da distribuição incentivou novas modalidades de distribuição de lucros e dividendos.5 O nível dos salários, por outro lado, sofreu distensões. A desigualdade aumentou. Enquanto o antigo setor público definhava—escolas estavam superlotadas, benefícios sociais eram reduzidos ou cancelados e moradias públicas eram demolidas—um novo setor se serviços sociais financiado pelo Estado mas administrado por agentes privados cresceu em torno de programas como o Medicare e o Medicaid. Mas todas as rodadas de cortes de impostos, tetos de gastos e leis PAYGO não foram capazes de corrigir a realidade estrutural de uma economia mista pós-industrial que sofria com uma crônica insuficiência da demanda doméstica, resultante da desigualdade de renda, e com um setor público cada vez mais esquálido. Nas quatro décadas que antecederam a pandemia, a taxa de desemprego dos EUA só foi igual ou inferior a 4% em 36 dos 470 meses analisados. O período de janeiro de 2018 a fevereiro de 2020 representa 25 desses 36 meses.

    A constatação da economia dual 

    O grau de restrição de um ambiente político no qual republicanos cortavam impostos e democratas reduziam o déficit marcou um período de décadas de hegemonia corporativa incontestável. No segundo mandato de Obama, alguns economistas começaram a se questionar sobre a necessidade de uma teoria política para explicar as tendências econômicas que observavam. Quando Janet Yellen, então presidente do Fed, começou a aumentar as taxas de juros para pôr em xeque a rigidez do mercado de trabalho, alguns desses economistas—incluindo Peter Temin, Lance Taylor e Servaas Storm—recuperaram o conceito de “economia dual”, originalmente articulado por W. Arthur Lewis (que ganhou um Nobel pela ideia) na década de 1950.

    Lewis havia descrito problemas de crescimento econômico característicos de países em desenvolvimento. Com os mercados de trabalho divididos entre centros urbanos com empresas modernas e altos salários e um setor rural de subsistência marcado por baixos salários, esses países tendiam a observar a migração da mão de obra para as cidades em busca de rendas mais altas, independentemente da disponibilidade de empregos. Os salários no setor moderno, embora mais altos que os demais, eram regulados pela oferta praticamente ilimitada de mão de obra do campo. Ainda que a indústria moderna aumentasse a produtividade e reduzisse o custo de vida, o poder político dos grandes proprietários permitia que agissem em sentido oposto para garantir disciplina do trabalho. Nesse sentido, os países em desenvolvimento precisavam do Estado para aumentar os impostos e coordenar o crescimento em sentido geográfico e industrial.

    Enquanto os EUA tropeçavam em sua recuperação inercial da Crise Financeira Global e os dois lados do sistema bipartidário adotavam a austeridade fiscal e monetária como remédio, o padrão de crescimento do país parecia se aproximar cada vez mais daquele observado em economias pós-coloniais dos anos 1950, guiado por uma elite reacionária. “As condições que fomos ensinados a considerar como típicas das nações em desenvolvimento”, escreveu Temin, “estão aparecendo na nação mais avançada do mundo”.6 Mas, à medida que a recuperação econômica dos Estados Unidos se acelerou no final do mandato de Obama e no início do mandato de Trump, o país começou a apresentar sinais de crescimento de economia dupla com implicações muito diferentes daquelas enfrentadas pelo mundo em desenvolvimento. Em vez de ser uma economia de subsistência, o setor de baixos salários do mundo capitalista avançado era o de serviços—muitos deles vitais para a reprodução social. Logo antes da pandemia, quando a oferta de trabalho ficou mais restrita, gigantes corporações do setor de baixos salários, como Walmart e Amazon, começaram a aumentar seus pisos salariais. Mas a escassez da mão de obra não era exclusividade do varejo: afetava também os setores de saúde e educação pública. Os efeitos políticos desse modelo de crescimento, à medida que a austeridade do setor público se deparava com os salários crescentes do setor privado, foram expressos de maneira notável por uma série de greves do funcionalismo público entre 2018 e 2019, reunindo mais de 645 mil trabalhadores da educação.

    A economia estadunidense, em razão da estrutura dual desenvolvida em torno dos serviços de baixos salários nas décadas anteriores, parecia incapaz de fornecer serviços públicos básicos enquanto mantinha o pleno emprego. Esse foi um aspecto da analogia da economia dual que muitos economistas não previram. A superação desse problema não dependeria apenas do aumento do nível de investimento em setores modernos e tecnologicamente avançados—o caminho de praxe para um país em desenvolvimento. Em vez disso, seria necessário alterar as regras do setor privado de serviços—expandindo os gastos públicos em atividades deficitárias, como a educação, para pagar salários competitivos; regulando os lucros em setores de baixos salários, como cuidados de longo prazo ou creches; e superando a resistência política dos empregadores de baixos salários, que preferiam um mercado de trabalho mais flexível em detrimento dos ajustes necessários para uma economia de altos salários. Foi necessário o choque histórico mundial da pandemia da Covid-19 para que essas deformações se tornassem parte de uma luta legislativa genuína.

    A forma de K

    Os sinais de uma mudança radical na consciência política democrata foram registrados em meados de 2020 na forma de uma retórica generalizada sobre a economia “em forma de K” do país. À medida que a pandemia e as campanhas eleitorais se desenrolavam, a ideia de que as tendências de desenvolvimento de longo prazo por trás da crescente desigualdade nos EUA poderiam ter alguma explicação estrutural em uma teoria do crescimento de mercados de trabalho bifurcados parecia cada vez mais plausível. O clima desconcertante de 2020 dissipou tabus—foram aprovados quatro projetos de lei de gastos emergenciais, totalizando US$ 2,3 trilhões, ainda antes da eleição de novembro—e obliterou o consenso obstinado que prendia a condução da política econômica entre a redução de impostos e a redução do déficit. A mudança no pensamento econômico que vinha se desenvolvendo desde o final do mandato de Obama e o início do governo de Trump finalmente encontrou espaço. 

    No primeiro debate presidencial daquele ano, Biden declarou que a “economia em forma de K” era “um nome chique para tudo o que há de errado com a presidência de Trump…o significado de ‘K’ é que quem está no topo segue subindo e quem está no meio e na base segue caindo”. Explicações dessa natureza, empregadas para diagnosticar a sobreposição de urgências que afeta a vida da população estadunidense, foram fundamentais para a renovação do discurso que assegurou ao Partido Democrata uma apertada vitória em novembro de 2020. “As pessoas se preocupam com uma recuperação em forma de K, mas bem antes da Covid-19 estávamos vivendo em uma economia em forma de K”, explicaria Yellen durante sua sabatina. “A riqueza gerou mais riqueza, enquanto as famílias trabalhadoras ficaram cada vez mais para trás. Isso é especialmente verdadeiro para a população não branca”.

    Em março de 2021, o Congresso aprovou o American Rescue Plan (ARP), vinculando US$ 1,8 trilhão em recursos públicos por meio de um processo de conciliação orçamentária, com a maior parte dos gastos concentrada nos dois primeiros anos. Foi esse o momento dos julgamentos históricos triunfantes sobre o “fim do neoliberalismo”.7 Para o principal comentarista de economia do Wall Street Journal, a “Bidenomics” era, nesse momento, “mais um movimento político do que uma escola de pensamento econômico. A base democrata se moveu para a esquerda… Essa base agora busca, por meio do Sr. Biden, remodelar a economia e a sociedade nos próximos anos”. “Acabamos de passar por quatro anos de Donald Trump, o que certamente aumenta as expectativas de que possamos realmente entregar resultados e nunca mais voltar a essa situação”, disse Brian Deese, ex-funcionário de Obama e executivo da BlackRock nomeado por Biden para comandar o Conselho Econômico Nacional. “Historicamente…esses momentos de crise são momentos em que o espectro potencial de possibilidades se expande…a política do Partido Democrata mudou”.

    Para cumprir a promessa, em abril de 2021 Biden anunciou o envio ao Congresso de novas legislações tributárias e de gastos a partir do ano fiscal de 2022. O orçamento anual era significativamente menor do que aquele dos projetos de lei emergenciais assinados por Trump e do que o próprio ARP do governo Biden. Mas as regras orçamentárias do Congresso exigiam discutir os projetos em totais de dez anos, uma arcana procedimental que insuflou o debate público com um ar de surrealismo. O primeiro foi o “American Jobs Plan” [Plano Americano de Empregos]: US$ 2,3 trilhões para rodovias, pontes, sistemas de água e reforma do mercado de cuidados de longo prazo financiado pelo Medicaid. O segundo foi o “American Families Plan” [Plano das Famílias Americanas]: US$ 1,8 trilhão para faculdades comunitárias gratuitas e programas existentes de ensino fundamental e médio; pré-escola universal; expansão do Medicare para serviços odontológicos, oftalmológicos e auditivos; licença médica remunerada de 12 semanas e ampliação da elegibilidade para o Child Tax Credit [Crédito Fiscal por Criança]. A compensação desse aumento de gastos de US$ 4,2 trilhões em dez anos foi de US$ 3,8 trilhões em novas receitas que viriam do “Made in America Tax Plan” [Plano Tributário Made in America]: um aumento nos impostos sobre as empresas— elevando a alíquota sobre a renda corporativa de 21% para 28%, estabelecendo um mínimo de 21% sobre os lucros offshore, um mínimo de 15% sobre os lucros declarados, encerrando isenções e deduções para a renda proveniente de combustíveis fósseis e reformando as deduções internacionais. Além dessas mudanças nos impostos corporativos, a Casa Branca propôs uma alíquota de 39,6% para as pessoas físicas do topo da distribuição, fechando a brecha de “juros transportados” sobre ganhos de capital, acabando com a suspensão da cobrança de impostos para as trocas “like-kind” da Seção 1031 (um método de isenção de ganhos de capital para imóveis) e US$ 80 bilhões em gastos com pessoal do Internal Revenue Service (IRS), a receita federal estadunidense.

    Melhorar as condições de trabalho do setor de cuidados virou a nova pedra de toque do governo, discutida em termos de “infraestrutura social”. “Parte do que está falhando é o fato de a sociedade não dignificar o trabalho que eles [cuidadores de idosos e crianças] fazem, que é um dos trabalhos mais difíceis”, disse Deese. “Como uma das áreas de emprego em expansão em nossa economia, precisaremos de mais cuidados. Portanto, queremos que esse setor crie não apenas mais poder para esses trabalhadores, mas também mais dignidade”. A maneira de fazer isso não era apenas “construir creches, investir no lado da oferta de creches para que haja mais opções disponíveis”, mas também garantir “que os trabalhadores que prestam esses cuidados sejam mais bem pagos e tenham mais oportunidades de se organizar”.8

    No total, a Casa Branca propôs déficits anuais de US$ 41 bilhões ao longo de dez anos. Apesar de sua relativa modéstia—cerca de um sétimo do custo anual dos déficits de Bush—, a expansão do setor público pressagiava uma profunda reorientação dos rumos da economia política dos EUA: uma reconstituição da política fiscal em favor de maior seguridade social, maiores folhas de pagamento no setor público e uma melhoria de vida para crianças e idosos. “Se os principais elementos do Plano da Família Americana de Joe Biden se tornarem lei”, escreveu Paul Krugman, “proporcionarão benefícios enormes e de fato transformadores para milhões de pessoas”. Em vez da velha estratégia de restringir o crescimento do sistema de bem-estar social pós-Grande Sociedade, reduzindo a demanda e o emprego na tentativa de estimular o investimento privado, a sabedoria convencional havia mudado. Juntos, os pacotes de gastos e impostos representavam as formas como o investimento público nesses setores de assistência poderia sustentar a oferta de mão de obra, começar a aumentar salários e, com a taxação das rendas mais altas, estabelecer alguma restrição ao crescimento contínuo da desigualdade. Esse programa reimaginou o modelo de crescimento que possibilitaria a saída da economia em forma de K.

    Lobby na economia dual 

    Enquanto os grandes estrategistas do círculo de Biden monopolizavam as atenções, um conjunto de atores bem menos deslumbrante, porém mais fundamental, se organizava. Até o primeiro semestre de 2021, a adesão em algum grau do programa da Casa Branca parecia inevitável para os líderes do empresariado. Isso implicaria aceitar, por exemplo, alguma elevação de impostos corporativos—o presidente estava propondo 28% para a renda doméstica e um mínimo de 21% para todas as rendas (a direção da mudança havia se invertido em apenas uma década: em 2011, Obama propôs a redução da alíquota corporativa para 28%; o candidato à presidência Mitt Romney concorreu com a proposta de reduzir a faixa superior das empresas para 25%). No fim de abril daquele ano, um dos sócios do gigante escritório de direito corporativo Holland & Knight confirmou a premissa: “As pessoas estão levando isso a sério. É um momento de alta ansiedade”.9

    Ansiedade à parte, fato é que o empresariado estadunidense se mobilizou contra a agenda de Biden. O presidente da Câmara de Comércio definiu uma posição inicial, chamando a proposta de investimento em infraestrutura de “natimorta”, enquanto a Business Roundtable alertou que “aumentos de impostos tornariam os Estados Unidos não competitivos para os negócios”. Josh Bolten, CEO da Roundtable e ex-chefe de gabinete de George W. Bush, reclamou que “Biden foi eleito precisamente porque não era nem Bernie Sanders nem Elizabeth Warren, mas está governando como os dois”.

    Entre os grupos comerciais, a National Retail Federation (NRF) liderou a oposição. Com uma diretoria composta por executivos do Walmart, Target, Albertsons, Microsoft, Macy’s e Dick’s, entre outros, a NRF representa os empregadores do setor de serviços com baixos salários, cujos custos seriam afetados de forma mais aguda por uma reestruturação do mercado de trabalho estadunidense. Os principais empregadores do setor de lazer e hospitalidade—representados pela International Franchise Association (IFA), pela American Hotel and Lodging Association (AHLA) e pela National Association of Wholesaler-Distributors—também entraram na briga. Formaram um grupo chamado “America’s Job Creators for a Strong Recovery” [Criadores de empregos americanos para uma forte recuperação], através do qual argumentaram que um aumento de impostos ameaçava fazer com que os gastos dos consumidores e das empresas caíssem em uma recessão, sufocando a recuperação. Ao concentrar as críticas na proposta de aumentos de impostos, essa nova coalizão conseguiu montar uma campanha contra mudanças mais estruturais nas relações de emprego dos setores de baixos salários.

    O grande capital multinacional se uniu à mobilização contra o aumento da taxação dos empregadores de baixos salários. A chamada coalizão RATE (Reforming America’s Taxes Equitably) era presidida por Elaine Kamarck, agente de Clinton responsável por cortar as folhas de pagamento federais na década de 1990 (na época, ela se gabava de ter “espremido todo o lixo socialista de esquerda do Partido Democrata”). O lobby da ala liberal das grandes empresas também ganhou apoio dos conservadores de Wall Street organizados no Committee to Unleash Prosperity—organização sem fins lucrativos com seis anos de existência dirigida por Stephen Moore, editor de opinião do Wall Street Journal, economista da Heritage Foundation e fundador do Club for Growth.

    Uma decisão estratégica histórica moldou a primeira fase dessa disputa. Enfrentando oposição de todos os lados entre os grandes empregadores, a Casa Branca adiou sua pressão legislativa em favor do aumento de impostos para focar em um acordo de menor escala sobre os gastos com um grupo de senadores republicanos. Uma das principais influências por trás dessa decisão foi Anita Dunn, lobista da empresa de consultoria SKDK de Washington, cujos clientes, além dos comitês de campanha do partido, incluem Pfizer, AT&T e Amazon, e que “preparou o Presidente para todas as entrevistas e coletivas de imprensa desde o início da campanha”. Em abril, Dunn circulou um memorando entre as “partes interessadas” que defendia as seções menos polêmicas da agenda do governo: “Os principais componentes do American Jobs Plan do presidente Biden são extremamente populares entre uma coalizão ampla e bipartidária”, argumentou, citando o apoio aos gastos com infraestrutura da Câmara de Comércio dos EUA e do CEO da Ford Motors. Para conseguir onze votos dos republicanos no Senado e garantir gastos adicionais, a Casa Branca retirou do total de US$ 2,3 trilhões da sua proposta: US$ 400 bilhões para cuidados de longo prazo, US$ 424 bilhões para créditos fiscais de energia limpa, US$ 326 bilhões para moradias populares e escolas públicas e US$ 566 bilhões para fabricação nacional e pesquisa e desenvolvimento. Todas as menções a impostos foram removidas. O que restou foram US$ 550 bilhões em dez anos para estradas, pontes, aeroportos, portos, água, banda larga e distribuição de energia elétrica (em julho, os US$ 80 bilhões para o financiamento do IRS também foram cortados). No final de junho de 2021, assim que o debate sobre impostos entrou em pauta, a Casa Branca anunciou que havia chegado a um acordo bipartidário sobre os investimentos em infraestrutura.

    O abandono da disputa sobre a taxação em favor do projeto de lei de infraestrutura dividiu o Partido Democrata. O entorno dos senadores Manchin e Sinema e da Casa Branca defendia gastos em infraestrutura sem impostos. A pressão pela aprovação do acordo de infraestrutura criou solidariedade entre os membros da coalizão bipartidária na rejeição ao aumento da tributação, mas alienou partes significativas das forças ativistas e de advocacy que se mobilizavam por reformas no mercado de trabalho, expansão do setor público e energia renovável (as pesquisas de opinião indicam, sem oscilações, que a população dos EUA aprova o aumento de impostos sobre os ricos). Anita Dunn garantiu o acordo em junho de 2021 e, em julho, deixou a Casa Branca para retornar ao SKDK. Entendendo que a única vantagem da esquerda do Partido Democrata sobre o centro era sua capacidade de bloquear o avanço da legislação bipartidária, Nancy Pelosi declarou que a Câmara votaria os impostos antes dos gastos—garantindo pelo menos algum avanço das propostas tributárias e dos pacotes de “economia do cuidado” excluídos do acordo bipartidário. 

    As agitações de 2020 e a transformação ideológica encabeçada por frações do círculo de assessores da Casa Branca pouco afetaram a estrutura de poder que a disputa travada pelos democratas na Câmara revelou a partir segundo semestre de 2021. Em julho, as corporações que haviam insistido na responsabilidade social e na transferência pacífica de poder após 6 de janeiro mobilizavam uma onda inercial de dinheiro para transmitir sua mensagem contrária aos esforços do novo governo em limitar os ganhos do topo da distribuição de renda. Só a coalizão RATE, por exemplo, viu seu orçamento anual de lobby aumentar oito vezes em 2021. O empresariado se uniu para demandar a aprovação imediata do acordo bipartidário de infraestrutura.

    Ao isolar a questão tributária para dividir a coalizão de Biden, McConnell, líder republicano no Senado, permitiu que a casa apreciasse o projeto de infraestrutura em agosto. No mês seguinte, o comitê Ways and Means da Câmara, controlado pelos democratas, registrou sua própria proposta: um abrangente projeto para o orçamento do ano fiscal de 2022—hoje conhecido como Build Back Better.

    No fim de outubro, quando o comitê apresentou o relatório da Build Back Better, a oposição focou no isolamento de medidas específicas de gastos voltadas a remodelar as relações de poder na economia do cuidado. Há muito tempo, o setor farmacêutico é o que mais gasta com lobby, com desembolsos anuais que somam quase o dobro daqueles registrados nos setores de seguros, petróleo e gás e valores mobiliários. A legislação só previa algumas pequenas medidas de controle de preços de medicamentos, mas isso não impediu o lobby farmacêutico de aumentar seus gastos em 14% entre 2020 e 2021. A Associação Americana de Dentistas também não demorou para se opor à inclusão de benefícios odontológicos no Medicare, o que limitaria a autonomia de precificação de seus membros. Anúncios na televisão apresentavam pacientes preocupados com o fato de que as negociações de preços “dificultariam a obtenção de medicamentos pelos usuários do Medicare”. O aumento dos gastos do setor de saúde com lobby contra a reforma também foi acompanhado, naquele momento, por uma onda crescente de desembolsos por parte de outro grupo, igualmente interessado em retirar da legislação uma parcela dos investimentos públicos previstos: o setor da fabricação de eletrônicos.

    O veto dos preços

    O que aconteceu com o ambiente intelectual que culminou nas propostas da Casa Branca reunidas no Build Back Better? O principal dispositivo retórico empregado na disputa de poder dentro do Congresso—e homônimo da lei que acabou resolvendo o conflito—foi a inflação. Apesar dos gestos em direção à política PAYGO, o acordo que a Casa Branca havia conquistado aumentava os gastos sem aumentar a arrecadação. O pacote destinado ao aumento da taxação continuou avançando no legislativo e, em novembro, chegou ao plenário da Câmara. Mas o terreno de luta da bancada progressista da Câmara já havia mudado radicalmente.

    A inflação substituiu a economia em forma de K como a questão mais urgente da política econômica nacional. Em junho de 2021, a taxa de inflação havia subido para 5,3%, a mais alta desde os choques do preço do petróleo em 2008. A inflação se estabilizou por três meses ainda naquele verão, exatamente quando o acordo sobre infraestrutura, livre de qualquer discussão de impostos, se cristalizou. Porém, em outubro, enquanto o comitê Ways and Means analisava o projeto do Build Back Better e a aprovação do projeto bipartidário de infraestrutura esperava no limbo, a inflação subiu novamente para 6,2% e, em novembro, para 6,9%. Como a legislação tributária estava paralisada no Congresso, mas, mesmo assim, se recusava a morrer, a inflação acelerou ainda mais. A economia dos EUA vivenciava algo que não via desde o final da década de 1970: inflação continuamente acelerada. Isso moldaria o destino da política fiscal nos próximos três anos.

    Se é que viriam, os gastos com investimento público que formavam parte importante da abordagem “moderna” de “crescimento econômico puxado pela oferta” precisariam se apresentar de outra forma e conquistar um eleitorado diferente. A Associação da Indústria de Semicondutores (SIA, na sigla em inglês) havia passado a maior parte dos anos finais de Obama e do mandato de Trump lutando contra a imposição controles comerciais e de investimento que, argumentava, poderiam prejudicar o relacionamento das empresas-membro com seus fornecedores e clientes. Durante muitos anos, o setor de semicondutores dos EUA dependeu de cadeias de suprimentos extremamente fluidas. Empresas de design de chips “fabless”, como a Qualcomm e a Nvidia, mantinham no território dos EUA somente as etapas do processo industrial referentes à elaboração do projeto, delegando a fabricação para empresas de fundição fora do país—das quais a maior é a Taiwan Semiconductor Manufacturing Corporation (TSMC)—, antes de vender seus produtos para fabricantes de aparelhos eletrônicos como Apple, Lenovo, Dell e assim por diante. Em 2016, a SIA alertou que “as ações do governo…para garantir a ‘autossuficiência’” representavam um “risco” para o setor com a “ameaça de excesso de capacidade”. Queda nos preços e excesso de oferta são os principais riscos existentes para qualquer empreendimento comercial.10

    A posição era contrária à nascente guerra comercial do governo Trump. Antes da pandemia, John Neuffer, presidente da SIA, representava a visão mais antiga do domínio global dos EUA por meio da divisão internacional do trabalho promovida pelo capital multinacional. A SIA se opôs às restrições de licenciamento da administração Trump sobre a Huawei: o mercado dos EUA representava, afinal, apenas uma parte da renda de uma corporação multinacional.11 Eric Schmidt, ex-CEO e presidente do Google, que atuou na Comissão de Segurança Nacional sobre Inteligência Artificial da presidência de Trump, concordou com o novo consenso de política externa de que era “necessário algum grau de separação tecnológica da China”, mas também insistiu que “o setor de tecnologia da China continua a beneficiar as empresas americanas”.12

    Foi justamente contra esse horizonte trumpista que surgiu uma peça central da Bidenomics: a criação de subsídios domésticos para a construção de instalações para a fabricação de semicondutores e P&D. A ação mais agressiva de Washington na questão dos semicondutores ocorreu na véspera da pandemia, com a detenção pelo Canadá, a pedido do Departamento de Justiça dos EUA, de Meng Wanzhou, executiva da Huawei (a Polícia do Canadá a manteve em prisão domiciliar por um total de 33 meses). Na fabricação global de semicondutores, 75% das empresas estão localizadas no Leste Asiático. Somando-se a isso a pandemia, a escassez a ela relacionada e a sinofobia característica da coalizão protecionista por trás de Trump, a conjuntura permitiu a renovação da configuração das relações de poder entre o empresariado e o governo.

    Quando a Casa Branca de Trump começou a reivindicar o Defense Production Act (DPA) [Lei de Produção de Defesa], instrumento que dá poder ao presidente para ordenar a aceleração do fornecimento de bens e serviços pela indústria doméstica em nome da defesa nacional, o secretário de Estado Mike Pompeo anunciou uma nova política de compras: o Departamento de Estado não transmitiria mais comunicações usando hardware fabricado na China. Pouco tempo depois, o ex-executivo financeiro da GM, Keith Krach, então subsecretário de Estado para Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente de Pompeo, garantiu o acordo que se tornaria, no governo seguinte, uma das conquistas definitivas reivindicadas pela Bidenomics. Em maio de 2020, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Corporation (TSMC) anunciou o plano para instalar uma planta fundição de US$ 12 bilhões em Phoenix, no Arizona. Em setembro de 2020, Krach viajou para Taiwan para cumprir o que foi chamado de “estratégia de segurança econômica global”: a Casa Branca venderia US$ 7 bilhões em mísseis de cruzeiro, minas, drones e estações de controle para o governo da ilha.

    As bases de uma política industrial focada na tecno-segurança, portanto, foram lançadas antes da eleição de 2020. Só o que faltava era uma nova fórmula para a política fiscal. Em julho de 2020, a Câmara aprovou um projeto de lei de defesa que incluía autorização para “incentivos à fabricação de semicondutores”. No entanto, essa autorização não destinou nenhum novo recurso. Naquele mesmo mês, Eric Schmidt, do Google, criou o China Strategy Group para produzir recomendações e fazer pressão política sobre a articulação entre tecnologia e segurança nacional, com membros do Center for New American Security [Centro para a Nova Segurança Americana] (CNAS), ex-funcionários do governo Obama e do Departamento de Estado de George W. Bush, consultores de gestão, banqueiros de investimento, capitalistas de risco e um empresário da NFT. Até setembro de 2020, a SIA publicou recomendações favoráveis a um programa de US$ 50 bilhões em subsídios para a construção de dezenove novas fundições de semicondutores nos EUA.

    A pressão do lobby coincidiu com um alinhamento partidário já concretizado no próprio setor de fabricação de eletrônicos e equipamentos. Em ciclos eleitorais anteriores, as contribuições de campanha do setor totalizaram cerca de US$ 50 milhões em um padrão aproximadamente bipartidário com uma leve margem a favor dos democratas. Porém, em 2020, o setor gastou US$ 102 milhões com os democratas em comparação com US$ 34 milhões com os republicanos—US$ 2 milhões com Biden em comparação com US$ 684 mil com Trump. O fator mais notável dessa guinada à política do setor foi o avanço da SIA sobre o lobby de segurança nacional. Até então, a associação comercial havia se distanciado da disputa partidária que envolvia o planejamento das políticas dos Departamentos de Estado e Defesa. Isso mudou com a vitória de Biden em novembro. No dia seguinte à eleição, o CNAS adicionou a SIA a sua lista pública de doadores. As corporações de semicondutores que haviam investido no planejamento da política de defesa do Partido Democrata logo teriam aliados ocupando o topo da burocracia de política externa de Biden: o subsecretário de Estado, Kurt Campbell, havia cofundado o CNAS com Flournoy; a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, era a CEO do CNAS.

    Em março de 2021, quando o American Families Plan (pacote que posteriormente viraria o Build Back Better) foi anunciado, incluía US$ 230 bilhões em dez anos para a fabricação de semicondutores e P&D. Duas semanas antes de Sinema, representando o Senado, e a Casa Branca anunciarem seu acordo bipartidário de infraestrutura sem impostos em junho de 2021, o Senado aprovou o US Innovation and Competition Act (USICA), um projeto de lei de P&D corporativo e investimento autônomo em semicondutores de US$ 250 bilhões, numa tentativa de blindar os subsídios das empresas de tecnologia dos projetos de aumento de tributação e expansão dos serviços sociais. Mas, em razão da disputa narrativa ao redor da política fiscal do Partido Democrata, mesmo os subsídios aos semicondutores provocavam controvérsia. À medida que a bancada progressista do Congresso se opunha à obstrução dos projetos de tributação capitaneada pelo Senado atrasando a aprovação de toda a legislação, ao longo do segundo semestre de 2021, o destino de qualquer gasto permanecia no limbo.

    O aumento do custo da mão de obra em 2021-2022 foi intolerável para muitos empresários. Os empregadores fizeram uma enorme pressão política para eliminar os pagamentos de auxílio aos trabalhadores. As queixas generalizadas do empresariado sobre a “escassez de mão de obra” refletiam essa perspectiva, cristalizada num esforço para eliminar os benefícios de desemprego legalmente concedidos durante a pandemia. A inflação cumpriu o papel de veto ideológico contra os gastos expansivos com a classe trabalhadora. Reorientadas pela questão da inflação, as amplas reivindicações sobre o processo orçamentário haviam diminuído, e o sucesso do lobby do setor de semicondutores proporcionou uma espécie de modelo para uma coalizão bipartidária de gastos.

    A segurança nacional como base do incentivo fiscal

    Após livrar o Tesouro daquela parte do gasto mais social-democrata e orientada para os serviços públicos, o lobby corporativo pode finalmente focar em reivindicações mais elegantes. Liderados pela Oracle, Apple, Microsoft, Qualcomm, Intel, Palantir, Dell, Cisco e IBM, entre outros, os gastos trimestrais com lobby dos fabricantes de equipamentos e produtos eletrônicos aumentaram 28% ao longo de 2021. No início de 2022, os fabricantes de eletrônicos e equipamentos estavam prontos para tomar do Congresso aquilo que vinha sendo negado ao eleitorado formado por profissionais de saúde, pacientes de hospitais, aposentados, estudantes, professores e pais: recursos públicos. Ainda em janeiro, a Câmara aprovou a Lei COMPETES, que prevê incentivos à inovação tecnológica e P&D. Um ano antes, o secretário Antony Blinken havia dado o tom para o debate legislativo sobre os subsídios do setor de fabricação de eletrônicos, anunciando que a “estratégia de segurança nacional” do governo enfrentava “o maior teste geopolítico do século XXI: nosso relacionamento com a China”.13

    A invasão da Ucrânia pela Rússia foi o empurrão que faltava para assegurar uma coalizão no legislativo. Em 15 de março de 2022, Biden assinou o primeiro projeto de lei de apropriação suplementar militar para a Ucrânia, no valor de US$ 10 bilhões. O empresariado, uma vez vencido o desafio sobre como o governo deve gastar, concordou que agora era a hora apropriada para voltar a fazê-lo. 

    A retomada das negociações sobre o orçamento fiscal—excluída a discussão da arrecadação tributária—também tirou do armário o pacote de incentivos para semicondutores que estava paralisado. Quatro dias após Biden se reunir com o Conselho Empresarial, ainda em março, o Senado aprovou sua versão da Lei COMPETES. Apesar da oposição ao aumento do déficit durante toda a saga do Build Back Better, a guerra na Ucrânia colocou os gastos novamente em pauta. No final de abril, o Congresso aprovou e o Presidente sancionou o segundo suplemento militar para a Ucrânia, dessa vez no valor de US$ 33 bilhões. Enquanto isso, as propostas da lei COMPETES da Câmara e do Senado eram apreciadas ao lado de outros projetos de incentivo para o mesmo setor. Como se quisesse sinalizar que o empresariado havia autorizado a mudança na política fiscal emergente, no início de maio, Biden nomeou novamente Anita Dunn como assessora especial. Em 27 de maio de 2022, o Senado finalmente revelou sua proposta de subsídios: os US$ 424 bilhões originalmente previstos no American Jobs Plan.

    Os termos da superação da disputa entre Republicanos e Democratas são ilustrativos dos valores que tornaram a Bidenomics possível. O governo trouxe à mesa o fantasma da guerra. Em 13 de julho, senadores democratas organizaram um briefing confidencial de segurança nacional, tratando da importância da fabricação de semicondutores para o setor de defesa, e o distribuíram para todo o Senado. Lá, um grupo bipartidário de senadores ouviu a Secretária de Comércio, Gina Raimondo, a Secretária Adjunta de Defesa, Kathleen Hicks, e a Diretora de Inteligência Nacional, Avril Haines, explicarem por duas horas a importância de estimular o setor de semicondutores. Hicks disse ao grupo que “98% dos chips comprados pelo Departamento de Defesa são testados e embalados na Ásia”, enquanto Haines conduziu o grupo pela narrativa de uma hipotética invasão chinesa a Taiwan. Na semana seguinte, o gabinete de Nancy Pelosi começou a informar à imprensa que a líder da maioria da Câmara viajaria para Taiwan. Seria a primeira visita de uma autoridade estadunidense de seu nível à ilha em um quarto de século––o que provocou exercícios militares aéreos de ambos os lados do Mar do Sul da China.

    Após o briefing, Raimondo pediu a Pompeo e ao antigo assessor de segurança nacional de Trump, Robert O’Brien, que fizessem um apelo à bancada do Partido Republicano no Senado para aprovar o projeto de financiamento. No dia seguinte à reunião secreta, democratas do Senado anunciaram que deixariam de apreciar qualquer pacote que aumentasse a tributação junto com os gastos. A oposição aos republicanos não fazia mais sentido. Em 27 de julho, satisfeito, o Senado aprovou o projeto de lei de gastos com tecnologia e P&D—hoje conhecido como CHIPS and Science Act––e o enviou para a Câmara. Na manhã seguinte, democratas do Senado anunciaram uma proposta de conciliação orçamentária que envolvia clima, saúde e tributação: US$ 369 bilhões em créditos fiscais compensados por US$ 313 bilhões em receita obtida por uma série de mudanças nos impostos corporativos que não incluíam o aumento da alíquota legal. O Inflation Reduction Act acabava de nascer. 

    A invenção da Bidenomics

    As estruturas de poder que aglutinavam muitos distritos do Congresso funcionavam como uma espécie de centrífuga descentralizadora contra as forças que impulsionavam a agenda do Build Back Better. Os empregadores precisavam estabilizar os custos de mão de obra. Era consenso para a mídia nacional que os gastos do governo eram os culpados pela inflação desestabilizadora. O ajuste fiscal era a solução. O fraco apoio do eleitorado a nível nacional até mesmo para aqueles aumentos de gastos voltados à nova agenda de segurança nacional tornou necessário um empreendimento dramático estilo Rashomon para justificar a isenção tributária para fornecedores de energia renovável e os subsídios ao setor de semicondutores.

    Os detalhes finais do processo de conciliação orçamentária explicitaram ainda mais a fraqueza do apoio: dos aumentos de impostos incluídos no acordo dos democratas do Senado de 28 de julho, a oposição conseguiu, na décima segunda hora, isentar os principais lobbies. O Congresso manteve as brechas legislativas que permitem aos fundos de private equity e hedge pagar menos impostos sobre ganhos de capital. As empresas de manufatura e telecomunicações ganharam novas deduções. Os US$ 80 bilhões em dez anos para financiamento do IRS garantidos em agosto de 2022 foram reduzidos para US$ 60 bilhões durante as negociações do teto de gastos nos anos de 2023 e 2024.

    Foi preciso uma pandemia e uma série de revoltas populares em meados de 2020 para abalar a tradicional hegemonia das grandes empresas sobre a liderança do Partido Democrata. Mesmo assim, a resistência política ao incremento e à reforma da economia do cuidado e à renegociação das condições do mercado de trabalho moldou de forma decisiva o que a Bidenomics acabou virando: a adoção de justificativas de segurança nacional para os gastos públicos, a celebração da tecnologia e sua atribuição aos empreendedores, o silenciamento das tentativas de reforma tributária mais progressiva, o retorno da austeridade aos orçamentos municipais e a busca por segurança nas fronteiras. Em suma, a política econômica de Biden se tornou o que Jake Sullivan descreve como “uma base tecno-industrial de ponta, forte e resiliente”, capaz de “inaugurar uma nova era da revolução digital”. Esse projeto, combinado com a intervenção militar no exterior, eclipsou o incipiente projeto do Build Back Better de construção de uma base eleitoral formada por trabalhadores do setor de serviços de baixos salários, sindicatos do setor público e imigrantes. Entre a nova insurgência do Partido Democrata para aumentar os impostos e refazer o estado de bem-estar social, de um lado, e a elite empresarial avessa a impostos e com mentalidade de disciplina trabalhista, de outro, o impasse político forçou um ajuste de compromissos.

    No entanto, uma nova política fiscal emergiu, de fato, do período Biden. Houve um aumento gradual nos gastos federais acima da regra pré-pandêmica. Em novembro de 2010, auge da recessão, durante as negociações do orçamento para o ano fiscal de 2011, o diretor do OMB, Peter Orszag, declarou que cortes na previdência social “ajudariam o governo a estabelecer a credibilidade necessária para resolver os problemas fiscais do ano seguinte”. John Podesta achava que “as reformas [na previdência] poderiam demonstrar claramente aos céticos mercados de dívida que os Estados Unidos estão dispostos a pautar uma questão fiscal politicamente difícil”. Paul Volcker, na época conselheiro de Obama, apoiou os cortes de benefícios propostos como instrumentos de “construção de confiança”.

    Na eleição de 2024, esse tipo de retórica não está presente. Tanto a campanha de Donald Trump quanto a de Kamala Harris são favoráveis a proteger a previdência social e o Medicare, enquanto o orçamento do ano fiscal de 2024, marcado pelas negociações políticas típicas de um ano eleitoral, projeta um déficit de US$ 940 bilhões. A política fiscal está de volta—na forma de uma síntese obscura de cortes de impostos e incentivos que compõem a nova política industrial. A segurança nacional fornece a cola ideológica para as manobras fiscais e expansões do teto da dívida que sustentam essa política fiscal: desde março de 2022, quando a guerra na Ucrânia começou, o Congresso concedeu um adicional de US$ 275 bilhões em sete projetos de lei de financiamento suplementar militar, ao mesmo tempo em que reduziu os orçamentos de programas civis para níveis ainda menores do que aqueles pré-IRA.

    Mas será o crescimento econômico produzido pelo retorno dos crescentes déficits fiscais capaz de reverter meio século de desigualdades? Os maiores ganhos de emprego nos anos Biden foram divididos entre dois tipos de mercados muito diferentes. O setor que desfruta do maior crescimento absoluto no total de empregos em comparação com fevereiro de 2020 é o de serviços profissionais e comerciais. Mais de três quartos dos 1.4 milhão de empregos que a economia adicionou nesse setor em comparação com o período anterior à pandemia foram em serviços profissionais, científicos e técnicos: surpreendentemente, a consultoria é a categoria que lidera o grupo, seguida de programação, análise de sistemas e serviços relacionados e, enfim, dos serviços de pesquisa e desenvolvimento científico. Em seguida, vêm educação privada e serviços médicos (1 milhão de empregos) e transporte e armazenamento (836 mil empregos). Esses últimos são setores de baixos salários com limitados ganhos de produtividade decorrentes da expansão da demanda (embora os salários dessas categorias também estejam aumentando, eles são, em termos de horas, pequenas frações dos custos de mão de obra no setor de altos salários). Vistas em conjunto, essas tendências representam uma continuidade da economia em forma de K.

    As mudanças de caráter industrial e ocupacional do mercado de trabalho produzidas até agora pela Bidenomics refletem o equilíbrio de poder subjacente na economia mista. Dos tão alardeados 800 mil empregos criados no setor de manufatura, 650 mil representam a recuperação para os níveis de fevereiro de 2020. O ganho absoluto da manufatura de 150 mil vagas desde antes da pandemia representa uma taxa de crescimento do emprego inferior à do restante da economia. O setor da manufatura, extremamente produtivo, simplesmente não encontra compradores o suficiente para seus produtos para justificar o aumento da força de trabalho. Mesmo num novo ambiente comercial protecionista, a indústria manufatureira continuou a declinar como parcela do emprego nacional durante os anos Biden, caindo de 8,5% para 8,2% do total da força de trabalho empregada.14

    Parece que a expansão fiscal de 2020-2021 mudou apenas temporariamente os padrões de emprego. Novos investimentos—estimulados por conquistas do IRA, como o Fundo de Redução de Gases de Efeito Estufa, ou a expansão de empréstimos com apoio público do Departamento de Energia—moldarão o surgimento de novos projetos de energia verde em todo o país. Mas o investimento privado oferecido teve o efeito de reproduzir e expandir uma economia dual de serviços de baixos salários sustentada por novas construções, valores especulativamente inflacionados de imóveis e títulos, e um setor rico, mas de baixo emprego, de empresas de manufatura de alta tecnologia e montagem final. Dada a experiência de pleno emprego que precedeu a pandemia e sua continuidade na rápida recuperação, o problema clássico de aumentar os gastos do governo sem provocar pânico nos negócios ou colocar os recursos nas mãos de atores corporativos com interesses próprios permanece intocado. Fazer isso significaria confrontar a maneira como os gastos públicos e os investimentos privados criam, juntos, os padrões predominantes de desigualdade no setor de serviços e na economia do cuidado—exatamente a parte da agenda que não conseguiu encontrar espaço na nova síntese legislativa. Na ausência de qualquer objetivo alternativo que possa unir as coalizões legislativas em busca do que os economistas chamam de crescimento econômico “equilibrado”, o avanço sob o signo da segurança nacional continuará sendo desnivelado, desigual e politicamente restritivo.

    A capacidade de propor estratégias alternativas de manutenção do pleno emprego é condicionada não apenas pela existência prolongada de um mercado de trabalho aquecido, mas também pela garantia de controle do governo. A chapa de Harris-Walz entrou no seu último mês de campanha com pouco controle sobre primeiro elemento e uma tentativa de assegurar o segundo por meio da adoção do conservadorismo da era George W. Bush em relação à política externa e à imigração. Incapaz de sustentar uma política fiscal voltada a reduzir brechas salariais mais rapidamente e assegurar a participação do trabalho na renda nacional, a Bidenomics converteu um programa de aumento de impostos e gastos sociais em créditos fiscais corporativos financiados por déficit para o crescimento direcionado de centros de lucro existentes. Para pagar por isso, os democratas recorreram à burocracia imperialista do Departamento de Estado para arrancar gastos do Tesouro.

    A década de 2020 vem reinventando a “prontidão para o combate militar” como unanimidade bipartidária. “Esses preparativos declaradamente bélicos têm sido, na verdade, preparativos para romper a paz”, escreveu Thorstein Veblen em fevereiro de 1917, um mês antes de Woodrow Wilson enviar soldados americanos para a Europa. “Buscou-se uma solução na preparação de armamentos ainda mais pesados, com a plena consciência de que mais armamento implicaria infalivelmente em uma guerra mais implacável e mais desastrosa—o que resume a estratégia estatal do último meio século”. Por mais que os estrategistas políticos se convençam de que o novo nacionalismo pode garantir o consentimento interno e a cobertura geoeconômica, as correntes pelas quais navegam hoje, no passado, levaram às catástrofes históricas que oportunizaram a invenção das próprias ferramentas da macroeconomia—com o objetivo de entender e moldar conscientemente a política econômica. 

  7. Condicionalidades periféricas

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    Já antes de 2008 era preciso reorganizar os pilares da governança global para acomodar a ascensão da China. Com a crise financeira, somou-se a essa outra exigência: a de remodelar o próprio capitalismo. A pandemia de Covid-19 representou um momento estratégico para avançar nessa dupla tarefa. Uma década depois do anúncio da falência do Lehman Brothers, a emergência sanitária foi ocasião para que parte das elites globais lançassem seu apelo por uma nova ordem mundial pós-neoliberal, apelo que veio acompanhado do chamamento à reestruturação da governança global e, em particular, da sua dimensão econômica: a construção de um “novo Bretton Woods”.

    Em comparação com a crise do liberalismo de cem anos atrás, a crise do neoliberalismo e o chamado à nova ordem atuais não contam com uma alternativa ao capitalismo como aquela representada pela União Soviética. Independentemente da classificação que se faça da China, fato é que, ao contrário da antiga URSS, o país não é epicentro de um movimento internacional amplo e bem implantado em variados Estados e regiões. Apesar de ter seguido o modelo soviético por ao menos três décadas, a partir do final dos anos 1970 a China adotou um caminho próprio e peculiar que lhe permitiu sobreviver ao colapso do bloco soviético sem abrir mão de seu projeto.1 Na particularidade da presente crise, o mundo globalizado depende da China sob muitos aspectos, mas nem por isso o país surge como um modelo imitável ou exportável.  

    A ausência de uma alternativa pós-capitalista implantada e exportável não significa, entretanto, que hoje não estejam presentes, como há cem anos, tensões geopolíticas graves. E não exclui a presença de modelos de capitalismo pretensamente exportáveis e em competição de vida ou morte, como há cem anos foram os capitalismos de tipo fascista ou de tipo New Deal. A possibilidade de que a crise atual leve à ruptura drástica de uma guerra globalizada não está fora da mesa. Daí vem, justamente, o sentido fundamental do chamamento para um “novo Bretton Woods”: reorganizar a governança global para que a passagem a uma ordem pós-neoliberal não cruze com a tragédia e a incerteza de um conflito bélico generalizado.

    O duplo convite para uma reforma do capitalismo e de seu modelo de governança se configura em termos da conversão a um novo credo. O conteúdo desse credo ainda precisa de ser fixado, uma vez que sua direção e amplitude envolvem uma batalha já em curso no interior do establishment neoliberal. Qualquer que seja o resultado da batalha, no entanto, a autorreforma não deixa de ter como objetivo final vir a ser um novo credo, algo que desde a era neoliberal costuma ser chamado de “consenso”. Um “novo consenso”, como afirmou Jake Sullivan em abril de 2023.

    Ainda que pareça paradoxal, o modelo proposto para essa transição dentro da ordem rumo ao pós-neoliberalismo pretende mimetizar o da própria ascensão e consolidação do neoliberalismo, pelo menos segundo um certo senso comum de como isso aconteceu. Nessa versão da história, o neoliberalismo teria surgido a partir da formulação de um novo paradigma econômico, com teoria e preceitos de política econômica próprios e visão própria de sociedade e de geopolítica. Em seguida, o projeto teria passado à fase de implementação, ilustrada tanto pela tomada das instituições quanto nas disputas culturais e eleitorais que levaram ao estabelecimento desse novo paradigma como hegemônico.2

    O raciocínio que sustenta a adaptação contemporânea do projeto passado se estrutura mais ou menos assim: o neoliberalismo despontou em um contexto de Guerra Fria e, no mundo capitalista, conseguiu se consolidar sem uma ruptura bélica generalizada. Analogamente, para alguns países centrais, o atual momento de desglobalização seria caracterizado por uma nova forma de Guerra Fria que, permanecendo fria, permitiria a transição para uma nova ordem pós-neoliberal nos moldes da ascensão do próprio neoliberalismo. 

    Mas a proposta não seria viável se fosse lastreada somente no poder institucional e econômico dessas elites globais. Há pelo menos dois outros trunfos que tornam o projeto plausível, ainda que não se concretize. Primeiro, a irredutibilidade das transformações sociais provocadas pelo neoliberalismo objetivamente inviabilizou um programa que pretenda “voltar atrás”: hoje, a proposta de retomar uma regulação de tipo keynesiano não é mais que voluntarismo político ilusório. Segundo, a consolidação de uma divisão política de vida e morte, resultado da própria crise do neoliberalismo, serve bem a um projeto de transição dentro da ordem porque mobiliza a vitória da extrema direita como ameaça para forçar a moderação de forças mais à esquerda.

    A geopolítica domesticada

    Ao contrário de ser uma regulação meramente econômica e superficial, o neoliberalismo estabeleceu raízes sociais profundas.3 Seu sucesso em desmantelar mecanismos universais de solidariedade exacerbou disputas distributivas, provocando efeitos destrutivos e autodestrutivos. A marcada divisão política que se manifesta em diversas realidades domésticas atualmente é resultado desse processo. Hoje, nos países ainda democráticos, essa divisão se dá entre uma direita sem medo de se aliar à extrema direita e um novo progressismo que pretende reformar o neoliberalismo, afastando-se de suas versões mais extremistas. Trata-se de uma autêntica divisão, e não de mera “polarização”, em que, segundo a metáfora, os dois lados pertenceriam a um mesmo “campo magnético”.4 Os campos não apenas são distintos, mas inconciliáveis. São dois “projetos de mundo”.

    No ritmo das analogias, seria possível sustentar que divisão semelhante se formou cem anos atrás: não havia terreno comum entre o capitalismo do New Deal, o nazismo e o fascismo e o socialismo soviético. Mas, para além da ausência de uma alternativa ao capitalismo, a situação atual é diferente porque os dois campos constituídos partilham, sim, um terreno comum. E esse não é o terreno da democracia, ou do que ela deveria ser, mesmo que nos países ainda democráticos de hoje, diferente do que aconteceu há cem anos, a extrema direita se apresente como campeã da democracia. O terreno partilhado é o próprio neoliberalismo e sua herança. O objeto principal das disputas é o que preservar e o que descartar do período neoliberal. 

    Cada um à sua maneira, ambos os representantes da divisão atual são herdeiros legítimos do neoliberalismo. São dois lados da mesma moeda. Os termos em que Gary Gerstle5 descreveu a configuração da disputa nos Estados Unidos aclaram os detalhes do processo sucessório: um dos lados lado é herdeiro do “neovitorianismo” (o neoliberalismo conservador de Ronald Reagan na década de 1980), o outro é herdeiro do “cosmopolitismo” (o neoliberalismo progressista consolidado a partir da gestão de Bill Clinton nos anos 1990). A diferença da nova geração da divisão é que em muitos lugares a direita sem medo, produto do neovitorianismo, é controlada pela extrema direita com a violência explícita e brutal que a caracteriza. O novo progressismo, por sua vez, é hoje o próprio establishment em boa parte dos países ainda democráticos. 

    A ameaça autoritária da direita sem medo, se por um lado permite ao novo progressismo a manutenção da base que o sustenta como establishment, por outro, impõe a preservação do máximo possível de quadros antes devotados à implantação de programas neoliberais. É justamente do establishment que vem o chamamento para um “novo Bretton Woods”, outra peculiaridade da situação atual: para o novo progressismo, não há necessidade do movimento custoso de tomar as instituições. Prosseguindo nas analogias, o contrafactual histórico para uma reforma do neoliberalismo desde dentro seria uma ordem keynesiana que tivesse conseguido se autorreformar de modo a evitar ser suplantada pela ordem neoliberal “antissistema”. Na disputa pelo espólio do neoliberalismo, é a direita sem medo quem se apresenta como “antissistema” e pretende tomar as instituições. O que lembra que o apelo para um novo Bretton Woods, embora feito pelo campo do novo progressismo, envolve muito mais do que a formação de blocos entre países ainda democráticos. Para ser bem-sucedido, o convite tem que ser estendido também às autocracias consolidadas e aos países com governo de partido único. E aos países em vias de se tornarem uma coisa ou outra.

    A grande divisão entre a direita sem medo e o novo progressismo organiza os espaços políticos nacionais em países ainda democráticos, mas não tem contrapartida em alinhamentos internacionais. Quando governos do novo progressismo adotam políticas de comércio exterior como o friendshoring, a “amizade” geopolítica não demanda de seus parceiros uma defesa qualquer da democracia. O pano de fundo da disputa pela nova ordem é o descasamento entre embates nacionais e globais.

    Em boa medida, esse descasamento está na base da dificuldade em negociar novos padrões de governança global. Como, do lado dos países ainda democráticos, a disputa de vida ou morte que os divide prossegue, como não há alinhamentos geopolíticos consolidados entre esses países nem mesmo no Norte Global, também uma interlocução eficaz para alcançar acordos globais fica adiada por tempo indeterminado. E nada indica até agora que essa disputa entre a direita sem medo e o novo progressismo irá se resolver em um curto período de tempo.

    Nem por isso devem ser abandonadas as tentativas de negociação em curso. Alcançar novos padrões de governança global pode significar a diferença entre a guerra e a paz. E, para muitos países do Sul Global, um “novo Bretton Woods” pode significar também certo alívio de suas dívidas e algum financiamento para a obtenção das tecnologias necessárias para uma transição energética efetiva. 

    O problema é que nem mesmo isso, que já é bastante otimista, é suficiente. É preciso lembrar que, nos termos presentes, o horizonte da nova ordem em negociação não é o de uma autêntica transição ecológica e socialmente justa, ainda que as desigualdades mundiais sejam insustentáveis e o meio ambiente esteja à beira do colapso. Por mais que o discurso corrente da reorganização geopolítica e geoeconômica gire em torno dessa premissa, os três países que mais emitem carbono no planeta depõem em sentido contrário: os Estados Unidos de Joe Biden aumentaram a exploração de petróleo e pisaram fundo no acelerador do fracking, a China avisou que só inverterá sua curva de emissões, talvez, depois de 2030, adiando a neutralidade das emissões até, ao menos, 2060, e a Índia não demorou em se pronunciar no mesmo sentido. 

    Mesmo que os esforços de reforma de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio tenham sucesso em algum momento, o que está em jogo é o estabelecimento das bases tecnológicas e produtivas para uma transição meramente energética. E, ainda que limitada a esses termos, é uma transição que só deverá se completar em três ou quatro décadas, caso efetivamente aconteça.

    Para os países do Sul Global, de uma forma ou de outra, a conta não sairá barata. A reforma pode implicar exigências proibitivas de alinhamento geopolítico, mesmo que os países ainda democráticos do Sul não possam pagar por isso. O preço será especialmente alto se o “novo consenso” não ampliar sua margem de ação para enfrentar a pobreza e as desigualdades. Para muitos desses países, é um preço que pode custar a saída da armadilha neoextrativista6 que sufoca sua autonomia doméstica e constrange sua inserção internacional. 

    A política doméstica globalizada

    Os países ainda democráticos do Sul Global não podem se dar ao luxo da desvinculação econômica de parceiros autocratas ou de partido único. No movimento de desglobalização atual, o desacoplamento é limitado às nações que podem pagar por ele. O friendshoring como política de comércio e segurança nacional está reservado a quem pode escolher seus amigos. 

    A globalização do princípio das “vantagens comparativas” na divisão do trabalho reprimarizou e desindustrializou países de economia dependente. Na América Latina, por exemplo, o resultado foi a transformação da maior parte deles em sociedades e economias neoextrativistas,7 ainda que uma série de governos de esquerda tenha formulado programas contra o neoliberalismo. Não há razão para atribuir intenções neoliberais a governos que as rejeitam explicitamente. Mas é necessário distinguir suas pretensões das práticas que, diante do caráter inescapável do neoliberalismo como regulação global do capitalismo, foram e são obrigados a adotar para viabilizar seus projetos políticos. 

    A redução da política à divisão entre a direita sem medo e o novo progressismo não deixou espaço para terceiras vias, no discurso ou na prática. Hoje, tanto em termos nacionais quanto globais, governos de esquerda ou governos simplesmente progressistas integram o campo do novo progressismo. Como ordem global, o neoliberalismo suplantou intenções domésticas e reestabeleceu as margens de ação disponíveis aos países periféricos. “Resistir” ao neoliberalismo significa, nesse caso, explorar brechas de ação em um quadro geral pouco elástico. Ou pelo menos assim parece quando os efeitos da ordem neoliberal em muitos países periféricos são comparados com aqueles de formas anteriores de regulação do capitalismo. 

    Na América Latina, após o final da Segunda Guerra Mundial, consolidou-se uma estratégia de desenvolvimento que aspirava a mais autonomia e autossuficiência produtiva, cujo emblema foi a chamada “industrialização por substituição de importações”. Em suas múltiplas configurações, o princípio da substituição de importações foi protagonista de diversos projetos nacionais voltados à criação de um mercado consumidor interno relevante e à redução ou superação da dependência típica de economias fundadas na exportação de bens primários.

    Com o assentamento da ordem neoliberal, a globalização do princípio das “vantagens comparativas” esgotou a substituição de importações como projeto nacional. As ditas “vantagens” da América Latina levaram à exploração superintensiva de minérios e produtos agropecuários, que suplantaram em grande medida o que havia de participação industrial complexa nos PIBs nacionais. Os países latino-americanos foram progressivamente confinados na armadilha neoextrativista. 

    Mas, ainda que essa armadilha reduza ao mínimo a margem de ação dos países da região, não significa que a saída seja voltar ao projeto desenvolvimentista anterior. O retorno não é possível e nem desejável. As condições materiais não estão mais postas, e os projetos nacionais industrializantes do passado foram marcados também pelo autoritarismo, pela destruição ambiental e pelo reforço das desigualdades que não devem servir de modelo para ambições contemporâneas.

    Por outro lado, hoje, como ontem, a tarefa é buscar referências para o desenvolvimento doméstico e a inserção internacional que permitam o mais amplo exercício de autonomia possível. Dessa vez, sem que isso aumente desigualdades ou imponha barreiras à transição ecológica. E sem que ameace a democracia onde for possível mantê-la ou instaurá-la. 

    Para isso, é preciso que as quatro décadas de armadilha neoextrativista criadas pelo neoliberalismo não sejam reduzidas a um problema econômico, mas entendidas em sua multidimensionalidade. O próprio neoliberalismo é um autêntico modelo de sociedade, não somente um conjunto de preceitos econômicos – sua manifestação na periferia do mundo globalizado deve ser lida através dessa mesma lente. Isso vale, ainda, para o atual chamamento à transição para o pós-neoliberalismo: os termos em que a nova ordem é planejada e as diferentes tendências de desenvolvimento que implicará ao redor do mundo precisam ser esquadrinhados em toda sua complexidade. 

    Reconhecer a especificidade da situação atual envolve também entender que a armadilha neoextrativista não se arma da mesma maneira em todos os lugares. Identificar as variadas configurações de escombros que a globalização das “vantagens comparativas” deixou pelo mundo é, na verdade, a primeira tarefa teórica no entendimento da posição do Sul Global no declínio da ordem neoliberal.

    No caso de muitos países ainda democráticos do Sul, a dimensão política da armadilha presente se manifesta nos termos da divisão fundamental entre a direita sem medo e o novo progressismo. No Brasil, por exemplo, a armadilha neoextrativista aprisiona o país entre o colapso climático global e a possibilidade de conter a extrema direita em território nacional. A exploração predatória de recursos naturais sem qualquer reserva ou obstáculo faz parte do programa da extrema direita. O abandono do extrativismo predatório rumo a uma sociedade de baixo carbono, por outro lado, faz parte do programa do novo progressismo. Mas, se quiser continuar a derrotar a direita sem medo em eleições e a manter seu programa de combate a desigualdades, também o novo progressismo não poderá abrir mão do neoextrativismo. Assim se arma a armadilha neoextrativista. 

    O que vem depois do neoliberalismo

    Nos termos em que a transição dentro da ordem se apresenta hoje, duas tendências de desenvolvimento parecem estar em jogo a médio e longo prazo. De um lado, os movimentos de desglobalização em curso oferecem uma oportunidade única para que muitos países do Sul Global mudem os atuais padrões de dependência no sentido de aumentar sua autonomia e margem de ação. Este processo levaria tempo e não implicaria uma dissociação completa de parceiros comerciais tradicionais, mas poderia impactar a correlação de forças em bases nacionais e permitir a sobrevivência de alguma democracia, desafiando as diversas configurações da armadilha neoextrativista. De outro lado, é possível que os países em armadilha neoextrativista fiquem presos ao neoliberalismo, e que neoliberalismo e pós-neoliberalismo coexistam em condições desiguais durante muito tempo, estratificados de acordo com o poder e a liberdade relativos de cada país. Talvez a própria transição energética tome o caminho arriscado de acontecer em ritmo desigual entre os países do Norte e do Sul.8 Sem mencionar a convivência provável entre ordens neoliberais ainda democráticas e autoritárias e entre ordens pós-neoliberais democráticas e autoritárias. 

    O imperativo categórico de evitar soluções bélicas para conflitos internacionais a qualquer custo se confunde, nos países ainda democráticos, com a defesa do novo progressismo. Na atual correlação de forças, somente uma vitória generalizada do novo progressismo poderá preservar alguma democracia em solo nacional e permitir a criação de blocos geopolíticos capazes de negociar uma coexistência o quanto possível pacífica. A manutenção mais ou menos generalizada e duradoura da paz, por sua vez, é condição inescapável para a eficácia de qualquer acordo global voltado a enfrentar a urgência ambiental. 

    Trata-se de um horizonte de ação extremamente rebaixado. Em países do Norte Global, a camisa de força política do novo progressismo certamente constrange em alguma medida os trânsfugas neoliberais que abriga, mas constrange ainda mais o seu campo esquerdo. Em países ainda democráticos do Sul, o constrangimento da esquerda dentro do novo progressismo é agravado pela limitação própria de sua posição dependente e a consequente diminuta margem de ação no terreno global.

    Os blocos geopolíticos do futuro não serão homogêneos, mas caracterizados por grandes assimetrias de poder e relações de subordinação entre quem quer que venha a compô-los. Nesse cenário, países ainda democráticos do Sul Global podem e devem negociar os termos da sua participação com países autocráticos e de regime de partido único. Interessa a estes manter vínculos com um possível novo bloco geopolítico progressista, enquanto àqueles não interessa “desacoplar” suas economias de países que não se alinharem a esse bloco.

    O constrangimento imposto aos países do Sul, ainda que algum alívio internacional chegue e que uma transição – ao menos – energética tenha início, não se limita à dependência de financiamento externo e transferência e produção autônoma de tecnologia. Mesmo que acessem determinado reforço financeiro, estarão desprovidos de ferramentas teóricas e práticas para explorar o quanto for possível a margem de ação que o novo cenário pode abrir: tão desprovidos quanto estavam há quatro décadas, quando o neoliberalismo ascendeu. E as coisas tendem a continuar assim, ao menos que a luta por uma reforma efetiva da governança global venha acompanhada de um esforço para produzir essas ferramentas. 

    É possível que um “novo Bretton Woods” não aconteça, como é possível que a armadilha neoextrativista permaneça armada ainda por um longo tempo. Mas há algo que o Sul Global pode fazer mesmo assim: já que as analogias estão na moda, que o convite para um novo Bretton Woods venha acompanhado do chamamento para uma nova teoria da dependência.

    Nos anos 1960, a teoria da dependência buscou compreender a posição específica que países em desenvolvimento ocupavam na economia e na política mundial. No caso da América Latina, esteve intimamente associada ao princípio da industrialização por substituição de importações e ao “estruturalismo” típico do pensamento econômico da Comissão Econômica para a América Latina, a Cepal, posteriormente ampliada para incluir o Caribe.

    Um caminho para produzir as ferramentas necessárias ao momento atual é renovar a teoria da dependência – caminho que pode partir do desenvolvimento de uma nova teoria econômica, mas não pode se reduzir a ela se quiser compreender realmente o neoliberalismo e discernir com precisão as tendências de uma reconfiguração pós-neoliberal do capitalismo. As ferramentas teóricas e práticas que o momento atual exige não podem ser produzidas sem um esforço interdisciplinar e colaborativo.9 E esse esforço não pode se limitar ao trabalho de um único grupo de pesquisa, nem de uma única região do mundo. Igualmente, não pode implicar a adaptação de formulações caducas a circunstâncias atuais. Para começar, deve levar em conta não apenas as críticas feitas à teoria da dependência em sua versão original, mas as autocríticas registradas por seus teóricos, notadamente a partir da década de 1980. 

    No momento das negociações de Bretton Woods, a possibilidade da industrialização por substituição de importações e a teoria da dependência não existiam. Hoje, da mesma forma, faltam instrumentos para que o Sul Global negocie sua participação num eventual novo modelo de governança global. Na busca de uma referência histórica para semelhante ação colaborativa, pode ser que o movimento de 1974, quando o esforço conjunto de países em desenvolvimento culminou nas resoluções da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), seja mais interessante para o Sul do que 1944.  À época da NOEI, a teoria da dependência já era uma ferramenta disponível e foi efetivamente utilizada nas propostas apresentadas à ONU. Mesmo assim, é preciso lembrar que as formulações de 1974 foram, já cinquenta anos atrás, tardias: seu arcabouço de tipo keynesiano era inviável para os países periféricos de então, como parece ser para o mundo globalizado de agora.  

    Num presente marcado pela superposição de crises e fragilidades, formular os parâmetros de interpretação e de ação que atendam às particularidades de diferentes geografias do mundo globalizado é tarefa inadiável. Pode ser que um esforço mundial para produzir esses instrumentos demore a tomar corpo, como ocorreu tanto nas negociações de Bretton Woods quanto na elaboração das propostas da NOEI. Mas, por maior que seja a distância entre a timidez da ação e a ostensividade da urgência, por intimidante que seja a magnitude do esforço de encontrar respostas adequadas a tantas perguntas simultâneas, proibitivo de fato é não fazer nada.

    A primeira versão deste texto foi publicado na The Ideas Letter (18 de abril de 2024) com o título “A New Dependency Theory Moment”. Uma versão reduzida e modificada foi publicada com o título “O que vem depois do neoliberalismo? A armadilha neoextrativista do Sul Global pode ser uma oportunidade para renovar a teoria da dependência” pela revista piauí (n. 213, junho de 2024).







  8. Junho de 2013 e os industriais brasileiros

    Comentários desativados em Junho de 2013 e os industriais brasileiros

    A elite econômica de um país possui significativo poder político, ainda que não decida diretamente pelo voto uma eleição. Por concentrar o poder de decisão de investimentos, criar crises de confiança e desacelerar a economia, a elite tem papel relevante na estabilidade de governos e, no limite, na normalidade das instituições democráticas.1 Assim, embora sejam core constituency de partidos conservadores,2 os partidos progressistas que chegam ao poder não podem se dar ao luxo de ignorá-la—nem as demandas, muito menos as reações a políticas redistributivas e econômicas.

    Um caso ilustrativo dessa dinâmica é a relação entre o empresário industrial brasileiro e os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). O PT chegou à presidência brasileira pela primeira vez em 2003, contando com o  apoio público de parte da elite industrial nacional à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.3 A articulação política entre governo petista, empresariado e trabalhadores organizados foi definida como uma “coalizão produtivista”,4 “frente neodesenvolvimentista”5 ou até “aliança dos perdedores do neoliberalismo”.6 Enquanto Lula (2003-2010) equilibrou os interesses industriais e financeiros – com relativa prioridade aos últimos -, sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2016) priorizou os primeiros. O governo Dilma I (2011-2014) tentou redobrar a aposta desenvolvimentista, lançando a Nova Matriz Econômica, um pacote de medidas de incentivo à indústria, o Plano Brasil Maior (PBM) e linhas de crédito pelo BNDES, além de reduzir a taxa de juros e desvalorizar o real, dentre outras medidas.

    Apesar do aparente maior alinhamento entre Dilma e industriais, o empresariado do setor se mobilizou enfaticamente pelo impeachment em 2016. A causa dessa inflexão no comportamento político empresarial é um tema ainda em aberto entre os analistas da política brasileira. Enquanto alguns enfatizam a crise econômica, outras dão maior destaque às tensões de classe agudizadas. Ademais, não está claro se os industriais lideraram a onda anti-petista ou apenas a seguiram, nem qual a extensão de sua unidade em torno do impeachment.7

    Este texto visa contribuir com essa discussão ainda em curso. Argumento que a coalizão entre empresários e PT era uma aliança conveniente para os interesses de curto prazo dos industriais com os governos petistas, mas não ideológica com o partido. Assim, não era politicamente estável e só foi possível em contextos de altas taxas de crescimento econômico e alta aprovação popular dos presidentes petistas. A desaceleração econômica e a crise de popularidade gerada pelos protestos de junho de 2013 permitiram que os industriais se reorganizassem enquanto oposição, demonstrando a fragilidade dessa aliança e jogando luz sobre as contradições entre os interesses de longo-prazo dos industriais e o projeto petista. Embora não tratemos em detalhes, o apoio industrial ao impeachment é outro momento de explicitação dessa dinâmica, hoje ainda de fundamental importância por estarmos diante de tentativas renovadas de construção das bases políticas e sociais do terceiro governo Lula entre setores das elites empresariais e trabalhadores.

    Apoio contextual e tensões latentes sob os governos Lula

    A aliança que deu base ao lulismo no início dos anos 2000 é melhor entendida como uma resposta às condições econômicas e políticas especialmente hostis da década de 1990. Historicamente dependente do Estado, a indústria brasileira gozava até então de certo monopólio sobre o mercado interno. A abertura econômica, a política de estabilização monetária e as reformas neoliberais resultaram em desindustrialização abrupta. Os governos neoliberais, voltados majoritariamente aos interesses do setor financeiro, ignoravam os pedidos de socorro da indústria nacional.8 Em decadência econômica e política, parte da elite industrial foi atraída pelo projeto de desenvolvimento apresentado pelo PT.9

    Uma vez eleito, Lula acomodou os interesses do setor industrial nas políticas microeconômicas e, em menor grau, na proteção comercial. No entanto, o tripé macroeconômico—herança dos governos Fernando Henrique Cardoso— foi mantido, a fim de atender ao mercado financeiro e sob o argumento de garantir a estabilidade econômica.10 A condução macroeconômica voltada ao controle da inflação em detrimento do desenvolvimento nacional foi alvo de críticas pelo empresariado ainda no primeiro mandato de Lula.11

    Embora durante o segundo governo Lula o boom dos preços das commodities tenha permitido maior liberdade fiscal, as políticas pró-indústria e o aquecimento da demanda nacional não foram suficientes para reverter a desindustrialização em curso. Não obstante, o alto crescimento econômico permitiu que a indústria crescesse em termos absolutos, colocando panos quentes nas tensões estruturais, que seriam expostas nos mandatos da sucessora.

    A promessa não consumada da Nova Matriz Econômica

    Dilma Rousseff assumiu o governo na virada de um ciclo econômico, com os aftershocks da crise de 2008 desaquecendo a economia global e aumentando a pressão por austeridade fiscal.12 Em resposta a esse novo contexto, a presidenta lançou a Nova Matriz Econômica (NME), que visava brecar a desindustrialização em curso e, com isso, gerar crescimento econômico, renda e emprego.13

    A reação empresarial à NME pode ser dividida em três momentos. Inicialmente, entre 2011 e meados de 2012, o empresariado mostrava-se extremamente otimista com a nova política econômica, demandando seu aprofundamento. O segundo momento, de meados de 2012 ao início de 2013, é marcado, de um lado, pelo otimismo em relação à macroeconomia, e, por outro lado, pela impaciência com a lentidão na implementação das políticas anunciadas. A preocupação era de que as medidas ficassem mais no discurso do que na prática. Os líderes empresariais já ponderavam que as ações eram “paliativas” e de “curto prazo” e, apesar de bem-vindas, não seriam suficientes para corrigir a concorrência “predatória” dos países asiáticos — em especial a China — no mercado local. 

    A partir do segundo semestre de 2013, no entanto, o empresariado passou a exigir inflexões significativas na política econômica, julgando a NME como uma das culpadas pela crise econômica. O que explica essa mudança? 

    Primeiro, o pano de fundo econômico e a pressão do setor financeiro. O impacto da crise no solo nacional começou a dar sinais mais claros já no início de 2013, com o fim do boom das commodities e o desaquecimento da demanda. Simultaneamente, a tentativa de mexer no tripé macroeconômico foi duramente repreendida pelo mercado financeiro, que já ameaçava uma crise com a volta da temida inflação, e pressionava por medidas contracionistas.14

    Em segundo lugar, neste novo cenário, o próprio governo recuou tanto nas medidas micro quanto nas macroeconômicas. Políticas que estavam em vias de serem implementadas foram congeladas e medidas que já vigoravam corriam risco de reversão.15 Isto é, a base que sustentava a satisfação industrial — a saber, o avanço das políticas anunciadas e mudanças no tripé macroeconômico — estava sendo corroída. 

    Enquanto isso, a percepção dos industriais era de que o mesmo não ocorreria para as políticas trabalhistas – daí o já mencionado acirramento dos conflitos de classe. O governo mantinha seu compromisso com o reajuste do salário-mínimo e resistia, até então, a cortar gastos com políticas sociais. A avaliação consensual entre os líderes empresariais era de que a produtividade industrial não estava mais acompanhando o aumento do custo trabalhista, o que significava que a iminente crise econômica seria paga por eles. O líder empresarial Fernando Pimentel (Abit) analisava que, se o governo não controlasse a inflação pelo esfriamento da demanda, o empresariado o faria através do desemprego.16

    Frente à desaceleração econômica, o equilíbrio tênue da coalizão produtivista entre os interesses conflitantes dos trabalhadores e empresários tornou-se difícil de ser mantido. Os industriais perderam a confiança na capacidade do governo em atender a suas demandas setoriais e em reverter a desaceleração econômica nacional.17 Enquanto pressionavam pela austeridade fiscal e pelas reformas neoliberais – tributária, previdenciária e trabalhista, além de uma redução do tamanho e da função do Estado brasileiro—, o governo resistiu por ao menos mais um ano.18 Assim, os empresários industriais não se viam mais alinhados com as prioridades da agenda governamental justamente no contexto econômico mais desafiador.

    Junho de 2013 como janela de oportunidade política

    Já o timing da oposição industrial é melhor explicado pelo contexto político. Mesmo com sinais de insatisfação no início de 2013, o empresariado parecia manter a fachada de apoio ao governo. Afinal, Dilma era extremamente popular, com cerca de 65% de aprovação até o primeiro semestre de 2013. Os empresários não tinham razões, portanto, para se indispor com um governo que tinha tudo para se reeleger no ano seguinte.

    O cenário se altera profundamente com os grandes protestos de junho daquele ano, que levaram milhares de brasileiros às ruas. Embora tenha se originado por pautas progressistas, o saldo das manifestações foi o fortalecimento da extrema-direita, das bandeiras anti-política, do antipetistismo e um desejo generalizado de “mudança” na política.19 Os protestos empurraram o governo Dilma “no fluxo da desmoralização e descrédito a que estavam submetidos os governos em todos os países, sequela da crise econômica iniciada em 2008”.20 A aprovação da presidenta caiu, em questão de semanas, para 30%. Essa alteração radical da cena política brasileira possibilitou um alinhamento entre a preferência eleitoral industrial com o esperado resultado das urnas nas eleições presidenciais de 2014 (Fig. 1).

    Conforme ilustra a figura acima, a preferência empresarial seguia a tendência oposta da expectativa da escolha dos eleitores até o início de 2013. Isto é, embora Dilma não fosse a candidata preferida dos empresários, era alta a expectativa de que a presidenta seria reeleita – e é essa expectativa que rege a aparente manutenção do apoio industrial até junho de 2013. Contudo, após os protestos, os empresários calcularam que as expectativas se alinhariam à sua preferência nas eleições de 2014, apostando na vitória do candidato de Aécio Neves (PSDB) contra Dilma. O então presidente do Goldman Sachs no Brasil sintetizou a harmonia entre as ruas e o setor privado: “Tanto os investidores quanto a população expressaram, de maneiras diferentes [a população, com os protestos; o setor privado com a perda de confiança], coisas parecidas, que têm a ver com a perda de conectividade entre a política e os anseios do investidor e da população”.21

    Com a expectativa de que Dilma não se reelegesse, os industriais romperam publicamente com a coalizão governista e se juntaram à oposição ao governo. A partir de então, a desaprovação industrial ao governo se torna crescente e o discurso empresarial se torna majoritariamente crítico ao governo e sua política econômica.22 Conforme sintetiza aquele mesmo líder industrial, Fernando Pimentel, em entrevista à autora, “essas manifestações vieram no intuito de resolver o problema, uma situação que vinha se complicando. Então [eu] acho que elas fizeram parte da solução para que a gente superasse aquele problema”.23

    Qualitativamente, o diagnóstico do principal obstáculo ao crescimento industrial também se alterou. O avanço dos produtos importados no mercado nacional e a crise internacional deixaram de ser apontados como a fonte das dificuldades industriais, e o principal problema passou a ser uma “crise nacional”, causada pelo modelo Estado brasileiro, e consequentemente, pela sua força governante. 

    Em síntese, os empresários defendiam que o partido no poder era responsável por um Estado “inchado e ineficiente”. Primeiro, porque o PT adotava uma política econômica considerada “atrasada” e “ideológica”, que afundava o país na crise. Segundo, porque o PT formava uma “elite política” corrupta, que criava rombos nos cofres públicos. Assim, no discurso empresarial, a crise econômica se ligava diretamente à crise política e ética. A solução, seguindo a lógica da argumentação, seria a saída do PT da presidência e a transformação simultânea do Estado e da economia. Ao invés de gastos sociais “excessivos”, um aparato estatal “aparelhado” e “parasita”, e políticas econômicas “curto-prazistas”, o Estado deveria “fechar a torneira” dos gastos públicos e limitar sua atividade para a condução macroeconômica. Além disso, a prioridade deveria ser de “modernizar” a Constituição de 1988, que previa direitos sociais e trabalhistas “não condizentes” com a concorrência econômica atual. Isto é, defendem como solução a aprovação das ditas reformas estruturais: “flexibilizar” os direitos trabalhistas, reformar o regime previdenciário, reduzir os impostos sobre a cadeia de valor da indústria.24 Não à toa, tanto as críticas quanto as soluções são compatíveis com a oposição ao governo nas ruas — como os movimentos Brasil Livre, Vem pra Rua e Revoltados Online — e partidária — em especial, do candidato Aécio Neves—, ambos fortalecidos pelas manifestações de junho.25

    Implicações no momento presente

    O timing da virada à oposição e o conteúdo das críticas expõem a fragilidade da aliança entre empresariado e governos petistas. De fato, as políticas micro atingiram positivamente a indústria nacional durante os governos petistas, embora não tenham sido suficientes para reverter a desindustrialização em curso. Conforme frequentemente comentado pelos industriais e confirmado pelo desempenho do setor, as medidas à indústria eram pontuais e compensatórias. Com exceção do breve ensaio de redução dos spreads bancários, as políticas econômicas não alteravam o modelo de acumulação e, portanto, não reposicionavam a posição decadente da indústria nacional — em especial a voltada ao mercado interno— na cadeia global de valores e na participação econômica nacional. Assim, há um desalinhamento estrutural entre os governos petistas – seu modelo de Estado mais presente, seu maior comprometimento com os direitos trabalhistas e políticas redistributivas, o modelo de acumulação do período—e os interesses do empresariado industrial nacional, o que dificulta um alinhamento de longo prazo, ideológico, da chamada coalizão produtivista. 

    Em momento de desaceleração econômica, em que o governo Dilma diminui o ritmo de implementação de políticas micro e atendimento das demandas industriais, e a política macro não estava mais alinhada com a expectativa empresarial, a motivação material imediata e pontual de apoio ao governo se corrói. Quando apresentada a oportunidade política—de fortalecimento da oposição e queda na competitividade eleitoral do PT—os industriais abandonam o barco. O ápice do conflito se materializa no protagonismo industrial no movimento pró-impeachment, no segundo governo Dilma, mas as fundamentações da oposição ao PT já estavam presentes desde 2013 no discurso industrial.

    Essa discussão se torna ainda mais relevante quando observamos uma reaproximação dos industriais com o PT a partir das eleições de 2022, explicitada pela carta em defesa da democracia lançada pela Fiesp. Embora tivessem em sua maioria apoiado Bolsonaro em 2018, o governo bolsonarista atuou de forma mais independente, marginalizando, a partir de 2020, parte significativa do empresariado. Ademais, a condução política do país na pandemia aprofundou a crise econômica. Em resposta, parte do empresariado apoiou Lula na disputa eleitoral motivado por esses fatores – embora embalado em um discurso pró-democracia. 

    Neste novo governo Lula, assistimos quase uma reprise da dinâmica pré-junho de 2013 entre governo petista e industriais, com o lançamento da Nova Indústria Brasil, a retomada do Minha Casa Minha Vida e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Contudo, a manutenção dessa aliança parece ainda mais delicada atualmente, já que a margem de manobra econômica e política de Lula III é bastante reduzida. Primeiro, o apoio a Lula não foi consensual.26 Segundo, a economia está há quase uma década desaquecida e a autonomia orçamentária do governo é ainda mais reduzida devido à alta pressão fiscal e monetária – agora ainda mais forte sob um Banco Central independente e pelas restrições legais implementadas nos governos pós-golpe. Eleito com a promessa de retomar e fortalecer as políticas redistributivas, Lula tem de fazer escolhas difíceis sobre os gastos públicos, com potencial aprofundamento dos conflitos de classe. Por fim, a base parlamentar do governo é reduzida, o Congresso está mais conservador, e a oposição de extrema-direita prova-se mais competitiva do que a do PSDB dos anos 2010. Resta saber se o apoio de parte da elite empresarial é novamente circunstancial e dependente da aprovação popular do governo, ou se a ameaça à democracia representada pela oposição bolsonarista produziu maior solidez na nova aliança lulista. 

    Esse artigo apresenta de forma sintetizada parte dos principais argumentos desenvolvidos no terceiro capítulo da dissertação de mestrado da autora, intitulada: Desatando os Nós: Industriais Têxteis no Governo Dilma (Universidade de São Paulo, 2023).

  9. Levar o dinheiro a sério

    Comentários desativados em Levar o dinheiro a sério

    A relação entre o mundo do dinheiro e o mundo social e material concreto é questão presente de longa data, ainda que nem sempre de modo explícito, na história do pensamento econômico. Somos rodeados de preços e pagamentos em dinheiro. Mas eles têm vida própria independente e distinta dos objetos aos quais estão vinculados? As coisas que acontecem no mundo do dinheiro podem afetar o mundo real?

    A ideia de que a resposta a essas perguntas é ou deveria ser negativa é um dos eixos centrais dessa história. O dinheiro é ou deveria ser neutro—um registro passivo e uma medida para fatos sociais reais que existem independentemente dele. O uso da palavra real em economia como oposto de nominal e monetário, bem como em seu sentido ontológico cotidiano, não constitui apenas uma terminologia confusa: reflete um compromisso intelectual profundamente arraigado.

    Já em 1752, podíamos ler a definição de David Hume:

    O dinheiro não é mais que uma representação do trabalho e das commodities. […] Onde a moeda estiver disponível em maior profusão, sendo uma quantidade maior dela exigida para representar a mesma quantidade de bens, ela não poderá ter efeito algum, nem bom nem ruim.

    Na virada para o século XXI, escutamos a mesma coisa sendo dita por Lawrence Meyer, membro do Federal Open Market Committee: “A política monetária não é capaz de influenciar variáveis reais–como produção e emprego”. Para Meyer, o dinheiro afeta somente “a inflação a longo prazo. De imediato, isso põe a estabilidade de preços […] como o objetivo de longo prazo direto, inequívoco e singular da política monetária”.

    Comum a essas considerações é a perspectiva de que quantidades de dinheiro e pagamentos em dinheiro não passam de abreviaturas para as características e para o uso de objetos materiais concretos. São fenômenos neutros—meras designações, incapazes de mudar aspectos estruturais. Se o dinheiro for neutro, mudanças na oferta ou disponibilidade de dinheiro afetarão somente o nível dos preços, deixando inalterados os preços relativos e a produção.

    Há também, claro, um longo histórico de argumentos a favor da posição contrária—de que o dinheiro é autônomo, que dinheiro e crédito são forças ativas que conferem forma ao mundo concreto de produção e troca, que não existe valor subjacente a que se referem preços em dinheiro. A maioria dessas perspectivas contrárias, no entanto, ocupam posições marginais na teoria econômica, ainda que tenham exercido influência em outros domínios.

    A grande exceção, naturalmente, é Keynes. Há quem argumente, de fato, que o fator revolucionário da chamada revolução keynesiana foi precisamente o rompimento com a ortodoxia nessa questão. No período anterior à Teoria geral, Keynes explicou que a diferença entre a ortodoxia econômica e a nova teoria que buscava desenvolver, fundamentalmente, era a diferença entre a visão dominante da economia em termos do que ele chamou de “troca real” e uma visão alternativa que ele descreveu como “produção monetária”.

    A teoria ortodoxa (nos tempos de Keynes tanto quanto nos dias atuais) tomou como ponto de partida uma economia na qual commodities eram trocadas por outras commodities, sendo o dinheiro introduzido em um estágio posterior, se introduzido, sem alterar as compensações materiais fundamentais nas quais se baseava a troca. A teoria de Keynes, em contraposição, descreveria uma economia em que o dinheiro não era neutro e na qual a organização da produção não poderia ser entendida em termos não monetários. Em suas palavras, seria a teoria de “uma economia na qual o dinheiro desempenha um papel próprio e afeta motivações e decisões […] de tal modo que não há como predizer o curso dos eventos, nem a longo nem a curto prazo, sem que se conheça o comportamento do dinheiro”.

    Ainda que rejeitar a ideia de que o dinheiro é neutro possa parecer fácil, é muito mais difícil entender como o mundo do dinheiro e a realidade social concreta estão conectados. No livro que publicarei com Arjun Jayadev, exploramos a importância do dinheiro em quatro cenários: na determinação da taxa de juros; nos índices de preços e “quantidades reais”; nas finanças e na governança corporativas; e em relação a dívida e capital. A seguir, teço considerações sobre o primeiro cenário.

    Desmascarando a taxa de juros como o preço da poupança

    Há muito tempo, Axel Leijonhufvud argumentou que o cerne da confusão reinante na macroeconomia moderna é a teoria da taxa de juros. “Disputas inconclusivas […] que se arrastaram porque as partes em conflito não conseguiam chegar a um acordo sobre qual era a questão em jogo brotaram, em grande parte, dessa fonte”. Penso que isso ainda é substancialmente verdadeiro. Há uma incompatibilidade básica entre a teoria da taxa de juros como preço da poupança ou do tempo e a taxa monetária de juros que observamos no mundo real.

    A ortodoxia concebe a taxa de juros como o preço da poupança ou dos fundos emprestáveis—em outras palavras, como a compensação entre o consumo presente e o consumo futuro. Juro, nesse sentido, é um conceito fundamentalmente não monetário. É o preço de duas commodities, respaldado pelo mesmo equilíbrio entre escassez e necessidade humana que constitui a base de outros preços. A compensação entre uma camisa hoje e uma camisa no próximo ano, expressa na taxa de juros, não é diferente da compensação entre uma camisa de algodão e uma de linho ou entre uma de mangas curtas e uma de mangas compridas. Ocorre que determinadas commodities se diferenciam quanto ao tempo e não quanto a qualquer outra qualidade.

    Nessa visão, empréstimos monetários são semelhantes a empréstimos de objetos tangíveis. Digamos que eu tenha um pouco de açúcar. Meu vizinho bate à porta e o pede emprestado. Se eu o emprestar, desistirei de usá-lo hoje. Amanhã o vizinho me devolverá a mesma quantidade de açúcar e mais um extra—talvez um dos biscoitos que usou com ela. Qualquer renda que você receba da propriedade de um ativo—quer a chamemos de juros, lucro ou biscoitos—é uma recompensa pelo adiamento do uso dos serviços concretos que o ativo proporciona.

    Essa forma de ver os juros é onipresente na economia. No início do século XIX, Nassau Senior descreveu os juros como recompensa por abstinência, o que lhes confere um apropriado ar de moralidade protestante. Nos livros didáticos de hoje, como o de Gregory Mankiw, por exemplo, encontramos a mesma ideia expressa em linguagem mais neutra: “Poupança e investimento podem ser interpretados em termos de oferta e procura […] de fundos emprestáveis—as famílias emprestam sua poupança para investidores ou depositam sua poupança em algum banco que, em seguida, emprega esses fundos para conceder empréstimos”.

    É um tanto nebuloso como exatamente devemos imaginar esses fundos, mas claramente eles existem desde antes de o banco entrar em cena. Como no caso do açúcar, se seu dono não o estiver usando naquele momento, pode emprestá-lo a outra pessoa e obter uma recompensa por isso. Dinheiro e finanças não entram nessa história. Como explica Mankiw, os investidores podem tomar emprestado diretamente do público ou podem fazê-lo indiretamente via bancos—a lógica econômica é a mesma nos dois casos.

    Podemos questionar essa narrativa por várias perspectivas. Uma das críticas—feita pela primeira vez por Piero Sraffa em um famoso debate com Friedrich Hayek, há cerca de 100 anos—é que, em um mundo não monetário, cada mercadoria terá uma taxa de juros própria e distinta. Digamos que um quilo de farinha seja negociado por 1,1 quilo de farinha daqui a um ano. Por quanto um quilo de açúcar será negociado hoje? Se, ao longo do ano em curso, seu preço de uso aumentar em relação ao preço da farinha, então certa quantidade de açúcar hoje será negociada, daqui a um ano, por uma quantidade de açúcar menor do que a mesma quantidade de farinha. A menos que o preço relativo da farinha e o preço do açúcar tenham sido fixados, suas taxas de juros serão diferentes. A farinha será negociada hoje a uma taxa pela farinha no futuro, o açúcar a uma taxa diferente; o uso de um carro ou uma casa, um quilowatt de eletricidade e assim por diante será negociado pela mesma coisa no futuro em taxas próprias, refletindo as condições reais e esperadas nos mercados para cada uma dessas mercadorias. Não há como dizer que qualquer uma dessas inúmeras taxas próprias é “a” taxa de juros.

    Discussões cuidadosas sobre a taxa natural de juros reconhecerão que ela só é definida com base na suposição de que os preços relativos nunca mudam.

    Outro problema é que a narrativa da poupança pressupõe que a coisa a ser emprestada—quer se trate de uma mercadoria específica, quer se trate de fundos genéricos—já existe. Mas, na economia monetária em que vivemos, a produção é realizada para venda. Coisas que não são compradas não serão produzidas. Quando você decide não consumir algo, você não está tornando essa coisa disponível para outra pessoa. Em vez disso, você reduz a produção e a receita dos produtores na mesma proporção que reduz o próprio consumo.

    Lembre-se de que poupança é a diferença entre receita e consumo. Como indivíduo, você pode determinar a minha receita ao decidir quanto consumir. Nesse caso, consumir menos significa poupar mais. Mas, no nível da economia como um todo, a receita não é independente do consumo. A decisão de consumir menos não aumenta a poupança agregada, ela diminui a receita agregada. Essa é a falácia do consumo enfatizada por Keynes: decisões individuais sobre consumo e poupança não têm efeito sobre a poupança agregada. Assim, a forma como se determina a taxa de juros está diretamente ligada à ideia de restrições na demanda.

    Ou então, em vez de criticar a narrativa dos fundos emprestáveis, podemos iniciar por outro lado, a saber, pelo mundo monetário em que realmente vivemos. Veremos, então, que transações de crédito não implicam o tipo de compensação entre presente e futuro enfocada pela ortodoxia.

    Digamos que você esteja comprando uma casa. No dia em que toma a decisão de compra, você vai ao banco para finalizar sua hipoteca. O gerente do banco coloca duas entradas no livro razão: uma delas é um crédito em sua conta e uma obrigação para o banco, o que chamamos de depósito. A outra entrada, de valor igual e compensatório, é um crédito na conta do próprio banco e uma obrigação para você. É o que chamamos de empréstimo. A primeira é uma nota promissória que o banco emite para você, pagável a qualquer momento. A segunda é uma nota promissória que você emite para o banco, com pagamentos mensais especificados que, nos EUA, normalmente se estendem pelos 30 anos seguintes. Como notas promissórias comuns, essas entradas no livro razão são criadas simplesmente mediante registro—antigamente, eram chamadas de dinheiro de “caneta-tinteiro” (fountain-pen money).

    O depósito é, então, transferido imediatamente para o vendedor, em troca do título de propriedade da casa. Para o banco, isso significa simplesmente mudar o nome de quem recebeu o depósito—de fato, você informa o banco que a dívida devida por ele a você deverá ser paga ao vendedor. No balanço do banco, um ativo foi trocado por outro—no caso, o depósito de 250 mil dólares por uma casa no valor de 250 mil dólares. O vendedor faz a troca oposta: o título de propriedade de uma casa por uma promissória de igual valor emitida pelo banco.

    Como podemos ver, aqui não há poupança nem resgate de poupança. Há somente a troca de ativos de igual valor. Essa hipoteca não é um empréstimo de fundos preexistentes ou de qualquer outra coisa. Ninguém teve que fazer primeiro um depósito no banco para que esse empréstimo fosse possível. O depósito—o dinheiro—foi criado no próprio processo de fazer o empréstimo. O sistema bancário não canaliza poupança para empréstimos, mas admite uma troca de promessas.

    Falar que se coloca dinheiro no banco é impreciso. O registro do banco é o dinheiro. Em certo nível, isso é de conhecimento geral. Mas raramente se reflete a fundo sobre as implicações mais amplas disso. Em que consiste essa transação? Em um conjunto de promessas. O banco fez uma promessa aos tomadores de empréstimo e os tomadores de empréstimo fizeram uma promessa ao banco. Em seguida, a promessa do banco foi transferida para os vendedores, que, por sua vez, podem transferi-la para alguma terceira parte. O banco é necessário aqui pela simples razão de que você não pode fazer uma promessa diretamente ao vendedor.

    Você está disposto a fazer uma promessa de pagamentos futuros cujo valor presente é maior do que o valor que o vendedor estipula para a sua casa. Aceitar esse negócio será vantajoso para ambos os lados. Mas você não consegue fechar esse negócio porque sua promessa de pagamentos pelos próximos trinta anos não é confiável. A outra parte não sabe se você conseguirá cumprir a promessa. Ela não tem como forçar seu cumprimento. E mesmo que ela confie em você, em razão de parentesco ou outro relacionamento, outras pessoas não confiarão, pois o vendedor não tem como transformar sua promessa de pagamento em uma reivindicação imediata de outras coisas que ele possa querer.

    A teoria ortodoxa parte da suposição de que todos podem contratar livremente receita e commodities em qualquer data no futuro. A conhecida equação de Euler é baseada na ideia de que você pode alocar sua receita de qualquer período futuro para consumo no presente ou vice-versa. Essa é a estrutura dentro da qual a taxa de juros parece uma compensação entre presente e futuro. Mas você não entenderá os juros em uma estrutura que abstrai justamente a função que dinheiro e crédito desempenham em economias reais.

    O papel fundamental de um banco, como acentuou Hyman Minsky, não é de intermediação, mas de aceitação. Os bancos funcionam como terceiros que ampliam a gama de transações que podem ocorrer com base em promessas. Você está disposto a se comprometer com um fluxo de pagamentos em dinheiro para obter direito legal sobre a casa. Mas isso não é suficiente para adquirir a casa. O banco, em contrapartida, precisamente porque suas promessas são amplamente confiáveis, está em condições de aceitar uma promessa sua.

    Os juros não são pagos porque o consumo hoje é mais desejável do que o consumo no futuro. Os juros são pagos porque é difícil fazer promessas confiáveis a respeito do futuro.

    Juros como preço da liquidez

    O custo do empréstimo hipotecário não advém do fato de alguém ter postergado seus gastos. O custo advém do fato de que os balanços das duas partes envolvidas na transação passaram a ter menos liquidez. Podemos pensar na liquidez em termos de flexibilidade—um ativo ou uma posição de balanço tem liquidez na medida em que amplia seu leque de opções. Menos liquidez significa menos opções.

    Para você, como comprador do imóvel, o resultado da transação é que você se comprometeu com um conjunto de pagamentos fixos de dinheiro pelos próximos trinta anos e adquiriu os direitos legais associados à propriedade de uma casa. Esses direitos provavelmente valem mais para você do que o aluguel de uma casa que você poderia assumir com um fluxo semelhante de pagamentos em dinheiro. Mas o título de propriedade da casa não pode ser facilmente transformado em dinheiro e, portanto, em reivindicação de outras parcelas do produto social. A propriedade da casa implica—para o bem ou para o mal—um compromisso de longo prazo de viver em um lugar específico. A compensação que o comprador da casa faz ao tomar o empréstimo não é consumir mais hoje em troca de consumir menos amanhã. É um nível mais alto de consumo hoje e amanhã em troca de flexibilidade reduzida em termos de orçamento e de escolha do lugar onde viver. Tanto o compromisso de fazer os pagamentos da hipoteca quanto a não fungibilidade da propriedade da casa reduzem a margem de manobra para que o comprador da casa se adapte a acontecimentos inesperados no futuro.

    Em contraposição, o banco adicionou uma obrigação de depósito que exige pagamento a qualquer momento e um ativo hipotecário que contém uma promessa de pagamento restrita a um cronograma fixo futuro. Isso também reduz a margem de manobra do banco. Ele está exposto não só ao risco de que o tomador do empréstimo não faça seus pagamentos, mas também ao risco de perda de capital se as taxas de juros aumentarem durante o período em que ele detém a hipoteca e ao risco de não conseguir vender a hipoteca em caso de emergência ou de conseguir vendê-la apenas por um preço inesperadamente baixo. Como mostram exemplos reais recentes, a saber, o do Silicon Valley Bank, os últimos riscos mencionados podem, na prática, ser muito mais sérios do que o risco de inadimplência. O banco que faz o empréstimo corre o risco fragilizar seu balanço.

    Ou, nos termos em que Keynes formula a questão em artigo de 1937: “Pode-se considerar que a taxa de juros […] é determinada pela interação entre os termos em que o público deseja ter mais ou menos liquidez e os termos em que o sistema bancário está disposto a ter mais ou menos falta de liquidez”.

    É claro que, no mundo real, as coisas são mais complicadas. O banco não precisa esperar até que os pagamentos da hipoteca sejam feitos no prazo programado. Ele pode transferir a hipoteca para um terceiro, trocando parte da expectativa de receita por uma posição de maior liquidez. O comprador pode ser alguma outra instituição financeira em busca de uma posição mais próxima da ponta da receita na compensação entre liquidez e receita, talvez com várias camadas de balanços entre elas. Ou os compradores podem ser os provedores profissionais de liquidez do Banco Central.

    A propósito, há uma pergunta que as pessoas não fazem com frequência suficiente: como é que o Banco Central consegue definir a taxa de juros? A resposta é esta: o Banco Central não tem nenhuma participação no mercado de fundos emprestáveis.

    Mas os bancos centrais atuam muito no negócio de liquidez. Afinal, trata-se de política monetária e não de política de poupança.

    Isso indica, entre outras coisas, que não há diferença fundamental entre a política monetária rotineira e o papel do Banco Central como regulador e credor de última instância; todas essas atividades tratam de gerenciar o nível de liquidez dentro do sistema financeiro. Qual é o grau de facilidade em cumprir com as obrigações? Ser for muito difícil, a rede de obrigações se rompe. Se for muito fácil, a rede de obrigações monetárias perde sua capacidade de moldar nossa atividade e não serve mais como um dispositivo de coordenação eficaz.

    Na condição de preço do dinheiro—preço da flexibilidade em fazer pagamentos em oposição a compromissos fixos—, a taxa de juros é um parâmetro central de qualquer economia monetária. A metáfora das condições “apertadas” ou “frouxas” para taxas de juros altas ou baixas capta uma verdade importante sobre a conexão entre juros e a flexibilidade ou rigidez do sistema financeiro. Taxas de juros altas correspondem a uma situação em que promessas de pagamento futuro valem menos em termos de gerenciar recursos hoje. Quando é mais difícil obter controle sobre recursos reais com promessas de pagamento futuro, o padrão dos pagamentos de hoje está mais intimamente ligado à receita de ontem. Inversamente, taxas de juros baixas significam que uma promessa de pagamentos futuros contribui muito para garantir recursos hoje. Por isso, reivindicações de recursos reais dependem menos de receitas obtidas no passado e mais de crenças no futuro. E como as mudanças na taxa de juros sempre ocorrem em um ambiente de compromissos monetários preexistentes, os juros também atuam como uma variável de escala, reponderando as reivindicações dos credores em vista da receita dos devedores.

    Há uma incompatibilidade básica entre a teoria da taxa de juros como preço da poupança ou do tempo e as taxas monetárias de juros que observamos no mundo real. E, se levarmos a sério a ideia de juros como o preço da liquidez, vemos por que o dinheiro não pode ser neutro—porque as condições financeiras invariavelmente influenciam a composição tanto quanto o nível da despesa.

    Juros e expectativas

    Além das transações de crédito, outro cenário em que os juros aparecem no mundo real é o do preço de ativos existentes. Uma promessa de pagamentos futuros em dinheiro se torna um objeto com direito próprio, distinto desses pagamentos em si. Comecei dizendo que todos os tipos de objetos tangíveis possuem um duplo indistinto no mundo do dinheiro. Mas um fluxo de pagamentos em dinheiro também pode adquirir um duplo fantasma. Uma promessa de pagamento futuro cria um novo direito de propriedade, com seu proprietário e seu preço de mercado.

    Quando focamos nossa atenção nesse fato, vemos que a convenção tem um papel importante na determinação dos juros. Em considerável medida, os preços de títulos—e, por isso, as taxas de juros—são o que são porque é isso que os participantes do mercado esperam que sejam.

    Um título corporativo promete um conjunto de pagamentos futuros. É fácil, em um mundo teórico de certeza, falar como se o título consistisse apenas desses pagamentos futuros. Mas não é o caso. E isso não só porque pode haver falta de pagamento, o que é fácil de incorporar ao modelo. Não só porque qualquer título real foi emitido em uma determinada jurisdição e transmite direitos e obrigações que vão além do pagamento de juros—embora essas outras características sempre existam e às vezes possam ser importantes. Mas também porque o título pode ser negociado e tem um preço que pode mudar independentemente do fluxo de pagamentos futuros.

    Se a taxa de juros cai, o preço do seu título subirá—e essa possibilidade mesma é um fator que atua sobre o preço do título. Isso ajuda a explicar uma anomalia amplamente reconhecida nos mercados financeiros. A hipótese da expectativa diz que a taxa de juros sobre um título mais longo deve ser a mesma que a média de taxas mais curtas no mesmo período ou, ao menos, que as taxas devem estar relacionadas por uma bonificação de prazo estável. Isso parece uma arbitragem direta, mas falha completamente, mesmo em sua forma mais fraca.

    A resposta a esse quebra-cabeças é parte importante do argumento de Keynes em A teoria geral. Os participantes do mercado não estão interessados apenas nos dois fluxos de pagamento. Eles estão interessados no preço do próprio título de longo prazo.

    Lembre-se de que o preço de um ativo sempre se move inversamente ao do seu rendimento. Quando as taxas de certo tipo de instrumento de crédito sobem, o preço desse instrumento cai. Digamos que é amplamente aceito que um título de dez anos dificilmente será negociado abaixo de 2% por muito tempo. Então você seria tolo se o comprasse com um rendimento muito abaixo de 2%, porque enfrentará uma perda de capital quando os rendimentos retornarem ao seu nível normal. E, se a maioria das pessoas acredita nisso, então o rendimento nunca cairá abaixo de 2%, não importa o que aconteça com as taxas de curto prazo.

    No mundo real, em que o futuro é incerto e os compromissos monetários têm sua própria existência independente, faz muito sentido que as taxas de juros, especialmente as de prazo mais longo, sejam o que são porque é isso que as pessoas esperam que sejam.

    Uma implicação importante daí decorrente é que não podemos pensar em várias taxas de juros de mercado como simplesmente “as” taxas de juros acrescidas de uma bonificação de risco. Diferentes taxas de juros podem se mover independentemente por razões que nada têm a ver com o risco de crédito.

    A taxa “natural”

    Por um lado, temos um corpo teórico construído sobre a ideia “da” taxa de juros como uma compensação entre consumo presente e consumo futuro. Por outro, temos as taxas de juros reais, estabelecidas no sistema financeiro de maneiras bem diferentes.

    Às vezes, as pessoas tentam a quadratura do círculo mediante a ideia de uma taxa natural. Elas dizem: claro que sabemos sobre liquidez, sobre a bonificação de prazo e sobre a importância de diferentes tipos de intermediários financeiros e regulamentação. Ainda assim, queremos continuar usando o modelo intertemporal que nos foi ensinado na pós-graduação. Conciliamos isso tratando esse modelo como uma análise do que a taxa de juros deveria ser. É certo que os bancos estabelecem taxas de juros de todas as maneiras, mas há apenas uma taxa de juros consistente com preços estáveis e, em termos mais amplos, com o uso apropriado dos recursos da sociedade. Nós a chamamos de taxa natural.

    Essa ideia foi formulada pela primeira vez em torno da virada para o século XX pelo economista sueco Knut Wicksell. Mas seu enunciado moderno mais influente provém de Milton Friedman. Friedman apresenta a taxa natural de juros, junto com sua prima próxima, a taxa natural de desemprego, em seu discurso de posse como presidente da American Economics Association em 1968, descrito como o artigo mais influente em economia desde a Segunda Guerra Mundial. Nele, as taxas naturais correspondem às taxas que seriam “moldadas pelo sistema walrasiano de equações de equilíbrio geral, desde que estejam embutidas nelas as características estruturais reais dos mercados de trabalho e de commodities, incluindo imperfeições de mercado, variabilidade de estoque quanto a procuras e ofertas, o custo da coleta de informações […] e assim por diante”.

    O atrativo do conceito é evidente: ele provê uma ponte entre o mundo não monetário de troca intertemporal encontrado na teoria econômica e o mundo monetário de contratos de crédito no qual realmente vivemos. Ao fazê-lo, transforma a narrativa intertemporal de narrativa descritiva em narrativa prescritiva—de um relato de como as taxas de juros são determinados em uma narrativa de como os bancos centrais devem conduzir a política monetária.

    O presidente do Fed, Jerome Powell, deu um bom exemplo de como os banqueiros centrais pensam sobre a taxa natural em discurso proferido há alguns anos. Ele apresenta a taxa natural de juros R* com o seguinte enunciado: “Em modelos convencionais da economia, as quantidades econômicas mais vultosas […] flutuam em torno de valores considerados ‘normais’ ou ‘naturais’ ou ‘desejados’”. R* reflete “visões sobre os valores normais de longo prazo para […] a taxa dos fundos federais”, que são baseados em “características estruturais fundamentais da economia”.

    Perceba-se aqui a confusão dos termos “normal”, “natural” e “desejado”, três palavras com significados bem diferentes. R* aparentemente é para ser a taxa média de juros de longo prazo e a taxa de juros que teríamos em um mundo regido somente por fundamentos, e a taxa de juros que entrega os melhores resultados políticos.

    Essa mescla é uma característica ubíqua e essencial das discussões sobre taxa natural. A exemplo do acoplamento controlado de dois discos da embreagem de um carro, ela permite que sistemas que se movem de maneiras bem diferentes sejam interligados sem que nenhum dos lados se quebre devido à tensão. A ambiguidade desses significados distintos é em si normal, natural e desejada.

    O Banco Central Europeu (BCE) talvez faça um enunciado ainda melhor: “No seu nível mais básico, a taxa de juros é o ‘preço do tempo’—a remuneração por postergar o gasto para o futuro”. R* corresponde a isso. É uma taxa de juros determinada por fatores puramente não monetários, que não deveria ser afetada por evoluções no sistema financeiro. Infelizmente, a taxa de juros real pode destoar disso. Nesse caso, o BCE diz que a taxa natural, “embora não observável […], fornece um marco útil para a política monetária”. A ideia de um marco não observável destila perfeitamente a contradição incorporada na ideia de R*.

    Um modelo de fundos emprestáveis constitui uma descrição simplesmente equivocada do que é a taxa de juros. Mas quando é transformado em modelo da taxa natural, ele nem sequer está errado. Ele não tem nenhum conteúdo. Não há como conectar qualquer dos termos do modelo com qualquer fato observável no mundo.

    Quando retornamos à formulação de Friedman, percebemos o problema: não dispomos de nenhum modelo que incorpore todas as “características estruturais reais” da economia. Para uma economia cujas estruturas evoluem no tempo histórico, não faz sentido sequer imaginar tal coisa.

    Na prática, a taxa natural de curto prazo é definida como aquela que resulta em inflação na meta—ou seja, qualquer taxa de juros que o Banco Central prefira. A taxa natural de longo prazo é comumente definida como a taxa de juros real em que “todos os mercados estão em equilíbrio e, portanto, não há pressão para que sejam redistribuídos quaisquer recursos ou para que mudem as taxas de crescimento de alguma variável”. Nesse hipotético estado estabilizado, a taxa de juros depende apenas das mesmas características estruturais que supostamente determinam o crescimento de longo prazo—a taxa de progresso técnico, o crescimento populacional e a disposição dos orçamentos domésticos de adiar o consumo.

    Mas não há como passar do curto prazo para o longo prazo. O mundo real nunca está em uma situação em que todos os mercados estão em equilíbrio. Às vezes podemos até identificar tendências de longo prazo. Mas não há razão para pensar que as únicas variáveis que importam para essas tendências são as que escolhemos focar em uma classe particular de modelos. Todas essas “características estruturais reais” continuam a existir no longo prazo.

    O máximo que podemos dizer é: enquanto houver alguma relação razoavelmente consistente entre a política de taxa de juros definida pelo Banco Central e a inflação, ou qualquer que seja sua meta, haverá algum nível da política de taxa de juros que levará à meta. Mas não há como identificar isso com “a taxa de juros” de um modelo teórico. O nível atual de gastos agregados na economia depende de todo tipo de fatores contingentes e institucionais—do sentimento, das escolhas feitas no passado, de toda a gama de políticas governamentais. Se você perguntar que política de taxa de juros mais provavelmente moverá a inflação em direção a 2%, tudo isso importará tanto quanto os supostos fundamentos.

    O melhor que você pode fazer é estabelecer a política de juros de acordo com alguma regra prática ou algum processo de sua preferência e, então, diante do fato consumado, dizer que deve haver algum modelo em que essa seria a escolha ideal.

    Conclusões

    Quais são as implicações disso? Em primeiro lugar, com relação à política monetária, admitamos que ela envolve escolhas políticas feitas para atingir uma variedade de objetivos sociais muitas vezes conflitantes. Em segundo lugar, reconhecer que o juro é o preço da liquidez, estipulado pelos mercados financeiros, é importante para o modo como pensamos sobre a dívida soberana. A terceira grande lição, talvez a maior, é que dinheiro nunca é neutro.

    Há uma narrativa muito difundida sobre crises fiscais que é mais ou menos assim: o equilíbrio fiscal de um governo (superávit ou déficit) ao longo do tempo determinaria sua proporção dívida-PIB. O fato de um país ter uma dívida alta em relação ao PIB seria resultado de gastos excessivos em relação às receitas fiscais. A proporção da dívida determinaria a confiança do mercado: investidores privados não querem comprar a dívida de um país que já emitiu muito. Consequentemente, o estado da confiança do mercado determinaria a taxa de juros a ser enfrentada pelo governo, ou até mesmo se esse governo poderá contrair empréstimos. Ainda, há um limite claro em que dívida alta e taxas de juros altas tornam a dívida insustentável. Austeridade seria o requisito inevitável depois que esse limite é ultrapassado. E, por fim, quando a austeridade tivesse restaurado a sustentabilidade da dívida, isso contribuiria para o crescimento econômico.

    Se você aceitar as premissas, as conclusões seguem logicamente. Melhor ainda, elas oferecem o espetáculo satisfatório da arrogância do setor público se deparando com sua nêmesis. Porém, quando olhamos para a dívida como um fenômeno monetário, vemos que sua dinâmica não corre por trilhos tão bem azeitados.

    Antes de tudo, como questão histórica, diferenças de crescimento, inflação e taxa de juros são pelo menos tão importantes quanto a situação fiscal para determinar a evolução da proporção da dívida ao longo do tempo. Onde a dívida já é alta, um crescimento moderadamente mais lento ou taxas de juros mais altas podem facilmente aumentar a proporção da dívida mais rápido do que até superávits bem grandes poderiam reduzi-la—como muitos países sujeitos à austeridade descobriram. Em contrapartida, o rápido crescimento econômico e taxas de juros baixas podem levar a reduções muito grandes na proporção da dívida sem que o governo tenha superávits, como aconteceu nos EUA e no Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, em meados da década de 1990, a Irlanda reduziu sua proporção dívida-PIB em vinte pontos em apenas cinco anos, graças ao crescimento muito rápido durante o período do “tigre celta”, enquanto continuava a ter déficits substanciais.

    Dando mais um passo, a demanda do mercado por dívida governamental claramente não é uma avaliação “objetiva” da situação fiscal, mas reflete condições mais amplas de liquidez e as expectativas convencionais autoconfirmadas de mercados especulativos. A alegação de que a taxa de juros reflete a solidez ou não dos orçamentos públicos esbarra em um problema gritante: os mercados financeiros que rejeitaram os títulos de um país num dia geralmente são os mesmos que os haviam comprado avidamente no dia anterior. Os mesmos mercados que fizeram a taxa de juros sobre títulos espanhóis, portugueses e gregos dispararem em 2010 foram os que abocanharam suas dívidas públicas e privadas a taxas baixíssimas em meados dos anos 2000. E são os mesmos mercados que voltaram a comprar a dívida desses países em níveis historicamente baixos hoje, mesmo que seus índices de dívida, em muitos casos, permanecessem muito altos.

    Pessoas como Alberto Alesina insistem em que a taxa de juros pós-crise refletiu uma avaliação objetiva do estado das finanças públicas e que as baixas taxas anteriores à crise resultaram de uma bolha especulativa. Mas não há como afirmar as duas coisas.

    Isso não quer dizer que os mercados financeiros nunca sejam uma restrição aos orçamentos governamentais. Para a maior parte do mundo, que não conta com a cobertura de um Fed ou BCE, eles são. Mas nunca devemos imaginar que as condições financeiras são um reflexo objetivo da situação fiscal de um país ou do equilíbrio entre poupança e investimento.

    Se a taxa de juros constitui um preço, esse preço não é a “poupança” ou a disposição de esperar. Ele não é a “remuneração por adiar gastos”, como diz o BCE. Em vez disso, é a capacidade de fazer e aceitar promessas. E essa capacidade realmente importa quando as finanças são usadas não só para reorganizar reivindicações de ativos e recursos existentes, mas também para organizar a criação de novas. As vantagens técnicas de meios de produção de longa duração e organizações especializadas só podem ser aproveitadas se as pessoas estiverem em posição de assumir compromissos de longo prazo. E, em um mundo em que a produção é organizada principalmente por meio de pagamentos em dinheiro, isso, por sua vez, depende do grau de liquidez.

    A todo momento, há um número infinito de maneiras pelas quais parte dos recursos da sociedade poderia ser reorganizada para gerar maiores receitas e usar valores com expectativa de ganho. Você poderia abrir um restaurante ou construir uma casa ou obter um diploma ou escrever um programa de computador ou encenar uma peça. Os recursos físicos para essas atividades não são escassos; o valor presente da receita que eles podem gerar excede seus custos a qualquer taxa de desconto razoável. Escassa é a confiança. Ao inaugurar um projeto, você precisa reivindicar recursos da sociedade agora e a sociedade deve aceitar sua promessa de benefícios futuros. A hierarquia do dinheiro permite que os participantes de vários projetos coletivos substituam a confiança em um terceiro pela confiança uns nos outros. Porém a confiança continua sendo o recurso escasso.

    Dentro da economia, algumas atividades são mais intensivas em confiança ou restritas em termos de liquidez do que outras:

    • A liquidez é um problema maior quando há uma distância maior entre desembolsos e recompensas e quando as recompensas são mais incertas.
    • A liquidez é um problema maior quando o tamanho do desembolso necessário é maior.
    • Liquidez e confiança são mais importantes quando as decisões são irreversíveis.
    • Confiança é mais importante quando algo novo está sendo feito.
    • Confiança é mais escassa quando se trata de coordenação entre pessoas sem qualquer relacionamento anterior.

    Esses são os problemas que dinheiro e crédito ajudam a resolver. Dinheiro abundante não só leva as pessoas a pagarem mais pelos mesmos bens, mas também direciona seus gastos para coisas que exigem pagamentos iniciais maiores e compromissos de prazo mais longo e que são mais arriscados.

    Em cenários com relacionamentos continuados, o dinheiro é menos importante como mecanismo de coordenação. Os mercados são para transações entre estranhos em condições de igualdade.

    A versão dada a essa narrativa por Minsky enfatiza que temos de pensar sobre dinheiro em termos de dois preços: produção atual e ativos de longa duração. Ativos de longa duração precisam ser financiados—adquirir um deles normalmente exige assumir o compromisso com uma série de pagamentos futuros. Nesse caso, seu preço é sensível à disponibilidade de dinheiro. Um aumento na oferta de dinheiro—contra Hume e Meyer—não aumentará todos os preços em uníssono. Ele aumentará desproporcionalmente o preço de ativos de longa duração, encorajando sua produção. E justamente os ativos de longa duração constituem a base da produção industrial moderna.

    O valor relativo dos bens de capital e a escolha entre técnicas de produção mais e menos intensivas em capital dependem da taxa de juros. Os bens de capital—e as corporações e outras entidades de longa duração que os utilizam—são, por sua natureza, ilíquidos. A disposição dos donos de riqueza de comprometer sua riqueza com essas formas depende, portanto, da disponibilidade de liquidez. Não podemos analisar as condições de produção primeiro em termos não monetários e depois adicionar dinheiro e juros à narrativa. As próprias condições de produção dependem fundamentalmente da rede de pagamentos em dinheiro e dos compromissos que as estruturam e do quanto essa rede é flexível.

    Levar o dinheiro a sério exige que reconceituemos a economia real.

    A ideia da taxa de juros como preço da poupança pressupõe, como mencionei, que a produção já exista para ser consumida ou poupada. De modo similar, a ideia de juros como um preço intertemporal—o preço do tempo, como diz o BCE—implica que a produção futura já esteja determinada, pelo menos probabilisticamente. Não podemos negociar o consumo atual pelo consumo futuro, a menos que o consumo futuro já exista para ser negociado por nós.

    Wicksell, que fez tanto quanto qualquer outro para criar a arquitetura da taxa natural dos bancos centrais de hoje, captou esse aspecto perfeitamente quando comparou o crescimento econômico a barris de vinho envelhecendo na adega. O vinho já existe. O problema se limita a decidir quando abrir os barris—você gostaria de beber um pouco de vinho agora, mas sabe que o vinho ficará melhor se você esperar.

    Em contextos políticos, isso corresponde à ideia de um nível de produção potencial (ou pleno emprego) que é dado pelo lado da oferta. A capacidade produtiva da economia já existe; o máximo que o dinheiro ou a demanda podem fazer é gerenciar os gastos agregados para que a produção fique próxima dessa capacidade.

    É partindo dessa perspectiva que pessoas como Lawrence Meyer ou Paul Krugman dizem, no que se refere a esse tema, que a política monetária só pode afetar os preços no longo prazo. Pressupõem que a produção potencial já esteja dada.

    Porém uma das grandes lições que aprendemos nos últimos quinze anos de instabilidade macroeconômica é que o potencial produtivo da economia é muito mais instável e muito menos certo do que os economistas costumavam pensar. Vimos que a força de trabalho cresce e diminui em resposta às condições do mercado de trabalho. Vimos que o investimento e o crescimento da produtividade são altamente sensíveis à demanda. Se a falta de gastos faz com que a produção fique aquém do potencial hoje, o potencial será menor amanhã. E se a economia ficar aquecida por um tempo, a produção potencial aumentará.

    Percebemos a mesma coisa no plano das indústrias individuais. Um dos desenvolvimentos mais marcantes e encorajadores dos últimos anos foi a rápida queda nos custos de geração de energia renovável. Está claro que essa queda nos custos é resultado, tanto quanto causa, do rápido crescimento nos gastos com essas tecnologias. E isso, por sua vez, deve-se, em grande parte, a políticas bem-sucedidas para direcionar crédito para essas áreas. Uma perspectiva que vê o dinheiro como epifenômeno da “economia real” da produção teria descartado essa possibilidade.

    Levar o dinheiro a sério como domínio social autônomo próprio significa reconhecer que a realidade social e material não é como o dinheiro. Não podemos pensá-la em termos de um conjunto de objetos existentes a serem alocados entre usos ou ao longo do tempo. Produção não é uma quantidade de capital e uma quantidade de trabalho sendo combinadas em uma função de produção. É atividade humana organizada, coordenada de várias maneiras, visando à transformação aberta de um mundo em que não há como conhecer os resultados com antecedência.

    Pelo lado negativo, isso significa que devemos ser céticos a respeito de qualquer conceito econômico descrito como “natural” ou “real”. Com bastante frequência, esses conceitos são uma tentativa de introduzir dissimuladamente a visão de uma economia não monetária fundamentalmente diferente da nossa ou uma tentativa de disfarçar uma reivindicação normativa como alegação concreta ou ambas as coisas.

    Por exemplo, devemos ser cautelosos em relação a uma taxa de juros “real”. Esse termo é onipresente, mas sugere implicitamente que a transação subjacente é uma troca de bens de hoje por bens de amanhã, que por acaso assume a forma monetária. Mas, na verdade, é uma troca de promissórias—um conjunto de pagamentos em dinheiro por outro. Não há razão para que o preço relativo do dinheiro versus commodities seja introduzido aqui. De fato, de uma perspectiva histórica anterior à era dos bancos centrais com suas metas de inflação, não havia nenhuma relação particular entre inflação e taxa de juros.

    Também devemos ser céticos quanto à ideia de PIB real ou de nível de preços. Esse é outro grande tema do livro, mas extrapola o escopo deste artigo.

    Pelo lado positivo, penso que essa perspectiva é uma preparação essencial para explorar quando e em quais contextos as finanças são importantes para a produção. Obviamente, na realidade, a maior parte da produção é coordenada de maneiras não mercantis, tanto dentro das empresas—que são economias planejadas internamente—quanto por meio de várias formas de planejamento econômico global. Mas também há casos em que a distribuição de cobranças monetárias por meio do sistema financeiro é muito importante. Entender que atividades específicas são restringidas por meio do crédito e em que circunstâncias isso acontece me parece ser uma área de pesquisa importante, especialmente no contexto das mudanças climáticas.

    Permitam-me mencionar mais uma direção para a qual acho que essa perspectiva aponta.

    Como sugeri, a ideia da taxa de juros como o preço do tempo e a visão mais ampla de troca real da qual ela faz parte tratam os fluxos de dinheiro e agregados como substitutos de uma economia real não monetária subjacente. Pessoas que adotam essa visão tendem a não se preocupar especialmente com o modo exato como os valores monetários são construídos. Que taxa, dentre o complexo das taxas de juros, é “a” taxa de juros? Qual das várias taxas de inflação possíveis, e durante que período, devemos subtrair para obter a taxa de juros “real”? Exatamente que pagamentos são incluídos no PIB e o que fazer se isso mudar ou se divergir de um país para outro?

    Se pensarmos os valores monetários apenas como representantes de algum valor “real” subjacente, as respostas a essas perguntas não importam realmente. Por outro lado, se você achar que os valores monetários constituem o que é real de fato – se você não acha que eles são representantes de alguma quantidade material subjacente—, você terá de se preocupar muito com a maneira como eles são calculados. Se a taxa de juros realmente equivale aos pagamentos de um contrato de empréstimo e não a alguma taxa de câmbio hipotética entre passado e futuro, você deverá obter clareza sobre que contrato de empréstimo tem em mente.

    Na mesma linha, a maioria dos economistas trata os objetos de investigação como as relações causais subjacentes na economia, como aquelas “características estruturais fundamentais” que se supõe que sejam estáveis ao longo do tempo. Lembrem-se de que a taxa natural de juros é explicitamente definida em relação a um equilíbrio de longo prazo em que todas as variáveis macroeconômicas são constantes ou crescem a uma taxa constante. Se é assim que você concebe o que está fazendo, desenvolvimentos históricos específicos são interessantes no máximo como estudos de caso ou como motivações para o trabalho real, que consistem em modelos formais atemporais.

    Mas, se levarmos o dinheiro a sério, não precisaremos postular esse tipo de estrutura profunda subjacente. Se não pensarmos em juros em termos de compensação entre presente e futuro, não precisaremos pensar em receita e produção futuras como estando já determinadas em algum sentido. E, se dinheiro for importante para a atividade de produção, tanto como financiamento para investimento quanto como demanda, não haverá razão para pensar que a evolução real da economia pode ser entendida nos termos de uma tendência de longo prazo determinada por fundamentos.

    Nesse caso, o único objeto sensato de investigação são eventos particulares que aconteceram ou podem acontecer. Abordar nosso assunto dessa forma significa trabalhar em termos das variáveis que realmente observamos e medimos. Se estudarmos o PIB, será o PIB como os contadores nacionais realmente o definem e o medem, e não um “produto” abstrato. Essas variáveis geralmente são monetárias.

    Isso significa focar em explicações para desenvolvimentos históricos específicos, em vez de modelar o comportamento “da economia” de modo abstrato. Isso significa alçar o trabalho descritivo acima das espécies de questões causais que os economistas geralmente formulam. E isso significa ampliar nossa caixa de ferramentas empíricas para além da econometria.

    Pode parecer que essas sugestões metodológicas estejam muito distantes de explicações alternativas da taxa de juros. Mas, à medida que Arjun e eu trabalhamos neste livro, ficamos persuadidos de que as duas coisas estão intimamente relacionadas. Levar o dinheiro a sério e rejeitar ideias convencionais da economia real têm implicações de amplo alcance para o modo como fazemos economia.

    Reconhecer que o dinheiro constitui um domínio próprio nos permite ver a atividade produtiva como um processo histórico aberto, em vez de vê-la como um problema estático de alocação. Ao focar no dinheiro, teremos uma visão mais clara do mundo não monetário—e esperamos estar em uma posição melhor para mudá-lo.

    Tradução: Nélio Schneider

  10. Segmentações clientelistas

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    Na histórica eleição da África do Sul, ocorrida em maio de 2024, o Congresso Nacional Africano (ANC – African National Congress), pela primeira vez na história democrática do país, não conseguiu garantir a maioria absoluta de votos, com apenas 40,18%—uma queda de 17 pontos percentuais em comparação à última eleição, realizada há cinco anos. Opositores do partido governista comemoraram a súbita mudança no sentimento popular. Os “dividendos da libertação” do ANC—que representam o apoio indondicional que o partido vinha recebendo em reconhecimento ao seu papel na conquista da democracia—parecem ter expirado. O ANC estaria se tornando um partido convencional, em um país normalizado.

    O declínio no sucesso eleitoral do ANC não pode ser compreendido sem uma análise das dinâmicas eleitorais mais amplas na África do Sul. Uma das principais delas é a emergência do partido dissidente uMkhonto weSizwe (MK), criado  apenas seis meses antes da eleição pelo antigo presidente do ANC, Jacob Zuma. O MK conquistou 14,58% do total de votos, a maioria na província de origem de Zuma, a KwaZulu Natal (KZN). Outro partido político relativamente novo, a Aliança Patriótica (PA – Patriotic Alliance), reduziu significativamente a fatia de votos do ANC em distritos de maioria multirracial,1 especialmente nas províncias do Cabo Setentrional e Cabo Ocidental. Nos distritos eleitorais em que o ANC não perdeu espaço para os novos partidos, sua participação média dos votos caiu 6,3 pontos percentuais—uma queda mais significativa do que a da última eleição, mas não desastrosa, já que o partido ainda conquistou uma maioria confortável nesses territórios. Por outro lado, em regiões onde os partidos novatos tiveram forte impacto, o apoio ao ANC despencou, passando de 57,3% para apenas 29,5%. 

    Esses dados sugerem algo simples, mas importante: há um problema de oferta no coração da política eleitoral sul-africana. As tendências de mudança lenta e gradual no comportamento eleitoral que observamos na última década não são explicadas apenas pela profunda lealdade ao ANC. Na verdade, têm relação com a contínua ausência de uma oposição convincente. Para segmentos específicos do eleitorado, essa dinâmica se alterou em maio. Onde os partidos emergentes ganharam força, o gradual distanciamento do ANC se intensificou rapidamente. Ainda assim, a maior parte dos eleitores permaneceu desmotivada, apenas 58% dos registrados compareceram às urnas—abaixo dos 66% em 2019—o que representa menos de 40% da população com direito a voto. O recuo do ANC e os avanços dispersos dos partidos de oposição estão produzindo uma fragmentação no campo eleitoral que tende a se manter por um período prolongado.

    Dominância desorientadora

    A fragilidade da oposição é parcialmente endógena à força do ANC: partidos de oposição têm sido ineficientes porque o ANC tem sido eficaz. Desde o fim do Apartheid, o domínio do ANC sobre o eleitorado limitou o espaço disponível aos adversários políticos, empurrando-os a estratégias localizadas, com foco na mobilização de segmentos específicos do eleitorado, ao invés da construção de plataformas de grande apelo popular. Esse processo é mais evidente no caso da principal oposição liberal no parlamento sul-africano, a Aliança Democrática (DA – Democratic Alliance)—que surgiu do Partido Democrático (DP – Democratic Party). 

    Denunciado como traidor da raça pelo Partido Nacional no poder (NP – National Party), o DP recebeu apoio modesto até a primeira eleição democrática do país, na qual conquistou apenas 1,73% dos votos. Entretanto, o partido democrático se articulou de forma bem sucedida no período inicial de transição, conquistando antigos eleitores do NP no momento em que este estava em colapso—devido ao peso de sua associação histórica com o Apartheid e de suas conexões modernas com o ANC (ambos partidos formaram um Governo de Unidade Nacional – GNU). Durante este período, o DA também teve avanços significativos entre as comunidades multirraciais e indianas, posicionando-se como defensor dos interesses das minorias frente à proposta de transformação centrada em comunidades negras e liderada pelo ANC.

    Impulsionado por uma rápida ascensão, mas ameaçado pelo esgotamento da tática de crescimento pautada nas minorias, o DA transformou sua estratégia política a partir da metade dos anos 2000. Numa tentativa de ampliar o apoio entre eleitores negros, o DA atenuou sua oposição às políticas de ações afirmativas, inseriu propostas de bem-estar social nos programas econômicos e começou um processo agressivo de atração de líderes negros.

    A chegada de Mmusi Maimane à liderança do partido em 2014 representa o ápice dessa estratégia, que exibiu dividendos políticos reais em 2016, quando o partido alcançou 26,9% dos votos nas eleições locais. Entretanto, pouco depois, houve um declínio no desempenho político, com os eleitores brancos abandonando o DA em direção aos partidos posicionados mais à direita e ao centro, e com os eleitores negros retornando ao ANC logo após a destituição de Zuma. Nas eleições nacionais de 2019, a Aliança Democrática conquistou apenas 20,77% dos votos. O longo movimento do partido em direção a um posicionamento de centro-esquerda foi desfeito com uma súbita e desorientadora rapidez. Líderes negros com grande visibilidade foram afastados de seus cargos, com muitos optando por deixar o partido, incluindo o próprio Maimane. Sob comando de John Steenhuisen, uma ala fervorosamente neoliberal e indiferente às pautas raciais ganhou força dentro do partido.

    Diversos fatores contribuíram para esse resultado. Em primeiro lugar, a preocupação genuína de que o DA estava perdendo força na sua principal base de apoio – o eleitorado branco. Segundo, o fato de que certas figuras-chave passaram a repensar as questões raciais conforme foram absorvidos pelas dinâmicas da política de guerra cultural advinda dos EUA. Por fim, e quem sabe contribuindo de forma mais importante, a resistência interna dos funcionários brancos do partido, que viram o poder saindo de suas mãos conforme líderes negros mais jovens subiam na hierarquia política de forma acelerada. 

    Mas a força da reação da direita teria sido suavizada se o programa proposto por Maimane tivesse de fato avançado. Caso alcançasse certo progresso com o eleitorado negro, o líder poderia ter logrado o objetivo de transformar o aspecto racial do partido, estabilizando a posição de poder e atraindo uma coalizão mais ampla de atores menos ideológicos—particularmente no setor corporativo—que buscavam uma alternativa viável ao ANC. Por assim dizer, a matemática eleitoral pouco promissora facilitou a configuração de elementos revanchistas que fizeram o DA assumir o papel de oposição profissionalizada e ideologicamente pura.

    É mais difícil identificar o efeito estratégico desse cenário de dominância de um único partido sobre o Economic Freedom Fighters (EFF), já que este partido—e o líder vitalício com o qual possui uma conexão inseparável—sempre teve uma natureza mais ideológica. O EFF foi formado em 2013 por Julius Malema, anos depois de sua expulsão do ANC. Ex-líder da Liga da Juventude do ANC, Malema tentou lançar seu novo partido nos moldes históricos daquela organização—que era tradicionalmente vista como a consciência radical do movimento. Sempre fortemente inclinado à retórica revolucionária, não está claro se o EFF teria tentado assumir uma imagem mais palatável em seus primórdios, mesmo se houvesse um espaço mais amplo para o jogo político. Dito isso, a reputação de Malema dificilmente poderia ser enquadrada como de princípios inabaláveis. Acompanhada por escândalos de corrupção e considerada pouco confiável pelos eleitores de centro, sua atual marca política parece estar chegando ao limite. O percentual de votos do EFF não tem apresentado variações significativas nos últimos oito anos—esse fato oculta um abandono massivo entre apoiadores individuais, o que sugere que muitos tratam o partido mais como uma forma de voto de protesto do que uma alternativa viável. Além disso, dada a emergência do MK, o nicho que o partido ocupa tem se tornado mais concorrido. A maior parte das perdas eleitorais do EFF na última votação nacional se deu na província de KZN (ver o segundo painel da primeira figura). Apesar de ser difícil ver o partido desenvolvendo uma ampla estratégia de comunicação com um discurso dirigido aos eleitores centristas, podemos começar a observar como a praticidade política pode vir a coibir certos aspectos de seu radicalismo. 

    Nesse contexto, o termômetro político será a pauta da imigração. Aparentemente, o próprio Malema tem sido bastante firme com seu compromisso com um Pan Africanismo inclusivo, uma posição que tem se tornado cada vez mais cara devido ao fortalecimento de atitudes xenófobas na sociedade. Mas, na verdade, o partido sempre “falou à esquerda” e “caminhou parcialmente à direita” sobre o assunto, veementemente defendendo imigrantes em seus discursos enquanto permite que seus diretórios locais se envolvam em políticas xenófobas. Um alinhamento entre retórica e prática pode sinalizar uma transformação mais profunda na direção estratégica do partido. 

    A incontestável dominação do ANC não serviu apenas para desorientar opositores mas, também, potenciais competidores. A confusão estratégica induzida pelo domínio do ANC sobre a sociedade civil é central para explicar porque um movimento de décadas de ativismo pujante nas ruas e nas comunidades falhou em se solidificar enquanto alternativa política. Radicais externos ao ANC enfrentaram um contínuo dilema: a profunda cultura de protestos ofereceu amplos recursos para mobilização, mas lealdades resilientes à tradição do Congresso frustraram os esforços de uma organização coesa. Esse dilema fomentou uma tendência movimentista profundamente enraizada na chamada “esquerda independente”—que tende a rejeitar políticas eleitorais e partidárias em favor de uma fé inabalável na ação espontânea. O fato é que em mais de duas décadas, os únicos novos e significativos partidos políticos de oposição vieram de dentro do próprio ANC. 

    Clivagens complexas

    Erros estratégicos não são os únicos responsáveis pela fraqueza da oposição. Oponentes ao ANC foram forçados a navegar um terreno político complexo que não oferece fórmulas fáceis para construção de coalizões majoritárias. O regime político sul africano é segmentado por cisões profundas e transversais que, uma vez relativamente ofuscadas pelo domínio do ANC, agora começam a se manifestar conforme o partido recua. 

    A pauta racial tem sido de crucial importância por quase todo o período democrático do país—cientistas políticos tendiam a se referir às eleições na África do Sul como um “censo racial”, com eleitores negros alinhados quase que universalmente com o ANC. Hoje em dia, a raça continua sendo um dos maiores indicadores do comportamento eleitoral individual. Apoiadores do DA defendem que o partido é “pós-racial” e o mais diverso dos grandes partidos políticos—de fato, num sentido estatístico raso, ele é. Aproximadamente um terço de seus eleitores são negros, o que poderia ser considerado uma vitória, não fosse pelo fato de que 81,4% da população do país é negra. O DA representa uma grande e bem-estabelecida organização com perfil e abrangência nacionais, uma ficha (relativamente limpa) de governança e amplos recursos advindos das conexões com a comunidade empresarial e com a elite branca. Apesar disso, o partido atrai menos de 7% dos votos em distritos eleitorais negros—um percentual que se manteve relativamente estável nos últimos dez anos—o que dificilmente evidencia a capacidade da administração do partido em transcender a linha de cor.

    A  Aliança Patriótica, sexto maior partido da África do Sul após as eleições de maio, é racialmente exclusivista. Formado em 2013 por Gayton McKenzie, um ex-assaltante de bancos que se tornou palestrante motivacional, o partido recebeu apenas 6.660 votos em 2019. Nos cinco anos que se sucederam, o PA aproveitou o impulso de um sentimento nacionalista observado nas comunidades multirraciais. O partido também atraiu eleitores conservadores através de seus posicionamentos anti-imigração e de enfrentamento rígido contra o crime.

    Até 2024, a pauta étnica não cumpria um papel especialmente central nas eleições sul-africanas. Nos primeiros anos da transição, grande parte do eleitorado da província KwaZulu Natal (KZN), de maioria Zulu, estava alinhada com o partido tradicionalista Inkatha Freedom Party (IFP). Porém, quando Zuma assume o poder, essa parcela de eleitores é progressivamente conquistada pelo ANC. O Congresso Nacional Africano sofreu uma onda de renúncia na região da província de KZN depois que Zuma foi deposto de seu cargo em 2017, com muitos dos apoiadores desertores retornando ao IFP ou recorrendo ao EFF. Em maio deste ano, o MK de Zuma conquistou uma grande parcela desses eleitores, alcançando a marca de 45% dos votos, mesmo tendo sido criado apenas seis meses antes da eleição. O partido alimentou as queixas sociais e econômicas arraigadas em uma província que tem suportado o peso das crises sociais e ecológicas no país. Ao mesmo tempo, também levantou demandas tradicionalistas, incluindo o apelo à criação de uma terceira casa no parlamento composta por líderes tradicionais. A impressionante vitória do MK em KZN foi conquistada ao atrair grandes parcelas de eleitores do ANC. Diretórios inteiros migraram para o MK, geralmente em segredo, continuando a captar recursos do partido no poder ao mesmo tempo em que desenvolviam campanhas para os opositores. 

    Esse desfecho só foi possível porque Zuma foi capaz de seguir exercendo grande apelo popular e uma enorme influência sobre os líderes locais em KZN. Sua imagem resiliente—apesar do papel de liderança que desempenhou nas inúmeras crises que afligem a província—não pode ser compreendida à parte de sua habilidade em atuar como uma das principais vozes do nacionalismo Zulu reemergente. Fora do KZN, Zuma é um dos políticos com maior desaprovação no país. Ainda assim, seu partido também conquistou apoio substancial em Gauteng e Mpulmalanga. Alguns analistas assumem esse fato como evidência de um apelo mais universal do partido, mas uma avaliação mais profunda demonstra que seus avanços nessas províncias estão intimamente relacionados ao tamanho da população que fala zulu. Em regiões do país onde a população falante do idioma zulu é marginal, o partido possui pouco apoio.

    Se ocorresse uma etnicização da política sul-africana, a província de KZN seria seu epicentro. Por razões históricas, a consciência e a organização étnicas são muito mais elaboradas na região do que em outras partes do país. Apesar de ainda haver poucos sinais desse movimento, há possibilidades de que a emergência de um poderoso grupo Zulu no cenário nacional estimule mobilizações étnicas em outras áreas.

    No interior do país, os opositores do ANC enfrentam sérios dilemas. A grande maioria da população rural vive sob comando de autoridades tradicionais—originalmente instrumentos coloniais de domínio indireto. Hoje em dia, eles possuem posicionamentos mistos: alguns líderes seguem certos princípios da democracia consultiva, enquanto a maioria se mantém firme nos moldes coloniais de autoridade patriarcal concentrada. Por quaisquer que sejam os motivos, as autoridades tradicionais foram capazes de reter muito mais legitimidade do que outras esferas governamentais. Por facilitarem o acesso aos direitos de mineração e conduzirem seus “súditos” às urnas, acabaram se tornando agentes importantes na máquina de patronagem do ANC, ajudando o partido no poder a garantir seu domínio sobre a população rural em troca de apoio legislativo e de uma parcela das rendas da atividade de extração mineral. Excluindo a província de KZN, o apoio ao ANC nas eleições de 2024 se manteve muito melhor em territórios tradicionais do que em outras regiões do país, caindo à metade da taxa observada em ambientes urbanos.

    Política clientelista

    Isso nos leva à última e principal clivagem política na África do Sul—a divisão criada pelos vastos sistemas de clientelismo que envolvem o Estado controlado pelo ANC. Pode parecer estranho falar de clientelismo como uma “clivagem”—termo que se refere a uma divisão profunda e duradoura entre a população. Não obstante, essa é exatamente a natureza do conflito gerado pelas práticas de patronagem que se tornaram um traço característico da economia política sul-africana pós-Apartheid. Como Karl von Holdt indicou, o clientelismo na África do Sul moderna é mais do que uma simples empreitada criminosa, ele incluiu um “sistema político-econômico informal” que se tornou o principal veículo de formação de classe para uma elite negra aspirante.

    A economia informal é, de muitas maneiras, progenitora da política econômica formal e neoliberal que o ANC construiu nos últimos trinta anos. Esta reafirmou a dominância de um conjunto crescentemente globalizado de grandes corporações ao mesmo tempo em que causou grandes danos à produtividade e aos mecanismos de geração de moeda estrangeira na economia do país. Enquanto um grupo pequeno, mas influente, de elites negras teve sua entrada garantida nos enclaves globalizados da nova economia por meio de políticas de Empoderamento Econômico Negro (Black Economic Empowerment), as aspirações mais amplas da classe de empresários negros emergentes foram frustradas por previsões de crescimento fraco e movimentos prematuros de desindustrialização. Tais aspirações foram cada vez mais deslocadas da economia privada para o Estado. 

    Um processo semelhante ocorreu a nível popular, já que o rígido e ineficiente mercado de trabalho não foi capaz de absorver o enorme excedente de mão-de-obra que havia sido anteriormente contido pelo sistema de bantustões. O desemprego em massa e a dependência do Estado tornaram-se traços marcantes da nova administração. O novo Estado controlado pelo ANC passou a sofrer pressões diretas por rendimentos e mecanismos de clientelismo advindas do “lado da demanda”. No “lado da oferta”, as condições para a rápida expansão da economia informal foram postas pela politização do serviço público por parte do ANC e sua tentativa de projetar o controle do partido sobre todos os instrumentos governamentais. Um “Estado contratual”, definido por grandes gastos de aprovisionamento, foi constituído de forma conjunta e emaranhada com uma camada de capital “tenderpreneurial”.2 O emprego no sistema público se tornou um importante motor de avanço social para sul-africanos negros.

    Os mecanismos de clientelismo formaram a base social da presidência de Zuma. Tendo chegado ao poder em 2007, como parte de uma coalizão ampliada na qual o trabalho organizado era um ator central, Zuma rapidamente removeu de sua plataforma política as propostas ligadas aos ideais de esquerda e potencializou uma narrativa tradicionalista mais ressonante entre as alas rurais do partido, nas quais o clientelismo é mais arraigado. A administração de Zuma foi responsável pelo aumento gigantesco das práticas de rent-seeking e pela ampliação dos empregos no setor público. Ele também se inseriu no coração do maior núcleo de corrupção do Estado, centrado nos infames irmãos Gupta—membros de uma família de empresários indianos que, desde os anos 1990, vinha construindo relações próximas com figuras importantes do ANC.

    A conexão Zuma-Gupta operava de acordo com um modelo expansionista, no qual as rendas econômicas advindas das práticas de patronagem eram fortemente reinvestidas na acumulação de capital político. A união cresceu rapidamente, com os Gupta ampliando sua influência sobre uma vasta gama de instituições públicas e se inserindo no nível executivo do poder, chegando a convocar, nomear e demitir ministros de gabinete a partir de seu complexo em Joanesburgo. Em pouco tempo, os instrumentos dos Gupta esbarraram nos limites impostos pelas agências de autoridade regulatória ainda intactas no aparelho estatal, particularmente aquelas ligadas ao Tesouro Nacional—capaz de manter ampla supervisão sobre aprovisionamentos e inteligência financeira. A “lógica” da economia informal, como argumenta von Holdt, exigia a captura desses órgãos.

    Em dezembro de 2015, Zuma anunciou uma reformulação de choque no gabinete, na qual um deputado pouco conhecido, Des van Rooyen, foi anunciado como o novo Ministro das Finanças. Essa estratégia catalisou uma oposição massiva no grande empresariado, especialmente o setor bancário, que prometeu um caos financeiro generalizado caso a nomeação fosse mantida. Três dias depois, Van Rooyen foi removido do cargo e um candidato mais orientado aos interesses corporativos foi instalado na posição. Esse incidente colocou o grande capital em estado de alerta e abriu uma fase de forte mobilização contra Zuma.

    Em uma campanha de relações públicas orquestrada pela infame empresa de marketing Bell Pottinger, os irmãos Gupta e seus aliados começaram a se apresentar enquanto protagonistas de uma visão de “transformação econômica radical” (RET, na sigla em inglês). Na prática, tratava-se de um projeto de captura do Estado e corrupção em larga escala que estava sendo bloqueado pelo chamado “capital monopolista branco”.

    Assim, a relação entre a economia informal e a economia formal evoluiu rapidamente de simbiose para contradição. Os sistemas de patronagem ajudaram a firmar o caminho inicial das reformas neoliberais ao sustentar a legitimidade do ANC, mas, sob comando de Zuma, começaram a comprometer fortemente as condições para a acumulação corporativa. Durante a administração de Zuma, a ação predatória mais intensa foi direcionada às empresas estatais (SOEs, na sigla em inglês), incluindo aquelas dos setores de logística e eletricidade. Análises recentes demonstram como, acima de tudo, foi o colapso desses setores que produziu a “década perdida” de crescimento econômico que se estendeu durante os anos de governo Zuma. Ao mirar suas ações no Tesouro Nacional, a facção da RET ameaçou o principal pilar institucional da economia neoliberal e austera do ponto de vista fiscal, estabelecendo um confronto generalizado com o grande capital.

    Portanto, antes de mais nada, a divisão entre as economias formal e informal representa uma fissura dentro da própria esfera da elite. De modo geral, apesar dessas delimitações não serem tão claras na prática, a divisão opõe o grande capital—historicamente branco, mas atualmente misto—à uma fração “tenderpreneurial” do capital. No entanto, essas clivagens se estendem muito mais profundamente. O clientelismo na África do Sul sempre teve um caráter social. Grandes circunscrições eleitorais são diretamente incorporadas aos circuitos da economia informal através da politização do emprego no setor público, das políticas de assistencialismo e das práticas clientelistas das máquinas de base partidária.

    Além disso, as forças da RET acumularam um apoio social mais amplo ao enquadrar seu projeto como uma resposta à questão nacional não resolvida. Interesses convergentes na economia informal e o fracasso persistente da economia formal em oferecer caminhos viáveis para a transformação econômica deram coerência e tração social à RET. Dessa forma, von Holdt está certo ao falar de processos de “formação de classes” incubados no sistema de patronagem. Em certa medida, essas divisões se correlacionam com o nível de desemprego, que é o principal marcador de inclusão na economia formal. De acordo com algumas pesquisas, os apoiadores de partidos populistas são mais propensos a vir das crescentes fileiras de desempregados. Isso também confere um caráter mais jovem a esses partidos.

    Por outro lado, o impacto da “transformação econômica radical” foi uma profunda erosão da capacidade estatal, gerando muitos inimigos à RET. O colapso da prestação de serviços públicos essenciais, impulsionado pelo fracasso das estatais e da administração local, foi devastador para milhões de sul-africanos. Durante a “década perdida” de Zuma, a economia em termos per capita encolheu de forma consistente, e o desemprego atingiu níveis muito elevados. A indignação com a corrupção é grande em muitos estratos da população. Fora de KwaZulu-Natal, Zuma não conseguiu eximir-se da culpa, deixando o cargo com uma taxa de aprovação de aproximadamente 20%. Outros agentes da RET, como Julius Malema do EFF, enfrentaram desaprovação semelhante fora de suas bases de apoio mais leais. Enquanto candidato pelo ANC, em defesa de uma “limpeza” política, Cyril Ramaphosa assumiu o cargo com uma aprovação superior aos 70%.

    Era da fragmentação

    A era de dominação do ANC está chegando ao fim. Mas a fraqueza histórica da oposição, um sistema de representação proporcional com baixa barreira de entrada e a complexa estrutura de clivagens entre o eleitorado significam que o ANC não está perdendo espaço para um único novo partido, mas sim, para um campo político fragmentado. As eleições de 29 de maio produziram um parlamento sem maioria absoluta: o ANC ocupou 159 assentos; os partidos-médios de oposição conquistaram, coletivamente, 184 assentos; dois grupos de oposição menores assumiram 26 assentos e os 31 assentos restantes ficaram distribuídos entre pequenos partidos. Esse cenário causará sérios desafios de governança em uma sociedade profundamente dividida e sem um histórico de políticas de coalizão a nível nacional ou provincial. Na esfera local de governo, onde as coalizões são uma realidade generalizada já há alguns anos, recentes agitações indicam uma prévia preocupante dos problemas que estão por vir.

    Mas a fragmentação política pode ser uma das principais razões pelas quais a África do Sul ainda não foi arrastada pela correnteza global de autoritarismo populista. Se Dani Rodrik está correto em atribuir a onda populista aos efeitos disruptivos da globalização, então a África do Sul deveria estar entre os primeiros países a enfrentar retrocessos democráticos. Nas últimas décadas, o país passou por grandes choques de comércio e imigração, agravando uma crise já aguda de desemprego em massa e de alta criminalidade. Porém, apesar de formações populistas (como MK e EFF) terem crescido no período, nenhuma delas foi capaz, por enquanto, de demonstrar potencial em conquistar o nível de suporte majoritário que facilitou a erosão da democracia em outros países. 

    Entretanto, não devemos fazer disso a causa para mais um excepcionalismo sul-africano. É verdade que o legado de libertação, bem como o forte posicionamento constitucionalista da tradição do Congresso, fornece certa resiliência às instituições democráticas. Mas também é verdade que o sentimento popular se tornou mais nacionalista e autoritário nos últimos anos, seguindo a tendência populista global. Os choques da globalização, ao invés de produzirem suas próprias polarizações, foram refratados pela estrutura de clivagens pós-colonial, que ainda se mantém dominante na África do Sul. Assim, refletem um motivo central pelo qual essa questão não produziu o mesmo tipo de resultado eleitoral observado no resto do mundo. Consequentemente, variantes locais de populismo não podem ser relacionadas àquelas estrangeiras, elas são grandemente sui generis. O EFF e o MK, os dois grandes partidos populistas, emergiram de dentro do partido no poder. Não são, assim, movimentos externos, e suas narrativas morais são guiadas pela pauta de transformação, não de anti-corrupção. A “energia vital” desses partidos deriva do patrimonialismo das elites ao invés do chauvinismo das classes médias.

    Fundamentalmente, suas configurações de classe são diferentes das de outros partidos populistas do Sul global, especialmente no sentido de que elas estão presas a um profundo antagonismo com o grande capital. Isso faz com que a jornada desses partidos ao poder se torne muito mais difícil, ainda que, ao mesmo tempo, faça deles atores mais perigosos. A implacável ruptura do MK e EFF com a classe de investidores significa que eles não possuem os recursos necessários para desenvolver um programa econômico viável. Com isso, para poder governar, esses partidos terão que assumir uma posição drasticamente moderada e criar uma coalizão mais ampla, ou terão que usurpar a prerrogativa de investimento de seus adversários. Esta última opção implica em um conflito direto com as categorias de propriedade e democracia, não um lento contingenciamento da liberdade política—como tem sido o modus operandi da maioria dos autoritarismos modernos.  

    Do ponto de vista analítico, agrupar o EFF e o MK sob a mesma categoria pode ser considerada uma ação questionável, já que os partidos são ideologicamente divergentes. O EFF se autodenomina como Fanoniano-Marxista e seus manifestos se apoiam fortemente no prestígio da esquerda (menos os elementos democráticos), denunciando a exploração capitalista, defendendo um modelo de desenvolvimento liderado pelo Estado e apoiando o Pan-Africanismo. O MK também se descreve como um partido de esquerda, embora não faça esforços semelhantes aos do EFF para estar à altura desse rótulo. Sua mensagem é abertamente chauvinista, misógina e até “feudalista”. De todo modo, ambos partidos se encontram em uma aliança cada vez mais estreita, agora oficializada no “Caucus Progressista” parlamentar, que também inclui partidos menores de viés nacionalista e de suposto posicionamento à esquerda. Figuras-chave associadas ao projeto de Zuma, como a ex—e desprestigiada—defensora pública, Busisiwe Mkhwebane, se juntaram às bancadas parlamentares do EFF. A convergência entre o EFF e o MK demonstra claramente como a divisão entre as economias formal e informal tornou-se a principal contradição na formação social sul-africana—se não por sua relevância popular, por sua centralidade no conflito político organizado. O compromisso mútuo com a corrupção, racionalizada enquanto reparação histórica, é o que une estes partidos.

    Embora organizacionalmente fragmentado, o campo político está cada vez mais dividido em dois grandes grupos hostis: o liberal de um lado, e o cleptocrático do outro. Entretanto, ao transitar entre o liberalismo e a cleptocracia, o ANC complexifica essa divisão outrora considerada simples. A ala do partido que está no poder, sob comando de Ramaphosa, se posiciona firmemente no campo liberal e possui fortes laços com a burguesia corporativa. No ANC, não há uma ala abertamente organizada que defenda a visão de uma transformação econômica radical, embora importantes agentes de poder—incluindo o presidente e o vice-presidente—mantenham laços com o campo cleptocrático. Dizem que eles prefeririam uma aliança com o EFF após os resultados eleitorais de maio. O diretório do ANC em Gauteng, onde está a base de apoio do vice-presidente, rejeitou o mandato da organização nacional para tentar construir uma estratégia de co-governança com o DA.

    De modo geral, o partido como um todo permanece profundamente imerso nos circuitos da economia informal. Isso não significa necessariamente que a maioria apoie um retorno ao modelo de governança estatal de Zuma. Provavelmente, há uma substancial ala “moderada” no partido, uma que deseja manter o fluxo de renda mas também mitigar sua hostilidade com a economia formal e evitar as consequências eleitorais de um retrocesso à captura do Estado. No nível da base popular e dentro da ala esquerdista do partido, a agenda de “limpeza” de Ramaphosa continua bastante estimada. Seu apelo junto ao eleitorado—que, apesar de alguns reveses, permanece muito maior do que o apoio ao próprio ANC—ainda é sua maior vantagem nesses conflitos internos. 

    Fragmentações futuras

    Após o resultado de 29 de maio, o ANC se tornou profundamente dividido sobre os processos de coalizão. Muitas denúncias foram disparadas com relação a um potencial acordo com o DA, equiparando a opção a um pacto com o Apartheid. Outros anunciavam um cenário desastroso caso o ANC retomasse o projeto RET no ambiente político. Ramaphosa, exímio negociador, navegou por estas águas turbulentas com destreza, sendo capaz de assegurar sua preferência prioritária na consolidação do campo liberal. Na prática, o chamado Governo de Unidade Nacional representa um grande acordo entre o ANC, o DA e o IFP. Nenhum dos outros pequenos partidos envolvidos nas disputas possui cadeiras suficientes para fazer alguma diferença. Se o GNU é, em muitos aspectos, uma conquista, ela foi obtida por Ramaphosa—sem que tenham sido gastos consideráveis recursos de capital que seriam necessários para defender abertamente uma aliança com o DA. Em vez disso, Ramaphosa escancarou as portas da administração, convidando todos os partidos a se unirem ao GNU, apostando corretamente que a recusa da RET em trabalhar com “interesses brancos” impediria que o EFF e o MK se unissem à aliança. Ao mesmo tempo, mantendo viva a ameaça de uma aliança com a RET nas negociações com o DA, o líder conseguiu firmar um acordo altamente favorável para o ANC, mantendo os principais centros de poder ministerial.

    O golpe de mestre de Ramaphosa deu ao país um alívio há muito desejado. Se o ANC tivesse escolhido formar um governo em conjunto com a ala cleptocrática, teria estimulado a crise social latente e revertido os recentes ganhos sociopolíticos. No entanto, dúvidas sobre quanto tempo irá durar a coalizão do GNU não param de emergir. O mandato de Ramaphosa como presidente do ANC termina em 2027. 

    Atualmente, ele não possui um sucessor à altura capaz de garantir a continuidade e estabilidade de seu projeto. O principal candidato para sucedê-lo, o vice-presidente Paul Mashatile, é amplamente considerado um político inclinado ao EFF.

    Para vencer de forma decisiva, os liberais precisariam desgastar a base material do poder cleptocrático. Seria necessário sufocar a economia informal—tanto do lado da demanda, quanto da oferta. Isso exigiria, em primeiro lugar, um ambicioso projeto de reconstrução do Estado para profissionalizar o serviço público e estabelecer um controle centralizado sobre as compras governamentais. Ramaphosa não tem como eliminar a corrupção por completo, mas pode haver uma forma de canalizá-la para que, ao invés de comprometerem os objetivos institucionais, as rendas advindas da prática de rent-seeking  comecem a se alinhar com eles—como foi, aparentemente, o caso dos Estados desenvolvimentistas do Leste Asiático. Nesse sentido, há alguns motivos tênues para ter esperança. Ramaphosa e seus parceiros no GNU são pró-reformas. A transformação do serviço público pode ser um projeto um pouco mais fácil de vender ao ANC agora que o partido está perdendo seu monopólio sobre as nomeações. A história nos mostra que os partidos dominantes tendem a aceitar a despolitização do Estado quando são confrontados pela possibilidade das armas do clientelismo serem usadas contra eles. 

    As perspectivas de uma grande reformulação do modelo de crescimento da África do Sul, no entanto, são muito mais fracas. Nesse contexto, os liberais não têm um programa ou visão evidentes. A prioridade imediata do GNU é fazer a Operação Vulindlela avançar—o principal programa de reformas de Ramaphosa, que se concentra na modernização da infraestrutura do país e na reversão dos danos que a captura do Estado causou às principais indústrias de rede. O programa fez progressos notáveis, especialmente na virada dramática da crise elétrica. No momento da redação deste texto, a África do Sul havia passado 144 dias sem interrupções programadas na rede elétrica. Em 2023, foram apenas dezessete dias em que a eletricidade permaneceu ativa ininterruptamente. 

    Embora possa ser considerada modesta, a Operação Vulindlela tem boas chances de gerar melhorias significativas à população, especialmente considerando a atual situação de estagnação em que a economia se encontra. Isso faz com que o GNU tenha certo espaço de manobra no médio prazo. Porém, mesmo no cenário mais otimista, em que o crescimento retornaria à casa dos 3%, ainda não é certo que isso seria suficiente para consolidar a ala liberal no longo prazo.

    A atual taxa de desemprego no país chega a impressionantes 41,9%. Os jovens compõem a grande maioria dos afetados pela duradoura exclusão do mercado de trabalho. A menos que a classe política eleve suas ambições em direção a uma transformação fundamental do modelo econômico sul-africano, o país continuará a flertar com o abismo do populismo e da desintegração social.