Como parte da proposta de transformar a Colômbia em uma das lideranças globais da transição verde, o presidente Gustavo Petro anunciou, em 2023, que o país deixaria de assinar contratos para a exploração de petróleo e gás natural. Embora tenha sido celebrado por ambientalistas, o anúncio encontrou ceticismo em meio a diversos atores políticos, que apontaram para a dependência da Colômbia de petróleo para atender suas necessidades energéticas internas e garantir receitas para o governo. Houve também preocupação em relação aos empregados da Ecopetrol, a maior companhia petrolífera do país.
A Unión Sindical Obrera (USO, União Sindical Operária), que representa os trabalhadores da Ecopetrol, tenha dado forte apoio à campanha presidencial de Petro, agora se depara com novas tensões com o governo. A Ecopetrol, que tem como acionista majoritário o Estado, é um ativo chave para a economia colombiana, e a USO é uma das mais antigas e mais perseguidas centrais sindicais do país: quase 900 de seus membros foram vítimas de homicídio, ameaças e exílio ao longo das últimas décadas.
Hoje, a USO se encontra em uma conjuntura crítica, com a pressão pela descarbonização desde dentro de uma empresa que encabeçou a produção de combustíveis fósseis na Colômbia. Petro deseja transformar a Ecopetrol em uma liderança em tecnologias limpas. Nos dois primeiros anos de sua administração, o debate central entre o governo nacional e os 25 mil trabalhadores empregados na indústria de gás natural e petróleo tem se articulado em torno de como essa transição ocorrerá.
A decisão recente do Conselho de Administração da Ecopetrol de suspender investimentos na ordem de US$ 3,6 bilhões na Bacia Permiana – um campo que cruza o Texas e o Novo México – pôs à prova a relação entre o governo e os trabalhadores do setor. A Ecopetrol estudou o local de perfuração (fracking) por mais de um ano e meio, e o negócio visava gerar mais lucros para a empresa, estimulando um aumento estimado em 9% na produção de barris. Mas o conselho, alinhado a Petro, rejeitou o projeto, citando preocupações ambientais e econômicas. A decisão acendeu controvérsias entre os trabalhadores do setor de combustíveis fósseis, para quem a descarbonização não deveria demandar a paralisação de novos projetos que aumentariam a produção de petróleo cru.
Para tratar do tema, a Phenomenal World entrevistou César Loza, presidente da USO, para discutir a história do sindicalismo no setor de combustíveis fósseis, os planos do governo Petro de promover a descarbonização da Ecopetrol e a perspectiva de uma transição verde justa.
Uma entrevista com César Loza, presidente da USO
camilo garzón: O que a chegada de Petro ao poder significou para a Ecopetrol?
césar loza: Concordamos com o governo em relação à necessidade de uma transição energética, de tal modo que se chegue a uma combinação de fontes limpas de energia e se diminua gradativamente nossa dependência de combustíveis fósseis. Mas também temos fortes discordâncias. Para uma transição energética sustentável, acreditamos na necessidade de três elementos fundamentais. O primeiro é vontade política. Vários atores precisam ter vontade política para que uma transição energética ocorra. Hoje, os trabalhadores, as comunidades locais, os sindicatos, as empresas, os governos locais e o governo nacional parecem compartilhar esse desejo, então há poucas discordâncias aqui. O segundo elemento tem a ver com nossas fontes de energia: eólica, solar e geotérmica. Também estamos alinhados nesse ponto, pois a Colômbia tem forte potencial para desenvolver esses setores. No entanto, há um terceiro elemento sem o qual uma transição energética não pode acontecer, que são os recursos econômicos. Já afirmamos isso anteriormente: o financiamento exigido para a transição energética deve vir do próprio setor de gás natural e petróleo. Infelizmente, o governo não entendeu isso. O presidente Petro fala constantemente de uma transição energética, mas de onde virá o dinheiro? Qualquer governo, seja de esquerda ou de direita, que proponha uma reforma tributária – como o governo fez em seu primeiro ano – a fim de aumentar as receitas para obter recursos para uma transição energética corre o risco de enfrentar insatisfação popular. Ela não vai acontecer.1
Dissemos ao presidente da República, ao ministro da Fazenda, ao presidente da Agencia Nacional de Hidrocarburos (Agência Nacional de Hidrocarbonetos) e ao presidente da Ecopetrol que apoiamos uma curva básica, com rigor técnico, para um teto de produção de barris – por exemplo, um teto de 750 mil ou 800 mil barris por dia. Tudo o que for produzido acima desse teto deve ser investido na transição energética. Esse compromisso claramente requer uma indústria forte e robusta. Em vez disso, porém, notamos o desinvestimento em diferentes campos de petróleo – nisso estamos em evidente e profundo desacordo com o governo.
Um exemplo é a decisão da Ecopetrol de cortar o orçamento de investimentos deste ano, de US$ 4,5 bilhões para US$ 2,5 bilhões. A decisão terá impacto tanto na exploração quanto na produção de petróleo e de gás natural. Sem falar do arcabouço fiscal de médio prazo projetado para 2026, dada a expectativa de um crescimento da produção da companhia para até 850 mil barris de petróleo cru por dia. Na toada atual, porém, é pouco provável que essa meta seja atingida.
Em uma entrevista em 4 de março, o ministro de Minas e Energia, Andrés Camacho, afirmou que atingir uma produção diária de 1 milhão de barris de petróleo era um grande desafio para o país. Depois, o ministro da Fazenda ecoou esse sentimento. Recentemente, a Agência Nacional de Hidrocarbonetos formou um comitê interinstitucional com a meta de reativar o setor de petróleo e gás natural. A USO pediu para ser incluída nesse comitê, pois ajudar a formatar a política relativa ao desenvolvimento do setor é algo que nos beneficia. Mas há interesses conflitantes. Um exemplo-chave: o Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável se opõe ao fortalecimento da capacidade produtiva do setor.
cg: Para contextualizar um pouco: qual tem sido o papel histórico da USO na Ecopetrol?
cl: A USO foi fundada clandestinamente em Barrancabermeja em 10 de fevereiro de 1923: a organização celebrou seu centenário no ano passado. O sindicato serviu para defender os direitos dos trabalhadores empregados pela Tropical Oil Company [Companhia Tropical de Petróleo], uma multinacional estadunidense responsável por explorar o poço Infantas 2, descoberto em El Centro, no departamento de Santander. O poço está em operação desde 1918 e é o berço da indústria petrolífera colombiana.
No início, a USO era conhecida por defender os direitos dos trabalhadores e dignificar suas condições com o lema dos “três oitos” (oito horas de trabalho, oito horas de estudo e oito horas de descanso), inspirado na revolta de Haymarket em Chicago. O sindicato embarcou em uma agenda política mais abrangente quando liderou a chamada “greve patriótica” em Barrancabermeja, em 1948, exigindo a melhoria nas condições de trabalho, a nacionalização do petróleo e que o governo conservador então no poder barrasse a concessão de Mares, uma iniciativa que datava de 1909, quando o presidente Rafael Reyes concedeu a Roberto de Mares o direito de explorar petróleo nas florestas de Carare-Opón, no vale do Médio Magdalena.
Como resultado dessa greve, o governo conservador limitou a Tropical Oil Company a explorar petróleo na região até 25 de agosto de 1951; além disso, concordou que a concessão de Mares voltaria ao Estado após essa data. Isso levou à fundação da Empresa Colombiana de Petróleos (Ecopetrol), que se constituiu em agosto de 1951. É por isso que dizemos que, de certo modo, a USO foi responsável pela criação da Ecopetrol. Desde então, a USO tem defendido o petróleo como propriedade pública dos colombianos. Embora o sindicato fosse inicialmente de base, ligado a uma empresa específica, há cerca de 25 anos fizemos a transição para um sindicato do setor. Hoje, representamos trabalhadores de todo o setor de combustíveis fósseis na Colômbia, não apenas da Ecopetrol.
Somos um sindicato de esquerda que defende ideais como os de propriedade pública, ativos públicos e direitos dos trabalhadores. Porém, também somos pragmáticos: nossos trabalhadores querem um sindicato que defenda seus direitos, sua empresa, sua fonte de emprego e seu acordo de negociação coletiva. É claro que o alinhamento do sindicato com governos progressistas e de esquerda é mais fácil, mas as circunstâncias políticas mudam. Apesar de [Juan Manuel] Santos ter sido um candidato da direita, por exemplo, apoiamos sua reeleição em razão do processo de negociação da paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Hoje, a estrutura organizacional do sindicato consiste em um Conselho Nacional de Diretores, com 20 membros e o presidente. Existem 28 conselhos regionais em todo o país, e o corpo deliberativo mais elevado do sindicato é a Assembleia Nacional de Delegados. No setor de combustíveis fósseis, somos cerca de 25 mil trabalhadores, e cerca de 16 mil deles são empregados pela Ecopetrol, ainda que isso dependa dos ciclos de trabalho. O número de membros da USO no grupo Ecopetrol é de cerca de 9 mil trabalhadores, e os demais são trabalhadores temporários empregados por terceirizadas e outros operadores. Há outros sindicatos menores, mas somos o mais militante, que lidera a maioria das mobilizações e se envolve mais na ação política.2
cg: Qual é o papel da Ecopetrol na economia colombiana?
cl: Depois dos impostos e tributos, a Ecopetrol é a principal fonte de receitas da Colômbia. Em 2023, ela contribuiu com 58 trilhões de pesos colombianos para o país; isso equivale a 4% do PIB nacional e corresponde à soma das três últimas reformas tributárias nos últimos cinco anos. Na mais recente delas, aprovada pelo Congresso em 2022, o governo tentou fazer as empresas de mineração e petróleo pagar mais impostos, mas neste ano a Corte Constitucional revogou essa provisão, que teria garantido ao governo quase 7 trilhões de pesos em 2023. Agora, o governo precisa reembolsar o dinheiro já recolhido.
As contribuições da Ecopetrol sempre foram significativas para as finanças públicas colombianas. Se a Ecopetrol fosse privatizada, a empresa pagaria royalties e impostos, mas não geraria nada para o governo em termos de lucros, e essa diferença só poderia ser coberta por meio de reformas tributárias que taxassem ganhos privados. É por isso que importa defender contribuições que dependem significativamente das receitas e lucros da Ecopetrol.
Outro fator importante a ser levado em consideração é o preço internacional do petróleo cru: se estiver elevado, os rendimentos da nação tendem a ser melhores. Por exemplo, os preços se mantiveram abaixo de US$ 80 por barril nos últimos três ou quatro anos. Isso após a crise da Covid-19, na qual os preços desabaram a níveis negativos. Algumas empresas chegaram a pagar US$ 20 por barril para armazenar petróleo cru em navios, pois não havia transporte ou distribuição. A queda de preços mais recente havia sido em 2014, quando ocorreu uma crise global dos preços internacionais. A crise teve um impacto negativo para os trabalhadores do setor em todo o mundo, mas especialmente na Colômbia, onde os preços caíram dramaticamente, de US$ 118 por barril de petróleo tipo brent para US$ 37 em 2015.
cg: Você pode comentar sobre a relação da USO com governos anteriores?
cl: Embora o movimento trabalhista esteja constantemente em luta, certos governos foram mais prejudiciais aos sindicatos. As duas administrações de direita de Álvaro Uribe (2002-2010) foram particularmente contraprodutivas para o movimento sindical na Colômbia, em especial para a USO. Em 2003, quando Uribe estava no poder, entramos em greve. À época, o presidente da Ecopetrol era Isaac Yanovich, um reacionário adversário dos trabalhadores que odiava o sindicato. A USO era contra a privatização da Ecopetrol. Havia uma tendência de privatizar empresas públicas colombianas, como a Telecom, a antiga empresa estatal de comunicações, e o sindicato tinha motivos para crer que estavam planejando fazer o mesmo com a Ecopetrol. No fim, a greve teve um preço alto para o sindicato, resultando na demissão de 253 funcionários.
Além das greves, a Ecopetrol sofreu dois grandes golpes sob a presidência de Uribe. O primeiro foi o decreto n. 1.760, de 2003, que tirou dela sua preeminência nos contratos de petróleo, nas parcerias e na gestão dos royalties. Essas responsabilidades foram transferidas para a Agência Nacional de Hidrocarbonetos. O outro grande golpe veio com a Lei n. 1.1118, de 2006, que transformou a Ecopetrol em uma corporação e a autorizou a vender até 20% de suas ações. Esse decreto transformou a natureza econômica da Ecopetrol, fazendo dela uma empresa de capital misto. Seu proprietário majoritário era o Estado (88%), mas também tinha acionistas privados. Ademais, houve reformas trabalhistas e previdenciárias prejudiciais ao movimento trabalhista. Tudo isso fez da administração Uribe, para o movimento sindical, uma das mais conflituosas. À parte essas tensões, a história do sindicato tem sido marcada por violência e repressão.
cg: Você poderia falar mais a respeito dessa violência e repressão?
cl: Nosso sindicato foi uma vítima da guerra suja na Colômbia. Entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 2000, mais de cem líderes e ativistas da USO foram assassinados. A violência contra a USO é parte de uma tendência mais ampla de violência contra sindicatos em meio ao conflito armado. Os sindicatos eram associados às guerrilhas de esquerda e vistos como ameaça aos interesses empresariais, o que os tornou alvo de perseguição dos grupos paramilitares. Foram registrados 1.858 homicídios de membros de sindicatos entre 1986 e 2010, segundo dados do Observatório de Direitos Humanos da Presidência. A Comissão da Verdade documentou 865 atos que vitimaram membros da USO, principalmente nesse período. Houve quem admitisse ter cometido violência física contra líderes sindicais, e mesmo dentro da Ecopetrol alguns usaram violência contra o sindicato.
Em um caso infame, Aury Sará Marrugo, presidente da USO em Cartagena, foi assassinado em 5 de dezembro de 2001. Salvatore Mancuso, um dos principais ex-comandantes dos grupos paramilitares colombianos, mais tarde admitiu que líderes sindicais como Marrugo foram sequestrados e torturados. Depoimentos dados sob a Lei de Justiça e Paz (um instrumento legal instituído no governo de Álvaro Uribe para dar apoio à desmobilização de grupos paramilitares) também revelou que um oficial de segurança da Ecopetrol tinha conexões com os paramilitares. Consequentemente, muitos líderes sindicais evitavam se pronunciar.
cg: À parte os desentendimentos que a USO tem tido com o governo, como é a relação do sindicato com o Conselho de Administração da Ecopetrol e seu presidente, Ricardo Roa?
cl: Temos uma boa relação com o Conselho da Ecopetrol. Eles permitiram nossa participação em reuniões realizadas em Barrancabermeja e Bogotá com a vice-presidência de talento organizacional, mas algumas decisões não dependem do conselho, e sim do governo nacional. Quero deixar isso claro porque, embora a relação entre a USO e a Ecopetrol seja boa, algumas decisões são tomadas no nível do governo nacional.
Um ponto específico de desentendimento com eles é que defendemos uma transição verde sem interrupção na produção de petróleo e gás natural. Precisamos continuar produzindo petróleo e gás natural. Não só porque esse é o ramo tradicional da Ecopetrol, mas também porque isso garante o suprimento nacional de energia. Interromper a exploração de novas reservas é pôr em perigo a Ecopetrol e a economia nacional, dado que nossas reservas de combustíveis fósseis vão durar apenas mais sete anos. Atualmente, produzimos 758 mil barris por dia, incluindo a produção obtida por fracking na Bacia Permiana, nos Estados Unidos. Esse contrato dura até 2025. Temos 580 mil barris de petróleo cru, se descontarmos o gás natural. Se tirarmos os 64 mil barris obtidos da Bacia Permiana, então até o fim do próximo ano teremos uma produção de 516 mil barris de petróleo cru. Se aplicarmos um fator de declínio de 10%, em dois anos teremos 374 mil barris. Em outras palavras, vamos precisar importar petróleo cru para abastecer nossas próprias refinarias, com o problema adicional de que não teremos o que exportar. Essa questão nos preocupa como sindicato e deveria preocupar todo o país. Precisamos prosseguir com a exploração de petróleo e gás natural, seja como for.
Se não houver nenhuma nova descoberta nos próximos dois anos, não teremos petróleo cru suficiente para abastecer as duas maiores refinarias do país, em Cartagena e Barrancabermeja. Hoje, por razões puramente técnicas, importamos barris de petróleo cru para dar conta da demanda da refinaria de Cartagena, mas também exportamos mais de 300 mil barris de petróleo cru.
Não há dúvidas de que a Ecopetrol exerce o papel mais importante no setor de combustíveis fósseis na Colômbia. A empresa garante a autossuficiência energética e refina 440 mil barris por dia, transporta mais de 1,1 milhão de barris de petróleo cru e derivados, produz sete em cada dez barris e gera 80% do gás natural do país. Nesse sentido, investimentos em negócios tradicionais não podem ser suspensos, não apenas por motivos de suprimento de energia, mas também pelas receitas que eles fornecem à nação.
cg: A USO também se preocupa com a criação de empregos. Que propostas ela tem para a Ecopetrol a fim de garantir que a transição energética da empresa não leve à perda de postos de trabalho?
cl: Na assembleia da Ecopetrol realizada recentemente, o governo nacional e o Conselho de Administração aprovaram uma modificação no estatuto da companhia para permitir que ela seja considerada uma empresa de energia, e não apenas de petróleo e gás natural. É importante observar que grandes empresas em todo o mundo estão adotando a mesma tática, e pensamos que é uma boa ideia. A Equinor, a empresa estatal da Noruega, passou por transformação administrativa em 2018, tornando-se uma empresa geradora de energia.
Embora uma estratégia similar possa levar a Ecopetrol a liderar a transição energética na Colômbia, ainda são necessários recursos e mudanças regulatórias significativos. No momento, a companhia petrolífera não pode vender energia limpa; pode apenas gerá-la para consumo próprio. Em termos gerais, acreditamos que a transição energética na Colômbia deve ser conduzida pela Ecopetrol, a fim de que permaneça sob controle estatal. Caso contrário, o negócio será tomado por companhias privadas ou multinacionais, que vão contribuir para elevar os preços da energia.
Há, ainda, a situação trabalhista. Os empregos gerados pelo setor de petróleo e gás natural são de alta qualidade, graças a esforços da USO e de seus trabalhadores. Em contrapartida, empregos gerados por fontes alternativas de energia, como energia solar, tendem a oferecer salários baixos e são em menor número do que o exigido pelos principais centros de geração de energia. Nesse sentido, a qualidade do emprego é diferente, e precisamos garantir dignidade e proteção também para os empregos na energia limpa. Isso poderia ser feito na Ecopetrol, por ser uma empresa com um histórico de garantias trabalhistas para seus empregados.
cg: Como vocês se enxergam em relação ao movimento de trabalhadores do setor de petróleo em âmbito internacional, como os sindicatos de empresas como a Petrobras e a Pemex?
cl: O governo Lula, mesmo sendo de esquerda, não defendeu a interrupção da produção de petróleo e gás natural no Brasil. Ao contrário, o Brasil está incentivando cada vez mais a exploração em alto-mar, com a meta de atingir 6 milhões de barris. Isso não quer dizer que não esteja alinhado à transição verde, e sim que está trabalhando simultaneamente nas duas frentes. Embora o governo tenha um compromisso com a transição verde, não há risco aos empregos no setor de petróleo porque a exploração dos recursos continua.
Aqui, por outro lado, há a ideia de que precisamos parar de depender de combustíveis fósseis o quanto antes. Isso não vai acontecer, por razões técnicas e socioeconômicas. O que vai acontecer com uma região como o vale do Médio Magdalena, que tem uma dependência histórica do setor de petróleo e é um centro de produção, exploração, refino e transporte? Precisamos de uma transformação social que possibilite ao povo contar não apenas com o petróleo, mas também com outras oportunidades econômicas na região. No entanto, isso não pode ser feito do dia para a noite.
cg: Há um debate hoje na Colômbia a respeito dos subsídios para a gasolina e o diesel. O governo Petro, seguindo sua política de desestimular o uso de combustíveis fósseis, decidiu retirar parte desses subsídios, o que levou a um aumento nos preços da gasolina e, agora, do diesel. Os sindicatos do setor de transportes ficaram muito contrariados com essa decisão. Qual é a opinião da USO a respeito dos subsídios?
cl: Desde agosto de 2022, o presidente Petro buscou desmantelar o chamado Fundo de Estabilização do Preço dos Combustíveis, criado em 2007 com o propósito de evitar flutuações. O objetivo dessa criação era abastecer o fundo por meio da cobrança de preços maiores quando o valor internacional do petróleo estivesse baixo, e transformar o excedente em subsídio à gasolina quando estivesse alto. No entanto, desde sua criação, o fundo teve déficit, e o Estado precisou subsidiá-lo. Petro decidiu retirar esse incentivo gradativamente, começando pela gasolina, e agora anunciou que o mesmo vai se aplicar ao diesel. Desde julho de 2022, o preço de um galão [3,78 litros] de gasolina subiu de 9.046 para 14.564 pesos colombianos, um aumento de 61% em termos nominais e de 40% em preços constantes (ajustados pela inflação).
Na Colômbia, a estrutura de preços dos combustíveis fósseis é tal que 35% é composto por tributos. Outro fator que contribui para os níveis elevados é o combustível comprado do Golfo do México, um preço de referência internacional que aplicamos aqui. É por isso que dizem que o governo subsidia cada galão de gasolina com um tanto de dinheiro, porque no Golfo do México o galão de gasolina é mais caro. O governo Petro agora aplicou uma política de liberalização de preços para alinhar os nossos aos do Golfo do México. Fizeram isso com a gasolina e vão fazer o mesmo com o diesel.
Recentemente, o ministro da Fazenda disse que o aumento no preço do diesel seria de 6 mil pesos: 2 mil neste ano e 4 mil no próximo, em duas levas. Isso certamente vai levar a uma agitação social: transportadoras têm ameaçado parar a produção e já começaram a agir nesse sentido.
Nós da USO gostaríamos que houvesse maior rigor técnico e acadêmico para propor uma nova estrutura de preços, em que menos impostos seriam pagos e os combustíveis seriam mais baratos. Outra opção é que a Ecopetrol mantenha uma margem de lucro pelo refino do petróleo cru, depois de ele ser processado e entregue nos pontos de abastecimento. Porém, isso não tem sido possível por um motivo muito simples: se a estrutura de preços mudar, e os impostos forem reduzidos, então as receitas para as regiões serão menores. Há uma questão estrutural aqui, enraizada em como os preços dos combustíveis são determinados.
Tudo isso deveria fazer parte do debate público. As pessoas já estão questionando: se 20% da gasolina consumida no país é importada, mas todo o diesel é produzido internamente usando nosso próprio petróleo cru, por que os preços tanto da gasolina como do diesel deveriam estar amarrados aos do Golfo do México, se a maior parte da produção é local? Esse tem sido um debate de longa data no país. Do ponto de vista do sindicato, a estrutura de preços no país deveria mudar sem ter como resultado nem perdas à Ecopetrol nem a redução das receitas tributárias.
cg: Para encerrar, como você vê o futuro da exploração do petróleo e do gás natural?
cl: Podemos olhar para o exemplo do projeto Komodo 1, que envolve a perfuração de um poço em alto-mar a 40 quilômetros de Santa Marta. O objetivo desse projeto é identificar uma região produtora de gás natural com reservas que atendam às necessidades da Colômbia para os próximos anos. No entanto, o Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável suspendeu temporariamente o projeto, após solicitar à autoridade ambiental que aguardasse mais informações sobre seus impactos. Essa situação é contraproducente para a Ecopetrol, e para o suprimento de energia que precisamos garantir. Há um pedido no gabinete do ministério para converter mais de 80 poços estratigráficos em poços de produção, mas não houve avanço nesse pedido.
Estamos convocando os órgãos governamentais a coordenar e fortalecer a exploração na Colômbia, incluindo os 300 contratos que estão em desenvolvimento no país. Mencionamos a saída da Ecopetrol da negociação referente à Bacia Permiana nos Estados Unidos, que envolvia comprar da Oxy uma participação de US$ 3,6 bilhões nos ativos da CrownRock. Estimava-se que o negócio aumentaria a produção da empresa em 9%, mas o Conselho de Administração da Ecopetrol o rejeitou, citando uma preocupação fiscal, bem como a oposição do governo ao fracking. Não estamos dizendo que a decisão deveria ter sido outra, mas sugerimos ao conselho que os US$ 3,6 bilhões que não foram gastos deveriam ser repatriados e investidos no país.
Não é razoável manter todos os projetos de expansão da produção em compasso de espera, especialmente na falta de uma estratégia definida para o crescimento econômico da empresa. E, apesar de sucessivos pedidos, ainda não conseguimos obter um encontro sobre esse assunto com o presidente Petro.
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Em 28 de agosto deste ano, Israel lançou o maior ataque militar na Cisjordânia desde a Segunda Intifada, há mais de duas décadas. A operação, que batizaram de “Operação Campos de Verão” [Operation Summer Camps], teve como alvo três cidades no norte do território—Jenin, Tulcarém e Tubas—e matou 39 palestinos. Os militares também feriram 150 pessoas, prenderam dezenas de outras e destruíram a infraestrutura básica das cidades. Trechos de estradas foram removidos, fachadas de lojas foram derrubadas e linhas de água e eletricidade foram depredadas.
Apesar das declarações dos oficiais de segurança israelenses indicando que as incursões poderiam ser o início de uma operação militar prolongada, na verdade, houve retirada de algumas cidades do norte. Enquanto isso, as tropas permanecem ativas, com incursões e prisões registradas no fim de semana em Nablus e Hébron (os militares israelenses também mataram uma ativista de ascendência estadunidense e turca com um tiro na cabeça em uma manifestação em um vilarejo ao sul de Nablus no dia 6 de setembro).
A intensa operação terrestre e os dramáticos bombardeios aéreos recentemente iniciados têm menos a ver com a abertura de uma nova frente de guerra para além de Gaza e do Líbano e mais a ver com uma escalada da atividade militar de Israel no território. As forças israelenses têm passe livre na Cisjordânia ocupada e frequentemente o utilizam com o objetivo declarado de atacar os combatentes da resistência palestina. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 650 palestinos foram mortos Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, dos quais mais de 150 eram crianças. Poucos dias antes do lançamento da Operação Campos de Verão, colonos-soldados israelenses atacaram Wadi Rahal, um vilarejo próximo a Belém, e mataram um homem palestino. Duas semanas antes desse assassinato, os colonos perpretaram um pogrom no vilarejo de Jit, queimando casas e assassinando outro palestino. Ainda antes de outubro, 2023 já era o ano mais letal registrado para os palestinos na Cisjordânia.
Esses acontecimentos ocorrem no contexto do genocídio israelense em curso em Gaza e da ocupação militar do território por Israel em vigor desde 1967. A ocupação, amplamente considerada ilegal por toda a comunidade internacional, tem ficado mais forte e violenta a cada ano.
Na manhã seguinte ao início desse novo ataque ao território, conversamos com Fathi Nimer sobre as incursões, as condições de vida após outubro de 2023 e a história da anexação e da ocupação na Cisjordânia. Nimer trabalhou no instituto palestino Mundo Árabe para Pesquisa e Desenvolvimento, na Universidade de Birzeit e no Centro de Estudos sobre Direitos Humanos de Ramallah. Atualmente, é bolsista do programa de política da Palestina em Al-Shabaka.
Entrevista com Fathi Nimer
JACK GROSS: Ontem à noite, as Forças de Defesa de Israel (FDI) deflagraram uma operação contra vários territórios na Cisjordânia, com ataques aéreos em Nur Shams, bombardeios em Faraa, incursões em Beit Fajjar e um cerco a Jenin. O que sabemos sobre o que aconteceu até agora? Trata-se de uma operação limitada ou de uma escalada mais ampla?
FATHI NIMER: Rumores de que uma operação mais intensiva poderia ser lançada na Cisjordânia têm circulado nos últimos meses—e, a rigor, nos últimos dois ou três anos. Um dos motivos é que diferentes grupos de resistência surgiram nos últimos tempos, principalmente nos campos de refugiados, uma das únicas áreas em que os palestinos conseguem se organizar com relativamente menos interferência tanto da Autoridade Palestina (AP), como coordenadora de segurança, quanto do aparato de inteligência de Israel.
Essas áreas se tornaram centros dos novos grupos de resistência armada—que Israel pensava ter eliminado. Desde o início do genocídio, grupos na Cisjordânia procuraram desviar o aparato das FDI de Gaza. Podemos ter uma noção da ameaça representada por esses grupos se pensarmos que, pela primeira vez em quase vinte anos, Israel recorreu ao bombardeio aéreo desses campos. Eles já vêm fazendo isso há dez meses na Cisjordânia, mas não obtiveram os resultados desejados. As FDI acreditam que um ataque massivo poderá causar danos suficientes para dissuadir o prosseguimento da resistência.
O local escolhido pelas FDI para o ataque também é relevante. Jenin é conhecida como um local de resistência desde, pelo menos, a Segunda Intifada—no passado, esteve sujeita a toques de recolher prolongados e a mais assassinatos seletivos do que outras cidades da Cisjordânia. Mas, nesse momento, há também ataques direcionados pelas FDI a locais que não são normalmente associados à resistência armada, como Jericó, por exemplo. A situação na Cisjordânia se deteriorou tão rapidamente nos últimos anos, processo que se acelerou ainda mais desde outubro, que até mesmo áreas que não haviam sido alvo de ataques armados no passado estão sendo afetadas.
Embora o foco atual das FDI esteja no norte da Cisjordânia, a história não termina aí. Em paralelo, há uma grande “campanha de segurança” posta em curso pela AP em Nablus. Nesse tipo de operação na Cisjordânia, nem sempre fica clara a diferença entre as Forças de Segurança Nacional Palestinas e as Forças de Defesa de Israel: o objetivo comum de neutralizar a resistência armada e qualquer coisa que desafie o monopólio do poder da AP faz com que elas trabalhem em conjunto.
É importante ter em mente que o que acontece hoje é o resultado acumulado de uma série de eventos ocorridos ao longo de anos. A meu ver, o 7 de outubro acelerou o processo, mas sempre estivemos caminhando em direção a esse nível de escalada, porque a política de Israel é, como sempre foi, atacar com a maior força possível sem lidar com as pressões subjacentes. E, enquanto as causas fundamentais do conflito permanecerem inalteradas, inevitavelmente, a resistência será perene.
Outro aspecto a ser observado é que, evidentemente, Israel pode implementar um bloqueio econômico e fazer um genocídio em Gaza sem nenhuma repercussão local, mas, na Cisjordânia, há centenas de milhares de assentados israelenses. A Cisjordânia é um território pequeno, com assentados espalhados por toda parte—tanto em termos de concepção quanto de pré-requisito, os assentamentos são construídos para impedir a existência de um território palestino contíguo que possa se tornar um Estado. Os palestinos estão cercados por assentados israelenses e os assentados israelenses estão cercados por palestinos. Isso significa que, para todos os efeitos, um isolamento total é impossível.
Pode ser que a estratégia de Israel seja “viver pela espada”, mas essa espada se estende hoje por três frentes ativas—Gaza, Líbano, e agora a Cisjordânia—, sem contar o envolvimento periódico de outros grupos na região. Numa situação como essa, Israel tem realmente condições de enviar pelotões para cada um dos assentamentos, de botar um tanque em casa esquina? Isso afeta sua cadacidade de responder prontamente ao que acontece nas outras frentes.
Esta análise não é divulgada pela liderança política, que se limita a publicar bravatas. Mas entre as lideranças militares, há um entendimento de que, se perderem o controle da Cisjordânia e uma rebelião eclodir, isso será um problema maior do que os que poderiam surgir em qualquer outra frente, porque as populações ali estão muito misturadas.
DYLAN SABA: Como você disse, houve um aumento da atividade da resistência na Cisjordânia nos últimos anos, principalmente durante a chamada Intifada da Unidade, em 2021. Algo característico daquele momento e dos anos seguintes foi o surgimento de grupos de resistência palestinos não afiliados às fações históricas da política palestina. Agora, o cenário permanece o mesmo ou há um retorno à política de resistência de facções na Cisjordânia?
FN: Minha impressão é que o cenário continua o mesmo. Os jovens, em geral, estão desiludidos com os partidos formais. Para ser franco, a maioria das facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi amplamente desmobilizada. O Fatah permanece alinhado à AP e, portanto, não está interessado em uma escalada—a rigor, nem todas as correntes do Fatah têm essa posição, mas as facções pró-resistência foram fortemente marginalizadas desde o fim da Segunda Intifada.
Na década de 2000, houve até um estadunidense, o general Keith Dayton, presidindo o que foi chamado de reforma do setor de segurança. Os detalhes desse episódio são complexos—envolvendo tensões entre os governos dos EUA e de Israel e a cooperação com setores de inteligência da Jordânia e com forças militares egípcias—, mas, basicamente, o que aconteceu foi a criação de um novo quadro de soldados treinados pelos EUA, leais à liderança da AP, mas não ao Fatah como partido político. A antiga força de segurança foi desmantelada e essa nova força, treinada pelos EUA, tomou o seu lugar. Essas são mesmas forças que reprimem protestos, inclusive com meios letais, em toda a Cisjordânia.
E isso faz sentido, já que praticamente todo protesto se transforma inevitavelmente em um protesto contra a AP, porque ela é um quase-governo que participa diretamente da repressão aos palestinos. A atmosfera política sufocante da Cisjordânia faz com que as pessoas tenham muito medo do mukhabarat, o Estado de inteligência, um fenômeno tipicamente árabe atualmente. Aqui na Cisjordânia, temos somente o aparelho repressivo do Estado, sem termos um Estado de fato.
Voltando à sua pergunta sobre os grupos de resistência atuais, é importante entender que eles são transversais às facções: os jovens reivindicam afiliações a diferentes grupos partidários sem a sanção oficial desses grupos. Penso que esse é um dos principais motivos pelos quais é difícil reprimi-los ou cooptá-los. Eles não são facilmente pegos via repressão frontal ou suborno. Isso ficou muito evidente no caso da Cova dos Leões, um grupo da Cidade Velha de Nablus que ganhou certa proeminência em 2021. A AP não conseguiu suborná-los com empregos no aparato de segurança, e Israel conduziu uma campanha de um ano para assassinar todos os líderes do grupo, mas não conseguiu desmantelar completamente a organização. É possível que isso seja parte do motivo pelo qual o ataque israelense é tão duro e devastador. A mensagem que eles pretendem passar é que seu poder é totalmente asfixiante e que resistir seria ridículo. Creio que a tentativa de passar essa mensagem é o que explica grande parte da política de “segurança” israelense na Cisjordânia.
DS: Você apontou uma série de ameaças de diversas naturezas que os palestinos enfrentam, desde antes de 7 de outubro, na Cisjordânia—ameaças de incursões militares israelenses, de violência dos colonos e da AP. Como você entende a relação entre essas diferentes forças repressivas na Cisjordânia?
FN: O objetivo da colonização capitaneada pelo Estado de Israel é garantir o máximo de terras palestinas com o mínimo de palestinos.
Mesmo quando ninguém o invoca, esse imperativo ainda anima a corrente principal da política israelense. As forças opressoras que você citou estão todas orientadas para esse objetivo. Os colonos são essencialmente tropas terceirizadas que consubstanciam a colonização da Cisjordânia. É um erro considerar colonos e Estado como coisas separadas.
Quando os colonos intimidam os palestinos, são protegidos pelo Exército de Israel, que, por ser um exército de recrutas, também inclui colonos alistados. Na verdade, há unidades inteiras formadas apenas por colonos (uma dessas unidades, como você deve se lembrar de alguns meses atrás, deveria ter recebido sanções dos EUA, mas os EUA recuaram porque, para o governo Biden, até mesmo esse gesto simbólico de aplicar a Lei Leahy significaria rigor excessivo).
Portanto, essas forças trabalham de mãos dadas. Os colonos agem mais diretamente no roubo das terras e consideram o método de anexação do Exército muito lento e cauteloso. O Exército vê os colonos como um embaraço internacional, mas, no fim das contas, os dois têm o mesmo objetivo, que é maximizar a posse de terras palestinas.
Há muitos métodos de desapropriação, e a expansão dos assentamentos é somente uma das formas de anexação em operação na Cisjordânia. As reservas naturais foram usadas para anexar muitas terras palestinas. Nas Colinas do Sul de Hebrón, uma faixa inteira de terra foi designada como “zona militar fechada”—anexada ostensivamente para fins militares, o que acabou encorajando o assentamento ilegal.
Não obstante a retórica israelense em sentido contrário, uma avaliação do período pós-Oslo sugere que a Autoridade Palestina foi um dos melhores investimentos que Israel já fez: eles mantêm o controle das fronteiras e do espaço aéreo enquanto a AP cuida de todo o “trabalho sujo”, como educação, coleta de lixo, assistência médica, preocupações com a segurança de Israel e todas as questões administrativas básicas e desagradáveis que vêm com a ocupação e que, de acordo com o direito internacional, o ocupante deve prover. E cuida de tudo isso sob condições extremamente restritivas.
Teoricamente, a AP foi criada como um órgão provisório cuja finalidade era estabelecer um Estado palestino no prazo de cinco anos. Ela resultou do processo de Oslo e, mais especificamente, do Acordo de Oslo II. Mas os parâmetros do poder da AP eram muito limitados, tanto naquela época quanto agora. A AP não tem qualquer autonomia ou soberania de fato. Hoje ela é apenas um órgão administrativo ordinário com alguma pompa. Um dos aspectos de Oslo II era o chamado Protocolo de Paris, que dispunha sobre o sistema econômico da AP, sobre como ela administraria sua economia e que relação teria com a economia israelense, porque, para todos os efeitos, a economia israelense engoliu a economia palestina. Isso também foi algo planejado, via um processo de reversão do desenvolvimento que começou já no início da ocupação, quando foram instituídas todas essas legislações para impedir que os palestinos concorressem de alguma maneira com os israelenses e para inundar os mercados palestinos com produtos israelenses. Portanto, os palestinos são uma base de consumidores cativos e uma força de trabalho cativa—dentro das fronteiras de Israel e nos assentamentos na Cisjordânia.
JG: Você poderia explicar melhor como a Cisjordânia é dividida em termos jurídicos, militares e de infraestrutura? O que são as áreas A, B e C? Por que essas distinções existem? O que elas significam para os palestinos que vivem sob ocupação? Além disso, até que ponto as restrições à movimentação e à atividade econômica dos palestinos na Cisjordânia se intensificaram depois de 7 de outubro?
FN: Conforme os acordos de Oslo, a Cisjordânia é dividida em três áreas: A, B e C. A Área A é a menor. Teoricamente, ela estaria totalmente sob o controle palestino, mas, na prática, não há nada que esteja efetivamente sob controle palestino. Na Área B, o controle é compartilhado, supostamente, entre a AP, no que diz respeito aos assuntos civis, e as FDI, no que diz respeito à “segurança”. A Área C, maior pedaço de terra da região, está totalmente sob controle israelense, e compreende a maior parte do que deveria ser o “Estado palestino” após o processo de paz. É nesse contexto que a Autoridade Palestina mantém seu programa político de uma solução de dois Estados.
Os palestinos são impedidos de ter sua própria moeda ou de cobrar seus próprios impostos. Israel cobra impostos sobre tudo, principalmente o IVA e os impostos de importação, o que significa que, se Israel quiser congelar ou se apropriar dessas receitas, poderá fazê-lo—e o faz com frequência, sempre que quer exercer qualquer tipo de pressão sobre a Autoridade Palestina. Ou seja, não temos permissão nem mesmo para alterar nossas tarifas, impostos ou qualquer outra coisa. Temos unidade tributária, mas não temos permissão para mudar nada disso. Há também projetos como o Comitê Conjunto de Águas, que determina como a água é distribuída—uma reformulação nominal de como isso era feito antes da AP—, que garante ao Exército israelense poder de veto em qualquer coisa relacionada a essa distribuição. No fim das contas, é Israel quem determina quais palestinos têm acesso a água, pois é quem concede as licenças.
Por exemplo, não temos permissão para escavar em busca de água além de certa profundidade, e quem é pego fazendo isso tem seu poço cimentado. Quem quiser escavar para obter água, terá de solicitar uma licença. Obviamente, a taxa de rejeição das licenças ultrapassa os 98%. Isso ocorre até mesmo na Área A, que supostamente está sob controle total da AP.
Podemos traçar um paralelo entre o sistema de águas e muitas outras restrições de recursos na maior parte da Cisjordânia, porque esse sistema de controle afeta tudo. Até mesmo para construir uma casa é necessário obter uma licença. O pedido não é feito ao seu governo, a AP, mas à Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT) do Exército israelense. E boa sorte para conseguir uma aprovação. É por isso que ouvimos tantos relatos de demolições de casas. As demolições não se restringem a punir pessoas condenadas por “terrorismo”, mas afetam outras famílias sujeitas ao regime de licenciamento de Israel. A propósito, as condenações por terrorismo também oferecem uma visão muito interessante sobre os tribunais militares de Israel: 99,7% dos casos terminam em condenação. Basicamente, você pode ser acusado de, sei lá, ter plantado uma árvore na sua cabeça, e ainda assim ser condenado, porque o sistema funciona dessa forma. Não há como recorrer de nada, se é que haverá algum julgamento. No caso da detenção administrativa, nem sequer há o direito a um julgamento ou ao devido processo legal. Mais de 3.6 mil palestinos estão atualmente detidos dessa forma. A pessoa simplesmente é presa por seis meses, prazo que pode ser renovado indefinidamente, e, em muitos casos, o advogado nem sequer sabe qual é a acusação. Muitas pessoas passaram dez ou vinte anos detidas administrativamente sem saber o motivo.
Portanto, todos esses sistemas tornam a vida na Cisjordânia muito difícil, especialmente na Área C, que está sob controle total de Israel. A Área C é predominantemente rural, e o objetivo é que o maior número possível de palestinos se desloque dessas áreas rurais, porque sua residência obstrui o acesso dos centros urbanos, que estão na área A, a vários recursos— as principais cidades ficam nesse centro, como Ramallah, Nablus e a maior parte de Al Khalil.
E o que está acontecendo agora, depois de 7 de outubro? Como eu disse, a vida já era difícil nessas áreas mas, desde outubro de 2023, tudo se tornou muito mais complicado e imprevisível.
Vocês já devem ter visto imagens de Ben-Gvir distribuindo rifles para os colonos. Mais de 100 mil armas foram distribuídas desde o início da guerra, e os colonos usam essas armas para perseguir, atacar e atirar em palestinos na Cisjordânia sem precisar de grandes motivos. O Exército, é claro, os protege.
Mais de 150 mil palestinos trabalhavam do outro lado da Linha Verde, e todos eles foram proibidos de atravessar a linha para obter seu sustento depois de outubro. Apenas para dar um exemplo de algo que mudou, minha família tem uma pequena fazenda em um vilarejo chamado Kufr Ein, que fica a trinta minutos de Ramallah. Desde o dia 7 de outubro, com os colonos indo para todos os lados e com o fechamento dos postos de controle, agora levamos mais de uma hora para chegar lá, porque temos de pegar uma rota muito tortuosa de estradas estreitas e atravessar vilarejos palestinos que não têm infraestrutura para esse tipo de tráfego. Mesmo antes de outubro, estimava-se que 60 milhões de horas de trabalho eram desperdiçadas todos os anos por causa das restrições de movimentação impostas aos palestinos. As restrições de movimentação incluem postos de controle, desvio de estradas, cercas de separação, o regime de licenças e outras dificuldades diversas.
Todas essas dificuldades nos impedem até mesmo de nos adaptarmos ao sistema de ocupação sob o qual vivemos, simplesmente porque uma economia palestina real ou a autossuficiência dos palestinos não são coisas desejáveis. Um exemplo claro disso é o caso das cooperativas agrícolas, espinha dorsal da economia dos palestinos nos anos 1980, que se tornaram alvo do então ministro da Defesa Yitzhak Rabin. Rabin instruiu o Exército a impor toques de recolher nos vilarejos palestinos durante o período da colheita para que as plantações apodrecessem no campo.
Na década de 1960, Moshe Dayan disse que se Israel pudesse cortar a energia elétrica de Hebrón, seria um meio de controle muito mais eficiente do que mil dispersões de revoltas. E ele estava certo. Temos de escolher entre a privação total ou nos tornarmos partes mais obedientes do sistema—por exemplo, nos afastar do vilarejo de nossas famílias para ganhar um salário do outro lado da Linha Verde, o que, na prática, reduz o número de palestinos nas áreas em que os colonos israelenses vêm procurando estabelecer postos avançados.
JG: Além do controle militar direto sobre os palestinos e seus meios de subsistência na Cisjordânia, houve esforços para transferir parte desse controle do comando militar para o comando civil israelense. Na primavera de 2023—depois de o partido Likud ter votado, em 2017, a favor de uma política de anexação formal e completa da Cisjordânia—, um acordo entre Smotrich e o ministro da Defesa Yoav Gallant começou a transferir vários poderes do comando militar para o comando civil, um passo claro em direção à anexação de jure, e não apenas de facto,da região. Essa transferência de autoridade se acelerou no último ano. Você pode falar mais sobre essas medidas e o que elas representam para a política de colonização de Israel e para os palestinos na Cisjordânia?
FN: Quase sempre que Israel faz algo de jure, isso já foi estabelecido de facto.
Vimos isso com Jerusalém Oriental, que foi tratada como parte de Israel durante décadas, em clara violação ao direito internacional. E aí, na década de 1980, eles disseram “vamos fazer isso de jure” e aprovaram a Lei de Jerusalém, que declarou uma Jerusalém unificada como a capital de Israel. A reação a essa medida foi diminuindo, ninguém mais se importava. É exatamente assim que eles mudarão o status quo na questão do Nobre Santuário. Eles negaram qualquer intenção de mudar esse status por um longo tempo, mas estão fazendo isso nesse exato momento.
Há muito tempo, o bloco pró-assentamento fala abertamente sobre seu objetivo de anexação da Cisjordânia. Essa é uma posição comum em toda a direita israelense.
Por mais interessante que seja o assunto, discutir cenários possíveis para um Estado independente é, a essa altura, um exercício meramente acadêmico, porque os acontecimentos concretos já estão determinando tudo. Alguns poderes de concessão de licenças, como você mencionou, foram transferidos para uma autoridade civil, o que é uma grande violação da Quarta Convenção de Genebra e da legislação de ocupação. Para que uma ocupação seja legal, ela precisa ser temporária, esse é um conceito fundamental da legislação internacional de direitos humanos, que é frequentemente repetido pelos tribunais israelenses. Mas, dada a transferência de centenas de milhares de colonos para o território ocupado, é claramente uma mistificação chamá-la de ocupação temporária. Simplesmente não se investe bilhões de dólares em uma área nem se constrói uma infraestrutura de controle permanente quando se trata de uma medida temporária. E não se transfere o controle para uma autoridade civil quando se está realizando uma ocupação militar temporária. Há décadas que existem evidências muito claras de que Israel pretende anexar a Cisjordânia.
O que essas novas medidas significarão, então, para os palestinos? Penso que o maior efeito que isso terá sobre os palestinos é que, em vez de haver uma taxa de rejeição de licenças de 98%, veremos uma taxa de 100%—uma mudança quantitativa, ou de velocidade. Mas a pergunta que fica é: como será a anexação de jure? Não me parece que eles queiram assumir completamente o controle da Área A. Penso que eles preferem ter uma Autoridade Palestina ainda mais diminuída, talvez governada por alguém como Mohammed Dahlan, na Área A, enquanto assumem o controle total das Áreas B e C.
Eles já estão começando a fixar assentamentos na Área B. Isso causou espanto quando aconteceu pela primeira vez, há uma década, mas hoje é normalizado. Os parâmetros dos Acordos de Oslo estão gradualmente se desfazendo já há algum tempo, mas penso que é seguro dizer que, a esta altura, eles já deixaram de valer totalmente.
Mesmo que ocorra um cessar-fogo, não voltaremos ao estado anterior das coisas. Nem na Cisjordânia, nem em Gaza e nem no ‘481, onde os cidadãos palestinos de Israel, nesse momento, estão basicamente vivendo sob o domínio de um Estado militar. Alguns colegas que vivem dentro de Israel descrevem um nível de censura semelhante ao que existia antes de 1967, quando viviam sob um governo militar.
Após a retirada de Gaza na década de 2000, ninguém queria cogitar a possibilidade de uma reocupação. Os israelenses estavam felizes por terem se livrado desse fardo. Mas agora há pessoas que realmente pedem uma limpeza étnica em Gaza, para esvaziar o território e restabelecer os assentamentos dali—essa é uma mudança radical em relação à última década. Se um retorno à colonização direta for viável novamente em uma área como Gaza, isso será uma ameaça significativa para a Cisjordânia. Será impossível manter o status quo aqui. Nesta semana, o ministro israelense das Relações Exteriores, Israel Katz, sugeriu evacuar os palestinos da Cisjordânia para lidar com a resistência armada. Portanto, apesar da ampla continuidade e do precedente que estou descrevendo, penso que não estamos preparados para o que está por vir.
Mil linhas vermelhas já foram cruzadas. A única maneira de Israel interromper essa política é se houver um custo—político ou econômico—para o seu prosseguimento.
DS: Você falou sobre como as populações de colonos israelenses e de palestinos estão interligadas na Cisjordânia. O número de colonos judeus israelenses nos territórios ocupados após 1967 passou de alguns milhares para quase 500 mil (230 mil em Jerusalém Oriental e 25 mil nas Colinas de Golã, por exemplo). Como esse assentamento foi incentivado, ideológica e economicamente?
FN: A mudança para os assentamentos é fortemente encorajada, porque os colonos têm muitos subsídios e contam com muita segurança. Há seis ministérios do governo que oferecem benefícios de educação, moradia, investimento, assistência social e incentivos fiscais para indivíduos e empresas.
Os assentamentos são definidos como áreas de prioridade nacional, o que significa que recebem subsídios de aluguel, educação e até melhorias em classificações de crédito. Ou seja, mesmo os aspirantes a colonos sem vinculação ideológica com esse projeto podem ser motivados a se mudar para os assentamentos ilegais, onde é possível desfrutar de privilégios da cidadania israelense e há a mesma disponibilidade de tudo que há dentro da Linha Verde, só que por um preço mais baixo.
Os assentamentos não são apenas postos avançados remotos: sua construção requer uma rede de infraestrutura, água, eletricidade, cercas e proteção militar. As estradas exigem a anexação e o recorte de porções maiores do território, o que requer a construção de cordões de segurança e, por sua vez, ainda mais anexação. Estamos falando de água, estamos falando de eletricidade, estamos falando de cercas, estamos falando da presença do Exército. E a presença do Exército também exige estradas, que por sua vez requerem a anexação de outros mais territórios, e também a construção de um cordão de segurança ao redor da área, o que demanda, novamente, a anexação de mais territórios dos palestinos.
JG: Com frequência, se diz que o Plano Allon está na origem da ideia de anexação da Cisjordânia. Todo plano de anexação costuma estar associado à extrema direita da política israelense—hoje em dia, particlarmente, a figuras como Smotrich—, mas você poderia falar um pouco mais sobre essa relação?
FN: O Plano Allon foi originalmente elaborado por Yigal Allon depois da guerra de 1967 e da tomada por Israel da Península do Sinai, das Colinas de Golã, de Gaza e da Cisjordânia. Seu objetivo era delinear as etapas seguintes da expansão de Israel. Ele passou por muitas revisões—inicialmente, Gaza deveria ser completamente anexada, por exemplo—, mas é notável que o projeto para a Cisjordânia tenha permanecido sem grandes alterações, invocando o Vale do Jordão e as áreas ao redor e ao sul de Jerusalém.
Se compararmos o mapa da Área C e o mapa da construção de assentamentos hoje, veremos que o que está sendo feito é muito parecido com o que Israel pretendia fazer logo após 1967. A agenda do plano Allon era criar essa pequena zona autônoma entre Nablus e Jenin para que os árabes “governassem a si mesmos”.
As principais interpretações do Plano Allon não se realizaram de fato, mas os mapas, a lógica por trás deles, as áreas que foram anexadas e as propostas para a construção de assentamentos são todos os mesmos. Isso desmente a associação do estabelecimento dos assentamentos com a direita, com a organização extremista Juventude das Colinas ou com qualquer governo ou corrente política específica de Israel. A lógica fundamental é a mesma há muito tempo, e a associação da anexação e da colonização com a direita é um fenômeno muito recente, fora de sintonia com o registro histórico da limpeza étnica dos palestinos.
DS: Gostaria de falar sobre o direito internacional e a estratégia de abordar juridicamente a questão por meio de apelos às instituições internacionais. Há um amplo consenso internacional de que o projeto de assentamento israelense na Palestina é ilegal, mas, como você mencionou, esse reconhecimento quase nunca é acompanhado de ações ou de quaisquer consequências.
No mês passado, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) deu um parecer consultivo declarando que os assentamentos em toda a Palestina ocupada, bem como a própria ocupação, são ilegais, e afirmando que Israel tem o dever legal de evacuar os assentamentos, pagar indenizações aos palestinos e honrar o direito de retorno. Como esse parecer é recebido pelos palestinos na Cisjordânia? Como a estratégia mais geral de Abbas foi recebida na Cisjordânia antes e depois de 7 de outubro? Você acredita que esse parecer ou essa abordagem abrem novos caminhos para uma atuação jurídica ou criam alguma base para a reivindicação da autodeterminação palestina?
FN: Isso tem alguma utilidade, especialmente do ponto de vista das relações públicas. É útil também para o ativismo jurídico porque, para muitas pessoas em todo o mundo, a ideia de direito internacional ainda tem algum peso. Se um país está violando o direito internacional, então há uma base para fundamentar uma reivindicação moral contra essa prática. Não há discordância, digamos, entre os palestinos nas ruas, de que nossos direitos estão sendo violados, de que a Convenção de Genebra está sendo violada. A questão é: quais as consequências disso?
No que diz respeito à realpolitik, não me parece que isso realmente esteja influenciando o modo como os Estados pensam. Há apenas alguns meses, os EUA declararam que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU não era vinculante. Então, o que nos resta? Houve uma rejeição de toda a ordem internacional! A questão de como a decisão da CIJ pode afetar a situação precisa ser posta no contexto do fracasso das negociações pós-Oslo, que simplesmente excluíram o direito internacional da equação. Em cada etapa, os palestinos são pressionados a abrir mão de seus direitos para que as negociações possam avançar e, se os palestinos negarem um acordo ruim, todos os palestinos serão imediatamente considerados pessoas que rejeitam a paz, e essa caracterização justificará mais ocupação e mais anexação, porque supostamente agimos sem razão.
Esse tem sido o modus operandi por trinta anos, com resultados catastróficos. Como ficamos sabendo pelos Palestine Papershá alguns anos, a Autoridade Palestina basicamente abriu mão do direito de retorno consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Ninguém consultou os refugiados a esse respeito, mas isso foi sacrificado para que as negociações avançassem. Quando analisamos as posições na negociação, o compromisso de Israel se resume a uma mera promessa de cumprimento do direito internacional.
JG: Outro elemento impressionante do parecer da CIJ é a ideia de que os assentamentos precisam ser despovoados, dada a sua ilegalidade, o que, está claro, é uma etapa logicamente necessária para uma solução de dois Estados, mas também está em óbvia contradição com os fatos que observamos e com a imensa importância dos colonos na política e na sociedade israelenses.
FN: Quando Israel retirou os colonos de Gaza, isso provocou um enorme clamor público—inclusive a renúncia de Netanyahu do governo de Sharon. Ainda existe um grande movimento, o Movimento Laranja, que protesta contra a retirada de Gaza.
Na época, só cerca de 8 mil pessoas foram realocadas. Como Israel sobreviveria politicamente realocando mais de meio milhão de colonos para longe de seus postos ilegais? A Autoridade Palestina até ofereceu a troca de terras—trocar território israelense por assentamentos. Isso foi algo não só ridículo, produto do desespero pela solução de dois Estados, mas também inútil, porque não havia, do lado israelense, vontade de permitir a existência de um Estado palestino. Vemos essa oposição total a um Estado palestino diariamente nos comentários dos governantes israelenses. Portanto, a meu ver, a solução de dois Estados—seja na versão do governo dos EUA ou na de analistas e ativistas—é uma discussão completamente abstrata, uma cortina de fumaça que desvia a atenção dos fatos reais.
Para os palestinos, a questão não é o número de Estados, é a soberania. Em Camp David, nos ofereceram um Estado farsesco, sem controle sobre nossas fronteiras, nosso espaço aéreo e nossa água. Em nosso Estado supostamente soberano, não temos forças armadas nem controle sobre a maior parte de Jerusalém Oriental, designada como nossa capital. Isso é o que foi oferecido aos palestinos, algo completamente sem sentido. O que os palestinos precisam ou querem não entra na equação, e os Estados Unidos—com remessas diárias de armas e imenso domínio em fóruns internacionais, sem os quais Israel não poderia se sustentar—não são uma terceira parte neutra agindo em prol de uma resolução significativa.
O progresso das negociações de cessar-fogo pode ser lido como uma analogia grosseira e brutal de como as administrações anteriores falavam sobre a mudança em direção a uma solução de dois Estados: garantia constante de que a diplomacia está trabalhando duro nos bastidores, prestes a realizar um avanço, enquanto a anexação e a matança prosseguem com apoio inabalável.
Desde o início da guerra em Gaza, a causa palestina ganhou um espaço significativo no sistema jurídico internacional. Além dos procedimentos legais resultantes da própria condução da guerra por Israel—o país é formalmente acusado de genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ) e há chance de que mandados de prisão por crimes de guerra e contra a humanidade sejam expedidos contra líderes israelenses, inclusive Benjamin Netanyahu—, a chamada abordagem baseada em direitos ganhou impulso como referência para tratar a autodeterminação palestina. Em menos de um ano, mais nove nações1 anunciaram o reconhecimento formal da Palestina e, no último mês, a CIJ emitiu um parecer consultivo declarando ilegais a ocupação e o assentamento israelense em Gaza, em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia.2 Esses desdobramentos alavancam a noção de que existe um Estado palestino de jure, apesar da ocupação beligerante de Israel.
Da perspectiva da libertação palestina, a abordagem baseada em direitos tem vantagens significativas em relação ao paradigma que vem a substituir: o arcabouço de Oslo, segundo o qual o estabelecimento de um futuro Estado palestino deveria resultar da negociação entre representantes israelenses e palestinos sob supervisão estadunidense. As negociações bilaterais falharam sistematicamente em razão da profunda assimetria de poder entre as partes e da parcialidade dos Estados Unidos na mediação. A abordagem baseada em direitos evita esses constrangimentos ao recorrer a marcos legais e instituições jurídicas internacionais para reivindicar uma solução.
O tratamento legalista, porém, tem suas próprias limitações. Ao adotar a lógica da partilha do território, os esforços em curso no arcabouço legal existente ignoram a violência fundamental da desapropriação e do deslocamento palestinos que remonta ao início da ocupação israelense em 1967. Em resposta a essas insuficiências, o jurista palestino Rabea Eghbariah publicou um artigo em uma revista acadêmica de direito apresentando a Nakba como um novo conceito jurídico que incorpora de forma precisa os danos infligidos ao povo paltestino. O artigo, “Toward Nakba as a Legal Concept”, atraiu a ira e provocou a censura de acadêmicos e do corpo administrativo da Faculdade de Direito Columbia. Situação semelhante já havia acontecido com uma versão anterior do texto em Harvard. O trabalho foi finalmente publicado pela Columbia Law Review no primeiro semestre de 2024.
Rabea Eghbariah está concluindo seus estudos de doutorado na Faculdade de Direito de Harvard e trabalha com restrições aos direitos civis e políticos dos palestinos como advogado e pesquisador. Na seguinte entrevista, Jack Gross, editor da Phenomenal World, e Dylan Saba, advogado e escritor, conversam com Eghbariah sobre a Nakba e a Palestina no direito internacional.
Entrevista com Rabea Eghbariah
Jack gross: Vamos começar com uma pergunta fundamental. O que há de excepcional na experiência palestina em relação ao direito internacional?
rabea eghbariah: Existem duas perspectivas para analisar isso. Uma delas diz respeito à singularidade desse caso, a outra, à proeminência—mesmo o que não é excepcional se torna particularmente vívido na Palestina. É claro que, em termos históricos, há muitas singularidades no caso da Palestina. Mas meu trabalho também consiste em demonstrar que os marcos legais aplicados à Palestina fazem parte de um sistema jurídico internacional mais amplo e representam as hierarquias coloniais que ele produz em sentido geral. E esse é um caso que permite observar essas estruturas em sua forma mais crua.
A questão palestina é uma história centenária que pode remontar a distintos pontos de origem, mas uma referência chave para entendê-la é a Declaração de Balfour, de 1917, quando o governo britânico se comprometeu oficialmente a apoiar o estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina. A partir daí, o direito internacional foi a estrutura usada para incubar o sionismo na Palestina, por meio do sistema de mandato. Um aspecto singular da Palestina sob esse sistema é que, entre todos os territórios classificados e incorporados pela Comissão de Mandato, foi o único ratificado e constituído como colônia de povoamento.
O sistema de mandato fazia parte da estrutura da Liga das Nações.3 Era um estatuto legal que classificava diferentes nações como Mandatos de Classe A, B ou C. A Palestina era um Mandato de Classe A, o que significava, nos termos dos próprios classificadores, que estava entre os territórios mais próximos da civilização e mais aptos à autoadministração. A Declaração de Balfour foi publicada em 1917, seguiram-se a ela cinco anos de governo militar e, em 1922, o Mandato Britânico na Palestina foi consolidado.
Sob o sistema de mandato, o sionismo e o colonialismo britânico trabalharam em conjunto. Qualquer pessoa pode encontrar isso incorporado e positivado ao longo de todo o texto do Mandato Britânico para a Palestina. A única menção ao gentílico “palestino”, por exemplo, está no Artigo 7, que regulamenta a aquisação da cidadania palestina por judeus. O arranjo decorrente segue essa mesma lógica, apagando 94% da população local sob a classificação identitária negativa como “comunidades não judaicas da Palestina” e garantindo a prevalência das reivindicações nacionalistas judaicas do território. O Mandato tinha o fim de facilitar tanto a imigração de judeus para a Palestina quanto o desenvolvimento de instituições autônomas sionistas, ao mesmo tempo em que suprimia ou negava possibilidades semelhantes aos palestinos.
Tudo isso, é claro, antecede 1948. É a pré-condição da Nakba, o estabelecimento de um sistema que negava ao povo palestino a autodeterminação e a criação de instituições autônomas de governo. O objetivo era claramente declarado e foi explicitamente descrito em uma carta enviada por Balfour ao primeiro-ministro David Lloyd George: “no caso da Palestina, nós deliberada e corretamente nos recusaremos a aceitar o princípio da autodeterminação”.4 O Mandato estabeleceu a infraestrutura jurídica internacional que de fato define o cenário atual da Palestina.
Estamos falando de um projeto colonial de povoamento viabilizado por instituições jurídicas internacionais que culminou na Nakba de 1948. Uma vez construído o cenário, o direito internacional se reafirmou por meio do plano de partilha do território. A partir da revolução árabe contra o Mandato, em 1936, os britânicos essencialmente passaram a buscar uma saída para a situação. Após a Segunda Guerra Mundial, decidiram delegar a questão palestina à recém-constituída Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU enviou um comitê para produzir um relatório sobre a Palestina, que apresentou duas conclusões conflitantes: uma linha minoritária favorável ao Estado único e uma majoritária a favor da partilha.5 A linha majoritária do relatório, que obviamente venceu a disputa, continha um excesso de linguagem explicitamente racista, argumentando, entre outras coisas, que os palestinos eram retrógrados demais para a concessão do direito à autodeterminação. Essa linguagem colonialista era ainda muito influente em 1947 e de fato orientou a maneira como a comunidade internacional lidou com a Palestina.
dylan saba: Como você lê o fato de que a partilha—ao mesmo tempo uma forma de estratégia colonial e uma tecnologia jurídica—foi a solução vencedora?
re: A partilha é um mecanismo desenvolvido durante a colonização. Os britânicos a usaram primeiro na Irlanda, depois no subcontinente indiano. Era entendida como um tipo de solução e uma forma de descolonização—uma resposta, nessa medida, a questões de nacionalidade. No entanto, é claro, é um mecanismo que consolidou violentamente, em cada caso, os legados do colonialismo. No caso do subcontinente indiano, implicou um grande e agressivo deslocamento populacional, destruindo a integridade territorial, suprimindo a diversidade de identidades políticas e obliterando a autodeterminação da Caxemira.
Na Palestina, a partilha moldou o projeto colonial sionista de povoamento como um “conflito” entre duas nações rivais e não entre uma sociedade de colonizadores e um povo colonizado. O conceito de partilha também consolidou a lógica sionista de uma identidade judaica exclusivista que deve ser bifurcada6 e separada das identidades políticas árabe e palestina. O mantra dos dois Estados remonta a essa premissa da partilha.
Uma vez que a lógica da partilha foi adotada na Palestina, tornou-se necessário refutar a autodeterminação palestina e romper a integridade territorial para instalar o Estado judeu. A recomendação do Comitê Especial da ONU para a Palestina [UNSCOP, na sigla em inglês] em 1947 foi dar 56% do território palestino para o futuro Estado judeu, em uma época na qual os sionistas na Palestina detinham apenas 7% da área total das terras do Mandato. Os autores do relatório reconheceram que os 56% recomendados incluíam as terras mais férteis, enquanto a outra unidade, isto é, o futuro Estado palestino, talvez fosse economicamente inviável ou necessitasse de ajuda internacional contínua para se sustentar. Obviamente, os palestinos rejeitaram a recomendação, e é importante lembrar que, mesmo depois de 1948, seguiram contestando a partilha e oferecendo horizontes políticos alternativos.
A partilha, no entanto, sequer chegou a ser implementada na Palestina em sua forma original, mas deu origem à Nakba de 1948 e, a partir daí, consolidou um sistema brutal de dominação, fragmentação e rejeição da autodeterminação. O Plano de Partilha da ONU, adotado em novembro de 1947, abriu caminho para a conquista de 80% da Palestina por milícias sionistas e para o deslocamento de mais de 750 mil palestinos de suas casas entre 1947 e 1949. Eles nunca tiveram permissão para retornar. Os sionistas usaram a partilha como pretexto para realizar essa Nakba. Como o próprio Ben-Gurion disse: “Presumimos que esta é só uma situação temporária. Vamos nos estabelecer neste lugar primeiro, nos tornar uma grande potência e depois encontrar uma maneira de revogar a partilha (…) Não enxergo a partilha como uma solução final para a questão palestina”.
O termo Nakba surgiu para descrever essa transformação radicalmente violenta da Palestina de um território de maioria árabe por mais de um milênio para um autoproclamado Estado judeu fundado na destruição palestina. No rescaldo de 1948, a Nakba foi ilustrativa de um problema árabe que se desenrolava na Palestina, e não de um problema palestino que se projetava no mundo árabe. A criação de Israel na Palestina significou a ruptura da continuidade territorial do mundo árabe e, a partir disso, expôs a crise dos nacionalismos árabes. Passados 70 anos, a Palestina virou um caso excepcional, o mundo árabe se fragmentou ainda mais, o projeto do nacionalismo árabe entrou em declínio e os governos árabes na região hoje veem a Palestina como uma questão com a qual precisam lidar.
jg: Em seu artigo, você descreve um episódio histórico que é ilustrativo de como o direito internacional tentou lidar com a especificidade da experiência palestina, buscando usar conceitos já estabelecidos para compreender as atrocidades e reagir a elas. Em um relatório produzido na sequência do massacre de Sabra e Shatila, em 1980, coordenado por Sean MacBride, um grupo de advogados internacionalistas discutiu a pertinência do conceito de genocídio para dar conta dessa forma de violência.
re: O relatório MacBride é muito valioso exatamente pela forma como expõe um processo de raciocínio. Os autores estão escrevendo um relatório sobre a invasão israelense ao Líbano e se deparam com a questão: por que o povo palestino está no Líbano, para início de conversa? Ao tentar entender o massacre de Sabra e Shatila de 1982, eles chegam à conclusão de que o que acontece no Líbano está vinculado ao que acontece simultaneamente no resto da Palestina—as formas de governança e dominação estão conectadas. Então, buscam um arcabouço que lhes permita assimilar essa dupla dimensão.
Diante da necessidade de um arcabouço capaz de captar essa totalidade, vincular essas diferentes coordenadas, os autores expandem o conceito de genocídio. Ou seja, investigam o significado do termo genocídio e o que ele pode incluir. Citam Lemkin e registram a forma como Lemkin tratou a ideia de genocídio cultural. Ponderam como o “genocídio cultural” poderia ser incorporado ao conceito jurídico de genocídio. E tentam expandir a doutrina, mas acabam chegando a um impasse. Há uma opinião majoritária que afirma que esse é um caso de genocídio, e uma opinião minoritária que discorda desse ponto de vista com base na noção de que o genocídio requer intenção específica. Bem, os massacres de Sabra e Shatila inegavelmente são genocidas—e há uma resolução da ONU de 1982 que os reconhece como atos de genocídio. Mas os autores do relatório MacBride não conseguem chegar a um acordo sobre o que é genocídio e acabam recomendando que se estabeleça um comitê internacional para analisar a aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso dos palestinos. Foi a única forma de chegar a uma recomendação unânime.
Outro paralelo esclarecedor na comparação entre aquela época e o momento atual é a retórica. O lema de “eliminar o Hamas” é o pretexto atual para o genocídio, enquanto o lema dos massacres genocidas em 1982 era “eliminar a Organização para a Libertação da Palestina”. O relatório sobre Sabra e Shatila lança luz sobre a maneira como a experiência palestina se intersectou com a violência genocida ao longo de 76 anos e, ao mesmo tempo, sobre os limites dos conceitos jurídicos vigentes em captar a totalidade da experiência palestina.
No artigo, argumento que precisamos usar Nakba para nomear os crimes contra o povo palestino. Assim como o Holocausto inseriu o crime de genocídio e a experiência sul-africana inseriu o crime de apartheid no vocabulário jurídico internacional, a experiência palestina pode inserir o crime de Nakba.
Entende-se que sempre há sobreposição na tipificação de crimes jurídicos internacionais cometidos contra grupos de pessoas—o Holocausto, por exemplo, incluiu práticas que podem facilmente ser identificadas como apartheid. Ainda assim, distinguimos entre esses conceitos porque entendemos que, apesar da sobreposição, a violência fundamental que definiu o Holocausto é o extermínio, enquanto a violência fundamental que definiu o apartheid é a segregação. Nesse sentido, se olharmos para a experiência palestina e perguntarmos qual é a violência fundamental que define a Nakba, perceberemos que é o deslocamento.
Mas a Nakba nunca terminou, e sua violência fundamental, o deslocamento, deu origem a uma estrutura de fragmentação que funciona para negar a autodeterminação palestina. O conceito da Nakba tem como objetivo dar atenção a esse processo contínuo de deslocamento, fragmentação e rejeição da autodeterminação—a natureza inconfundível do que os palestinos sofreram no último século.
ds: Você escreve sobre fragmentação em seu artigo. Seu argumento deixa claro que o regime jurídico vigente na Palestina—a fragmentação territorial, as várias condições jurídicas conferidas aos palestinos de diferentes partes do mapa—é resultante da intervenção inicial da partilha. Até mesmo o nacionalismo judaico, agora codificado na Lei do Estado-Nação de Israel de 2018, decorre dessa fragmentação da partilha. Quando olhamos para o sistema de mandato, é nítido como o sistema jurídico internacional serviu aos interesses das potências coloniais e do nascente Estado sionista. Mas o propósito da fragmentação fica menos evidente hoje, diante do extraordinário desequilíbrio de poder entre judeus israelenses e palestinos. Falando em termos claros: por que não dominar, simplesmente? Por que criar todos esses sistemas intrincados?
re: É simplesmente dominação por fragmentação. Quanto mais fragmentado está o grupo, menor é sua capacidade de se autogovernar ou de resistir como comunidade. A fragmentação cria um problema de coordenação. Existe um sistema extremamente sofisticado de dominação que classifica os palestinos em diferentes condições jurídicas e de identidade, de modo que cada subgrupo acaba se definindo por sua própria luta. Num mapeamento inicial, há cinco condições jurídicas elementares para os palestinos: cidadãos palestinos de Israel, residentes de Jerusalém Oriental, residentes da Cisjordânia, residentes de Gaza e comunidades refugiadas ou diaspóricas. Cada condição tem uma dinâmica interna de controle, dominação e relativo privilégio jurídico. É uma inversão do dividir para conquistar: primeiro veio a conquista, depois a divisão. Esse modelo de governança cria palestinos com mais privilégios jurídicos do que outros, subconjuntos dos quais a ocupação pode explorar diferentes atividades, segmentar regimes de trabalho, etc. Em um nível muito elementar, quando Benjamin Netanyahu promove divisões políticas entre Gaza e a Cisjordânia, opera sob essa a mesma lógica, com esse mesmo objetivo.
Quanto à questão da dominação por fragmentação, é útil pensar nesse sistema como a consolidação de um processo começa com a partilha, ou seja, como um caso supostamente binário de fragmentação, mas se alonga por mais de 70 anos. Ao passar do tempo, a partilha acabou se desenvolvendo em um sistema de fragmentação em camadas, tendo em vista que, em 1967, Israel também conquistou o restante das terras palestinas. O que você faz com todas essas pessoas que dominou? Elas agora são, propriamente falando, súditas do seu regime, mas você não pode torná-las todas cidadãs, porque isso sabotaria o projeto de manter uma maioria judaica. Os palestinos representam um problema para o projeto sionista, a mera existência dos palestinos desafia e perturba o sistema, e por isso ele avança a cada passo com o objetivo de fragmentar, controlar e administrar ainda mais essa existência. E esse modelo de controle é estruturado por classificações legais que determinam a condição sociojurídica de cada palestino no sistema.
ds: O que você classificou como fragmentação é uma barreira política principal para a libertação palestina, e é essencial elaborar essa questão. Estou curioso para saber, nesse sentido, como você entende a relevância de desenvolver o conceito jurídico da Nakba. O objetivo é dar nome ao horizonte político e reafirmar a luta contra a fragmentação? É uma forma de mobilizar a pressão externa, incitando defensores internacionais a nomear corretamente a forma de dominação que se pretende combater? Qual é o papel que juristas podem cumprir ao abordar problemas relacionados a circunstâncias históricas ainda em desenvolvimento?
re: Respondendo à sua primeira colocação, eu diria que você está absolutamente certo: unidade e fragmentação são forças que coproduzem a condição palestina atual. Ao longo do tempo, diferentes conjunturas históricas deram mais destaque às manifestações de unidade ou de fragmentação. Em 2021, por exemplo, os protestos contra a limpeza étnica em Sheikh Jarrah rapidamente se expandiram para revelar uma unidade entre palestinos do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Esse levante popular foi, então, intitulado “Intifada da Unidade”. O genocídio em Gaza, em contrapartida, revelou a força da fragmentação mais claramente. Cada subgrupo de palestinos enfrentou uma realidade material inteiramente diferente, refletindo a profundidade da fragmentação. Ainda assim, seria um erro grave pensar nessa fragmentação/unidade em termos binários. As forças que impulsionaram a Intifada da Unidade, na verdade, estão sempre em jogo. Ao mesmo tempo, o mecanismo propulsor do sionismo é a fragmentação cada vez maior dos palestinos. O conceito de Nakba articula essa dialética e o modo como a existência palestina é definida pela interação entre a unidade imaginada e a fragmentação material e jurídica.
Bem, quanto à pergunta: por que deveríamos tentar criar esse conceito? É realmente um exercício meramente intelectual? O que posso dizer é que vivemos um momento em que a linguagem empregada para definir o que acontece é crucial. O que estou tentando fazer, creio, é apresentar um diagnóstico que aborde a raiz do problema. Há um risco de que, se confinada a um certo subconjunto da questão palestina, a questão do genocídio possa fazer de Gaza uma exceção. A questão palestina se torna a questão de Gaza e a questão de Gaza se torna a questão do genocídio—como se ele não tivesse relação com o que está acontecendo na Cisjordânia, com o que está acontecendo com os palestinos de ‘48,7 com o que está acontecendo em Jerusalém ou com o que está acontecendo nos campos de refugiados. Há uma injustiça fundamental que vem se desenrolando nos últimos 76 anos. Desenvolver um conceito inconfundível de Nakba—como foi feito no passado, iterativamente, com genocídio e apartheid—nos confere a linguagem apropriada para tratar essa fragmentação e dominação em sua totalidade.
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Martin Luther King certa vez chamou o governo dos Estados Unidos de “o maior patrocinador de violência no mundo”. Essa formulação pode ser controversa, mas ninguém nega que os EUA são, de longe, o maior fornecedor de armas do planeta, com uma participação de 42% do mercado global de exportação de armamentos.
Desde a Guerra Fria, o Congresso estadunidense aprovou várias legislações para regular a venda e o financiamento de armas e a ajuda humanitária a países estrangeiros. Essas leis, que mudaram de acordo com a evolução das guerras e dos conflitos das décadas seguintes—e do equilíbrio de poder no Congresso, na Casa Branca e entre os dois—, impõem limitações e exigências de notificação a determinados tipos de transação.
A partir de outubro de 2023, as transferências de armas se tornaram um ponto de conflito tático em relação ao apoio dos EUA ao genocídio de Israel em Gaza—de parte tanto daqueles que esperam pôr fim a esse apoio quanto daqueles que pretendem estendê-lo. Meses depois de o governo Biden ter declarado que a invasão ainda em andamento de Israel a Rafah, a cidade mais ao sul de Gaza, traçava uma “linha vermelha” para os Estados Unidos, o Congresso foi notificado de uma nova venda de armas no valor de US$ 20 bilhões para Israel. Enquanto isso, ativistas solidários à Palestina exigiram que a vice-presidente Kamala Harris, a candidata democrata à presidência, se comprometesse com o fim de tais transferências para obrigar Israel a encerrar a guerra. Em resposta, a campanha de Harris esclareceu que ela “não apoiava um embargo de armas a Israel”, uma declaração que constituiu “um de seus primeiros posicionamentos políticos mais firmes”.
Para esclarecer como funciona o fornecimento de armas e equipamentos militares dos EUA a governos estrangeiros, o editor colaborador da Phenomenal World Tim Barker e o escritor Dylan Saba conversaram com Sarah Harrison, advogada que trabalhou no Gabinete do Conselho Geral do Departamento de Defesa. Entre outras funções, Harrison se especializou em assistência humanitária, alívio de desastres no exterior, legislação Leahy, questões de Mulheres, Paz e Segurança e assuntos africanos no âmbito do Departamento de Defesa. Atualmente, é analista sênior do Grupo Internacional de Crise.
Entrevista com Sarah Harrison
DYLAN SABA: Como funcionam as transferências de armamentos realizadas pelos EUA? Qual é a cadeia de tomada de decisões que passa pela Presidência, Congresso, Departamento de Defesa e desemboca na entrega das armas?
SARAH HARRISON: Há duas categorias legais que determinam o curso de uma transferência de armas. Isso depende do tipo de compra: o país está comprando equipamentos de uma empresa privada ou do governo dos EUA? No primeiro caso, temos uma venda comercial direta [direct comercial sale] ou DCS. No segundo, a classificação é de venda militar externa [foreign military sale], ou FMS.
Em uma venda militar externa, um país pode comprar armas ou artigos de defesa (equipamentos militares em sentido amplo) usando seu próprio dinheiro ou por meio de financiamento militar externo [foreign military financing], ou FMF. De modo geral, o FMF é uma assistência de segurança concedida pelos EUA.
Muitas pessoas estão familiarizadas com o fato de que Israel recebe dos EUA mais financiamento militar externo do que qualquer outro país do mundo—quase US$ 4 bilhões por ano. Dos US$ 3,8 bilhões que Israel recebe dos EUA anualmente, a maior parte é financiamento militar externo, usado para comprar armas fabricadas nos EUA por meio de vendas militares externas. Em abril, o Congresso aprovou uma quantidade ainda maior como parte de um grande pacote de segurança internacional que prevê transferências para Ucrânia, Israel e Taiwan.
Depois que uma solicitação de compra é feita, há um processo de revisão interna pelo Departamento de Estado, que aprova os pedidos de FMS e, em seguida, a Agência de Cooperação de Segurança e Defesa do Departamento de Defesa supervisiona e executa os pedidos. Esse processo interagências pode ser coordenado com a Casa Branca, mas a Presidência não se envolve em todas as vendas para todos os países—diferentes governos adotam diferentes políticas em relação a quais vendas devem ser sinalizadas ao órgão.
Nas vendas mais significativas para a maioria dos países, uma vez que a solicitação é aprovada pelo Departamento de Estado, a Lei de Controle de Exportação de Armas de 1976 prevê que o Poder Executivo notifique o Congresso trinta dias antes de emitir a carta de aceite, que permite que a venda avance formalmente.1
Esse período de trinta dias é o tempo que o Congresso tem para agir se quiser impedir que a venda ocorra. Mas, para os aliados da Otan, para Israel e para alguns outros parceiros importantes dos EUA, essa janela é, na verdade, de quinze dias (“aliado”, nesse contexto, significa especificamente um país com o qual os EUA têm um pacto de defesa, portanto, Israel é normalmente chamado de “parceiro próximo” do governo para esses fins. Ou pelo menos era assim que nos referíamos a Israel no Gabinete do Conselho Geral do Departamento de Defesa quando trabalhei lá entre 2017 e 2020). A notificação formal de uma venda de armas vai para a Comissão de Relações Exteriores do Senado, para a Comissão de Relações Exteriores da Câmara e para o presidente da Câmara. Cada um deles recebe uma notificação, mas, na prática, no caso das vendas militares externas, o governo costuma ter antes discussões informais com os partidos da maioria e da minoria em cada comissão. Eles chamam isso de aprovação dos “quatro cantos”, pois estão envolvidos o presidente e o decano das Comissões de Relações Exteriores tanto da Câmara quanto do Senado—esses quatro dão um aceno informal, indicando que não se oporão à transferência. Em seguida, o Poder Executivo avança com a notificação formal e com a venda, sabendo que não haverá entraves. Nunca houve um caso em que a venda de armas tenha sido interrompida durante o período de notificação do Congresso (durante o governo Trump, o Congresso aprovou uma resolução conjunta de desaprovação—o termo formal para a interrupção de uma transferência de armas—em protesto contra uma venda de armas para os Emirados Árabes Unidos, mas o presidente vetou).
Nas vendas comerciais diretas, o procedimento de notificação é semelhante, exceto pelo fato de que tudo fica a cargo do Departamento de Estado, que emite a licença de exportação para a empresa privada que vende os artigos de defesa. Antes de o Departamento de Estado emitir uma licença de exportação para essa venda, ele envia a mesma notificação de trinta dias ao Congresso—ou quinze dias para os aliados da Otan, Israel e outros parceiros próximos dos EUA. Uma vez decorrido o prazo da notificação do Congresso, a licença de exportação pode ser emitida e, em seguida, o processo de aquisição é iniciado: a empresa dos EUA pode construir o artigo de defesa ou fornecer os serviços de defesa para o exterior.
A notificação ao Congresso só é exigida por lei quando a venda atinge um determinado limite—esse limite é mais alto para os aliados da Otan e para os principais parceiros.2 Por exemplo, se houvesse uma venda militar significativa para a Índia de, digamos, US$ 14 milhões em equipamentos de defesa, o Congresso seria notificado, mas isso não ocorreria caso o comprador fosse um membro da Otan ou Israel.
DS: Que tipo de detalhes são apresentados ao Congresso?
SH: As notificações ao Congresso incluem informações detalhadas sobre a venda, incluindo o país destinatário e uma descrição da quantidade e dos tipos de equipamentos e/ou serviços que serão fornecidos. Agora, se um presidente quisesse contornar esse período de notificação, ele poderia aplicar a chamada exceção de emergência, que exige uma descrição detalhada ao Congresso da própria emergência que demanda a venda ou a emissão de uma licença de exportação de equipamentos e/ou serviços dos EUA com base em interesses de segurança nacional. Mas, de modo geral, há a cultura institucional de que o Congresso está familiarizado com as justificativas de política externa do Executivo, já que ele é o órgão que estabeleceu a estrutura jurídica que permite aos EUA fornecerem bilhões de dólares em armas a outros países. Portanto, como órgão, ele não exerce uma supervisão significativa dessas transferências de armamentos.
DS: Sabemos quantas vezes Israel passou por esse processo desde outubro de 2023? E qual é, aproximadamente, a linha do tempo desde a solicitação até a entrega?
SH: Pelo que sei, houve mais de cem transferências desde outubro. Na maioria dos casos, quando houve necessidade de notificação do Congresso, o trâmite foi realizado antes de 7 de outubro (o que significa que o processo de aquisição levou muito tempo), ou foram casos de transferências que não ultrapassaram o limite estabelecido por lei e, portanto, não ensejaram notificação. Além disso, sei de dois casos de FMS que foram enquadrados como exceção de emergência.
A questão da linha do tempo é complicada: não há uma linha do tempo para casos de FMS. Tudo depende da demanda, da produção e da burocracia. Por exemplo, a produção de munição aumentou, mas a demanda é tão alta, em grande parte devido à guerra na Ucrânia, que não está claro se o aumento da produção significa que a munição está sendo enviada de forma especialmente rápida a algum país por meio de FMS.
Os processos burocráticos podem priorizar determinados casos ou países. Determinada gestão presidencial pode exigir que os burocratas se apressem em finalizar a documentação relacionada a algum país específico. Possivelmente, é isso que o governo quer dizer quando afirma que está tentando agilizar as transferências para Israel: trata-se de passar mais rápido por esse longo processo de obtenção das aprovações.
Se o presidente realmente quiser agilizar a transferência de artigos de defesa, ele pode usar a Autoridade de Saque Presidencial, dispositivo que lhe permite acessar diretamente os estoques do Departamento de Defesa e transferir esse equipamento. Isso diminui o tempo que um país tem de esperar (já que não é necessário passar por todo o procedimento de aquisição). É o que o Executivo tem feito principalmente em relação à Ucrânia. É uma extensão da competência presidencial que permite ao mandatário destinar estoques do Departamento de Defesa para qualquer lugar do mundo. Quando há uso da Autoridade de Saque Presidencial, o processo não se enquadrado nem como FMS nem como DCS.
DS: Essa competência é diferente do manejo do estoque de reservas de guerra sobre o qual você escreveu?
SH: Sim. Enquanto a Autoridade de Saque Presidencial é uma competência estendida que confere ao presidente a prerrogativa de utilizar os estoques do Departamento de Defesa em qualquer lugar do mundo, a competência para estabelecer um estoque de reservas de guerra é do próprio Departamento de Defesa e permite a ele estocar suas armas em outro país para uso em momentos de emergência.
O Estoque de Reservas de Guerra em Israel é um estoque do Departamento de Defesa que data da década de 1980. Ele está fisicamente localizado em Israel e os bens armazenados lá estão disponíveis para uso do Departamento de Defesa ou para transferência para outro país. Ele se destina a tempos de guerra ou de emergência, mas não há requisitos legais específicos para o seu uso. Originalmente, só era permitido que o Departamento mantivesse estoques no exterior em países da Otan, mas, posteriormente, o Congresso expandiu a legislação para abranger os principais “aliados não pertencentes à Otan” (um termo legal que confere certos benefícios a esses países), o que inclui Israel.
O estoque de Israel foi usado para transferir projéteis para a Ucrânia, e sabemos de casos anteriores em que ele foi usado por Israel—em especial na guerra do Líbano em 2006 e na guerra de Gaza em 2014—, mas não há nenhum relatório público que indique que isso tenha ocorrido depois de 7 de outubro. Em parte, isso se deve ao fato de que tanto essas transferências quanto a sua política de implementação são, em geral, bastante opacas (no caso de 2014, por exemplo, a Casa Branca não estava ciente da transferência até depois de ela ter ocorrido, apesar de estar, simultaneamente, à frente de uma venda militar externa de US$ 3 milhões dos EUA para Israel). Embora estime-se que US$ 4,4 bilhões em equipamentos estejam armazenados lá, não há nenhuma exigência robusta de relatórios sobre esses estoques. No caso da Ucrânia, algumas evidências sugerem que a transferência foi concluída por meio de uma solicitação do governo dos EUA com a aprovação final do primeiro-ministro de Israel, o que indica um grau significativo de controle israelense sobre o estoque.
Grupos da sociedade civil pediram ao governo Biden que fosse mais transparente sobre o momento, o conteúdo e o embasamento jurídico das transferências de armas, como tem ocorrido em relação à Ucrânia por meio de comunicados do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa à imprensa. Os funcionários do governo com quem eu e outros conversamos recusam-se a estender essa prática a Israel. Portanto, não sabemos se eles usaram o estoque de reservas de guerra após 7 de outubro de 2023. Se houvesse uma emergência real, o presidente poderia usar a Autoridade de Saque para transferir rapidamente os estoques do Departamento de Defesa para Israel.
Mas o Departamento de Defesa está preocupado com o esgotamento de seus próprios estoques, tanto por causa da guerra na Ucrânia quanto porque o Congresso demorou muito para liberar mais dinheiro para reabastecê-los. O Congresso finalmente o fez no importante pacote de segurança internacional que mencionei anteriormente em relação a Israel, Taiwan e Ucrânia, que era um projeto de lei de apropriação.
DS: Você disse que não houve nenhum caso de desaprovação pelo Congresso de transferências de armas para Israel desde outubro.
SH: O Congresso jamais conseguiu bloquear uma transferência de armamentos.
DS: Isso significa que Israel está recebendo todos os equipamentos que solicita?
SH: Não. Meu entendimento, numa tentativa de interpretar o que está nas entrelinhas do posicionamento do governo até agora, em particular a partir da declaração dada por um general em março desse ano afirmando que Israel não está recebendo tudo o que pede, é de que o governo Biden não está necessariamente aprovando todos os pedido de venda militar externa. Essa é uma prerrogativa do governo. Ao mesmo tempo, a Casa Branca definitivamente não está sinalizando nenhum limite às solicitações de Israel, nem motivos para impor alguma limitação, com a única exceção das bombas de 2 mil libras, cuja transferência foi suspensa pelo presidente—o que é, obviamente, uma gota num balde d’água em comparação com a quantidade de artigos de defesa que continuam a ser enviados a Israel.
TIM BARKER: Você falou sobre a falta de transparência e as diversas exigências de notificação. Qual é a legislação elementar que disciplina a transparência do processo de transferência de armas?
SH: Isso depende da autoridade envolvida. No caso de vendas militares externas, a emissão da notificação ao Congresso para uma grande venda de armas é anunciada pela Agência de Cooperação de Segurança e Defesa em seu site, mas não sabemos nada sobre transferências abaixo do limite que exige a notificação simplesmente porque não há exigência de transparência. Imagino que mesmo que a Agência não publicasse as notificações em seu site, ainda assim poderíamos ter conhecimento das transferências de grande porte porque os membros do Congresso poderiam informar o público ou os jornalistas.
Mas, novamente, essas notificações são necessárias apenas em casos de transferências significativas, acima de determinado limite. É possível que haja um esforço para enviar várias remessas de artigos e serviços de defesa abaixo do limite, a fim de evitar o tipo de acesso à informação que acompanha as notificações ao Congresso. Uma maior transparência desse processo é defendida por grupos de direitos humanos, de proteção civil e grupos que apoiam o controle de armas.
A transparência depende especificamente da política do Poder Executivo: não é, de maneira alguma, uma decisão bipartidária. Com relação à Ucrânia, o governo Biden demonstrou uma tentativa bem coordenada, tanto internamente no Poder Executivo quanto com parceiros e aliados na Europa, de tornar esse processo o mais limpo, transparente e franco possível. Isso é algo exclusivo desse governo. Dito isso, ele optou por não fazer coisa semelhante no caso de Israel, apesar de Israel ser um dos principais destinatários de armas dos EUA.
Deixando de lado a questão de se o governo deveria estar enviando armas em primeiro lugar, seria de se esperar que o Poder Executivo tivesse a mesma abordagem que tem com a Ucrânia em relação a todos os parceiros e aliados ao redor do mundo.
TB: É impressionante a quantidade de informações básicas sobre transferências de armas que só estão no registro público por causa de vazamentos de algum tipo.
SH: Sim. O número que citei anteriormente—que houve centenas de transferências desde outubro—veio de um vazamento, não de uma revelação do Poder Executivo.
TB: Gostaria de perguntar sobre a suspensão da transferência de bombas especialmente grandes. O que acontece quando um governo quer retardar as transferências de armas ou usar esse processo como um modo de pressionar um parceiro?
SH: Até onde sabemos, a suspensão de transferências de bombas de 2 mil libras é a única vez nessa guerra em que o governo Biden usou publicamente sua considerável capacidade de influência. Após o ataque à World Central Kitchen (WCK) em abril, Biden respondeu com um telefonema particular a Netanyahu, no qual não teria anunciado que sua política estava mudando, mas teria ameaçado mudá-la. Depois desse telefonema, pareceu que o governo israelense tomaria medidas rápidas para abrir alguns pontos de acesso humanitário, mesmo que só para exibição, porque a Casa Branca estava indicando que não toleraria o assassinato de cidadãos estrangeiros de organizações humanitárias.
O governo Biden já havia tolerado a morte de dezenas de milhares de palestinos, mas foi só aí que Israel passou dos limites. Esse episódio ressaltou um fato óbvio: quando o governo usa a sua influência, pode alterar a trajetória de um conflito. O presidente se recusa a fazer mais do que isso porque entende que a abordagem de seu governo em relação a Israel é baseada em princípios.
A suspensão do envio de armamento refletiu certo desconforto por parte do governo com o lançamento de bombas de 2 mil libras em locais onde havia muitas pessoas. Claramente, essa suspensão não foi tão longe quanto deveria—pelo contrário, pareceu mais uma tentativa de livrar a cara do governo, uma vez que a administração ficou presa em uma espécie de “política sem saída”. Essa suspensão não teve nenhum efeito no sentido de interromper o derramamento de sangue na Palestina. O telefonema após o ataque à WCK em abril parece ter sido o uso mais eficaz da influência da Casa Branca até agora.
DS: Até onde vai a prerrogativa do Executivo aqui? Presumo que essas vendas podem ocorrer porque o Congresso aprovou mais orçamento para cobri-las. Isso está correto?
SH: A venda de armamentos pode ser feita com dinheiro que os EUA concederam a outro país—em geral por meio de financiamento militar externo, ou FMF, como descrevi anteriormente—, com dinheiro proveniente de auxílios públicos do orçamento estadunidense a que outro país tenha acesso, ou por qualquer outro meio de renda. Israel normalmente usa seu FMF, que é de US$ 3,3 bilhões por ano fiscal. Esse dinheiro é transferido para Israel no primeiro mês de cada ano fiscal e fica em uma conta que rende juros. Israel usou esses juros para pagar dívidas com os EUA, mas não pode usá-los para comprar artigos de defesa.
DS: Se essa é uma conta que serve para a compra de armas estadunidenses, até que ponto a prerrogativa do Executivo se estende sobre isso? O presidente poderia simplesmente impor um embargo de armamentos e impedir as vendas até que alguma condição seja atendida?
SH: Imagino que os advogados do presidente diriam que sim, ou diriam que é complicado, mas que é possível argumentar que a Constituição confere ao presidente esse poder. Creio que os membros do Congresso se oporiam a isso e diriam: “Não, nós temos a chave do cofre, nós é que decidimos quando outros países recebem dólares dos EUA e em que momento podem gastá-los”. Essa questão não chegou ao judiciário. Ela aparece muito em discussões de advogados que refletem sobre até que ponto o presidente tem autoridade para simplesmente não permitir o uso de recursos já autorizados e destinados pelo Congresso.
De certa forma, isso aconteceu com a Ucrânia no governo Trump, embora a questão de fundo tenha sido um quiproquó em torno de interesses próprios, não uma tentativa de fazer política externa. O Congresso autorizou e destinou assistência de segurança para a Ucrânia caso o país cumprisse determinados requisitos. O Poder Executivo acabou determinando que a Ucrânia cumpria esses requisitos e que deveria receber a assistência. Mas o então presidente Trump usou essa assistência de segurança como um suborno, em troca de informações que poderiam prejudicar seu oponente na disputa presidencial, o então ex-vice-presidente Biden. Esse é um caso recente em que o presidente reteve dinheiro aprovado pelo Congresso, mas isso no contexto de uma solicitação de interferência estrangeira em uma eleição nacional. Acontece que nenhum tribunal determinou o contexto específico em que o presidente está constitucionalmente autorizado a reter fundos que o Congresso destinou para assistência de segurança.
DS: Portanto, embora haja aí uma questão jurídica em aberto sobre a extensão do controle presidencial, Biden tem tanto poder sobre esse processo que conseguiu mudar a política israelense com um telefonema no qual ameaçou lançar mão desse mesmo poder.
SH: Bem, houve algumas propostas legislativas dos republicanos, mesmo depois do telefonema sobre a WCK, que basicamente tentavam estabelecer que o presidente não tem esse poder. Além disso, há divergências no Capitólio sobre qual a margem de manobra do Executivo para reter uma, duas, três ou até todas as transferências. Parte da discordância diz respeito a poderes legais e outra parte trata da natureza diversa dos conflitos—como casos em que a transferência de armas pode não estar de acordo com interesses de segurança nacional ou casos em que os EUA podem estar violando suas obrigações jurídicas internacionais ou domésticas ao transferir tais artigos.
DS: Ainda nesse assunto, você pode nos falar sobre a legislação Leahy e a disposição da Lei de Assistência Estrangeira que regula casos em que países estão restringindo o fluxo de ajuda humanitária?
SH: O Congresso já conta com um enquadramento jurídico, estabelecido por lei, para controlar as transferências quando o Poder Executivo tem conhecimento de violações ao direito internacional. Há um punhado de leis relacionadas à proibição de transferências de armamentos ou de fornecimento de assistência de segurança de modo mais geral a países que violam os direitos humanos ou as regulamentações do direito da guerra. As principais legislações relacionadas aos direitos humanos são as leis Leahy e a seção 502B da Lei de Assistência Estrangeira, enquanto a seção 620I da Lei de Assistência Estrangeira diz respeito ao fornecimento de ajuda humanitária.
Podemos começar com as leis Leahy. São duas. Há uma Lei Leahy para o Departamento de Defesa e uma Lei Leahy para o Departamento de Estado. As duas leis se aplicam ao gasto de dinheiro dos EUA em assistência de segurança a unidades de forças de segurança estrangeiras. Essas leis são muito restritas e só se aplicam a uma unidade de uma força de segurança estrangeira, e não a toda a força ou a todo o país. Elas são acionadas quando o governo dos EUA—seja o Secretário de Estado, seja o Secretário de Defesa—tem informações confiáveis de que a unidade de uma força de segurança estrangeira (isso não inclui forças não estatais, apenas forças estatais estrangeiras) cometeu uma violação grave dos direitos humanos. Havendo tais informações confiáveis, essa unidade não poderá receber mais nenhuma assistência de segurança dos EUA. Entretanto, ambas as leis preveem uma exceção a essa proibição. A exceção do Departamento de Estado exige que as violações graves dos direitos humanos pela unidade sejam reparadas, o que significa que os autores devem ser levados ao tribunal, processados e sentenciados. A exceção do Departamento de Defesa é mais branda, mas, por uma questão de coerência, os departamentos concordaram, por meio de um memorando, em realizar o que é chamado de processo de reparação de acordo com o padrão fixado para o Departamento de Estado (ou seja, os autores devem ser processados e sentenciados para que a exceção se aplique). Essas são as leis Leahy.
Por sua vez, a seção 502B da Lei de Assistência Estrangeira interrompe a assistência de segurança a um país inteiro se houver um padrão consistente de violações graves dos direitos humanos. A seção 502B já foi aplicada no passado, mas sua aplicação não é pública porque não há exigência de comunicação ao Congresso e nem de procedimentos de transparência que a denunciem. A cláusula de supervisão da seção 502B permite que o Senado ou a Câmara solicitem um relatório do Departamento de Estado no prazo de trinta dias sobre as práticas de direitos humanos de um determinado país. O senador Bernie Sanders tentou fazer um pedido desse tipo em dezembro do ano passado—para forçar a produção de um relatório e de um debate no Congresso—mas, infelizmente, ele não foi aprovado.
Por fim, há a seção 620I da Lei de Assistência Estrangeira, que não tem como objeto os direitos humanos, como as leis Leahy e a seção 502B, mas se aplica quando o governo de um país estrangeiro está direta ou indiretamente proibindo ou restringindo alguma forma de assistência humanitária fornecida pelos EUA. No caso de Israel, isso aparece de maneira imediata. O governo israelense anunciou e executou muito rapidamente um bloqueio após o 7 de outubro. Esse bloqueio persistente é a razão pela qual há denúncias de fome no território da guerra: as pessoas estão passando fome por causa do bloqueio israelense à assistência humanitária.
Até mesmo as autoridades estadunidenses ficaram frustradas com o fato de que funcionários do alto escalão do governo israelense não estavam permitindo que um carregamento de farinha e de outros produtos secos vindo da Turquia chegasse a Gaza. Esse foi um caso amplamente divulgado, e mesmo assim o Poder Executivo não interrompeu a assistência de defesa, apesar de a seção 620I proibi-la a todo o país nos termos da Lei de Assistência Estrangeira e da Lei de Controle de Exportação de Armas. Existe até uma exceção na lei caso o presidente forneça ao Congresso uma motivação detalhada com base em razões de segurança nacional, mas o governo Biden não reconheceu nenhuma violação da seção 620I por parte de Israel e, portanto, tal exceção nunca foi aplicada.
DS: Impedir a entrega de ajuda é uma violação muito concreta e inequívoca dos direitos humanos. Há muita documentação sobre as práticas arbitrárias de Israel, para falar de maneira eufemística, que limitam totalmente a quantidade de assistência que chega. Gostaria de perguntar a você sobre o relatório que o Departamento de Estado publicou analisando as práticas israelenses na guerra. Considero notável que, no relatório, eles tenham dito que há motivos para pensar que Israel está violando o direito humanitário internacional ou o princípio da distinção com seus bombardeios. Mas, basicamente, ele aprova as práticas de Israel de restringir a ajuda. À luz de todas essas evidências, em sua opinião, por que essa posição foi adotada?
SH: Há algumas coisas que eu gostaria de dizer sobre isso. Quando ocorreu o bloqueio em outubro, acredito que a questão da seção 620I—a legislação que trata da restrição da ajuda dos EUA—realmente pegou o Poder Executivo desprevenido. Essa legislação é bastante obscura: antes de outubro passado, ela raramente era aplicada ou discutida. Normalmente, quando o governo dos EUA está tentando transportar ajuda humanitária para outros países, ela chega ao destino, e o principal desafio é distribuir a ajuda nas áreas de conflito ativo. Essa logística é realmente difícil, e os EUA em geral contratam parceiros locais para levar a ajuda às pessoas nessas áreas. Mas, normalmente, os países não implementam bloqueios à assistência humanitária dos EUA ou à ajuda da ONU. Essa assistência normalmente chega a lugares onde a logística é difícil e onde há sérias preocupações de segurança, como a Somália. Portanto, a questão da seção 620I, referente ao bloqueio total de Israel em Gaza, parece ter pegado desprevenidos os advogados e os formuladores de políticas. Foi necessária a pressão de grupos da sociedade civil, que enfatizaram essa disposição legal, para que o Congresso começasse a fazer perguntas. A atenção do público a essa lei só começou a se intensificar no início de 2024.
Meses depois, em março, conversei com funcionários do Poder Executivo e eles disseram que ainda estavam discutindo a interpretação jurídica dessa lei. A questão jurídica central avaliada por eles era: o que configura uma assistência humanitária dos EUA? As contribuições dos EUA à ONU, que depois são fornecidas, via ONU, aos palestinos em Gaza, são equivalentes à assistência direta dos EUA? Isso é indicativo de uma abordagem jurídica purista; os advogados do Poder Executivo normalmente tentam interpretar as legislações a fim de garantir o máximo de flexibilidade ao Poder Executivo.
Com base em conversas separadas, uma segunda pergunta que sei que estava sendo feita dentro do Poder Executivo no final de março era: o que significa o trecho da lei que diz “proibir ou restringir de outra maneira”? As autoridades dos EUA disseram ao Congresso que estavam inclinadas a interpretar que “restringir de outra maneira” significava o mesmo que “proibir”—em outras palavras, a interpretar o texto de maneira limitada, de modo que a seção 620I só se aplicaria em caso de proibição total.
Vejamos a linha do tempo dos eventos relacionados à seção 620I. Em dezembro, o senador Van Hollen elaborou uma legislação para tratar da aplicação da seção 620I a Israel, embora seus termos fossem aplicáveis a todo o mundo. Em fevereiro, o presidente emitiu o Memorando de Segurança Nacional n. 20 (NSM 20), baseado no projeto de lei de Van Hollen. A meu ver, essa foi uma tentativa do governo Biden de apaziguar os legisladores democratas críticos que estavam tentando responsabilizar o Poder Executivo pelo que aparecia como um desrespeito à lei. Quando o memorando foi emitido, o secretário de imprensa do presidente declarou que ele não alterava nenhum padrão já estabelecido do Poder Executivo.
Há uma disposição na NSM 20 que exige garantias por escrito e confiáveis de conformidade com as leis internacionais e acesso assegurado à ajuda humanitária de países estrangeiros que recebem artigos de defesa dos EUA. A NSM 20 prevê também que o Poder Executivo informe ao Congresso se os países estão cumprindo a seção 620I. Essa exigência não está prevista na seção 620I, mas no memorando do presidente. Essa é uma boa notícia, pois isso exigiu que os advogados se posicionassem sobre essa lei e que os formuladores de políticas do Departamento de Estado decidissem sobre a conformidade ou não de Israel, o que significou muita deliberação sobre o que constitui assistência dos EUA e o que é “proibir” ou “restringir de outra maneira”. Também é possível que os advogados tenham aplicado um entendimento de que qualquer proibição ou restrição teria de ser arbitrária para constituir uma violação à seção 620I. Eles podem ter usado a doutrina da arbitrariedade—um padrão do direito internacional—como uma maneira de moldar a interpretação do direito doméstico. Não sei ao certo. O que quero dizer é que o Poder Executivo trabalhou de muitas maneiras na interpretação da seção 620I até maio, quando teve de apresentar o relatório que você mencionou ao Congresso.
Na época em que esse relatório foi apresentado, o governo supostamente havia conseguido pressionar Netanyahu a diminuir um pouco as restrições ao acesso humanitário. Essa provavelmente foi a razão pela qual o governo acabou se sentindo à vontade para declarar que a seção 620I não era aplicável, porque Israel não estava proibindo total ou arbitrariamente a ajuda humanitária dos EUA—como havia uma parcela de assistência entrando, qualquer proibição a outra parcela poderia ser considerada não arbitrária, por razões de segurança, por exemplo. Naturalmente, sabemos que há inúmeros relatos de coisas que arbitrariamente são vetadas de entrar em Gaza, mas Israel argumenta que isso ocorre por questões de segurança nacional.
Parece-me que tudo isso se resume ao fato de que os advogados do Poder Executivo procuram ser criativos para dar o máximo de flexibilidade possível ao presidente—especialmente quando o objetivo é evitar que a assistência a Israel seja interrompida.
DS: Quero ampliar um pouco enquadramento, mas ainda assim fazer uma pergunta jurídica. Um aspecto marcante da resposta do governo dos EUA a essa guerra foi a postura explícita adotada em relação aos órgãos de direito internacional. Sei que há muito tempo os Estados Unidos têm uma relação conflituosa com muitas das fontes formais do direito internacional e seus tribunais, mas depois que o Conselho de Segurança aprovou a resolução de cessar-fogo em março, com a abstenção dos EUA, um porta-voz do Departamento de Estado subiu ao púlpito e basicamente insinuou que a resolução do Conselho de Segurança não era vinculante. Considerando sua experiência no governo, você ficou surpresa com isso?
SH: Por conta de tudo o que havia ocorrido até aquele momento, não fiquei surpresa. Penso que a posição dos EUA é relevante principalmente porque fragiliza a postura do governo Biden em relação à ordem baseada em regras. Ao se abster de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU e, posteriormente, dizer que ela não é vinculante, quando muitos outros atores a consideram vinculante, os EUA fortalecem a narrativa de que estão desrespeitando de maneira hipócrita o direito internacional em relação a Israel e que continuarão fazê-lo. Obviamente, do ponto de vista jurídico, o Departamento de Estado instruiu o governo de que era razoável que ele afirmasse que a resolução não era vinculante, mas mesmo que acadêmicos de direito internacional digam que isso está correto, isso é algo secundário, pois essa linha ainda é prejudicial para outras políticas e objetivos dos EUA de promover a adesão ao direito internacional.
DS: Se há um argumento plausível a ser apresentado, faz sentido que os advogados o apresentem. Mas você acha que discussões semelhantes estão acontecendo em torno, por exemplo, das medidas preliminares da Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenadas no caso do genocídio, que é inequivocamente uma declaração de direito internacional? Gostaria de saber se você tem uma ideia de como ordens como essa são recebidas pelo governo e como ele é aconselhado sobre suas obrigações com relação às ordens da CIJ.
SH: Não acho que os pareceres da CIJ, inclusive o parecer consultivo de julho sobre a ocupação israelense, tenham sido bem recebidos por esse governo, principalmente por conta das restrições políticas autoimpostas sobre como os EUA abordam seu relacionamento com Israel. Os pareceres da CIJ, bem como o pedido do promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI) de mandados de prisão para autoridades israelenses de alto escalão, criam obstáculos jurídicos reais para os advogados do Executivo, que precisam analisá-los seriamente, uma vez que tratam de questões que não podem simplesmente ser descartadas. Enquanto outro país pode simplesmente ignorar tudo o que a CIJ ou o TPI diz, os advogados do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa se debruçam sobre as decisões e pedidos de mandados para entender maneiras de aconselhar o presidente sobre a forma como os EUA precisam satisfazer suas obrigações internacionais.
Foi por isso que fiquei realmente frustrada com a emissão do NSM 20 em fevereiro. A meu ver, foi uma tentativa de apaziguar os democratas do Congresso que estavam criticando o Executivo. Mas o que o memorando implicou para os advogados e formuladores de políticas dentro da burocracia do governo foi muita agitação, porque eles levam essas coisas a sério. Isso nunca resultaria na interrupção das transferências de armas para Israel, que, como sabemos, é a alavanca à disposição dos Estados Unidos para acabar com essa carnificina.
Assim como no caso do NSM 20, levará muito tempo para que os advogados e formuladores de políticas do Departamento de Estado lidem com as repercussões dos casos da CIJ e do pedido de mandados de prisão no TPI. Mas, claramente, pelo menos até o momento, eles não estão assumindo nenhuma posição que implique a interrupção da transferência de armas pelos EUA. Portanto, independentemente de como interpretemos isso, parece bastante claro que os advogados dos EUA não concordam com o que a CIJ disse ou com o que o TPI está fazendo. Se concordassem, teriam de aconselhar seus clientes a interromper a transferência de armas para Israel.
Em outubro de 2023, o Conselho de Segurança das Nações Unidas votou por “autorizar a implementação de uma Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti, liderada pelo Quênia”. Apesar de terem se abstido de votar, também a Rússia e a China condenaram “a violência crescente, as atividades criminosas, bem como os abusos e as violações dos direitos humanos que solapam a paz, a estabilidade e a segurança do Haiti e da região”. Poucos meses antes, a Comunidade Caribenha (Caricom) tinha articulado seu “apoio à restauração da lei e da ordem” no país. Os Estados Unidos prometeram 200 milhões de dólares de auxílio para tropas militares. Além dos mil policiais quenianos, Bahamas, Jamaica, Belize, Suriname, Antígua e Barbuda, Guatemala, Peru, Senegal, Ruanda, Itália, Espanha e Mongólia também prometeram enviar contingentes armados.
Antes disso, o ex-primeiro ministro Ariel Henry—que atuava como presidente de facto, portanto, não eleito—já havia apresentado na reunião das Nações Unidas a sua segunda solicitação instando a comunidade internacional a agir “em nome das mulheres e meninas estupradas todos os dias, em nome de todo o povo que é vítima da barbárie das gangues”. Poucos meses antes, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, que também atuava como Ministro da Cultura e Comunicação do Haiti, Emmelie Prophète, havia declarado que bairros invadidos pelas “guerrilhas urbanas” eram “territórios perdidos”.
A crise do Haiti é retratada pela mídia internacional tradicional como um problema de violência de gangues que escapou ao controle do Estado. Mas ainda antes das solicitações de Henry à ONU em 2022 e 2023, o silêncio constrangedor a respeito das centenas de pessoas massacradas e sequestradas durante a sua gestão havia sido registrado por movimentos sociais e organizações de direitos humanos, bem como por ativistas de mídias sociais. Além disso, uma série de relatórios independentes descreveu o mecanismo pelo qual o caos foi “fabricado” por agentes nacionais, internacionais e transnacionais, incluindo o Estado e o corpo diplomático.1
De acordo com a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (Réseau National de Défense des Droits Humains, RNDDH), entre novembro de 2018 e março de 2024, “gangues” lideraram mais de 25 massacres e outros ataques armados, implicando assassinatos de mais de 1.500 pessoas, estupros coletivos de mais de 160 meninas e mulheres, o desaparecimento de dúzias de pessoas, a mutilação de centenas e a destruição de mais de 450 lares, o que resultou em mais de 500 mil refugiados internos. No início do período, os grupos armados atuavam isoladamente e rivalizavam entre si. A partir de agosto de 2020, no entanto, nove deles se aliaram sob a liderança do ex-policial Jimmy Chérizier, fenômeno visto com bons ollhos pela Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reinserção do Haiti.
Em janeiro de 2024, com o intuito de impedir o retorno ao país de Ariel Henry, que vinha do Quênia, Chérizier incorporou o restante das gangues da capital para dar início a uma “revolução” e assumiu o controle das cercanias do aeroporto em que pousaria o presidente em exercício. Nos meses seguintes, integrantes do grupo demoliram postos policiais e prisões, incendiaram hospitais públicos, universidades e bibliotecas e assassinaram várias centenas de pessoas. Também destruíram o Tribunal Superior de Contas e Contenciosos Administrativos, que abrigava os arquivos com registros de despesas do governo, inclusive os dossiês relativos ao acordo PetroCaribe com a Venezuela.
Em resposta, para substituir a gestão de Henry, a Caricom articulou a formação de um Conselho Presidencial de Transição, composto por sete presidentes, todos homens,2 e, em sua maioria, representantes do Parti Haitien Tèt Kale (PHTK) [Partido Haitiano Cabeça Calva], que ocupava o poder desde 2011.3 Em maio de 2024, o primeiro ato do Conselho foi confirmar o compromisso da comunidade internacional com a continuidade da Missão Multinacional de Apoio à Segurança, apesar das denúncias populares em relação à Missão de Estabilização da ONU vigente entre 2004 e 2017 que, ao longo dos treze anos de existência, possibilitou o armamento das gangues. O Conselho também escanteou as demandas populares elementares de “chavire chodyè a” [romper com o sistema], estruturadas pela questão: “Kot Kòb PetroKaribe A?” [Onde está o dinheiro do PetroCaribe?]
A conversa a seguir, entre Sabine Lamour, Georges Eddy Lucien e Ernst Jean-Pierre, esclarece que a crise haitiana atual não se resume a um problema passível de resolução por meio de ocupação militar, novas eleições ou medidas de “boa governança”. Em vez disso, trata-se de uma luta de proporções históricas, travada entre o povo do Haiti e o Estado neocolonial. O diálogo não se limita a questionar quem são as gangues, mas também por que as gangues, e por que agora.
Sabine Lamour é professora de sociologia na Université d’État d’Haiti e atuou durante cinco anos como coordenadora nacional de Mulheres Haitianas em Solidariedade (SOFA). Georges Eddy Lucien é professor de história e geografia na Université d’État d’Haiti. Ernst Jean-Pierre é coordenador geral do Grupo de Pesquisa sobre Iniciativas para um Desenvolvimento Alternativo e Participativo. O texto a seguir é baseado na discussão de um painel realizado em outubro de 2022 na 9ª Conferência Anual de Filosofia da Religião em Tradições Africanas, e foi editado para refletir os desenvolvimentos políticos ocorridos desde então, esboçados acima.
Baseado num painel realizado em outubro de 2022 na 9ª Conferência Anual de Filosofia da Religião em Tradições Africanas, este texto foi editado para refletir sobre os recentes desenvolvimentos políticos esboçados acima.
– Mamyrah Dougé-Prosper
Um diálogo entre Mamyrah Dougé-Prosper, Sabine Lamour, Georges Eddy Lucien e Ernst Jean-Pierre
Mamyrah Dougé-prosper: As gangues—também chamadas de bases—controlam territórios abandonados pelo Estado. São bairros populares que têm pouco ou nenhum acesso a água potável, eletricidade, escolas, hospitais e empregos. Muitos desses territórios constam no mapa do Estado, outros são assentamentos informais ou favelas que abrigam mais de um milhão de pessoas. A maior parte das gangues está concentrada na área metropolitana de Porto Príncipe, nas proximidades de parques industriais, portos internacionais, centros de distribuição de petróleo, armazéns de bens de luxo e alimentos importados e ao longo de rotas comerciais nacionais e internacionais. São majoritariamente compostas por meninos e homens jovens (apesar da presença de algumas poucas mulheres) que, confrontados pelas altas taxas de dexemprego e pela ausência de formação educacional básica, decidem aderir aos grupos por razões ligadas à proteção individual, ao exercício da respeitabilidade masculina entre suas comunidades e a ganhar dinheiro. Os líderes das gangues, por sua vez, são policiais reformados e agentes de segurança privada.4
A origem das primeiras gangues foram as brigadas de autodefesa instituídas após a derrubada da ditadura de 29 anos da família Duvalier (1957 a 1986). Em 1991, as brigadas foram reforçadas para proteger os bairros populares em Porto Príncipe dos esquadrões da morte formados durante durante o golpe de estado contra o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido democraticamente eleito. Em 1994, quando o chefe de Estado deposto volta ao poder, a distribuição de armas a seus apoiadores despolitiza a formação das brigadas e os grupos se voltam para atividades criminosas, inclusive sequenstros. Durante o segundo mandato de Aristide (2001-2004), essas gangues “de bairro” foram reforçadas para enfrentar ex-oficiais militares, desmobilizados em 1995, que se organizavam para derrubar o governo. Em 2004, após a remoção forçada de Aristide, seus milicianos foram silenciados pelas as tropas da Missão de Estabilização da ONU.5
As gangues não são monolíticas. Mesmo assim, ao longo dos últimos seis anos, pesquisadores militantes identificaram os 23 principais grupos que operam na área metropolitana de Porto Príncipe como forças paramilitares ou forças armadas extralegais do Estado. Como explicar isso?
Georges Eddy Lucien: Desde 2016, a polícia tem sido incapaz de conter as revoltas populares, de fazer o povo recuar. As gangues vieram para exercer duas funções. Em primeiro lugar, atuam como agentes de repressão em bairros com alta concentração da classe trabalhadora – sabemos que de 67% a 69% da população de Porto Príncipe vive em bairros precários. Um exemplo disso é o massacre de residentes de Lasalin pelas gangues, ocorrido três semanas após terem participado do protesto de 17 de outubro de 2018. Isso enviou uma mensagem clara aos moradores desses bairros: eles não têm direitos civis e políticos e não podem se envolver em manifestações dessa natureza. Há outros exemplos, como o massacre em Belair durante o primeiro peyi lòk—traduzido por alguns como “greve geral”—e o massacre em Kafou Marasa (Cité Soleil). As gangues cumprem a função de reprimir os moradores, e reprimem também organizações progressistas. Entre 1987 e 1988, após a derrubada da ditadura de Duvalier, inúmeras organizações populares passaram a atuar dentro dos bairros, inclusive grupos estudantis e sindicatos. Hoje, no entanto, organizar uma reunião nos bairros onde seria possível aglutinar uma base popular local é muito mais difícil.
A segunda missão das gangues é banalizar o sentido mobilizador de conceitos como os “filhos dos pobres” ou a “revolução” e contribuir para a criminalização dos movimentos sociais. Durante o governo de Jovenel Moise (2017-2021), a participação das gangues nos protestos trivializou as demandas populares. Essas são todas estratégias.
O Exército—aqueles agentes tradicionais tipicamente acionados pelo Estado haitiano ou pela oligarquia local e internacional, especialmente pelos Estados Unidos, para resolver a crise—não está mais presente. Se olharmos para 1946, 1956 e 1986, era sempre a mesma coisa: íamos dormir e, quando acordávamos, ficávamos sabendo que o exército havia tomado o poder. Porém, o Exército foi dissolvido em 1995 quando Jean-Bertrand Aristide, anteriormente deposto, voltou à Presidência. Hoje, o aparato repressor, seja a polícia, sejam as gangues, assumiram um papel enorme. Durante a ditadura de Duvalier, certamente, sempre houve uma ligação entre o Exército e a milícia. O Exército, no entanto, tinha mais recursos logísticos e mais armas do que grupos informais. Mas a informalidade era importante porque, sempre que o Exército precisava deixar uma ação de fora dos registros oficiais, usava a milícia. Foi o caso do golpe de 1991, quando eles instrumentalizavam a Frente para o Avanço e o Progresso do Haiti (FRAPH), que é notoriamente um produto da CIA.
MdP: O poder de fogo das gangues aumentou a ponto de incluir armamentos de guerra, como AK-47 russas, AR-15s fabricadas nos EUA e rifles de assalto Galil israelenses. Algumas armas traficadas no Haiti são compradas em lojas na Flórida, nos Estados Unidos, onde a regulamentação da venda é branda. Em seguida, são transportadas de navio do porto de Miami, em contêineres com identificação de carga que requerem monitoramento intensivo. Armas ilegais entram no país por meio de portos que estão sob o controle privado de oligarquias, como o Porto Lafito de Gilbert Bigio, ou através de pistas de pouso clandestinas e, ainda, da fronteira terrestre com a República Dominicana. Enquanto esse processo se consolidava, nos últimos trinta anos, o regime do PHTK sistematicamente subfinanciou e desequipou as próprias forças armadas.
As gangues de hoje—financiadas ou fortalecidas por governantes do PHTK, por outros políticos e por oligarcas importantes—viraram os novos esquadrões da morte. Traficam pessoas, órgãos, drogas e armas. Fazem sequestros a serviço de terceiros ou para levantar fundos para a compra de munição. Matam para conquistar novos territórios ou para retaliar grupos rivais.
Elas traficam órgãos e pessoas, drogas e armas. Sequestram a cargo de terceiros ou para levantar fundos para comprar munição. Matam para conquistar novos territórios ou para retaliar grupos rivais. As gangues também oferecem proteção para negócios privados, a exemplo daqueles do capitalismo mercantil de Reynold Deeb. Reprimem pequenos assaltantes e assaltam competidores. Dissolvem greves. Quando contratadas por políticos como o ex-presidente Michel Joseph Martelly (2011-2016), ameaçam cidadãos votantes para inviabilizar eleições justas e desencorajar a participação em protestos. Assassinam oponentes políticos.Como o movimento social de hoje lida com toda essa violência?6
GEL: Apesar da presença das gangues, o último peyi lòk (greve geral), em julho de 2018, mostrou que essas estratégias não conseguem forçar o povo a recuar. Isso tornou indispensável uma intervenção militar que atendesse aos interesses das oligarquias locais e internacionais. É similar ao que ocorreu em 1802, quando a expedição de Leclerc foi lançada em Santo Domingo (Haiti): a metrópole colonial percebeu que os aparatos repressivos locais eram incapazes de conter as massas de escravos. A inabilidade da metrópole francesa de conter as massas de escravos ao longo de quase dez anos, de 1791 a 1801, ensejou o reforço dos aparatos repressivos. A mesma coisa aconteceu, também, na crise de 1902-1915. A intervenção militar estrangeira é reflexo da incapacidade das oligarquias locais e internacionais de sufocar as revoltas populares.
O movimento social que debatemos hoje surgiu em 2015-2016 e seus seis anos de duração foram marcados por uma série de insurreições. Desde os grandes protestos de 1929 contra a ocupação estadunidense (1915-1934), não havíamos experimentado um período tão longo de revoltas continuadas. Uma vez retiradas as tropas estadunidenses, a continuidade daquele sistema e o controle foram mantidos pelos oligarcas locais e internacionais. Em 1946, porém houve novos protestos massivos. Dez anos depois, em 1956-1957, a oligarquia local logrou assumir o controle pelos 30 anos seguintes por meio dos Duvaliers, até cerca de 1985-1986. Em 2015, as pessoas se revoltaram novamente. Esse é um período que nos lembra dos treze anos de resistência de Rosalvo Bobo, entre 1902 e 1915, contra o estreitamento das relações entre as oligarquias locais e estadunidenses.7
MdP: A crise atual, portanto, reflete as persistentes divisões e intervenções que caracterizaram o processo político do Haiti mesmo antes da Revolução de 1804. Quais são as dimensões históricas que permearam o movimento social que surgiu em 2015-2016?
Ernst jean-pierre: É importante lembrar nossa história como povo e a forma específica que o colonialismo assumiu no Haiti. A chegada de Cristóvão Colombo em 1492 criou uma nova realidade colonial. Os invasores se apropriaram das riquezas da terra, devastaram o meio ambiente (a flora e a fauna) e os povos indígenas que viviam aqui e introduziram o comércio transatlântico de escravos africanos. O Code Noir (Código Negro) que regulamentou o sistema escravista no Haiti classificava africanos escravizados como subumanos, e isso tem repercussões até o presente.
Em 1791, a cerimônia de Bwa Kayiman foi o terreno em que a primeira grande insurreição de escravos da Revolução foi planejada, o que culminou na libertação geral de todos os escravos e na reivindicação de independência em 1804. Depois da independência, no entanto, os filhos de brancos, mulatos e Creoles8 reivindicaram terras, exigindo compensação pelas propriedades perdidas e danificadas. Jean-Jacques Dessalines, um dos principais líderes da Revolução Haitiana e o primeiro governante do Haiti independente, combateu essas exigências. Sua ideia de idendependência era mais abrangente que a abolição da escravidão, ele aspirava a um sistema de igualdade baseado nos valores dos Bosals—africanos nascidos no continente e que não se encontravam sob regime de escravidão—, que sustentavam princípios comunais acerca do trabalho e da liberdade. Dessalines, representando uma ruptura com o sistema colonialista herdado, propôs redistribuir a riqueza da terra entre todos os haitianos e promulgou uma série de medidas destinadas à concretização disso.9
Os decretos de Dessalines representaram esforços radicais para lidar com o sistema de riqueza colonialista, mas causaram tensão no interior da nova nação. Em outubro de 1806, Dessalines foi assassinado, demarcando um momento crucial que cindiu a nação em duas. O governo subsequente deslocou os Bosals para as montanhas e para a área rural e impôs um Código Rural similar ao Código Negro colonialista.10 Ao perpetuar a existência de uma classe de camponeses com a função de fornecer produtos agrícolas para uma classe de proprietários de terra Creoles, isso reinstituiu um modelo de racismo, ou até de apartheid, na sociedade. Essa cisão fundamental se desdobrou na crise de 1843, que dividiu o país em quatro partes. A partir de 1915, quando o Haiti caiu nas mãos da ocupação estadunidense, muitas instituições e companhias norte-americanas, como a Haitian American Sugar Company (HASCO), atuaram na exportação de sisal, borracha e cana-de-açúcar.
Os haitianos acabaram com um Estado que não corresponde às aspirações das massas, um reles protótipo do Estado-nação ocidental. A lei haitiana é uma cópia da lei francesa, sem nenhum senso para direitos ambientais e comunais. As classes cultas, da elite, tomaram as rédeas do governo, concedendo a si próprias privilégios sociais e econômicos e exigindo que a maioria esperasse. Essa é a condição atual. Foi isso que nos levou às crises de 1943 e 1946, e às crises que se seguiram aos mandatos dos presidentes Dumarsais Estime e Duvalier. As crises são recorrentes porque o problema histórico nunca foi resolvido: a luta entre os Bosals, o povo camponês, e as elites. As elites se valeram de duas armas poderosas: educação e Estado. É uma combinação desses dois fatores que combate as massas populares.
Nessa luta desigual, testemunhamos o esforço de desgaste das massas populares para colapsar o Estado, criar um Estado-cadáver. Há uma canção carnavalesca que narra exatamente isso, diz que o Estado é um cadáver ou um defunto. Sobre este Estado, não há o que se possa construir. O povo demanda uma mudança no sistema, no sistema de escravidão que nós combatemos. As potências mundiais nos fizeram pagar caro por essa luta. As sementes da alternativa residem na luta dos Bosals: sustentada sobre lakou (terras comunais), construída nas bitasyon (plantações) e baseada em consenso, democracia, solidariedade e konbit (ajuda mútua).
MdP: O movimento social que surgiu em 2015-2016, então, buscou colapsar o Estado para resolver esse problema histórico entre as massas e as elites. Logo após o primeiro turno das eleições presidenciais de 2015, a oposição política—incluindo organizações de massas e outras da sociedade civil—fechou a capital para denunciar a manipulação dos resultados pelo PHTK. Antes desse momento crucial, a resistência aos projetos de desenvolvimento do PHTK era localizada: defesa contra apropriação de terras em Caracol em 2011, na ilha de Ile-à-Vache em 2013 e na ilha de La Gônave na Baía de Porto Príncipe em 2014, para mencionar alguns exemplos. O movimento social que surgiu em 2015-2016, porém, mirou diretamente no regime do PHTK, levando à anulação dos resultados da eleição. No entanto, as novas eleições de 2016 mais uma vez alçaram o indicado pelo PHTK ao poder: Jovenel Moise.
O movimento social tentou impedir a continuidade dessa histórica “disputa pelo Haiti” por parte do PHTK. Trouxe à memória as eleições fraudulentas que levaram o partido ao poder em 2011, explicitando a estratégia do PHTK de postergar as eleições parlamentares e, em vez disso, governar por decreto, a fim de entregar, de presente, terras agrícolas administradas comunalmente a elites multinacionais na forma de zonas de livre-comércio. Muitos também apontaram o mau uso do dinheiro público—dos fundos de reconstrução após o terremoto de 2010 e da gestão da PetroCaribe—pelo PHTK, para subsidiar projetos extrativistas como a construção do maior parque industrial do Caribe em 2011, o Parque Industrial do Caracol; o estabelecimento da Agritans, fazenda destinada à plantação de bananas pertencente a Moise, em 2014, antes da divulgação de seu nome como candidato presidencial do PHTK; e a construção do primeiro porto multiúso de águas profundas do país com capacidade para grandes navios cargueiros, o Porto Lafito. Todos esses projetos são parcerias público-privadas que gozam de isenção fiscal.
No Haiti de hoje, quem controla essas zonas de livre-comércio?
sabine lamour: Os oligarcas haitianos tampouco são um grupo monolítico. Eles não compartilham as mesmas visões ou convicções. Entre eles, há o segmento que existe desde o período revolucionário, os antigos libertos”, que até hoje se consideram os herdeiros de seus pais colonialistas brancos. Esse grupo formou uma burguesia nacional que foi bem-sucedida de 1804 até a ocupação estadunidense em 1918. Essa burguesia tambem abrangia membros oriundos da França, Inglaterra e Alemanha. As filhas da burguesia nacional já instalada no país se casavam com filhos de estrangeiros em decorrência de relações comerciais. A burguesia nacional se renovou através da manutenção de uma hegemonia baseada na cor da pele sobre a população em geral. Mas, ao longo da ocupação estadunidense do Caribe, novos grupos chegaram ao poder. Capitalistas emergentes do Levante também se disseminaram pela região. E, no Haiti, “beneficiando-se” de sua pele mais clara, acabaram substituindo a burguesia nacional inicial.
A classe burguesa é plural. Houve uma explosão da classe burguesa que não é necessariamente unificadora. Mas, se há uma tendência comum aos grupos que podem ser considerados como elites ou oligarquias é: nada que é “nacional” lhes interessa. Eles investem em comércio. Portanto, ainda que o Haiti seja capaz de produzir arroz, Reynold Deeb, o diretor executivo do Grupo Deka, prefere comprá-lo e empacotá-lo nos EUA, em vez de apoiar a produção doméstica. Podemos, então, realmente chamar esses oligarcas de burguesia nacional?
Eles vivem em espaços apartados, isolados da maioria da população. Seus filhos não frequentam as mesmas escolas. Quando ficam doentes, buscam tratamento em Miami. Têm múltiplas nacionalidades. É uma espécie de burguesia sem Estado que não estabelece nenhuma relação com as massas. Toda vez que seus interesses são ameaçados, sempre que as contradições se tornam capazes de engendrar a mudança ou a transformação social necessária para que os recursos sejam realmente distribuídos por toda a população, cada vez que o capital entra em apuros, essa burguesia plural se alia à comunidade internacional ou às Nações Unidas e, para assegurar sua posição e continuar a extrair riqueza, oferece aos estrangeiros todos os recursos que o Haiti possui.
É interessante que uma das novidades da atual crise seja o engajamento ativo da burguesia transnacional na política. Tradicionalmente, ela praticou uma “politique de doublure/política de dublês”, pela qual financiava políticos que, uma vez eleitos, respondiam exclusivamente aos interesses dela. Agora ela decidiu ingressar na política nacional mostrando a própria cara. Gregory Mevs—cuja família é dona do Terminal de Petróleo Varreux e do parque industrial SHODECOSA—atuou como copresidente do ex-presidente Martelly no Conselho Consultivo Presidencial sobre Crescimento Econômico e Investimento. Reginald Boulos, fundador do Sogebank e dono de uma rede de supermercados e de concessionárias de automóveis, estabeleceu seu movimento político durante o mandato do falecido ex-presidente Moise. Não foi por estar preocupada com a transformação social que a burguesia mostrou sua cara, mas porque quer controlar diretamente o que chamo de “locais de predação” na sociedade. A alfândega é um desses locais, que permite a importação de armas, alimentos cancerígenos estragados e outros produtos letais fora do prazo de validade. Mas a burguesia monopoliza todas as indústrias. O Grupo Gilbert Bigio, por exemplo, controla também a construção (importação de ferro e madeira).
Quando a burguesia se dá conta de que, pouco a pouco, a maioria se torna mais poderosa e que, a qualquer minuto, pode haver uma explosão social no Haiti, procura controlar os espaços de poder. Porém ela não decide controlar esses espaços para si mesma, mas, em vez disso, compartilha o controle com os interesses internacionais.
MdP: Como observado por Sabine Lamour, o Estado do PHTK se acomodou abertamente a essas elites transnacionais e, inclusive, facilitou a ascensão de um pequeno grupo de aspirantes a capitalistas. No primeiro ano do seu mandato, o governo de Moise apresentou um projeto orçamentário que aumentou seu próprio salário e os de seu gabinete, enquanto elevou a carga tributária incidente sobre o pobre trabalhador e a classe média. Retirou o Haiti do acordo do PetroCaribe com a Venezuela e lançou o país de volta ao mercado de compra de petróleo e produtos derivados do petróleo. Em julho de 2018, por ordem do Fundo Monetário Internacional (FMI), Moise anunciou a retirada dos subsídios para o combustível. O aumento do preço do combustível inevitavelmente levaria à majoração dos preços de transporte e alimentos. Em resposta, dissidentes levantaram barricadas, bloqueando todas as rotas comerciais nacionais e interrompendo toda a atividade comercial do país por dois dias: foi o primeiro peyi lòk. Moise revogou o anúncio. Um mês depois, foi lançado o movimento PetroChallenge. Protestos irromperam em todas as dez maiores cidades do Haiti em torno do slogan “Kot Kòb PetroKaribe?” (Onde está o dinheiro do PetroCaribe?), demandando que o regime do PHTK prestasse contas do uso que fez de mais de três bilhões de dólares dos fundos do PetroCaribe destinados ao incremento de infraestrutura e programas sociais.
O movimento social que surgiu em 2015-2016 se concentrou na capital, mas assumiu escala nacional com o primeiro peyi lòk. As diferentes defesas rurais fora de Porto Príncipe, mencionadas anteriormente, passaram mensagens próprias, mas, em 2018, todas as reivindicações feitas nos protestos convergiram para esta questão: “Kot Kòb PetroKaribe?”. O que é tão importante em relação ao PetroCaribe?
gel: A revolta de julho de 2018, uma das mais significativas dos anos recentes, levantou a questão do Acordo PetroCaribe porque ele questiona a lógica e solapa o funcionamento do sistema financeiro internacional introduzido no Haiti em 1825, quando os bancos franceses concederam um empréstimo à nação previamente colonizada. Típico desses arranjos é que o banco ganha e o país que toma o dinheiro perde. No entanto, o PetroCaribe ofereceu a possibilidade de que tanto a Venezuela quanto o Haiti ganhassem.
No âmbito do PetroCaribe, a Venezuela concordou com que o tomador do empréstimo pagasse com bens que produzia, afastando-se do modelo neoliberal que arruinou a dinâmica de produção no Haiti. Havia a possibilidade de desafiar o sistema financeiro internacional. Julho de 2018 também foi uma das primeiras ocasiões em que os movimentos sociais falaram de “chavire chodyè”, ou seja, de romper com o sistema.
MdP: Depois de semanas de protestos em escala nacional em 2018, um relatório oficial de investigação revelou que o próprio presidente Moise havia lucrado com os fundos da PetroCaribe, levando a apelos por sua renúncia. Em vez disso, Moise votou contra o reconhecimento de Nicolas Maduro na Organização dos Estados Americanos em 2019. Naquele ano, houve escassez de combustível, o que provocou outro peyi lòk, que dessa vez durou três meses. Qual o significado do “peyi lòk”?
sl: É uma maneira de resistir. É o resultado de uma sociedade com contradições tão profundas que as pessoas são forçadas a bloquear o sistema. Como pode o governo retirar os subsídios do combustível quando o preço do galão excede o valor do salário mínimo?! Durante o primeiro peyi lòk, em julho de 2018, as mobilizações ocorreram por toda a área metropolitana de Porto Príncipe e se espalharam pelo país inteiro, paralisando toda a atividade comercial. E o governo foi obrigado a recuar na questão do combustível.
No peyi lòk, apesar da paralisação das atividades comerciais, ocorrem numerosas atividades organizadas tanto pela sociedade civil quanto pela oposição política. São organizados paineis, protestos e flash mobs edivulgados posicionamentos. As demandas em si não estão paralizadas. Em consequência, podemos dizer que o peyi lòk mitiga a insegurança provocada pelas gangues e oportuniza que as organizações se tornem mais ativas politicamente e se reúnam com mais frequência para discutir.
É claro que há uma contradição no peyi lòk: pode haver danos colaterais para pessoas vulneráveis que, impedidas de cumprir o trabalho diário que sustenta sua reprodução, precisam ter condições de estocar alimentos. O governo também utiliza o período de peyi lòk para reprimir os militantes que ocupam as ruas todos os dias para sustentar as barricadas contra a polícia e as gangues.
gel: O peyi lòk impede a acumulação: há um lòk ou um bloqueio imposto à acumulação dos investimentos internacionais. Ele interrompe a produção em lugares como Savane Diane, uma zona de livre-comércio que fabrica produtos para a Coca-Cola; como o Parque Industrial Caracol, onde produzimos vestuário; ou áreas como CODEVI em Ouanaminthe ou SONAPI em Porto Príncipe, onde há grande quantidade de fábricas. É quase como em 1791, quando as massas de escravos impediram a metrópole—no caso atual, os Estados Unidos—de acumular.
ejp: O peyi lòk não é algo novo; é a apropriação de uma forma de luta camponesa chamada “koupe wout” (bloquear estradas). O exército indígena de Jean-Jacques Dessalines usou essa tática para cortar a linha de suprimentos do comandante militar francês Joseph de Rochambeau durante a revolução de 1802. Esse método foi usado após a independência por diferentes líderes revolucionários camponeses que buscavam isolar e controlar sua região. Os guerreiros Kako adotaram essa tática de koupe wout para impedir o avanço da incursão dos marines estadunidenses no interior do país. Esses bloqueios interromperam o restabelecimento do trabalho forçado pelos ocupantes estadunidenses, visando à construção das estradas que facilitavam o transporte de colheitas para exportação.
Interpreto isso como uma forma de luta sendo adaptada a Porto Príncipe e outras cidades: ela impede comunicação entre departamentos, circulação e movimento e a funcionalidade do sistema capitalista dentro das próprias cidades. É um sistema histórico e cultural de resistência. Nós integramos algumas palavras inglesas e francesas; dizemos “barikad” (barricadas); hoje dizemos “lòk”, mas antes isso chamava “gran chimen bare” (bloqueio de estradas), locais onde nada podia circular livremente.
mdp: Em janeiro de 2020, Moise dissolveu o Parlamento para governar por decreto e, no início de 2021, anunciou um referendo com o intuito de adotar uma constituição produzida pela Organização dos Estados Americanos, que expandiria o escopo de tomada de decisão do Poder Executivo. Ele se recusou a deixar a presidência e não fez planos para organizar eleições em nenhum nível. Em vez disso, deu terras agrícolas de presente a outro oligarca, Clifford Apaid, e substituiu três juízes da Suprema Corte (driblando procedimentos parlamentares). Os protestos em massa continuaram até junho. E, poucos dias antes de ser assassinado, Moise ainda indicou Ariel Henry como seu novo (sétimo) primeiro-ministro.
As manchetes internacionais focaram em caos e crise, encobrindo e até confundindo essas revoltas populares com a violência das gangues. Quais são as demandas desse movimento social? Quais são as diferentes tendências ideológicas em jogo?
sl: Há uma constante nessas demandas—o direito à autodeterminação. Seja em relação ao Estado haitiano, seja em relação à comunidade internacional que constantemente tenta nos impor uma série de condições, há sempre um momento em que fazemos essa demanda, a de que nós também podemos propor nosso próprio modo de vida. Esse é o elemento comum a todos os movimentos sociais, quer o elemento político consista de mulheres, camponeses, pessoas jovens ou sindicatos de professores. A segunda demanda é o reconhecimento da dinâmica interseccional da luta, a capacidade de reconhecer pessoas como pessoas, para além de sexo, raça, classe e religião. A terceira demanda é a luta contra a impunidade, a luta por acesso à justiça.
Esse movimento social possui uma liderança difusa, cada braço tem capacidade de atuar por meio de decisões próprias. A constância dessas demandas indicam que há uma fidelidade política, uma tendência anárquica, que amedronta as oligarquias transnacionais. Um dos elementos aglutinadores das diversas demandas internamente existentes é a revindicação comum da capacidade de que uma pessoa seja livre. A liberdade é um elemento fundamental no movimento ativista que carrega em si um conjunto particular de ideais políticos que permeiam a sociedade haitiana. Desde a Revolução de 1804, percebemos que, contida na questão da liberdade, está a questão do bem-estar, mas não o bem-estar no sentido ocidental, baseado na propriedade privada.
ejp: No momento atual da luta, os bairros da classe trabalhadora urbana estão mais mobilizados do que os camponeses, e os líderes políticos estão desacreditados. A missão histórica das massas populares é travar a batalha contra uma ordem global injusta—esse é o elemento comum às lutas populares haitianas, passível de ser conectado com um discurso de esquerda anti-imperialista mais amplo. Mas se você observar mais de perto a emergência das lutas populares, trata-se de uma batalha existencial em torno da necessidade de viver. Essa luta é permanente na natureza e é refletida pela impossibilidade do diálogo entre as elites e as massas. As elites políticas tradicionais carecem de uma narrativa direcionada às demandas populares por não serem capazes de apaziguar a luta por mudança. Essa é a razão de estarem sempre em crise.
Em 2021, após o assassinato de Moise, várias organizações da sociedade civil e partidos progressistas se reuniram para redigir o Acordo de Montana, permitindo que um governo transitório organizasse eleições livres e acompanhasse o julgamento do PetroCaribe. Porém, isso reduziu a luta organizada à questão de tomar o poder. As massas populares estavam travando uma batalha histórica para mudar definitivamente o sistema capitalista ocidental. Há duas batalhas em curso no Haiti: uma batalha por mudança real e outra pelo poder. Esta última não contempla as aspirações das massas populares.
sl: Os cenários que se apresentam nesse momento são os mesmos que experimentamos desde 1806, centrados na autodeterminação, redistribuição e produção de recursos. Se você considerar 1806, 1843, 1865 ou até 1915 e 1934, bem como as lutas de 1986 e 2004, verá esses fantasmas retornando constantemente ao Haiti.
Em toda grande crise, levanta-se a mesma questão. Como construiremos uma comunidade nos 27.500 quilômetros quadrados de terra de que dispomos para viver juntos, se alguns não veem os outros como plenamente humanos? Essa é a base da luta no Haiti: os que estão no comando alegam que todos os recursos produzidos na sociedade pertencem a eles e jamais hesitam em buscar gente de fora para intervir no problema. Porém, há a questão do que é necessário acontecer internamente para construir uma parceria verdadeira, um projeto político comum de construção da sociedade. Essa batalha existe desde que a nação foi constituída. Os projetos políticos propostos até agora acabam fomentando alguma forma de exclusão e ausência de redistribuição. Mas há coerência política no caos, e os haitianos devem lidar com isso.
Esse diálogo foi publicado em colaboração com a Lefteast.
Desde que o Hamas lançou seu ataque contra o sul de Israel em 7 de outubro de 2023, questões sobre a capacidade de dissuasão pairam sobre a região: quem a detém, em que consiste e como o equilíbrio de forças poderá ou não levar a uma guerra regional cada vez mais ampla.
Nenhum ator regional suscitou o espectro de um arranjo de dissuasão de maneira mais clara que o Hezbollah. Tão logo Israel deflagrou o genocídio contra os palestinos em Gaza, a possibilidade de uma guerra de “segunda frente” no norte do território israelense entrou em cena: Netanyahu buscará uma escalada do conflito, a fim de satisfazer uma população faminta por guerra e uma coalização política extremista? O Hezbollah, ao lado de outros membros do Eixo da Resistência, pressionará por um acirramento da tensão militar? As escaladas retóricas, midiáticas e de operações militares abrem caminhos para a guerra ou são mecanismos de gestão prolongada de uma dissuasão mútua?
Na entrevista a seguir, o escritor e advogado Dylan Saba e o editor da Phenomenal World, Jack Gross, conversam com Nicholas Noe sobre esses possíveis desdobramentos, o crescimento do Hezbollah e a possibilidade de uma guerra “total” entre a organização libanesa e as Forças de Defesa de Israel (FDI). Nicholas Noe é diretor da Foundation for Global Political Exchange e da plataforma de tradução Mideastwire.com, além de membro sênior da Refugees International. Escreveu uma série de artigos e comentários sobre o Líbano e a região e editou o livro Voice of Hezbollah: The Statements of Sayyed Hassan Nasrallah [“A voz do Hezbollah: as declarações de Sayyed Hassan Nasrallah”, sem tradução para o português], publicado em 2007.
Entrevista com Nicholas Noe
Jack gross: Apesar das falas que, desde 7 de outubro, pregam a necessidade de conter a conflagração regional, há um conflito muito ativo na fronteira entre Israel e o Líbano, com muitas baixas, destruição de infraestruturas e de zonas agrícolas e despovoamento significativo em ambos os lados. O que está acontecendo no sul do Líbano e no norte de Israel desde outubro?
nicholas noe: Essa é uma pergunta difícil de responder, porque há vários pontos de vista implicados: dos israelenses e libaneses de ambos os lados da fronteira, dos residentes de Beirute, e dos residentes dos campos palestinos, instalados há quase 80 anos no Líbano, especialmente no campo de Rashidieh, perto de Tiro. Não é fácil responder quem está sendo afetado, de que maneira, e o que esse conflito significa para essas pessoas.
Basicamente, desde 8 de outubro o Hezbollah e Israel vêm trocando acusações. Relatórios estimam que mais de 95 mil libaneses foram deslocados do sul de seu país e 60 mil israelenses do norte do seu. Os ataques israelenses mataram mais de 300 libaneses, enquanto os ataques do Hezbollah mataram 30 israelenses. Milhares de casas foram destruídas no sul do Líbano e centenas de ataques com fósforo branco devastaram terras agrícolas. No mês passado, as FDI anunciaram a aprovação de seu plano de ataque em grande escala ao sul do Líbano.
Mas, de um ponto de vista estratégico-militar, o que temos é uma situação sem precedentes no chamado conflito árabe-israelense: pela primeira vez, um grupo do lado árabe conseguiu assegurar militarmente o que o lado israelense chama de “zona tampão”. Isso é de extrema importância. Muito do que ocorreu nos últimos nove meses foi previsto por analistas, mas essa é uma situação que não tem precedentes e é profundamente significativa. O estado das coisas agora é muito diferente do que era há cinco, dez ou vinte anos—e isso é consequência de uma transformação no equilíbrio de poder militar.
Dylan saba: Você pode falar mais sobre a zona tampão e por que esse é um desenvolvimento significativo?
NN: O fundamental é que, pela primeira vez, digamos, na história contemporânea de Israel, seus oponentes criaram de fato uma área dentro do que Israel considera serem suas fronteiras que não pode ser habitada por israelenses. Isso nunca ocorreu antes e tem uma enorme influência sobre o desejo ou a disposição de Israel de intensificar o confronto com o Hezbollah.
Ds: Podemos dar um passo atrás? O que é o Hezbollah, como força política e militar no Líbano e na região de maneira mais ampla?
NN: O Hezbollah é um partido político e uma organização militar xiita libanesa que surgiu em 1982, durante a guerra de Israel contra o Líbano. Graças a uma importante ampliação de suas capacidades, se tornou um ator regional e internacional decisivo. Hoje, Israel, um aliado importante da principal superpotência do mundo, é incapaz de adotar uma ação militar resolutiva contra o Hezbollah, porque a organização conquistou uma mudança significativa no equilíbrio de poder e uma vantagem militar qualitativa.
O Hezbollah é uma força importante cujo poder só cresceu nos últimos vinte anos, crescimento que foi possibilitado, eu diria, pela incapacidade de outros atores de abordar problemas estruturais e queixas subjacentes que existem há muitas décadas.
jg: Você poderia falar mais sobre esse crescimento? Como os fatores políticos e econômicos da região, o envolvimento do Hezbollah na Síria e o aprofundamento da relação com o Irã levaram ao avanço de suas capacidades militares?
NN: Do ponto de vista militar, o Hezbollah se provou muito competente em termos de aprendizagem e construção de capacidades. Demonstrou isso quando esteve sob grande ameaça em 2005, momento no qual o exército sírio foi expulso do Líbano. Demonstrou isso durante o governo de seu suposto aliado Bashar- al Assad, durante a ditadura da Síria de 2011, e segue demonstrando no presente. Eles assimilaram e desenvolveram sua força. E as queixas subjacentes que fazem do Hezbollah um ator eficaz não encontraram soluções políticas duradouras—o fracasso em produzir essas soluções, especialmente em 1999 e 2000, está na origem do que ocorre hoje.
Em fevereiro e março de 2000, quando Hafez al-Assad viajou para Genebra para negociar um acordo de paz entre Síria e Israel, Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah, deu duas entrevistas cruciais. Se esse acordo tivesse se efetivado, seus efeitos teriam se estendido sobre o Líbano, porque a Síria tinha 30 mil soldados e dezenas de milhares de agentes de polícia secreta no país. Na época, o Hezbollah era um ator relativamente frágil.
Nessas entrevistas, Nasrallah disse que, se a Síria aceitasse um acordo de paz, o Hezbollah continuaria a resistir ao programa sionista: eles protestariam contra essa normalização e rejeitariam a presença de israelenses no sul do Líbano. Um jornalista do jornal egípcio Al-Ahram perguntou a ele de maneira provocativa: “O que o senhor fará se houver uma bandeira israelense em uma embaixada israelense no centro de Beirute?”. Esse era o rumo que a região parecia estar tomando. Nasrallah respondeu que o Hezbollah resistiria e organizaria conferências em oposição, mas, para bom entendedor, o subtexto era que eles não colocariam carros-bomba na embaixada israelense. Em 2000, os sírios tinham a dominância do poder no Líbano, gostasse o Hezbollah ou não.
Nasrallah observou ainda que Israel não seguiria o caminho da paz. Ele estava certo, é claro. Não houve paz em 2000, o caminho traçado pela Síria desmoronou, assim como os acordos de Camp David. Em maio de 2000, os israelenses deixaram o Líbano sem um acordo de paz sob fogo do Hezbollah: foi a primeira vez que uma força árabe expulsou forças israelenses de territórios ocupados.
A aposta do Hezbollah desde então se baseia na crença de que o projeto sionista israelense entrará em colapso. Isso está expresso no infame discurso da “teia de aranha”, no qual Nasrallah afirmou que “Israel, com suas armas nucleares e a força aérea mais poderosa da região, é mais frágil que uma teia de aranha”. Isso foi há 24 anos—antes do 11 de setembro, antes da guerra global contra o terrorismo liderada pelos EUA (que teve enormes efeitos na região), antes de Obama e da promessa de uma nova détente, antes do Daesh, antes da Primavera Árabe. Nenhum desses eventos pôs em xeque essa afirmação fundamental. As declarações de Nasrallah sempre desafiavam outros líderes a seguir um caminho pacífico, o que acabaria com a razão de ser do Hezbollah. Mas, infelizmente, como ele estava certo em afirmar, esse caminho parece não estar disponível.
Ds: Quais são exatamente essas queixas subjacentes? Em que sentido elas são insolúveis? E, se forem, isso já era algo dado desde 2000 ou o que ocorreu a partir de 7 de outubro abriu um novo caminho de confronto entre o Hezbollah e Israel?
NN: O Hezbollah tem uma série de interesses distintos. Entre eles, por exemplo, certamente está a preservação da República Islâmica do Irã e de seu poder, mesmo que isso venha a significar o desenvolvimento de um programa nuclear. São interesses relacionados ao seu próprio futuro como organização. Mas no cenário atual, como em outros, uma redução das fontes de conflito—nesse caso, o programa nuclear—reduziria o seu potencial de agir de acordo com esses interesses.
Pessoalmente, o que eu desejo é uma resolução justa, que reconheça os direitos palestinos e trate da ocupação israelense que, obviamente, é a queixa fundamental—a fonte fundamental do conflito regional. Mas, se fossem espertos, israelenses e estadunidenses poderiam ter usado a questão nuclear iraniana para esfriar as causas que permitiram ao Hezbollah se tornar tão “perigoso” quanto é hoje.
O Hezbollah reivindica o direito de resistir à ocupação israelense porque as fazendas de Sheba’a, Kfarchouba e Shmail Ghajar (norte de Ghajar) estão ocupadas por Israel. Os israelenses poderiam—em uma hora—acabar com a reivindicação legal do Hezbollah de lutar para libertar o território ocupado. Poderiam fazer isso em uma hora, mas não o fizeram nos vinte e quatro anos que passaram desde que deixaram o sul do Líbano. Podemos ter uma longa discussão sobre a justificativa de Israel para isso, mas o ponto é que eles poderiam facilmente resolver essa situação se deixassem esses territórios, que não são como Jerusalém, a Judeia ou a Samaria. Não fazem parte da grande causa israelense. E os libaneses que se opõem ao Hezbollah recomendam que Israel faça justamente isso: acabe com sua razão de ser! Coloque esse território sob a tutela da ONU! O próprio Nasrallah disse isso em 2000: “Basta os israelenses saírem de Sheba’a. Então, o governo israelense pode vir e dizer: ‘Ainda ocupamos alguma terra libanesa?’ Os libaneses terão de responder: ‘Não’. E o assunto estará encerrado”.
Se Israel é incapaz de fazer uma concessão política para atender a uma queixa tão pequena como essa, que não sacrifica nenhuma vantagem estratégica, então as perspectivas de qualquer esfriamento parecem ínfimas.
Ds: Uma vez que os diálogos sobre o cessar-fogo entre Israel e o Hamas praticamente morreram—o governo de Netanyahu não se mostra interessado em levá-los adiante—, a impressão que fica é que Israel e os EUA e tentarão alavancar o que vem sendo vendido como uma resolução unilateral, ou um quase cessar-fogo, por parte dos israelenses, para acalmar o acirramento do conflito no norte. Isso parece um grande tiro no escuro. Você vê algum caminho para a esfriar as tensões que prescinda de um acordo bilateral de cessar-fogo entre Israel e o Hamas?
NN: O caminho para esfriar tensões entre Hezbollah e Israel passa por um acordo com o Hamas em Gaza, ponto final. O Eixo da Resistência é uma frente coordenada, e sua estratégia conjunta está funcionando, apesar da evidente devastação provocada pela guerra. Se haverá ou não um cessar-fogo duradouro, é algo que tem a ver com os interesses articulados do Hamas e de seus aliados, incluindo, entre eles, a Jihad Islâmica Palestina, o Hezbollah e o Irã. Pode ser que eles cheguem a um acordo amplo aparentemente durável, mas que, na prática, acabe sendo bastante temporário.
Uma coisa que os analistas parecem não perceber é o fato elementar de que esses atores estão em uma guerra. O Hezbollah e o Hamas não são atores políticos movidos pela necessidade de esfriar tensões. São atores militares que consideram os meios militares como saída única para o conflito. E é claro que, para suas contrapartes israelenses, isso também é verdadeiro, e talvez seja ainda mais verdadeiro: eles partilham a crença de que o militarismo é a única resposta.
Ds: Israel parece genuinamente aberto à possibilidade de uma frente de guerra no norte e, se isso acontecer, não imagino que estejamos à beira de uma vitória rápida do Eixo da Resistência. Se Israel acabar cruzando a fronteira com o Líbano para erradicar o Hezbollah no sul do país, a situação pode evoluir para uma guerra de atrito—uma guerra que coloca enorme pressão sobre Israel em termos da sua superextensão militar e do ônus econômico de mobilizar tantas reservas. Qual é o cálculo do Hezbollah nesse sentido? Eles desejam atrair Israel para uma longa guerra de atrito que acelere o colapso que estão prevendo, ou estimam uma vitória mais rápida, tentando dominar Israel pela força e encerrar a guerra por meio de um choque?
NN: Não, eles sabem que a estratégia do domínio rápido não é viável para lhes garantir vitória como ator assimétrico. Estão apostando em uma estratégia de longa duração, que envolve paciência. Me parece problemática a ideia de que eles podem, no longo prazo, ter uma chance razoável de sucesso, mesmo a partir de suas próprias métricas, que são também profundamente problemáticas. Não acredito que possam ter sucesso a longo prazo, mesmo de acordo com seus próprios termos.
Ds: Você acha que o Hezbollah está se preparando para um cenário no qual Israel invada a Síria?
NN: O Hezbollah estaria numa posição muito frágil se dependesse estrategicamente do Assad para qualquer coisa, e eles sabem disso. O Hezbollah confia em uma única coisa: seus combatentes, seus membros e seus aliados—os verdadeiros fiéis. Para além disso, há apoiadores nos vilarejos e no ecossistema libanês de forma mais ampla, assim como há a República Islâmica do Irã, os hutis e as milícias xiitas no Iraque e na Síria.
Ds: Se a escalada militar parece estar no horizonte dos dois lados, como se dará a transição da zona cinzenta em que estamos agora para uma guerra aberta? Os israelenses invadiriam o sul do Líbano por terra ou empregariam ataques aéreos intensos e generalizados? Outra possibilidade seria um ataque em massa de Israel calibrado para provocar uma invasão do norte de Israel pelo Hezbollah. Também há rumores (ou propagandas) do lado israelense de que eles acompanham a localização de Nasrallah em tempo real. Se ele fosse assassinado, isso poderia desencadear uma guerra aberta?
NN: É impossível saber como isso se daria. A ameaça a Nasrallah é uma questão à parte, mas duvido seriamente que, depois de quarenta anos, conseguiriam pegá-lo. Eles não conseguiram pegar Sinwar, nem Mohhamed Deif nem vários outros.
Mas se deixarmos de lado as especulações, a questão fundamental continua sendo o fato de o Hezbollah ser forte o suficiente para representar uma ameaça existencial ao Estado de Israel. É muito difícil visualizar uma abordagem diplomática que leve a um acordo, dado o caminho bastante claro de escalada do conflito. Durante alguns meses, pensei que os israelenses e os estadunidenses poderiam livrar a cara aceitando um acordo no sul do Líbano, com o Hezbollah reposicionando algumas das unidades da força de elite Radwan, mas isso já não me parece mais possível. A cada rodada da história, a possibilidade de esfriamento foi adiada. Houve uma chance de esfriamento há vinte e quatro anos e houve novamente uma chance de tornar o Hezbollah irrelevante por meio da normalização das relações dos Estados Unidos com o Irã, mas agora estamos caminhando para um conflito mais profundo e não vejo como os atores envolvidos poderiam evitar esse desdobramento.
jg: Você pode falar mais sobre o sul do Líbano? Essa é uma região que esteve sob ocupação militar israelense por quase vinte anos, com Israel se retirando em 2000 para a fronteira reconhecida internacionalmente. Qual foi o significado político dessa retirada? E qual é a cultura política dessa região em relação ao Hezbollah?
NN: Acabei de visitar o sul do Líbano com amigos e familiares e devo dizer que nunca imaginei que pessoas que historicamente se opunham ao Hezbollah, que tiveram membros da família mortos por islamistas afiliados ao Hezbollah, estariam agora dispostas a lutar ao seu lado. Mas, em tempos como esses, não é algo tão extraordinário assim. Pessoalmente, fui surpreendido—nunca esperei ver garçons que odiavam o Hezbollah comprando armas e se preparando para defender seus vilarejos. Mas esse grau de união não é uma grande surpresa, digamos, para os serviços de inteligência de vários países. Talvez seja o motivo pelo qual tantos deles estão recomendando que Israel não prossiga com a escalada.
Devemos considerar também a pressão exercida sobre o Hezbollah por essas mesmas áreas para pôr fim ao conflito. Isso é algo muito importante para a outra grande potência no sul do Líbano, o movimento xiita Haraket Amal. A esta altura, parece bastante fantasioso imaginar Israel repetindo sua estratégia de 1982, que consistiu em fomentar as divisões políticas, históricas e religiosas do povo libanês—financiar uma guerra civil, em essência.
Ds: Qual é o objetivo final do Hezbollah? Há muito tempo ouvimos Nasrallah falar sobre a “grande guerra”. O que é a grande guerra? O Hezbollah está se preparando para ela neste momento?
NN: Temos visto teorizações bastante claras sobre como isso terminará, de ambos os lados. Atores israelenses poderosos fizeram declarações públicas sobre o significado da vitória: o povo de Gaza morto ou expulso para tendas no Sinai ou qualquer outro lugar. A transferência da grande maioria dos palestinos na Cisjordânia e talvez até israelenses palestinos para outro local. Esse é um “objetivo final” que conhecemos.
O Hezbollah, por sua vez, articula amplamente a visão de que Israel não será capaz de resistir a uma “grande guerra”—uma guerra aberta com centenas de milhares de combatentes—, presumindo que muitos israelenses com dois passaportes ou caminhos fáceis para a emigração deixariam o país em vez de lutar. A “grande guerra” criaria um momento cataclísmico para Israel.
Deixemos de lado os aspectos fantasiosos desses dois pontos de vista e tentemos analisar a questão de uma perspectiva mais realista. Não está claro se um número expressivo de pessoas, ou pelo menos suficiente para criar uma espécie de ponto de inflexão, deixaria Israel de repente. De qualquer modo, um grande segmento de israelenses poderia entrar para o serviço militar para lutar pela terra que acreditam ser sua. Um aspecto fundamental da estratégia do Hezbollah articulado por Nasrallah repetidas vezes é algo como: “No Líbano, lidamos com a falta de eletricidade e de água por décadas: temos condições de suportar o sofrimento. Os israelenses não são capazes disso. Será fatal para eles”. Penso que isso é tão fantasioso quanto a visão extremista de Israel sobre a sua vitória.
jg: Você pintou um quadro que mostra anos de tensões acumuladas de tal maneira que a escalada do conflito parece basicamente inevitável. E o aspecto fundamental por trás dessa inevitabilidade é a força militar do Hezbollah. Os analistas falharam em assimilar o equilíbrio militar como um fator determinante? O que as pessoas não estão entendendo sobre esse conflito?
NN: Eu não diria que é algo inevitável. O Estado israelense é dominante do ponto de vista militar há muitas décadas. No contexto de reação de seus oponentes, o Hezbollah se tornou a facção mais bem-sucedida até o momento, e o Irã o apoiou com muita força, de modo que, no presente, Israel não pode agir de acordo com sua doutrina de dissuasão em relação ao Hezbollah e ao Irã. Israel não pode atacar seus oponentes de maneira desproporcional sem ser alvo de um grande contra-ataque. Isso é algo sem precedentes na história do Estado de Israel, pelo menos desde a sua fundação.
Os atores de todos os lados de um conflito armado podem afirmar que cada decisão tomada por eles é uma aposta, de modo que, se algo der errado e uma grande guerra for iniciada, isso terá sido um erro. Mas esse tipo de raciocínio na verdade minimiza a responsabilidade jurídica, moral e estratégica exigida pelas circunstâncias. Na minha opinião, não há equívocos ou erros de cálculo. A verdade é a seguinte: ambos os lados estão dispostos a arriscar uma escalada, e os atores relevantes aqui são os atores militares. Os atores militares é que estão no controle. A destruição de Gaza por Israel é algo muito bem calculado. Eles são bons nisso, assim como o Hezbollah, assim como o Irã—o conflito sem precedentes de 13 de abril dá a medida de como a coordenação desses atores pode minimizar os danos. O maior esforço de interceptação de mísseis da história moderna se encerrou com apenas alguns feridos. Isso deixa claro que qualquer menção a “erros de cálculo”, a “tropeços que levaram à guerra” e outras metáforas desse tipo é equivocada.
A construção de oleodutos pela União Soviética em toda a Europa Ocidental concedeu à superpotência acesso aos mercados—e ao capital—europeus. Em seu novo livro, The Soviet Union and the Construction of the Global Market[A União Soviética e a construção do mercado global, sem tradução para o português], Oscar Sanchez-Sibony demonstra como essa jogada desafiou o domínio dos EUA sobre as instituições de Bretton Woods e acabou provocando uma reformulação ainda mais ampla das relações entre Estado e mercado.
Na seguinte conversa, Sanchez-Sibony e Jamie Martin analisam a evolução do sistema financeiro global e investigam a construção e a desconstrução da ordem global do século XX. Sanchez-Sibony é professor associado de história na Universidade de Hong Kong e pesquisa a sobreposição de infraestruturas do poder global, com foco na maneira como o mundo contemporâneo foi moldado pela relação entre os arranjos domésticos e internacionais da União Soviética e do Ocidente. Seu último livro narra a dissolução das instituições de Bretton Woods sob a ótica da produção de energia, das finanças e dos conflitos entre as grandes potências. Jamie Martin é professor assistente de história e de estudos sociais na Universidade de Harvard. Pesquisa as bases institucionais da economia política global, expondo seus emaranhamentos com a guerra, com o mercado e com o imperialismo. Seu livro mais recente,The Meddlers: Sovereignty, Empire, and the Birth of Global Economic Governance[Os Mediadores: Soberania, Império e o Nascimento da Governança Econômica Global, sem tradução para o português], examina as origens do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
Sanchez-Sibony e Martin refletem sobre as consequências inesperadas da luta por hegemonia entre os EUA e a União Soviética e a relação entre interesse material e ideologia. O debate revela os impactos contraintuitivos que os controles de capital, os mercados de petróleo e a liberalização do comércio produziram no Sul Global e para além dele.
Uma conversa entre Jamie Martin e Oscar Sanchez-Sibony
Jamie martin: O seu novo livro conta uma história instigante que revisita a economia política internacional da Guerra Fria a partir da perspectiva soviética. Aqui, como na obra de 2014, Red Globalization [Globalização Vermelha, sem tradução para o português], você propõe uma leitura alternativa que enxerga a União Soviética como um agente profundamente envolvido na economia mundial. Isso traz um aspecto-chave sobre a forma como os soviéticos navegaram no sistema capitalista global, por dentro e por fora. Seu objetivo parece ser o de nos fazer repensar e ampliar a nossa perspectiva sobre a natureza da economia mundial e do próprio capitalismo globalizado.
oscar sanchez-sibony: Sem dúvida. Uma continuidade entre os dois livros é o fato de que eu destaco a amplitude da integração soviética e as ideologias que incentivaram essa integração. Tento repensar as categorias que normalmente mobilizamos para entender a União Soviética, que são, em grande parte, ideológicas. Quando observamos a forma como a União Soviética se inseria no mundo, percebemos que existe uma incompatibilidade em relação à imagem dela que costumamos ter—a de protetora do controle estatal sobre os mercados.
E você tem razão, o principal objetivo desse novo livro é olhar especificamente para a transformação do mundo no momento de declínio de Bretton Woods, não tanto para levantar questões sobre a União Soviética especificamente, mas para perguntar qual o poder que estava realmente transformando o mundo. Espero que o livro possa trazer uma nova contribuição ao entendimento desse momento, apresentando a perspectiva soviética. Argumento que, durante esse período, a União Soviética—como muitos outros países da periferia—estava tentando romper os limites que a impediam de acessar o capital. Sob Bretton Woods, esse capital era rigidamente controlado pelos Estados Unidos, que especificamente proibiam o acesso à União Soviética.
Em resposta, a União Soviética começou a negociar com países europeus que também tentavam quebrar determinados monopólios dos EUA. Por meio da construção de infraestruturas de energia, ou seja, de uma série de oleodutos, a União Soviética garantiu acesso ao capital e passou por cima todo tipo de restrição imposta por Bretton Woods. Por meio da construção de oleodutos, a URSS criou uma espécie de esteira de transmissão de dívidas.
Em última análise, o livro posiciona o capital como uma entidade que atraiu a União Soviética e o Sul Global a participarem de um modelo de relacionamento específico com o Ocidente. Esse relacionamento eventualmente se provou hierárquico, mas não lhes foi imposto à força.
Jamie, que tipo de diálogo você vê aqui com seu trabalho?
JM: The Meddlers [Os Mediadores] narra o primeiro e o segundo ato de uma história. Narra o primeiro ato na medida em que delineia a ascensão de um novo tipo de poder global: o surgimento das primeiras instituições internacionais com grande autoridade sobre a formulação de políticas econômicas relacionadas aos aspectos mais centrais da soberania e riqueza nacionais. Essas instituições se diferenciavam muito daqueles órgãos de cooperação internacional do século XIX, que eram relativamente fracos.
Esse novo tipo de poder global surgiu no final da Primeira Guerra Mundial, uma guerra que foi travada com novas e extraordinárias instâncias de coordenação econômica entre as principais potências aliadas. E o mais importante é que isso ocorreu cerca de 25 anos antes do ponto de partida convencional da governança econômica global, a Conferência de Bretton Woods.
Muitos dos recursos que hoje associamos à governança econômica global— resgates financeiros via empréstimos, canalizações de capital para projetos de desenvolvimento por meio de organizações internacionais, coordenação entre bancos centrais independentes, governança de commodities à la OPEP—surgiram na esteira da Primeira Guerra Mundial, principalmente entre os impérios aliados vitoriosos.
Os problemas políticos que eles enfrentaram ao estrear esse novo tipo de poder figuravam entre os grandes desafios postos à própria modernidade. Como os Estados fariam para coordenar soluções internacionais de estabilização econômica que implicavam a elaboração de políticas domésticas referentes a tarifas, gastos públicos, tributação, política monetária, e assim por diante? Além disso, como poderiam compatibilizar isso com as novas realidades políticas da era da autodeterminação e da política de massas que, a essa altura, se voltavam cada vez mais para a política econômica? No final do século XIX, exercer autonomia sobre questões domésticas de economia política era uma das mais firmes demonstrações de soberania existentes.
Havia modelos anteriores de intervenção internacional nessas questões, mas eles estavam longe do ideal. Por exemplo, os empréstimos para estabilização financeira feitos aos países da Europa Central e Oriental durante a década de 1920 foram modelados de acordo com as técnicas semicoloniais de administração de dívida criadas no século XIX por investidores e impérios europeus e estadunidenses no norte da África, nos Bálcãs e na América Latina. Havia continuidades profundas e evidentes entre essas ferramentas de império financeiro informal do século XIX e as novas instituições de cooperação econômica internacional estabelecidas no período entreguerras. Essas continuidades persistiram durante o período pós-1945. É a partir dessa história que meu livro reconta o desenvolvimento de Bretton Woods.
Na sequência da Conferência de Bretton Woods em 1944 houve um breve retorno a esse estilo antigo de diplomacia banqueira intervencionista. A principal diferença foi que esse sistema de governança econômica global passou a ser comandado pelos Estados Unidos. A quantidade e a qualidade dos Estados que tinham algum tipo de autonomia no sistema eram bastante restritas. E muitos integrantes do novo sistema de Bretton Woods enfrentaram arranjos institucionais bastante semelhantes àqueles de um período muito anterior.
Esse é o segundo ato: o que, no final do século XX, parece ser o surgimento repentino do FMI à moda do Consenso de Washington é, na verdade, outra coisa: um momento de expansão de um conjunto de poderes latentes em uma instituição que já performava esse antigo estilo de diplomacia banqueira do século XIX.
Em suma, ambos tentamos reformular o entendimento comum sobre o que aconteceu em meados do século XX e, especificamente, em Bretton Woods. Eu defendo que o nascimento da governança econômica global não deve ser entendido nos termos de uma narrativa triunfalista sobre a ascensão do globalismo dos EUA e do New Deal, ou do internacionalismo liberal esclarecido, mas sim como um processo ad hoc de improvisação institucional. As novas realidades políticas forçaram os impérios a improvisar arranjos público-privados bastante confusos.
De certa forma, eu apresento uma nova maneira de entender o caminho que levou a Bretton Woods e você apresenta um novo modo de entender o caminho para sair de Bretton Woods.
oss: Essa é uma das coisas que mais gosto no seu livro, e acho que também compartilhamos a ideia de que as soluções são encontradas na prática e não em modelos. É importante ressaltar que os soviéticos particularmente buscavam soluções para problemas específicos, como a vontade dos italianos de se desvincilhar do monopólio estadunidense sobre seu setor petrolífero. Os europeus, em geral, depois de serem subitamente forçados a concorrer uns com os outros com o Tratado de Roma de 1957 e a instituição da Comunidade Econômica Europeia, buscavam se aproximar da União Soviética e testavam novas maneiras de se relacionar com o bloco socialista. Os soviéticos, por sua vez, procuravam maneiras de resolver seu problema de acesso ao capital.
Como seu livro nos ajuda a entender o neoliberalismo como uma ideologia que antecedeu em muito a década de 1980 e até mesmo a sociedade Mont Pèlerin?
JM: Uma das coisas que nossos livros compartilham é a noção de que ideologia e restrições materiais não perfazem uma competição de soma zero. Acho que nenhum de nós gostaria de descartar totalmente a importância da ideologia, mas ambos damos tanta antenção ao que as pessoas faziam quanto ao que diziam. Uma característica impressionante do seu trabalho é notar como os diplomatas soviéticos efetivamente atuavam como empresários habilidosos. Eles tinham uma intuição apurada acerca do funcionamento dos mercados e pressionavam seus colegas capitalistas a serem capitalistas melhores.
No meu livro, a maioria dos protagonistas eram economistas internacionalistas de orientação liberal que queriam reconfigurar as relações internacionais para promover um tipo específico de cooperação baseado em ideais wilsonianos. Acredito que esses ideais foram importantes em termos causais. Mas os efeitos da ideologia internacionalista liberal em face das restrições políticas e materiais variavam caso a caso. Na prática, muitas vezes prevaleceu uma tomada de decisão muito mais dura e pragmática, que se afastava desses ideais declarados. E, no final das contas, a partir de determinado número de desvios que se faz de uma ideologia, ela começa a ficar pouco convincente. Se você se afirma como internacionalista liberal mas pratica imperialismo, as pessoas acabarão achando que você é imperialista. E provavelmente estarão certas.
O neoliberalismo é importante como ideologia e obviamente é importante no âmbito da política. Mas a minha intervenção nesses debates é dupla. Um dos lados consiste em, como você disse, demonstrar que as práticas que associamos ao FMI não surgiram da noite para o dia no final do século XX. Uma mudança ideológica não era necessária para que os agentes financeiros buscassem justificativas para fazer o que queriam. Se, ao invés de olharmos para os intelectuais ou para os tecnocratas formuladores de políticas, olharmos para os atores que buscavam garantir lucro e participação no mercado, encontraremos uma periodização e uma história causal diferentes sobre o surgimento do neoliberalismo. Muito do que associamos ao neoliberalismo emergiu de um ambiente prévio de interação de entidades privadas com o mundo e com os Estados no sentido de quebrar as barreiras a sua liberdade, remover os canais de contestação democrática às suas decisões economicas, transformar questões de governança em problemas de precificação e mercado, e assim por diante. Uma das coisas que o neoliberalismo ofereceu foi uma nova arquitetura intelectual e de legitimação para práticas mais antigas. De certa forma, o abandono dessas práticas após a Grande Depressão é uma história tão interessante quanto o seu retorno.
Minha segunda intervenção é dizer que o tão discutido desvio contemporâneo do neoliberalismo em termos intelectuais não implica necessariamente uma transformação na forma como as instituições realmente atuam. Temos hoje uma mudança ideológica, mas o FMI segue fazendo basicamente o que sempre fez. Portanto, se ingressamos na era pós-neoliberal, resta saber o que isso realmente significará, por exemplo, para a política de dívida global. A China é um credor neoliberal? Provavelmente não, mas será a China um credor menos exigente para as economias de baixa renda e para os mercados emergentes?
Como seu livro define o que é neoliberalismo? Uma possível má-interpretação seria concluir que os soviéticos queriam algo parecido com uma ordem mundial neoliberal, mas o meu entendimento é de que você descreve isso como uma consequência não intencional das restrições enfrentadas por uma União Soviética privada de dólares.
Qual é o poder da ideologia na sua história? Em que momento, no contexto da formulação de políticas soviética, a ideologia dos atores que fazem parte dela deixa de ser convincente para eles próprios ou para os outros?
OSS: Uma das coisas que tento fazer é identificar as concepções relevantes para a prática soviética – fora desse espectro do que é esquerda e direita, marxista e não marxista, que se mostra um pouco inútil na prática. As concepções de mercado são muito relevantes para o meu trabalho. A adoção de um discurso de mercado se tornou uma ferramenta muito importante para que os soviéticos se movimentassem e adquirissem espaço na economia mundial. Eles se dirigiam a uma miríade de entidades—banqueiros, funcionários públicos, diretores de empresas—e diziam: se vocês não venderem para mim, comprarei de outro país.
Agiam dessa forma porque os mercados internacionais não estavam institucionalizados naquele momento de Bretton Woods. Por exemplo, enquanto o Ocidente estava organizando a produção e o controle do estanho no início da década de 1930, em 1928 os dirigentes de diferentes corporações petrolíferas (as chamadas Big Sisters) já haviam formado um cartel para obstruir esse mercado e tornar o petróleo lucrativo. Esse foi um prelúdio do que a OPEP faria trinta anos depois. Eu concebo os mercados e as práticas capitalistas como arenas de poder nas quais diferentes entidades tentam desenvolver modelos de poder e influência para alcançar objetivos específicos e não, digamos, objetivos ideológicos.
Em relação à ideologia soviética, o que vejo é um respeito palpável pelo discurso de mercado e pelos mercados em si. Não é que os soviéticos acreditassem que poderiam controlar os mercados, mas eles queriam participar deles e usá-los como ferramenta na sua própria formulação de políticas. Eles se engajaram nisso como qualquer país do mundo capitalista. Isso nos empurra para fora do binarismo entre economia de planificação e livre mercado. O que se encontra na prática é o oposto desse binarismo: a ideologia soviética e o mercado não eram antitéticos e, na verdade, os soviéticos ativamente buscaram criar mercados, o que muitas vezes foi barrado pela ação dos EUA. O elemento do neoliberalismo com o qual precisamos lidar é o fato de que o respeito pela autoridade dos mercados perpassou todo o espectro político. Não foi algo simplesmente imposto por figuras como Thatcher e Reagan. A atração que ele exerceu sobre a União Soviética é testemunha da sua força prática e ideológica.
JM: Uma forma de colocar isso é dizer que pouca gente realmente deseja que os mercados existam por razões inerentes ao seu funcionamento. A mobilização de um discurso pró-mercado muitas vezes foi útil para alcançar determinados objetivos, mas esse discurso pode ser descartado assim que perder sua utilidade. Setores como o de energia e da produção de commodities primárias são exemplos claros disso: muito frequentemente, essas empresas se mostraram ávidas para romper completamente com a lógica de mercado a fim de assegurar sua fatia de participação e seus lucros. O planejamento não era uma exclusividade da esquerda.
O setor energético é, de fato, importante para a sua história. O aprofundamento da dependência europeia do petróleo russo nessa época foi, em certo aspecto, um facilitador da estratégia soviética. Acho o seu argumento de que isso nos obriga a repensar a economia soviética muito convincente.
oss: Qualquer estudo sobre a economia capitalista do pós-guerra e a evolução das finanças globais precisa integrar o setor de energia. Matthew Huber escreveu um artigo incrível argumentando que a organização do setor petrolífero é uma pré-condição para a evolução do fordismo no mundo desenvolvido. Isso foi estabelecido através de um violento processo de cartelização. Na década de 1930, os Estados Unidos eram o maior produtor de petróleo do mundo. A Comissão Ferroviária do Texas foi criada para gerenciar os preços e a distribuição no país (o que não foi feito sem um tanto de violência contra os trabalhadores do setor petrolífero do Arkansas e do Texas). Isso criou uma base firme para conter a inflação, base sobre a qual a era de Bretton Woods foi estruturada: o Plano Marshall, o FMI e o Banco Mundial. No início dos anos 1970, a fratura no sistema de precificação e distribuição global acabou derrubando o sistema de Bretton Woods.
A segunda peça desse quebra-cabeças, especialmente no que diz respeito à União Soviética, é o Plano Marshall. A história consensual é a de que o plano se tratava de um auxílio para o desenvolvimento e para uma reconstrução nova e cooperativa da economia europeia. É uma ótima história, mas o trabalho de David Painter nos mostra que uma parte significativa do Plano Marshall era, na verdade, voltada à construção de infraestrutura na Europa para uma economia movida a petróleo. Tanto é que 10% do Plano Marshall simplesmente voltam diretamente para os EUA por meio da compra de petróleo.
A indústria petroquímica da Itália virou muito importante porque foi o ponto de apoio que permitiu a abertura de um novo relacionamento com a União Soviética para todos os europeus. Toda essa indústria italiana foi construída com dinheiro do Plano Marshall, e os italianos inovaram nas transações de petróleo via sistema de dutos, o que acabou se tornando um vetor de abertura de mercados de capitais para os soviéticos.
O governo dos EUA construiu a economia do petróleo na Europa, o que acabou gerando o efeito de atrair os soviéticos para lá. Esses arranjos internacionais foram a fonte da instabilidade dos anos 1960 e do próprio questionamento dos fundamentos de Bretton Woods, inclusive dos controles de capitais. O interesse da União Soviética não era desmantelar Bretton Woods completamente—eles se opunham especificamente aos controles de capital que os impediam de participar do comércio liberalizado na Europa Ocidental.
JM: O seu livro é uma excelente demonstração do poder exercido pelos controles de capital no sistema de Bretton Woods. Mas o que é mais fascinante na história é o fato de que quem lutava contra esses controles de capital não era somente Wall Street, mas também os diplomatas soviéticos. Nesse esforço de desmistificar Bretton Woods, vale a pena pensar em que medida ele foi de fato relevante como um sistema de estruturação internacional. Podemos chegar ao ponto de afirmar que Bretton Woods teve uma importância breve somente à medida que promoveu uma aceitação mais ampla do uso de controles de capital?
oss: O que é interessante sobre a trajetória soviética no contexto de Bretton Woods é notar que, em grande medida, os soviéticos só queriam voltar para o lugar onde pareciam estar chegando no final dos anos 1920. No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, não havia capital disponível, os soviéticos tinham acabado de ser invadidos por três potências ocidentais diferentes e, em seguida, ostracizados por se recusarem a pagar a dívida czarista. Estavam famintos por capital e só conseguiram fazer negócios depois que o Plano Dawes começou a circular capital pela Europa Ocidental.
A Alemanha ofereceu um grande empréstimo. Isso deixou os estadunidenses furiosos, porque os EUA tinham acabado de emprestar aos alemães que, em seguida, estenderam a oferta aos soviéticos. Mas, já no início da década de 1930, os EUA acabaram aderindo ao plano, porque a União Soviética era o único país que ainda estava construindo alguma coisa. Em 1933, sob o comando de Roosevelt, os EUA abriram relações diplomáticas. Mas aí, claro, vieram as consequências da Grande Depressão, e a circulação de capital morreu. Uma das formas de ler Bretton Woods é como uma recuperação gerenciada da liberalização, sendo a liberalização de capital um dos resultados defendidos por múltiplos grupos sociais e lideranças domésticas.
É interessante olhar para países pequenos que não desejavam a liberalização, como a Áustria. Há um trecho no livro que descreve como os soviéticos argumentavam que tanto eles quanto o FMI pediam à Áustria que se liberalizasse. A Áustria não queria, naturalmente, porque estava em uma situação na qual podia trocar sapatos por petróleo. Se a Áustria começasse a fazer comércio em marcos ou em dólares, os soviéticos poderiam pegar o dinheiro e comprar da Alemanha. O que você acha? Em que termos devemos pensar o que foi Bretton Woods?
jm: Um dos argumentos do meu livro é que, em muitas das decisões tomadas pelas instituições de Bretton Woods, a ideia de um liberalismo integrado como princípio organizador real da economia mundial foi desconsiderada.
Nunca houve um período em que os Estados sul-americanos, por exemplo, não fossem pressionados a se ajustar às instituições de Bretton Woods para ter acesso a recursos. No final da década de 1940 e no início da década de 1950, os países latino-americanos foram efetivamente instruídos a adotar políticas anti-inflacionárias e de ajuste fiscal se quisessem contar com recursos do FMI. Se tratarmos da totalidade dos países-membro do Fundo, não encontramos muita evidência de que o FMI tenha sido inspirado por qualquer princípio keynesiano ou derivado do New Deal de respeito à autonomia nacional.
Se quisermos pensar no liberalismo integrado como uma espécie de ideal normativo orientador, estaremos falando principalmente da Europa e da América do Norte. O próprio Keynes disse que Bretton Woods, mesmo em sua versão mais limitada, com a qual ele acabou concordando após suas demandas originais terem sido descartadas pela pressão dos EUA, não funcionaria como ele havia idealizado. Keynes morreu bastante insatisfeito com esse sistema, reconhecendo que seria dominado pelos EUA e, mais especificamente, dada a ausência de barreiras às ações do FMI, que seria difícil evitar uma evolução para uma espécie de máquina de condicionalidades, o que de fato acabou acontecendo.
A história que você conta ilustra como os controles de capital sob Bretton Woods eram poderosos, mas também como nem sempre eram capazes de atingir os objetivos normativos que poderiam ser atribuídos a eles. Se a missão do libralismo integrado era proporcionar algum tipo de autonomia para que os Estados fizessem experimentos com a economia política nacional, o Estado mais experimental de todos, a União Soviética, não queria isso! Os que os soviéticos buscaram era remover os controles de capital que restringiam sua capacidade de atingir determinados objetivos.
Em algum sentido, acho você pode combinar as histórias que contamos para dizer que eu vejo o liberalismo integrado como algo que, se existiu de fato, foi bastante limitado geográfica e temporalmente; e você o vê como algo que existiu, mas que, pelo menos nesse caso, produziu os efeitos políticos opostos àqueles que poderíamos pressupor.
Isso nos leva de volta ao início de nossa conversa: o capital não domina a União Soviética, mas a atrai. Quero levantar duas possíveis leituras equivocadas do seu argumento e ver como você responde a elas. Uma delas seria afirmar algo como: a União Soviética aprende a operar as ferramentas do Ocidente capitalista de uma forma que é, no limite, projetada para aumentar o poder soviético e, com isso, desfazer os vínculos do capitalismo por completo. Ou seja, os soviéticos procuraram atuar no interior dos vínculos da estrutura de poder que tentavam derrubar. A segunda seria entregar seu livro a um falcão liberal da Guerra Fria, como Francis Fukuyama, que diria que ele é uma demonstração incrível da inevitabilidade da vitória do capitalismo global: a adesão à logica do operacional do capitalismo por parte daquele que, ao menos convencionamente, é considerado o maior desafio em forma de Estado já posto ao capitalismo global.
oss: Esses são dois ótimos equívocos. Eles nos remetem ao que conversávamos antes, sobre como o capitalismo se desenvolve na prática, e como essa prática é uma luta por poder. Acho que Fukuyama, liberal que é, deveria ter muito cuidado, porque uma das razões pelas quais tais atores muito autocráticos são atraídos por esses sistemas de circulação de capital e troca de mercadorias é porque eles permitem esse tipo de poder autocrático. Esses sistemas eram atraentes não apenas para a União Soviética. Há uma seção do livro na qual registro o momento em que alguns países latino-americanos começaram, muitas vezes por meio de bancos britânicos, a se aproximar do comércio e do auxílio financeiro soviético. Isso incluía o Brasil, que na época era governado por uma junta militar fascista, presumivelmente inimiga dos soviéticos. Quando os soviéticos de fato estabeleceram relações com o Brasil, os cubanos protestaram. Mas isso de forma alguma dissuadiu os soviéticos.
Os vínculos banqueiros britânicos na América Latina, que remontam a centenas de anos, foram substituídos pelos estadunidenses entre as décadas de 1930 e 1950, levando os bancos britânicos a se unirem aos soviéticos. O que tornava a União Soviética ligeiramente diferente do Sul Global era o fato de que ela tinha produtos para vender de forma competitiva. Eles não estavam competindo no setor químico, mas podiam construir uma represa tão boa quanto qualquer outro país.
Foi isso que eles fizeram na América Latina. Capitalizaram esses modelos de projetos e formaram uma espécie de aliança com os banqueiros britânicos. Quando o Brasil entrou em uma armadilha de dívidas com os bancos europeus, isso se deveu em parte à ajuda dos soviéticos no financiamento e na construção da infraestrutura para a qual esses empréstimos foram emitidos. Com relação ao Brasil, Quinn Slobodian descreveu o lamento dos banqueiros estadunidenses pelo exato motivo que você apontou: estamos na década de 1970, e aquela hierarquia íngreme que vinha junto com o liberalismo integrado se desintegrou. Na década de 1950, eles podiam dizer ao Brasil o que fazer; na década de 1970, o Brasil podia tomar emprestado todo o dinheiro que quisesse sem seguir as ordens dos EUA.
É claro que essa crítica vem acompanhada de todo tipo de linguagem racista, de que os tomadores de empréstimos no Sul são crianças irresponsáveis e assim por diante. É impressionante o quanto o imperialismo e as construções culturais que o acompanham simplesmente nunca morrem. As finanças e a cultura têm as mesmas raízes.
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O êxito do Partido Popular Indiano (em inglês, Bharatiya Janata Party – BJP) na política da Índia durante a última década tem sido frequentemente creditado a sua abordagem da assistência social. Um aspecto crucial desse sucesso foi o aumento das transferências diretas de benefícios (DBT, na sigla em inglês), mecanismo que permite aos beneficiários receber diretamente em suas contas bancárias os valores correspondentes a mais de 500 programas estatais de assistência social. A eleição nacional mais recente, no entanto, colocou isso à prova: o BJP, partido do primeiro-ministro Narendra Modi, perdeu a maioria que detinha na Lok Sabha (a câmara do povo do parlamento indiano), ainda que provavelmente mantenha seu poder por meio de um governo de coalizão.
Nos últimos ciclos eleitorais, a popularidade dos projetos de bem-estar social encabeçados pelo BJP a nível regional e nacional garantiu vitórias massivas ao partido. Nas eleições regionais de 2022, o estado mais populoso da índia, Uttar Pradesh (UP) – onde vive uma enorme população de beneficiários das transferências do governo – votou esmagadoramente no BJP. Este ano, o apoio dos eleitores do UP virou para a aliança Samajwadi-Congresso. A mudança no padrão eleitoral do estado foi um dos principais motivos pelos quais o BJP não conseguiu obter maioria absoluta na Lok Sabha.
Faz tempo que as transferências monetárias são pedra angular da política do BJP. Durante esta última década em que o partido governou a Índia, a soma paga em DBTs aumentou de ₹ 60 bilhões (cerca de US$ 718,8 milhões) para ₹ 2,1 trilhões (aproximadamente US$ 25,1 bilhões), abrangendo, em setembro de 2023, mais de 1 bilhão de beneficiários registrados, segundo dados divulgados pelo Ministério da Fazenda. A rápida expansão das DBTs foi facilitada por diversos avanços tecnológicos: o aumento na disponibilidade de telefones celulares e planos de internet acessíveis na Índia, em especial após o lançamento da Reliance Jio, em 2016; o surgimento do Aadhaar, programa de identificação biométrica do governo que disponibilizou o primeiro documento de identidade unificado do país; e a criação do Pradhan Mantri Jan Dhan Yojana, o programa governamental de inclusão financeira anunciado pelo primeiro-ministro Modi em 2014, que ensejou a abertura de mais de 500 milhões de contas bancárias para uma maioria de cidadãos indianos até então excluídos desse sistema.
Como esse novo “modelo de bem-estar social” baseado em transferências monetárias difere da abordagem anterior, adotada por governos liderados pelo Congresso Nacional Indiano nos anos 2000 e baseada em direitos? E em que termos a narrativa política subjacente a essa mudança representa uma tentativa de reformulação da democracia indiana? Yamini Aiyar, que foi presidente do Centro de Pesquisas em Políticas Públicas de Nova Délhi, chama o modelo implementado pelo BJP de “Estado tecnopatrimonial”, cujo sucesso é sustentado pela criação de uma nova classe beneficiária – uma “labharthi varg”1 – que mobiliza politicamente.
Na entrevista a seguir, Aiyar conversa com Rohan Venkat, editor da India in Transition, sobre os os ideais social-democratas de bem-estar social, o discurso dos “brindes” (freebies) na política social indiana e as implicações do Estado tecnopatrimonial para o sucesso eleitoral do BJP. Essa conversa foi publicada inicialmente pelo Centro de Estudos Avançados sobre a Índia da Universidade da Pensilvânia em abril de 2024, como parte de uma série sobre as eleições deste ano. O texto foi editado por razões de espaço e clareza.
Uma entrevista com Yamini Aiyar
Rohan Venkat: O que provocou sua análise da nova política de bem-estar social indiana?
Yamini Aiyar: Os questionamentos que me levaram a essa análise decorrem da minha própria carreira como pesquisadora de políticas públicas que, por coincidência, se inicia dos anos 2000, quando a Índia construía seu Estado de bem-estar social. Isso acontecia em razão da convergência de uma miríade de movimentos sociais, da sociedade civil organizada, do judiciário e de setores da elite em direção à formação do que chamamos, desde então, de um modelo de bem-estar baseado em direitos. Os primeiros passos foram as aprovações legislativas do Direito à Informação, da Garantia Nacional do Emprego Rural (NREGA, na sigla em inglês), do Direito ao Trabalho, do Direito à Educação e da Lei Nacional de Segurança Alimentar, em 2013. Minha pesquisa começa no trabalho com os movimentos sociais, estudando o desenrolar desses programas. Particularmente, eu olhava para o esforço, majoritariamente conduzido por esses movimentos, de recorrer a uma gramática de direitos sociais para abrir espaços de participação direta dos cidadãos nas reivindicações ao Estado.
Eu tentava mapear as especificidades que levaram a Índia a atrelar o bem-estar social a um arcabouço de direitos socioeconômicos específico. Na Europa Ocidental, muitos Estados robustos de bem-estar social eram firmados em razão de políticas sociais redistributivas, sem um referencial baseado em direitos. A Índia claramente estava fazendo outra coisa, e eu quis entender melhor essa diferença. Vi “o bom, o mau e o vilão” desse esforço inicial. E vi também o surgimento da tecnologia como instrumento narrativo do provimento de bem-estar social, especialmente a partir de 2009-2010, quando o projeto Aadhaar se cristalizou na opinião pública.
A partir de 2014, o establishment político mudou. Em um de seus primeiros discursos ao Parlamento, o primeiro-ministro Modi chamou a NREGA (que garantia ao menos 100 dias de trabalho assalariado a domicílios rurais por ano) de “monumento à pobreza”. Isso é frequentemente lido somente nos termos do debate político-partidário, mas houve uma mudança substantiva no entendimento da assistência social. A gramática de direitos foi substituída por um discurso sobre integridade e transparência como objetos da reivindicação direta do cidadão ao Estado. A tecnologia fez com que as transferências diretas de renda se tornassem uma possibilidade real.
Eu observei e eventualmente participei de um debate muito consistente que ocorreu entre 2010 e 2014 em torno dessa ideia de transferências diretas, particularmente nos atos preparatórios para a aprovação da Lei Nacional de Segurança Alimentar. Esse debate era centrado em duas questões-chave: a eficiência na prestação do serviço, dado que as transferências diretas tinham o potencial de atravessar as camadas de incompetência e corrupção do Estado, e o papel do mercado no provimento de serviços básicos.
A abordagem baseada em direitos parte de uma posição normativa que estabelece a centralidade do setor público na prestação de serviços básicos. Considera também que os direitos são um meio de aprofundar a capacidade dos cidadãos de fazer reivindicações ao Estado e obter dele uma resposta íntegra e transparente. Em contraste, a abordagem pautada nas transferências monetárias entende que essa transparência é garantida pela eficiência da prestação direta e pela participação do mercado. Os termos do contrato social são pensados de formas muito distintas pelas duas perspectivas. Isso foi antes de a renda básica universal virar tendência no mundo das políticas públicas. A partir de 2016-2017, o ingresso da ideia de renda básica e do JAM (sigla em inglês para a tríade Pradhan Mantri Jan-Dhan Yojana, Aadhaar e telefone móvel) no discurso do bem-estar social transformaram as linhas gerais desse debate.
Em 2017-2018, num processo fomentado pela rápida escalada do Aadhaar, as transferências monetárias já eram corriqueiras, e a expressão “transferências diretas de benefícios” estava instalada no vocabulário do Estado de bem-estar indiano. Tentando entender como isso aconteceu, senti a necessidade de abordar um problema antigo da esfera pública indiana e reenquadrar os termos do debate público sobre assistência social. Nosso discurso sobre assistência social é rapidamente reduzido à questão do populismo. Antigamente, chamávamos de populismo, de política social populista, de política dos brindes (freebies). Agora, o termo usado é revdi: doces.
Rv: Como você define o “Estado tecnopatrimonial” de bem-estar social, o que ele é, como surgiu?
YA: Meu argumento é: nós abandonamos a ideia de bem-estar social como cerne do contrato social, e abandonamos também a ideia de que o bem-estar social evolui dentro de um referencial normativo de direitos. Diante do fascínio provocado pelas possibilidades de transferências diretas de benefícios abertas pelo avanço tecnológico, o bem-estar social vem sendo redefinido como um “presente” oferecido pelo líder do partido à população, em oposição à ideia de que existe um conjunto de direitos fundamentais que orienta os termos do contrato social entre cidadãos e Estado.
Nesse novo referencial, os cidadãos são sujeitos passivos da benevolência do governo, benevolência essa que é patrocinada diretamente pelo líder do partido político. O bem-estar social, nesses termos, existe em razão do apadrinhamento e do carisma do líder, em vez de emergir de uma obrigação moral do Estado e de uma articulação da cidadania no interior de um referencial de direitos.
Rv: Você vincula isso à ideia de Estado compensador que tem sido proposta pelo economista Rathin Roy.
YA: Em um discurso de 2022, Modi afirmou que a juventude da Índia deveria ficar atenta a essa nova “política do revdi” (doces). Isso trouxe de volta antigos debates sobre “brindes vs. subsídios baseados em mérito” e sobre a necessidade de escolher entre crescimento e provimento de bem-estar social que ocuparam economistas e estrategistas do desenvolvimento durante décadas. Na época das discussões em torno da NREGA, de fato, houve quem argumentasse que essa política de garantia de renda no campo era equivalente a jogar dinheiro de um helicóptero nas mãos da elite rural, uma política de brindes, não uma política sensata, promovida pelo governo com a finalidade de inclusão social ou de expansão do bem-estar.
Existe uma pilha enorme de textos debatendo o que configuraria ou não um revdi e qual deveria ser a natureza da política social. Na medida em que me fui me envolvendo com essas questões, comecei a entender que, na verdade, o debate sobre o bem-estar social e as respostas políticas associadas remontam a duas desilusões muito distintas (embora inter-relacionadas) com o contexto social, econômico e institucional da Índia.
A primeira desilusão diz respeito à natureza da economia indiana. Desde 1991, o crescimento da Índia e a dinâmica da transformação estrutural associada a ele nos levaram a um modelo de crescimento sem geração de emprego. Lá em 2004, tendo como pano de fundo o slogan do “India Shining” [Índia brilhando] e a vitória eleitoral da coalizão liderada pelo Congresso Nacional Indiano, que se tornaria a Aliança Progressista Unida (UPA, na sigla original em inglês), essa questão do crescimento sem emprego estava no cerne do discurso político. O Congresso Nacional Indiano se lançou no pleito com o lema do “crescimento inclusivo”. Esse argumento do crescimento inclusivo era politicamente poderoso porque a economia crescia, mas não produzia empregos suficientes para dar conta do dividendo demográfico que estávamos para alcançar. Esse foi o ambiente que permitiu que medidas como o NREGA ou o Direito ao Trabalho se tornassem tão essenciais e politicamente potentes. E modelo de crescimento não só foi conservado como, inclusive, exacerbado ao longo da nossa história econômica.
Amit Basole escreveu um importante artigo acerca dessa questão. Ele argumenta que, na trajetória da transformação estrutural indiana, o momento em que as pessoas foram arrancadas da agricultura e lançadas em uma economia urbana foi, em grande medida, moldado por um movimento em direção ao setor da construção civil informal, no qual o trabalho é exercido de forma precária e sem vínculo empregatício, e não em direção à produção manufatureira de pequena escala, como aconteceu mundialmente. Dada a natureza atípica da nossa transformação estrutural, a criação de empregos para a juventude foi uma questão que sempre nos assombrou.2 A verdade é que o Estado indiano e sua política econômica simplesmente fracassaram no enfrentamento ao alto nível de desemprego entre os jovens, e os políticos sabem disso, embora hesitem muito em admitir no discurso público.
Como Rathin Roy contundentemente analisou, a assistência social surgiu como uma “compensação” por esses fracassos. Eis o “Estado compensador”. Analisando os traços gerais do Estado compensador, encontrei várias características específicas do caminho indiano em direção ao bem-estar social. O Estado de bem-estar social da Índia não se desenvolveu segundo o modelo social-democrata tradicional, como fruto da negociação entre trabalho e capital. Tampouco se desenvolveu segundo as características do regime de bem-estar conservador estadunidense, que buscava oferecer parcos benefícios condicionados à comprovação de necessidade, mas estava realmente comprometido com a ideia de pleno emprego. Ou, o que é ainda mais intrigante, nem sequer se parece com os regimes de bem-estar produtivistas do Leste Asiático, que investiram a sério em saúde e educação como cernes do capital humano, com o objetivo explícito de mobilizar a capacidade produtiva da força de trabalho em direção ao crescimento econômico.
Nosso Estado de bem-estar social se desenvolve a partir de uma lógica que o concebe praticamente como uma barganha (faustiana) decorrente do fracasso em construir uma economia capaz de garantir o pleno emprego. Sua tática central é usar a política fiscal como instrumento de transferência de recursos públicos, seja em dinheiro, seja em espécie, como mecanismo de compensação aos cidadãos. Não se trata de oferecer uma proteção ao trabalho ou de aumentar o poder de barganha dos trabalhos. Tampouco se se trata de investir no potencial produtivo.
Basta pensar em alguns dos programas de transferência direta mais recentes, lançados por diferentes partidos políticos, inclusive o BJP e o Congresso. Transferências para jovens desempregados, transferências para determinados setores profissionais, ou o PM Kisan, programa de transferência para nossos agricultores. São formas de compensação que o Estado precisa oferecer porque, num país desigual como a Índia, num país em que seus principais eleitores são os pobres, é impossível que um partido político, por mais amigável que seja sua relação com o capital, dispute uma eleição sem oferecer algo para a maioria dos indianos ou sem se envolver com a realidade vivida pelas pessoas. Essa é a beleza da democracia, com todos os desafios que a acompanham.
A segunda desilusão é relacionada com o Estado indiano, e é aí que entra a tecnologia. Todos sabemos que o Estado indiano é incompetente, corrupto e apático. Essas falhas circunscreveram o discurso da elite sobre a assistência social.
Muitos anos atrás, escrevi um artigo com Lant Pritchett intitulado “Taxes: Price of Civilization or Tribute to the Leviathan?” [Impostos: o preço da civilização ou um tributo ao Leviatã?]. Debatemos como, diante da incompetência do Estado, é impossível que a barganha da tributação exerça seu papel, isto é, que se estabeleça uma disposição a se deixar coagir e pagar pelo Estado diante de uma expectativa de que ele forneça um conjunto de serviços públicos que melhorem a sua capacidade produtiva. Essa é uma conclusão justa do ponto de vista do contribuinte mas, mesmo assim, é preciso reconhecer as consequências dela. Essa conclusão circunscreve a natureza do discurso público sobre tributação na Índia, que desvincula a taxação progressiva da distribuição. A progressividade tributária teve um papel histórico gigante na construção de sociedades mais justas e de Estados de bem-estar mais igualitários e funcionais.
Na mesma linha, o debate sobre transferências diretas na Índia tem origem na ideia de que nossos sistemas públicos simplesmente não funcionam. Qualquer investimento excessivo nos sistemas públicos equivale a um tributo ao Leviatã, não ao preço da civilização. A tecnologia possibilitou driblar esse Estado extrativista incompetente e fornecer ao cidadão ao mínimo necessário. Essa ideia enfatiza excessivamente o papel do mercado, porque entende que o Estado simplesmente fracassou na provisão de bens em espécie e serviços.
Em certo sentido, esse discurso é a fonte de legitimidade do Aadhaar, o programa de infraestrutura digital pública da Índia. Não levantamos questões sobre os limites da tecnologia porque estamos mobilizados pela ideia de que ela nos ajuda a driblar um Estado fracassado. Essa legitimidade da tecnologia é a base para a construção de um sistema de assistência social que não aposta no sistema público. A meu ver, uma das consequências disso é que valorizamos uma ideia de eficiência em detrimento das realidades tumultuadas que marcam a democracia, permeadas pela negociação, pela barganha e pelas respostas estatais conflitantes; realidades que exigem, para que funcionem conjuntamente, um sistema público forte e de base robusta.
Rv: Você destaca uma contradição desse novo modelo: ele se distancia da ideia de direitos e prerrogativas e se aproxima da ideia de dever, ao mesmo tempo em que, no entanto, é vendido como mais aspiracional e “progressista”. Considerando que as pessoas estão recebendo transferências monetárias no lugar de bens públicos ou bens de mérito, segundo um modelo que contorna as múltiplas instâncias do Estado, como esse modelo pode ser considerado aspiracional ao invés de ser visto como uma ajuda do governo?
YA: Ele é amplamente narrado em termos aspiracionais e usa o vocabulário do progresso. O projeto Viksit Bharat, o “Bharat Aspiracional”, fala sobre a qualidade de vida. De modo muito interessante, ele narra o atual modelo de assistência social baseada em transferências monetárias como um mecanismo de empoderamento, em contraste com a assistência social do passado, que é enquadrada como um bem-estar social de prerrogativas. Em diferentes discursos, o primeiro-ministro falou sobre o empoderamento como um processo de combater a pobreza usando suas próprias forças, no qual você, como cidadão, tem uma série de obrigações na utilização, com responsabilidade, das oportunidades que lhe são ofertadas.
Por exemplo, no discurso do 75º aniversário da Independência, ele narra como o governo tomou medidas para fornecer eletricidade 24 horas por dia, então é dever do cidadão usá-la com responsabilidade. Na mesma linha, o ministro do Interior apresentou outra versão dessa definição de empoderamento ao dizer que “fornecemos conexões de gás encanado, fornecemos banheiros etc. Agora é responsabilidade dos cidadãos usar essas oportunidades para melhorar suas vidas”. Isso é o que entendemos por empoderamento. Mas esse referencial nada diz a respeito da obrigação do Estado de fornecer serviços públicos básicos inerentes à cidadania, à detenção de direitos. Os cidadãos são reenquadrados como responsáveis e obedientes, e não como sujeitos de direito ativos que reivindicam o bem-estar social.
Essa versão de empoderamento é substancialmente distinta daquela do um modelo de bem-estar baseado em direitos, que mobilizava essa gramática de direitos para empoderar os cidadãos a fazer reivindicações ao Estado. Isso é muito importante no contexto indiano. Desde o momento da fundação do nosso Estado, a articulação de direitos políticos sempre foi mais favorecida que a articulação de direitos socioeconômicos. Estes últimos foram alocados no interior dos princípios diretivos do Estado. A assistência social foi enquadrada como caridade ofertada por apadrinhamento do governo e na medida em que ele é capaz de fazê-lo, e não como um direito central que o Estado é obrigado a garantir a seus cidadãos. Não à toa, afinal, o Estado indiano acabou ficando conhecido como um “mai baap sarkar” (Estado paternal e maternal).
Os movimentos por direitos tentavam resolver isso. Seu fracasso talvez tenha bastante a ver com a incompetência do Estado indiano. As oportunidades tentadoras da tecnologia nos afastaram muito rapidamente da aspiração por um bem-estar social baseado em direitos. Ouvimos falar muito nas obrigações dos cidadãos que decorrem dos esforços do governo em melhorar a qualidade de vida, mas falta uma linguagem que reconheça que os cidadãos são detentores de direitos básicos e que é obrigação do Estado fornecer um padrão mínimo de serviços públicos. Essa é a diferença.
Rv: Você comenta que, embora esse novo modelo seja fortemente identificado com o BJP e com o Modi, não é limitado a eles. Vemos ecos disso em outros partidos que flertam com a política do bem-estar social, como víamos também no passado. Em seu artigo, você menciona a Jayalalithaa, ex-ministra-chefe de Tamil Nadu. Eu gostaria que você nos desse uma visão disso como um fenômeno indiano, e não apenas do BJP.
YA: Até a chamada política de brindes feita em Tamil Nadu se enquadrava em uma gramática mais ampla de direitos e dignidade. Até a distribuição de sáris e a entrega de televisões, que caracterizaram a política em Tamil Nadu, estavam integradas a essa gramática de direitos, dignidade e justiça: tanto a Dravida Munnetra Kazhagam [Federação Progressista Dravidiana] quanto a All India Anna Dravida Munnetra Kazhagam [Federação Pan-Indiana Progressista Dravidiana Anna] se empenharam nessa assistência social competitiva ao longo de muitas décadas. O que me parece específico sobre o atual momento de tecnopatrimonialismo baseado em transferências diretas é que ele é efetivamente despido de qualquer linguagem de direitos e dignidade. Trata-se de um conjunto de doações que podem ser oferecidas pelo Estado a seus beneficiários.
Além disso, esse momento tem a qualidade específica de mobilizar uma tecnologia que, no passado, não existia de maneira tão eficiente. O modelo das transferências diretas possibilita que você drible todos os intermediários do Estado, tanto políticos quanto burocráticos. Isso é muito relevante politicamente porque permite o estabelecimento de uma conexão direta entre a liderança política e o beneficiário.
É evidente que dirigentes populares de partidos regionais exerceram no passado e exercem atualmente essa conexão direta entre líder e eleitor: Jayalalithaa é um epítome disso, mas Indira Gandhi também. A capacidade de driblar intermediários, no entanto, é nova. Nesse sentido, a atribuição de créditos, a vinculação política, se tornam um fenômeno muito mais direto. É o que eu, Louise Tillin e Neelanjan Sircar argumentamos com base em dados do Lokniti [Programa de Democracia Comparada]. Você pode ver essa atribuição direta mudar com o passar do tempo, desde os dias da UPA, em que os governos estaduais e ministros-chefes estaduais conseguiam receber muito mais crédito pelas políticas do que recebem no contexto atual, em que boa parte desse crédito vai para a liderança partidária, escanteando os intermediários e o governo estadual. O BJP é um exemplo.
O terceiro ponto distintivo do presente momento é o tipo de mobilização política em torno da categoria de beneficiário, o labharthi. A “labharthi varg” (classe beneficiária) surgiu no léxico político como uma categoria de mobilização política. Líderes políticos podem atravessar intermediários para forjar uma relação direta e emocional com o eleitor como indivíduo, de um modo que efetivamente solapa a reivindicação coletiva baseada em interesses comuns, a reivindicação dependente da casta e a mobilização baseada na religião. Em vez disso, cria-se uma base social bastante neutra de beneficiários individuais em torno da qual a mobilização acontece.
É uma ferramenta politicamente conveniente. Por exemplo, ela possibilita ao BJP refutar críticas quanto à discriminação de minorias religiosas e muçulmanos, apontando para a distribuição dos benefícios. É uma ferramenta inteligente e efetiva para solapar as estratégias tradicionais de mobilização eleitoral em torno de reivindicações coletivas para o uso dos recursos estatais, baseadas em interesses compartilhados. A meu ver, é isso que a torna tão poderosa. Isso também aprofunda a relação direta forjada entre a liderança partidária e eleitor individual, possibilitando que essa lealdade se torne aquilo que Neelanjan Sircar denomina “política do vishwas” [confiança], a própria base a partir da qual os eleitores são mobilizados e os partidos políticos são fortalecidos.
Rv: Como as pessoas têm respondido à ideia de “Estado tecnopatrimonial de bem-estar social”?
YA: A resposta disso faz parte de um trabalho que ainda está andamento, e eu estou tentando apreender não apenas o momento político contemporâneo, mas também o que a evolução do Estado do bem-estar social indiano tem a nos dizer sobre os termos do contrato social e sobre a natureza da nossa democracia. No momento, podemos apenas citar reivindicações de eficiência. Não temos como saber com precisão porque não temos bons dados. Antigamente, havia uma série de avaliações que desvelavam “o bom, o mau e o vilão” dos programas do governo. Hoje, há uma escassez de boas avaliações, de modo que não temos uma noção precisa da apreensão da realidade pelas pessoas.
Há quem possa questionar: “Não deveríamos estar satisfeitos com o fato de que os benefícios estão chegando às pessoas?”. Minha resposta a isso é: vamos realmente arriscar nossa democracia porque estamos impressionados com a capacidade do Estado de depositar uma quantia de dinheiro na conta das pessoas? É só isso que esperamos que o Estado faça? Qual é nosso contrato social? Estamos tentando construir uma sociedade pautada em valores de igualdade, capazes de fomentar a solidariedade entre comunidades distintas, uma sociedade que reconhece a importância de investir em todos nós? Ou seremos uma sociedade que simplesmente se refestelará na glória dessa conquista tão limitada?
Nenhum país do mundo conseguiu se tornar uma potência econômica sem investimento público sério em bens públicos e de mérito essenciais, cujo provimento aos cidadãos é obrigação do Estado, ao exemplo de educação e saúde. É quase como se tivéssemos desistido, legitimando isso ao dizer que “ao menos está funcionando, o que é um passo importante na construção de um Estado maior”. Estou comprometida a nos provocar realmente a refletir mais.
Minha crítica não é a de que não deveríamos fazer isso. Minha crítica é a de que deveríamos entender quais são as consequências efetivas disso para a economia política em sentido mais amplo, e resistir fortemente à despolitização da luta distributiva em um país tão desigual e com solidariedades tão frágeis quanto a Índia.
Rv: O que você acha desse argumento no que diz respeito às eleições de 2024?
YA: Essa é uma boa hora para entender melhor a relação os programas de assistência social dessa natureza e as perspectivas e o comportamento do eleitor. Que cara tem o Estado, no nível da base, neste momento? Como mencionei, uma das mudanças mais cruciais que resultaram desse sistema de assistência baseado em transferências diretas e orientado pela tecnologia foi que, em muitos níveis, o estado local deixou de ser um intermediário. Quem ou o que é o estado local neste momento? Como os cidadãos se envolvem com o estado local nesse cenário de construção de um Leviatã tecnológico, e o que tem sido feito com os espaços de deliberação, diálogo e ação coletiva de base?
Esses estados locais sempre foram um tanto fracos na Índia, e a realidade do nosso sistema de governos locais (que deveria ter uma estrutura incorporada de Gram Sabhas funcionando como espaços de diálogo e deliberação de base) nunca conseguiu de fato se consolidar, com exceção de alguns estados, dos quais o Kerala é o exemplo mais visível. Mas agora que esses investimentos se tornaram ainda mais minguados e o papel dos governos locais tem se alterado, precisamos entender melhor a dinâmica desses espaços para determinar quais são os termos emergentes no enquadramento das relações Estado-sociedade. Ainda não temos trabalhos empíricos o suficiente sobre isso. Para mim, seria essa a base para entender como a articulação entre a arquitetura do Estado e os mecanismos de integridade e transparência vem se construindo, e qual é a contribuição disso para a natureza da nossa democracia.
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A campanha que levou Luiz Inácio Lula da Silva ao terceiro mandato de presidente do Brasil foi marcada pela ideia de reconstrução do país, o que reacendeu o debate sobre o papel da Petrobras no desenvolvimento. As discussões giram em torno, sobretudo, da relação entre a companhia estatal e a reindustrialização, e da exploração de petróleo numa conjuntura de demanda global por transição energética.
A criação da Petrobras em 1953 foi o ato principal da Política Nacional de Petróleo implementada, após ampla mobilização popular favorável, pelo projeto desenvolvimentista de Getúlio Vargas. Os desdobramentos legislativos da política garantiram também o monopólio estatal da exploração, refino e transporte de petróleo. O monopólio durou até 1997, quando foi derrubado pela gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC). A década de 1990 também marcou a massiva abertura de capital da Petrobras para negociação no mercado internacional, parte do Plano Nacional de Desestatização do governo FHC. Atualmente, o Estado brasileiro figura como acionista majoritário da empresa: detém 50,3% das ações com direito a voto.
Ao longo dos setenta anos de trajetória, a função da Petrobras na economia brasileira sempre esteve em disputa, e no governo Lula III, volta a ocupar o centro do debate político brasileiro, no contexto da crise climática e das discussões em torno dos significados, responsabilidades e rumos da transição energética.
Nessa entrevista, Cibele Vieira, coordenadora geral do Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro Unificado) e diretora da Federação Única dos Petroleiros (FUP), que congrega trabalhadores da Petrobras em todo país, discute o papel atual da empresa sob a perspectiva da classe trabalhadora do setor de energia, defendendo que a Petrobras deve contribuir para uma transição energética justa e popular. A conversa aborda temas como a abertura de novas fronteiras de exploração de petróleo, a gestão da empresa no novo governo Lula, os caminhos e possibilidades da transição energética no Brasil, e o ingresso do país na OPEP+.
Uma entrevista com Cibele Vieira
hugo fanton: A exploração de petróleo no Brasil foi um dos temas centrais no primeiro ano de novo governo Lula, tanto pela ótica da questão climática quanto das agendas de crescimento inclusivo e da nova política industrial. Qual é a relação entre a gestão da Petrobras e o desenvolvimento nacional na história político-econômica do país?
cibele Vieira: A discussão sobre a exploração de petróleo no Brasil nasceu no pós-guerra, contexto em que o petróleo já era tratado como um bem estratégico, necessário para garantir a soberania nacional, por ser fundamental às indústrias militar, automobilística e de bens de consumo. Não à toa, a Petrobras foi fundada em 1953, sete anos após o início do movimento “O petróleo é nosso”. Seu estabelecimento como empresa estatal detentora do monopólio da exploração do petróleo no país foi uma conquista do movimento.
Desde então, nunca deixou de haver disputa. O petróleo esteve no centro de grandes disputas internacionais, e no Brasil não foi diferente. Desde o início, investimos em exploração e refino, e a Petrobras se tornou referência internacional na exploração em águas profundas. Com a descoberta do pré-sal, o Brasil se revelou como um dos maiores detentores de reservas mundiais de petróleo. Entendemos que isso foi um fator central nas disputas que levaram ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 e à prisão de Lula em 2018. Há uma relação entre a profunda crise na política doméstica e o posicionamento geopolítico do Brasil entre os grandes produtores de petróleo.
Os movimentos sociais e os partidos de esquerda brasileiros sempre entenderam que o petróleo e as demais riquezas naturais – minérios, outras fontes energéticas, água, florestas, etc. – devem ser explorados em favor do desenvolvimento nacional, de maneira sustentável e de acordo com as necessidades da população. No caso do petróleo, não adianta explorar se não for para investir na promoção do desenvolvimento industrial, na geração de empregos, no crescimento econômico. Mas, tradicionalmente, essa perspectiva se contrapõe à de quem enxerga a extração e exportação do recurso como fonte de obtenção rápida de lucros. Nos anos 1990, essa era a visão. Os governos liberais de Fernando Collor de Melo (1990-92) e Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1994-2002) cogitaram publicamente a privatização da Petrobras, o que levou a um desmonte sistemático da empresa e culminou em uma ampla greve dos petroleiros em 1995. Felizmente, esses governos não conseguiram privatizar a Petrobrás inteiramente e o Lula assumiu a presidência em 2003 com uma visão completamente diferente de Estado e do papel que a empresa deveria ter.
hF: Que avaliação o movimento sindical faz da gestão da Petrobras na nova administração de Lula, desde a eleição em outubro de 2022?
cV: A FUP participou dos grupos de trabalho da equipe de transição de governo. Conseguimos influenciar bastante as propostas para o setor petrolífero como um todo, desde a campanha eleitoral até a posse. Mas o sistema político de coalizão e o resultado apertado das eleições criam um contexto no qual o governo precisa fazer mais concessões para manter a base aliada, o que afeta diretamente a discussão acerca das empresas estatais.
Além das disputas no cenário político federal, a luta do movimento sindical enfrenta também o corporativismo. Na campanha salarial deste ano estamos discutindo com a categoria dos petroleiros a questão do micropoder. Dentro da Petrobrás, apesar das mudanças na presidência e na diretoria, existem muitas visões diferentes e em conflito. Ainda há bolsonaristas na empresa. E há gente que não é bolsonarista, não é privatista, que tem uma visão desenvolvimentista em relação ao papel da Petrobras para o Brasil, mas não enxerga o movimento sindical dos petroleiros com bons olhos, porque acha que o trabalhador deve se conformar e seguir ordens. Então, há disputa política dos rumos da empresa tanto em âmbito federal quanto nas relações internas de poder.
Os conflitos internos no Conselho de Administração (CA) da Petrobras refletem a disputa por alianças do governo no Congresso Nacional. Há discordâncias entre os próprios conselheiros indicados pelo governo. Na prática, em razão das indicações que reverberam as alianças do governo com o Congresso, o presidente da Petrobras não tem maioria no CA.
Desde a eleição, houve uma ênfase tanto do presidente Lula quanto do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, sobre o papel da empresa na transição energética, na retomada do crescimento econômico, na garantia de preço de combustível acessível para a população, na construção da frota naval. Há uma defesa pública da Petrobras. Mas, na prática, o número de vagas anunciadas para o novo concurso é irrisório, não repõe nem a redução de trabalhadores que a empresa terá neste ano em aposentadorias. Já fomos uma empresa com 86 mil trabalhadores, hoje temos 40 mil. O plano de negócios divulgado prevê pouquíssimo investimento, muito aquém do necessário. O conteúdo do plano é contraditório em relação às falas públicas do governo e da presidência da empresa.
hF: Hoje ainda prevalece a visão da Petrobrás como exploradora de recursos fósseis e não como empresa de gestão de energia?
cV: Isso ainda está em disputa. A empresa consegue aprovar investimentos voltados à transição energética, mas não no volume necessário. Houve uma mudança na visão do papel da empresa, isso é claro. A Petrobras voltou a se posicionar publicamente como agente do desenvolvimento nacional, retomou o plano de atuar no refino em todos os estados do Brasil – e não apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo –, de se reinserir na indústria de fertilizantes, de atingir autossuficiência no refino do petróleo. E voltou também a falar de transição energética. Mas, concretamente, apesar da intenção política e do realinhamento discursivo, os números estão muito aquém do necessário para efetivar o que é anunciado.
hF: Qual é a visão da FUP sobre o papel da Petrobrás na transição energética?
cV: A FUP compreende a necessidade humanitária de superação das fontes de energia fóssil e entende que esse é um processo em andamento. Mas isso não significa que o petróleo deixará de ter valor amanhã. Mesmo que outras fontes energéticas sejam fortalecidas, a tendência é de que a exploração de petróleo siga no horizonte.
Isso significa que algumas políticas devem andar em paralelo: a riqueza gerada pelo petróleo deve ser investida em pesquisa e desenvolvimento de novas fontes de energia. Temos as biomassas e as usinas de biocombustível em Minas Gerais e na Bahia. Além disso, para além da fonte, é preciso discutir sobre o sistema de produção, sua divisão entre grandes e pequenos produtores, a estratégia de produção com desenvolvimento regionalizado. É um absurdo ter grandes usinas de energia circundadas por pobreza. Na produção de biomassa, por exemplo, a matéria prima deveria ser oriunda de pequenos agricultores, não do agronegócio. Essa política já existiu e foi interrompida pelo governo Temer. É um exemplo concreto de uma estratégia de transição justa e popular, que é o que defendemos. É preciso pensar num sistema produtivo de forma a gerar desenvolvimento na cadeia como um todo, porque a população mais pobre é a mais atingida pelas mudanças climáticas. Temos que pensar no desenvolvimento das novas energias de maneira que se traduza em desenvolvimento para as camadas populares.
Para além do investimento em novas fontes, também é preciso tornar a energia fóssil menos poluente, por exemplo, com a redução do enxofre na gasolina e no diesel. No caso da Petrobras, já está presente no plano estratégico investir na autossuficiência do refino de petróleo a partir de uma estratégia que torne o processo menos poluente.
É preciso continuar a exploração de petróleo. A Petrobras deve explorar novas fronteiras. Somos a favor da exploração na Margem Equatorial. É um erro chamar de foz do Amazonas, a região fica a mais de 150 quilômetros da foz. A Petrobras tradicionalmente zela pela segurança industrial na exploração. E a expansão disso ainda possibilita o investimento em novas fontes de energia. Essa é a nossa ideia de uma transição energética justa e popular.
hF: A exploração na Margem Equatorial e a abertura de novas fronteiras de exploração são um tema controverso no debate público, com críticas da própria Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Por que a FUP defende isso?
cV: A Petrobras explora petróleo na Amazônia há muito tempo. Existe uma refinaria em Manaus. Atuamos na floresta há muito tempo. Outros países da região amazônica também exploram petróleo e têm o histórico de despejar os resíduos da atividade na floresta, o que não acontece no nosso caso.
Essa é a diferença de a Petrobras ser uma estatal. É uma empresa que tem responsabilidade na produção. A nova fronteira de exploração é a Margem Equatorial, que não chega a ser o pré-sal, mas é uma reserva muito grande de petróleo em alto mar. Não é em terra e sequer perto da costa, como tem sido colocado. E a Petrobrás é a empresa com mais tecnologia para esse tipo de extração. O campo de petróleo não respeita o desenho dos nossos mapas. As Guianas já estão explorando em torno da Margem Equatorial. A disputa com a Venezuela tem relação com isso. No mundo de hoje, deixar de usar energia fóssil ainda não é uma opção viável. A Margem Equatorial será explorada, pelo Brasil ou por outro país.
Nosso entendimento é de que novas fronteiras têm que ser exploradas, nessa concepção de que os ganhos devem ser investidos na transição energética. Se olharmos para o mapa mundial do petróleo, a maior parte das reservas é antiga e passa por declínio de produção. O Brasil, ao contrário, descobriu novos campos com grandes reservas, possibilitando o aumento da produtividade. Temos um papel cada vez mais importante na produção de petróleo, e a capacidade produtiva de fontes alternativas de energia não cresce na velocidade necessária para mitigar a importância disso. Se não explorarmos, não teremos alternativa energética para suprir a demanda e pagaremos mais caro para consumir petróleo.
hF: Qual é o papel da Petrobras na nova política industrial do Brasil frente à concorrência externa?
cV: Quando se fala em concorrência internacional, não adianta querer disputar em áreas em que a China terá uma escala produtiva absurdamente maior, não é possível competir com os preços que eles alcançam. Mas isso não significa que não conseguimos ter indústrias mais complexas e que devamos focar no fornecimento de matérias-primas. Há espaço para diversificar o mercado e deixar de depender de poucos setores produtivos. O Brasil não está mal em comparação com outros países. Temos agricultura, serviços e indústria. Mas o investimento em expansão industrial alavanca a geração de empregos de qualidade, faz com que os trabalhadores sejam mais bem remunerados e produz efeitos sobre a cadeia de serviços.
A Petrobras tem importância estratégica nisso. O custo de energia e transporte é central para a indústria. No plano de negócios da Petrobras e nas obras do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), uma das questões é a construção das novas rotas de gás natural. Participei de algumas reuniões do setor da indústria química com o vice-presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e a principal preocupação era o fornecimento de gás. A Petrobras fornece insumos para a indústria nacional, então é essencial para a garantia bons preços e de estabilidade. Há ainda a Petrobrás Diesel, que fornece combustível para um país que tão dependente do transporte rodoviário. E para além da cadeia produtiva do petróleo, a Petrobras também é importante para o agronegócio, com os fertilizantes.
Disso decorre a discussão do conteúdo local dos bens e serviços adquiridos para a produção brasileira: quando se constrói uma plataforma, a estratégia é usar projeto, tecnologia e componentes importados, ou o é investir em conteúdo local? Isso tem relação com a transição energética, com quem serão os fornecedores.
hF: Finalmente, como o convite para ingresso do Brasil na OPEP+ repercutiu no movimento sindical dos petroleiros?
cV: A FUP não tem posição oficial. Vou compartilhar a minha visão em relação a isso. Ser membro da OPEP+ é diferente de ser membro da OPEP, porque não implica o compromisso de obedecer às determinações da OPEP. Se olharmos para a nossa capacidade produtiva, para o que temos de reserva e para o quanto produzimos de petróleo, faz sentido estar na OPEP+. É a organização que influencia diretamente na formação do preço internacional do petróleo, e acompanhar o processo decisório em torno disso é sempre positivo.
O custo produtivo do pré-sal brasileiro é mais alto que o da Arábia Saudita e de vários países da OPEP, mas é mais baixo que de outros. Uma vez que vários países têm um custo de produção maior que o nosso, a tendência é de que o preço definido pela OPEP não inviabilize a nossa produção. Então, participar da discussão de formação de preço não traz risco de nos comprometermos com um patamar menor do que seria viável para nós.
Acompanhar essa discussão traz segurança para o Brasil. E nós não dependemos do petróleo como principal fonte de geração de energia, diferentemente do que acontece em grande parte dos países produtores. Isso nos dá uma posição de maior conforto para debater a precificação.
Além disso, como o próprio Lula ressaltou, há a questão da transição energética. O presidente foi amplamente questionado sobre a contradição de se posicionar como liderança internacional na discussão ambiental e ingressar na OPEP+. Mas pergunta a ser feita é se é mais vantajoso deixar essa discussão nas mãos de outros países ou participar diretamente dela.
As petrolíferas são agentes centrais na transição energética. São empresas que já produzem energia e estão ampliando o escopo para outras fontes. Não há como fazer um plano responsável de transição energética que não dialogue com os produtores de petróleo. A transição energética também depende, portanto, da discussão na OPEP. Se as petrolíferas quiserem derrubar qualquer iniciativa de transição energética, inviabilizando economicamente as fontes alternativas, basta que derrubem o preço do petróleo.
Por ser um grande produtor cuja matriz energética não é tão dependente de petróleo, o Brasil uma posição ainda mais confortável para promover o debate sobre a transição energética na organização.
Comentários desativados em O que define a Bidenomics
A nova política industrial estadunidense foi lançada: a Bidenomics, formada pela Lei de Redução da Inflação [Inflation Reduction Act] (IRA), pela Lei de Investimento em Infraestrutura e Emprego [Infrastructure, Investment and Jobs Act] e pela Lei de Incentivos para a Produção de Semicondutores (CHIPS) e Ciência [CHIPS and Science Act]. Os objetivos declarados da Bidenomics são: impulsionar a transição energética verde para combater a crise climática, reativar a produção industrial estadunidense e a vida sindical em torno dela, e por em xeque o poder econômico e militar da China.O presidente Joe Biden recentemente descreveu essa agenda econômica como uma “ruptura fundamental com a teoria econômica que frustrou, por décadas, a classe média americana, a chamada economia do trickle-down”. O Assessor de Segurança Nacional do governo, Jake Sullivan, também fez críticas ao que chamou de “um conjunto de ideias que promoviam, em detrimento da ação pública, a redução de impostos, a desregulamentação e a privatização, e a liberalização do comércio como um fim em si próprio”, o que seria resumido pela crença “de que os mercados sempre alocam o capital de forma produtiva e eficiente”. Em outras palavras, ao menos retoricamente, o governo Biden vem abertamente repudiando o neoliberalismo.
Vem surgindo um novo cenário para a luta política e econômica, mas ainda há muitas questões em aberto. A Bidenomics realmente ajudará as tarefas-chave de estimular a retomada de poder pela classe trabalhadora e de enfrentar a crise climática? Até que ponto esse novo paradigma político-econômico sinaliza uma ruptura enfática com o neoliberalismo? Em que medida a Bidenomics está ligada à preocupação estadunidense em relação ao crescente domínio chinês e à ameaça de uma “Nova Guerra Fria”? E, finalmente, como fica o Sul Global diante disso tudo?
Na conversa a seguir, Daniel Denvir entrevista Daniela Gabor, Ted Fertik e Tim Sahay. Daniela Gabor é professora de Economia na UWE Bristol, estuda sobre desenvolvimento e endividamento por meio de uma abordagem crítica das macrofinanças e pesquisa o chamado Estado redutor de riscos [derisking state]. Ted Fertik é historiador e estrategista do Partido das Famílias Trabalhadoras dos Estados Unidos. Tim Sahay é co-editor da Polycrisis, uma newsletter que discute economia política climática da perspectiva doméstica e internacional. Ouça a discussão na rádio The Dig aqui. A transcrição da entrevista foi editada para adequação ao formato textual e a versão em inglês foi uma publicação conjunta com a Revista Jacobin.
Uma conversa com Daniela Gabor, Ted Fertik e Tim Sahay
Daniel denvir: O termo Bidenomics foi cunhado inicialmente por observadores externos da gestão de Biden e passou a ser adotado pelo próprio governo. O que é a Bidenomics e o que ela tem a ver com política industrial?
Ted fertik: Na perspectiva do governo, a Bidenomics tem três aspectos essenciais. Em primeiro lugar, há um aspecto distributivo, de construir a economia “de baixo para cima e do meio para fora”, o que é uma rejeição explícita à economia do trickle-down. Em segundo lugar, há um aspecto de política industrial setorial. Em terceiro, há um enfoque regional, em políticas de base local, em sentido tanto internacional quanto doméstico, e preocupação especial com as comunidades que carregam o fardo da desindustrialização.
TIM SAHAY: A Bidenomics é uma nova combinação de medidas legislativas e políticas macroeconômicas concebida pelas elites do Partido Democrata para conter a ameaça do trumpismo. É a resposta deles à pergunta que os social-democratas vêm fazendo no mundo inteiro: por que o gato subiu no telhado? O diagnóstico do partido é de que a polarização política e econômica foi criada pelo modelo de governança neoliberal winner-takes-all, de baixo investimento e baixo crescimento. A aumentou a brecha entre quem tem ou não curso superior (esse é o componente de classe), assim como a brecha entre os “Super CEPs” e as áreas suburbanas e rurais (esse é o elemento regional), o que gerou instabilidade política.1
Eles querem reverter essas tendências com uma agenda legislativa de investimento que restaure um crescimento de base mais ampla. Assim que retomaram o Congresso, foram atrás de uma política fiscal espaçosa, para botar dinheiro no bolso das pessoas e aumentar o montante de investimentos públicos e privados. A Bidenomics também tem um componente macroeconômico de gerenciar um mercado de trabalho aquecido enquanto o Fed ficava de olho pleno emprego e no risco de que a inflação ultrapasse a meta de 2%.2 Juntos, esses fatores criaram um ambiente econômico de alta pressão que favoreceu a mobilidade daqueles que estavam no fim da fila do mercado de trabalho. As diferenças na taxa de desemprego entre negros e brancos e no crescimento salarial para aqueles com e sem diploma universitário diminuíram drasticamente.
Como desenhar pacotes de gastos que contemplem o objetivo de reverter desigualdades de classe, região e raça? As medidas propostas incluem políticas de conteúdo local para a produção e consumo, subsídios para fabricantes, garantias federais para empréstimos ligados a projetos verdes, incentivos regionais e investimento público em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para impulsionar o crescimento. Incluem também aplanar um sistema de bem-estar social terrivelmente esburacado com ferramentas como créditos tributários para rendimentos do trabalho, seguro desemprego e expansão do programa de assistência alimentar, além de disposições de incentivo à sindicalização e à criação de empregos para profissionais sem formação universitária.
E se como paga por isso: tributando ou emprestando? Aqui, a escolha foi pagar as contas tributando progressivamente os ricos e fechando lacunas fiscais de empresas da Fortune 500.3 Esse aspecto da Bidenomics não pode ser esquecido. As diferentes correntes do Partido Democrata – centristas que simpatizam com Wall Street e com o Vale do Silício e progressistas – protagonizaram uma dura batalha no Congresso por causa dos impostos. Isso acabou reduzindo o tamanho dos pacotes de gastos e ocasionando o abandono de pastas prioritárias da bancada Democrata – creches, jardins de infância, escolas, habitações sociais, transporte público. É importante lembrar que a Bidenomics foi amplamente desafiada e moldada pela apertada maioria que precisou conformar no Congresso.
DD: Existem três instrumentos legislativos cruciais para a Bidenomics: a Lei de Investimento em Infraestrutura e Emprego de 2021, a Lei de Incentivos para a Produção de Semicondutores (CHIPS) e Ciência de 2022 e a Lei de Redução da Inflação (IRA). O que se pretende com esse pacote legislativo? Como ele incentiva a expansão da capacidade produtiva de setores específicos para impulsionar a transição energética verde? E como essas três leis se encaixam? Podemos dizer, como fazem Lachlan Carey e Jun Ukita Shepard, que a Lei de CHIPS é o cérebro, a de Infraestrutura é a espinha dorsal e o IRA é o motor? Há realmente uma coerência tão grande?
TS: Essa é uma boa metáfora. Eu não acho que o Biden na Casa Branca, o Schumer no Senado e a Pelosi na presidência da Câmara voluntariamente decidiram fatiar esses projetos de lei – essa divisão lhes foi imposta durante as negociações com os moderados –, mas há ainda uma coerência. A Lei de CHIPS é o “cérebro” porque foi criada para fomentar a pesquisa e o desenvolvimento, e injeta recursos em toda a sopa de letrinhas da ciência estadunidense: tecnologia, medicina, biotecnologia e todas as agências de P&D. Estas agências têm também institutos de pesquisa próprios – como os Institutos Nacionais de Saúde – espalhados por todo o país, não apenas nos pólos tecnológicos de Cambridge, Massachusetts ou do Vale do Silício, então podem ajudar a reverter essa centralização ao deslocar a inovação e a produtividade para outros pólos do país.
Em relação à infraestrutura, a Lei de Investimento em Infraestrutura e Emprego é a “espinha dorsal” na medida em que se destina a criar a rede elétrica e a banda larga rural. Foram destinados, por exemplo, US$ 60 ou US$ 70 bilhões para a modernização da rede elétrica, que atualmente não é capaz de absorver a enorme quantidade de energia renovável que precisa ser instalada. E o IRA é um “motor” no sentido de que reune um arsenal de instrumentos públicos de financiamento para empréstimos, subvenções e créditos fiscais que favorecem a construção desse sistema de energia renovável, impulsionando também o crescimento industrial.
Mas, sob a ótica do legislativo, as três medidas têm lógicas diferentes. A Lei de CHIPS e a Lei de Infraestrutura são bipartidárias e foram aprovadas com 14 votos republicanos no Senado, ao passo que o IRA é uma iniciativa exclusivamente democrata. Os projetos de lei foram fatiados no Congresso contra a vontade da ala progressista, que acabou perdendo influência quando fez essa concessão.
TF: Embora este aspecto tenha sido menos enfatizado nos debates recentes, os porta-vozes da gestão Biden diriam que o Plano de Resgate Americano [American Rescue Plan] (ARPA)4, aprovado em março de 2021 após votação marcada por franca conformidade democrata com a orientação do partido, seria o quarto projeto de lei que compõe a Bidenomics. Era um plano baseado na ideia de manter a economia aquecida usando a política fiscal para estimular a demanda agregada. Além disso, incluiu programas como a expansão do Crédito Fiscal por Criança, uma demonstração de vontade da Bidenomics de fazer mudanças estruturais no estado de bem-estar estadunidense, ainda que, no fim das contas, isso tenha sido tosado daquilo que virou o IRA.
A coerência entre essas medidas legislativas reside no conjunto de problemas que pretendem resolver. Numa palestra que eu e o Tim demos, estruturamos isso como um triângulo: numa ponta, o que a ascensão da China significa para a economia dos EUA e para sua posição de “liderança global”; na outra, a questão do sistema político estadunidense e uma espécie de entrelaçamento ente desigualdade e populismo; e, na terceira, a mudança climática. Esses três aspectos interagem entre si de maneiras relevantes.
DD: Daniela, você já argumentou que essas medidas são fundamentalmente falhas porque priorizam uma forma limitada de intervenção estatal, a saber, a redução dos riscos do investimento privado. O que significa essa redução de riscos? E por que isso não é suficiente para cumprir os nossos objetivos, no sentido de zerar as emissões, ampliar a adesão sindical e aumentar salários?
Daniela Gabor: Vou dar um passo atrás no debate da redução de riscos para explicar como vejo a Bidenomics a partir de uma perspectiva de alguém que está de fora dos processos políticos domésticos dos EUA. Primeiro, o que ela tira do lugar? A falta de vontade política na intervenção em questões relacionadas ao clima, ao emprego e aos direitos dos trabalhadores. Segundo, o que ela coloca no lugar? Alguma espécie de aumento da intervenção estatal.
Ao colocar o Estado em cena novamente, que tipo de relação entre Estado e capital a Bidenomics estabelece? Eu descrevo esta relação como uma de redução de riscos, embora não seja um conceito meu, mas sim um termo que vem sendo usado, em particular, no mundo do financiamento privado, para descrever o papel do Estado na mobilização de capital privado para a transição energética no Sul Global: mudar a relação entre risco e retorno para atrair investimento privado.
Nas palavras do governo Biden, trata-se de promover uma “aglomeração” do investimento privado. A lógica básica dessa abordagem é subornar o capital privado para que satisfaça determinadas prioridades políticas que, de outra forma, são consideradas inatingíveis. Isso é condicionado pelo fato de que ainda vivemos sob uma arquitetura macroeconômica que trata os bancos centrais como timoneiros e subordina a política fiscal à prioridade de cumprimento das metas de inflação.
A meu ver, a redução de riscos é uma lente conceitual para olhar a relação entre Estado e capital privado que foi criada a partir dessa retomada do papel do Estado na política climática. A abordagem de redução de riscos não é o roteiro adequado para a transição climática e não é capaz de promover a transformação estrutural necessária ao cumprimento das metas do acordo de Paris.
Cenouras e porretes
DD: Ao invés do suborno ao capital, você defende a formação de um “Estado grande e verde”. O que é isso? E quais instrumentos um Estado grande e verde teria para disciplinar o capital?
DG: O suborno é essencial à redução de riscos no sentido em que o Estado absorve certos riscos do investimento privado para tornar determinadas políticas públicas prioritárias atraentes ao capital, por exemplo, melhorando as tendências de preços ou o perfil de risco e retorno dos projetos prioritários através de medidas fiscais, monetárias ou regulatórias.
Com a redução de riscos, uma vez que a lógica é a de firmar uma parceria para tornar o investimento atraente, mudadas as condições de mercado ou de rentabilidade, o Estado passa a ser incapaz de dirigir o capital privado àquelas prioridades estratégicas – e é precisamente isso que um Estado grande e verde pode fazer. Pode romper com a lógica das tendências de mercado pela imposição de controles mais rígidos sobre o ritmo e a natureza do investimento privado, ou simplesmente por meio da estatização. Outra coisa que um Estado grande e verde pode fazer é mudar a relação entre as instâncias de formulação da política macroeconômica, por exemplo, fomentando uma coordenação mais próxima entre o banco central e o ministro de finanças que permita uma abordagem mais disciplinada da política industrial.
DD: Ted e Tim, algumas dessas cenouras apresentadas pela Daniela podem, na verdade, ser porretes?
TF: Podemos abordar esse assunto a partir de alguns ângulos. Um deles é questionar quais são os objetivos progressistas embutidos no IRA que não seguem a lógica da redução de riscos a que a Daniela se refere. Outro, é considerar as medidas que vem sendo implememntadas por meio da regulação, ou as que poderiam ser implementadas por meio de regulação, mas acabaram ficando de fora dessa peça legislativa específica. Um terceiro ângulo é olhar para a parte da agenda que trazia uma lógica de disciplinar o capital, mas não sobreviveu até o texto final: por exemplo, o programa de financiamento de energia limpa, que determinava a descarbonização total do setor energético dos Estados Unidos, e não foi aprovado.
dd: Por causa da correlação de forças políticas.
TF: Sim. Além disso, poderíamos considerar se e como essa lógica de redução de riscos poderia ser defendida a partir de uma perspectiva progressista. Existe uma teoria, por exemplo, que defende que é possível obter maior retorno fiscal para os investimentos feitos por meio gasto tributário e, ainda, que isso acarretaria num montante muito maior de gastos climáticos do que o Gabinete de Orçamento do Congresso normalmente aprovaria. Esses créditos tributários ilimitados vêm sendo chamados pelo Tim “boca-livre”.5 Mas, no fim das contas, o que realmente temos que discutir é o quanto esses movimentos afetam a correlação de forças, porque é ela, no nível mais elementar, o motivo pelo qual acabamos onde acabamos.
Obviamente, há muita verdade no que a Daniela diz. A ideia central por trás da legislação é redirecionar – seja impulsionando, seja persuadindo – o fluxo de investimento privado para projetos política ou socialmente úteis. Os atores nela envolvidos são claros ao afirmar que, no fim das contas, o que se espera é que o montante de investimento privado seja muito maior que o de investimento público. Eu não acho que a situação seja tão extrema quanto a que acompanhamos nas discussões sobre o fluxo de investimentos verdes para o Sul Global, onde as proporções (“bilhões para trilhões”) são astronômicas, mas a lógica subjacente é a mesma.
TS: Por falar em correlação de forças, vamos lembrar que o pacote legislativo da Bidenomics teve que fazer sua marcha pelo Congresso, ao longo da qual foi cercado por três forças principais. Uma delas era representada pelos falcões do déficit: aqueles que não admitem que os gastos superem as receitas e que acreditam que cada dólar gasto deve refletir um dólar arrecadado por meio de tributação, o que tem alto custo político. Esse grupo inclui figuras como a secretária do Tesouro, Janet Yellen, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o próprio Biden.
O segundo grupo era composto pelos falcões da China, no Congresso e no próprio governo, que compraram a briga da gestão de Trump e conduziram uma agenda agressiva de contenção da China. Foi o grupo que reivindicou o onshoring das produções de chips e paineis solares, a adoção de uma posição cautelosa em relação aos minerais críticos, e o aumento do orçamento do Pentágono para aparelhar uma guerra em duas frentes contra a Rússia e a China. O terceiro grupo é o dos capitalistas fósseis, ou falcões fósseis, cuja influência cresceu tremendamente nos últimos dez ou quinze anos. Na gestão Obama, o Congresso ofereceu grande apoio ao boom do xisto nos Apalaches e na Bacia do Permiano, por meio de subsídios e aprovações de dutos e terminais. Em 2015 os Estados Unidos já haviam se tornado o maior produtor mundial de petróleo e gás. Em 2021-2022, quando os projetos de lei da Bidenomics estavam sendo negociados, os falcões fósseis exigiram a ampliação das perfurações e a ausência de porretes ao capital fóssil.
Dg: A Lei de CHIPS dos EUA é inspirada em exemplos anteriores de política industrial bem-sucedida, particularmente no Leste Asiático. Especificamente, ela estabelece instituições análogas para monitorar e disciplinar o capital como instrumento de cumprimento de prioridades estratégicas. Por que foi possível que os EUA criassem essas instituições análogas na Lei de CHIPS, mas não no IRA? Isso se dá em razão de o poder do capital fóssil operar de forma distinta nesses dois espaços? Talvez a Lei de CHIPS não imprima o grau de preocupação política em relação ao capital fóssil que existe no IRA.
Dd: E, talvez, também por causa do incentivo gerado pelo conflito geoeconômico e geopolítico com a China – o que, lamentavelmente, parece ser um tipo de estímulo que é capaz de superar praticamente qualquer obstáculo na política estadunidense.
Tf: Um elemento interessante dessa dinâmica é que a Lei de CHIPS provocou muito mais inquietação na esquerda em relação à possível tendência à monopolização ou concentração de capital que o IRA. Enquanto o IRA ofereceu oportunidades lucrativas num horizonte de dez ou vinte anos, a Lei de CHIPS prometeu, sem rodeios, injetar bilhões de dólares nas mãos de quatro ou cinco empresas que já detinham uma gigantesca fatia de mercado em seus respectivos setores. A Bancada Progressista no Congresso manifestou publicamente sua preocupação. A proibição de recompra de ações na CHIPS – que não está prevista na lei em si, mas numa regulamentação subsequente editada pelo Departamento de Comércio –, por exemplo, foi uma medida pela qual a Bancada Progressista lutou abertamente. Embora todos nós fôssemos absolutamente favoráveis aos investimentos em ciência e tecnologia e compreendêssemos a necessidade de garantir cadeias de abastecimento e criar um ambiente de resiliência, não queríamos que isso se traduzisse num exercício descomunal de promoção de bem-estar para empresas6.
TS: Esses subsídios significam realmente a promoção de bem-estar para empresas? Não sei se esse binarismo entre a Lei de CHIPS e o IRA me convence. Para começar, o que consideramos que seriam os porretes?
É verdade que, efetivamente, não há muitas penalidades no IRA, mas há duas importantes. Em primeiro lugar, ele virou uma lei tributária, porque os falcões do déficit insistiram que fosse transformado numa lei tributária para pagar pelo custo de suas próprias previsões. Como os gastos do IRA serão calculados? O Gabinete de Orçamento do Congresso estimará o impacto orçamentário das medidas, determinará quanto foi gasto via crédito tributário e exigirá que isso seja compensado por “medidas arrecadatórias”, ou seja, impostos.
Desde o início da implementação, em março de 2021, quando o Plano Americano de Empregos e o Plano para as Famílias Americanas foram lançados, o governo Biden lançou também uma série de medidas voltadas à arrecadação de US$ 4,5 trilhões em impostos. Isso basicamente implicou a reversão dos cortes de impostos da era Trump sobre as empresas da Fortune 500 e a instauração de um novo imposto sobre quem ganha mais de US$ 400 mil por ano – lembrando que Biden havia prometido não aumentar os impostos de quem ganha menos do que esse montante. Mas, durante as negociações, o poder corporativo basicamente falou “dane-se, vocês não vão nos tributar”, e os US$ 4,5 trilhões caíram para US$ 2,5 trilhões e, depois, para US$ 1,75 trilhão no projeto de lei que efetivamente tramitou na Câmara. No fim das contas, o projeto aprovado ainda configurava uma lei tributária, mas de efeito muito menor. Foi estabelecida a taxação mínima de 15% sobre empresas, o que gerará US$ 200 bilhões em impostos. Isso penaliza a evasão fiscal corpotativa e dá mais orçamento à Receita Federal para combater a sonegação. Além disso, foi estabelecida a cobrança de 1% de imposto na recompra de ações abrangidas pelo IRA.
Dg: Mas isso não é uma penalidade. Não é um porrete que garante que as empresas que recebem subsídios colaborem com os objetivos da política industrial do governo. Na verdade, é o contrário.
Ts: Sim, é um imposto sobre o capital em geral, e não uma penalidade específica para as empresas que recebem subsídios. O que quero dizer é que a Receita – que está sob ameaça, mas foi parcialmente reerguida no governo Biden – é a agência que canaliza grande parte da estratégia industrial dos EUA. O Tesouro, que está assumindo o papel do Congresso e fixando as regras, precisa contratar pessoal suficiente para conseguir monitorar esse amontoado de créditos fiscais e evitar que o “boca-livre” se transforme em champanhe para os ricos ou, ainda, em um lamaçal de carbono. Se não houver uma fiscalização rígida, corporações que fazem “lavagem verde” [greenwashing] poderiam aparecer na porta do Tesouro com projetos de camuflagem sustentável e, aí sim, transformar as medidas do IRA em promoção de bem-estar para empresas.
DG: Eu me preocupo quando o campo progressista é incentivado a comemorar um cenário no qual o resultado distributivo é favorável ao capital. A ideia de que os auditores fiscais poderão garantir que a política industrial seja realmente verde me soa otimista. Não podemos confundir uma conjuntura como essa com a garantia de uma política industrial verde bem-sucedida, e, muito menos, de redistribuição progressiva dos resultados.
Não dá pra saber se ou quando o auditor da Receita falará para a Ford ou para a Tesla: “seus carros elétricos estão ficando cada vez maiores e demandando cada vez mais recursos”. Ao invés disso, é preciso que haja regulamentação para o tamanho dos carros elétricos e legislação que incentive o transporte público elétrico. Temos que ser críticos e cuidadosos quando abandonamos o status quo contrário a qualquer forma de política climática progressista e avançarmos em direção a uma abordagem “boca-livre”, cuja capacidade de criação de empregos qualificados vem sendo questionada inclusive por alguns sindicatos nos EUA. Há motivos para ceticismo.
Trabalho
dd: Ao que tudo indica, um ponto básico desse debate não é saber se essa nova política industrial é permeada de contradições neoliberais, o que é um consenso, e sim se ela aponta para alguma nova direção promissora.
tf: O IRA de fato disciplina o capitalismo fóssil quando inclui uma taxa sobre o metano que foi ferozmente combatida pela indústria dos combustíveis fósseis. Já que nós, os progressistas, não conseguimos impor porretes diretamente, pressionamos pelas cenouras para incentivar o bom comportamento, e foi por isso que grande parte do movimento de trabalhadores ficou genuinamente entusiasmada com o IRA. Veja o crédito fiscal para energia limpa, por exemplo, que vai incentivar a energia eólica, solar e geotérmica, entre outras. Embora o crédito inicial pela instalação dessas usinas seja de 6%, o valor sobe para 30% se você pagar o piso salarial da categoria da construção civil, o que representa um diferencial de 24 pontos percentuais. Isto não garante, de forma alguma, a adesão sindical, mas nivela significativamente as regras do jogo para categorias sindicalizadas e não sindicalizadas.
Há uma série de previsões que incentivam o investimento privado a cumprir determinadas prioridades. Existe uma resolução direcionada às comunidades que vivem no entorno dos pólos de geração energética que concede um bônus no crédito fiscal para a instalação de usinas em regiões largamente dependentes da economia fóssil ou impactadas pelo extrativismo. Há também um adicional de 20% para incentivar investimentos em comunidades de baixa renda.
Outra norma, denominada pagamento direto e corretamente computada pelos progressistas como uma grande vitória, faz com que as entidades públicas e sem fins lucrativos possam, pela primeira vez, receber créditos fiscais por meio de pagamento em dinheiro, mesmo que não tenham qualquer obrigação fiscal. Como resultado, os governos municipais, por exemplo, podem entrar no jogo da energia limpa de uma forma que lhes era estruturalmente vedada, criando oportunidades para a estatização.
DD: Isso foi crucial para viabilizar o recém-aprovado projeto de “Lei de Instalação Pública de Energias Renováveis” [Build Public Renewables Act – BPRA] em Nova York.
tf: Sem dúvidas. Isso ajudou a vencer a oposição da Autoridade de Energia de Nova York e do governador do Estado de Nova York porque, graças ao pagamento direto, eles ganharam a possibilidade de usar uma enorme quantidade de financiamento federal para investir, por conta própria, em infraestrutura renovável.
Havia alguns objetivos centrais para os progressistas acerca da forma de estruturação da política industrial para o setor automobilístico que foram pautados nos debates iniciais. Obviamente, a concorrência estatal com empresas de automóveis privadas nunca esteve em questão, mas todos concordavam que a descarbonização dos setor automobilístico era um componente-chave da descarbonização da economia, e que era preciso encontrar a forma ideal de fazer isso.
Inicialmente, o projeto de lei incluía um incentivo à sindicalização por meio do crédito fiscal para veículos elétricos (VEs): US$ 4 mil além do crédito geral de US$ 7.500 por VE, se este fosse produzido em instalações sindicalizadas. O objetivo era oferecer um bônus explícito para o setor automobilístico sindicalizado na região norte do Centro-Oeste. E isso serviria também como uma desvantagem para os fabricantes estrangeiros e estadunidenses não-sindicalizados que produzem principalmente em estados que adotam legislações de proibição à sindicalização e à organização trabalhista. 7 O estímulo à sindicalização foi violentamente contestado pela UE, bem como pelo Canadá e pelo México. E foi contestado também por Joe Manchin, que contava com a chegada à Virgínia Ocidental aa produção estrangeira não-sindicalizada de VEs. No fim, isso acabou sendo cortado.
O que essa luta acabou despontando foi a inclusão de alguns elementos progressistas trazidos por Joe Manchin: um limite de renda que impede que famílias ricas que ganham mais de US$ 300 mil obtenham o crédito fiscal para VEs, e um incentivo de US$ 4 mil para carros usados.
Mas houve limitações significativas que desagradaram algumas pessoas no governo e, com razão, preocuparam os sindicatos do setor automobilístico, como o UAW [United Auto Workers]. As estruturas presentes no crédito fiscal para a energia limpa não existem nos créditos fiscais para a indústria. Há poucos recursos na lei de créditos fiscais para a indústria ou nos empréstimos do Departamento de Energia às montadoras que incentivem a adoção dos pisos salariais ou quaisquer outras normas trabalhistas.
DD: A relação da regulamentação trabalhista com o IRA e a Lei de Infraestrutura é ambivalente. Por um lado, há uma grande vitória recente dos trabalhadores siderúrgicos da fábrica de ônibus elétricos Blue Bird na Geórgia, que se sindicalizaram graças à regulamentação do programa de ônibus escolares limpos pela Agência de Proteção Ambiental. As regras obrigam os destinatários dos fundos federais a adotar uma posição de neutralidade em relação à sindicalização e proíbem o uso dos recursos para atividades que se oponham a isso. Os siderúrgicos usaram as previsões a seu favor e garantiram uma vitória notável no Sul.
Por outro lado, o UAW acaba de publicar uma declaração, assinada pela nova liderança militante do sindicato, atacando o plano do Departamento de Energia de emprestar US$ 9 bilhões de dólares à Ford para a construção de três fábricas de baterias sem exigir qualquer contrapartida trabalhista. Isso faz parte da preocupação mais geral do UAW de que a mudança para VEs poderá acelerar, ao invés de reverter, o declínio da adesão sindical na indústria automobilística.
Qual foi o terreno que a Bidenomics estabeleceu para o trabalhismo?
DG: Um crédito fiscal de 24% é bem maior que um de 6%, e por isso a fala do Ted parece convincente. Uma das dificuldades do governo Biden é o fato de ele ser uma cebola com camadas externas de política progressista, mas com um núcleo interno rígido de política distributiva favorável ao capital.
Eu gostaria de ver, em números, quanto os investimentos privados anunciados pelo IRA usam, de fato, o crédito fiscal de 24%. O suborno ao capital privado é a única forma de garantir melhorias nas condições de trabalho? Tenho minhas dúvidas. Mas, também, estando na Europa, sei que os nossos sindicatos olharam com inveja para processo adotado pelo governo Biden na articulação com os sindicalistas, dizendo, “na Europa, ninguém nos envolve nesse grau”.
Por um lado, você pode olhar para o copo meio cheio e dizer: “é o melhor que pudemos fazer”. Mas, se olharmos para o copo meio vazio, esse processo acaba deixando a critério do capital privado a extensão em que as regras trabalhistas serão adotadas. O Estado grande e verde, por exemplo, poderia dizer a uma empresa: “você deve ter este nível de salários se não quiser se sujeitar a normas ainda mais rigorosas de descarbonização”.
DD: Eu acrescentaria também que o copo estar meio cheio ou meio vazio é algo que depende do ângulo do movimento trabalhista pelo qual você observa o copo. Os setores ligados à construção ficaram bem amparados, mas, do lado da indústria, o UAW acabou ficando com muito menos força, pelo ferramental do IRA, para sindicalizar os trabalhadores depois que a infraestrutura física for construída.
TF: Para mim, é muito interessante a discussão acerca do terreno sobre o qual se dá a luta trabalhista pós-Bidenomics. Houve mobilização em torno da Proteção ao Direito de Organização (a lei PRO) que poderia ter aumentado significativamente as penalidades sobre empregadores e vedado práticas antissindicais. Mas não conseguimos ganhar. Não houve votos suficientes para garantir a tramitação em regime especial, ainda que 90% da bancada democrata fosse favorável ao projeto.
O IRA, sem sombra de dúvidas, absorve medidas protecionistas na forma de disposições sobre minerais críticos para baterias e de requisitos para a montagem final. Isso cria um incentivo significativo para a centralização da produção de toda a cadeia de abastecimento da indústria automobilística nos EUA ou na América do Norte. Esses elementos têm sido fonte de imensa controvérsia entre os EUA e os seus parceiros comerciais. Assim, na medida em que o capital privado fica preso nos EUA, pode-se dizer que isso promove uma maior adesão sindical no setor automobilístico por reduzir a ameaça de offshoring, que tem mantido grande parte da força sindical do setor em suspenso pelos últimos cinquenta anos.
E não apenas o offshoring, mas também o deslocamento da produção de estados que permitem a sindicalização para estados que não permitem.
Por outro lado, a ausência de disposições normativas características de um Estado grande e verde do qual Daniela falava significa que, até o momento, esse investimento está acontecendo em estados que proibem a organização trabalhista. A Geórgia foi provavelmente o estado com a política mais sofisticada e agressiva de atração desses investimentos por meio de subsídios, uma estratégia de desenvolvimento clássica dos estados do Sul. Esses estados são os mais ativos na militância antissindical e lutarão, com todas as armas que tiverem, contra qualquer iniciativa do UAW ou de outros sindicatos da indústria.
Mesmo assim, acho difícil enxergar como o trabalhismo estaria numa posição pior no setor automobilístico, após o IRA, do que estava antes. Entendo perfeitamente o Shawn Fain por criticar o governo Biden por ter emprestado US$ 9 bilhões à Ford sem exigir grandes contrapartidas, e por retirar seu apoio. Provavelmente, é assim mesmo que essas lutas vão acontecer. O UAW tem que descobrir uma estratégia para entrar lá e organizar esses trabalhadores. E vai descobrir, imagino eu. Enquanto houver governo Biden, haverá um Conselho Nacional de Relações Trabalhistas que está, de fato, disposto a ir atrás de empresas que adotarem práticas trabalhistas injustas.
TS: A administração Biden afirma que usará o poder discricionário dos gastos para encorajar a adoção de padrões trabalhistas mais elevados, mas não vem se esforçando muito. Como Lee Harris relatou no American Prospect, os empregos da indústria de energia solar, atualmente, são bem ruins. Os trabalhadores são contratados majoritariamente por meio de contratos temporários e a insegurança, o assédio e o absuo são cotodianos. Outro exemplo é a TSMC, uma das grandes beneficiárias dos US$ 52 bilhões da Lei de CHIPS, que se recusou a assinar um acordo de garantia das condições de trabalho com os sindicatos locais e empregou majoritariamente mão de obra não-sindicalizada. Será que o Departamento de Comércio pode realmente jogar duro quando os EUA precisam mais da TSMC do que a TSMC precisa dos EUA?
DG: Essa postura antitrabalhista do Estado redutor de riscos não é uma especificidade estadunidense. O capital privado europeu também lutou, em casa, para garantir que qualquer arranjo progressista que implicasse uma retomada do papel do Estado na política industrial ou climática fosse minimizado.
Acho que também precisamos discutir a partir de perspectiva geopolítica, para pensar o motivo pelo qual os europeus ficaram na defensiva quando os EUA começaram a adotar políticas de redução de riscos em grande escala para a transição verde, mas não quando a China fez o mesmo. A China vem fazendo isso há muito mais tempo e, sob vários aspectos, os europeus estavam muito mais tranquilos ao criar mercados para a indústria solar chinesa do que estão agora para criar mercados para a prdução solar ou automobilística estadunidense. Isso reflete as tensões geopolíticas na aliança EUA-UE.
Política
DD: Acho que isso tudo é bastante revelador da verdadeira teoria política por trás do IRA e da Bidenomics em geral. A Bidenomics reconhece, de uma perspectiva histórica, que o arranjo do New Deal criou a base material para a formação de um eleitorado político massivamente favorável à política de coalizão do New Deal, sobretudo por causa da sindicalização e da conquista dos trabalhadores de uma fatia notavelmente alta da renda nacional. E reconhece também que o neoliberalismo – a que o governo Biden se refere de maneira bastante frequente por meio da expressão “economia do trickle-down” – provocou efeitos geográficos heterogêneos e alimentou um processo de distribuição de renda extremamente desigual, o que gerou a base material para o populismo reacionário.
Os investimentos da Bidenomics estão criando uma nova base material para a política democrática liberal?
DG: Minha conclusão, de acordo com o que discutimos até agora, é que a Bidenomics apresenta aos trabalhadores a mesma escolha que o neoliberalismo apresentou: ser explorado ou ser excluído. Não me parece, portanto, que ela realmente crie ou mesmo expanda o terreno para alguma reorganização realmente radical.
Sendo uma europeia que mora no Reino Unido e que nasceu num país onde o Estado desempenhava um papel muito mais importante na garantia de bens e serviços públicos, é difícil, me colocar no lugar de um trabalhador estadunidense e imaginar quanta mudança a Bidenomics poderia realmente acarretar no meu dia a dia: a preocupação é que a gente acabe tendo empregos piores e que grande parte dos recursos fiscais sejam canalizados para o lucro do capital privado, mas seguimos com o mesmo grau financeirização dos bens públicos que tivemos até agora. Então o que é que estamos realmente ganhando? Não é que eu tenha uma resposta, mas também não acho que a resposta seja que “tudo vai melhorar”.
TS: A ideia da Bidenomics não era apenas dar um empurrão legislativo para incentivar a sindicalização, mas também aumentar estruturalmente o poder de barganha dos trabalhadores por meio da adoção de uma política macroeconômica de pleno emprego. Biden, num discurso sobre o orçamento em 2021, disse que “ao invés de os trabalhadores competirem entre si por empregos escassos, queremos que os empregadores concorram entre si para atrair trabalhadores por meio de salários mais elevados”. É um esforço consciente de aumentar o emprego e reduzir o exército industrial de reserva.
A política de pleno emprego foi complementada fiscalmente pelo generoso seguro-desemprego semanal de US$ 400 por trabalhador previsto pelo Plano de Resgate Americano, o que permitiu às pessoas deixarem empregos de baixa qualidade e mudarem para outros, melhores e mais produtivos. Então, estruturalmente, os trabalhadores estão numa posição de barganha muito melhor e diante de uma das taxas de desemprego mais baixas dos últimos cinquenta anos.
TF: Algumas teorias políticas distintas vêm sendo defendidas por aí, e não tenho certeza de qual delas é a mais aceita pelas pessoas no entorno de Biden. Uma delas, adotada pelas maiorias do Partido Democrata, é a de “efeitos da entrega”: você entrega investimentos, entrega empregos, as pessoas reconhecem seu papel na melhoria de sua qualidade de vida e votam em você. Há também uma outra que representa o justamente oposto político disso: consiste na ideia de “blindar” as políticas implementadas, mas sem focar necessariamente nos resultados eleitorais disso. De acordo com essa teoria, quer os eleitores republicanos continuem ou não a votar no Partido Republicano, o fluxo de benefícios e investimentos direcionados a esses distritos eleitorais pelas políticas do governo torna difícil o questionamento ou a eliminação dessas políticas pelas autoridades Republicanas. É por isso que o entorno de Biden celebra os grandes investimentos direcionados a distritos Republicanos nos quais não há nenhuma esperança de virada eleitoral.
E há também uma teoria mais ampla, que vai ao centro da discussão da Daniela sobre a redução de riscos. É a teoria de que a esquerda sempre acreditou que, para blindar a política climática, era preciso desenvolver um capital verde capaz de exercer poder político de forma a compensar, ao menos parcialmente, o poder do capital fóssil na economia política estadunidense. E, para isso, é preciso que haja beneficiários da política climática – de forma semelhante ao que acontece, por exemplo, com a política de defesa – em cada distrito eleitoral do país.
DD: Eu exergo com ceticismo a ideia de que uma nova base material que sustente uma nova maioria Democrata possa ser construída por meio de investimentos. No New Deal, não foram o crescimento econômico objetivo e o aumento salarial que construíram a coalizão, e sim os sindicatos, organizações intermediárias que ajudaram as pessoas a, coletivamente, dar sentido político à situação econômica.
DG: Eu sou ainda mais cética em relação à teoria de que é possível blindar politicamente determinadas medidas fomentando um capital verde, especialmente em estados republicanos. A experiência da Espanha nos anos 2000, de redução dos riscos da indústria solar por meio de tarifas feed-in, é uma prova em contrário. As cenouras para o investimento privado foram tão atraentes que a Espanha de repente se viu no meio de uma expansão desordenada do capital solar. Quando o ciclo político e as condições macrofinanceiras mudaram, o novo governo abandonou a política de cenouras, o que provocou um choque severo. Além disso, a experiência que tivemos na Europa com as abordagens de redução de riscos para o desenvolvimento do capital solar privado mostra que isso pode rapidamente esbarrar em restrições fiscais.
Capital fóssil
DD: Nós seguimos tocando no assunto do capital fóssil para falar dos caminhos da energia verde, mas isso é apenas metade da transição energética. Também é necessário parar de usar combustíveis fósseis o mais rápido possível. Mas a administração de Biden, inclusive por meio do IRA, em muitos casos, expandiu a produção desses combustíveis. Quais são as ferramentas da Bidenomics, se existirem, para dar fim à produção de combustíveis fósseis?
DG: Na Europa, mais ou menos a partir de 2017, a estratégia foi a combinação explícita de cenouras para atividades sustentáveis e porretes para o capital fóssil, particularmente por meio do Banco Central Europeu e do Banco de Inglaterra. Essa abordagem reconhecia que não era possível adotar a lógica da redução de riscos e simplesmente esperar que os processos do mercado inviabilizassem os combustíveis fósseis. Foi algo bastante revolucionário para bancos centrais que normalmente não querem intervir ou não querem ser vistos como interventores na alocação do capital.
Os bancos centrais criaram estruturas de “taxonomia sustentável” para penalizar o capital poluente. E o Banco Central Europeu declarou que a crise climática estava abrangida por sua competência de manutenção da estabilidade de preços, porque pode gerar consequências na estabilidade financeira, e também porque o setor financeiro pode agravar a crise climática concedendo empréstimos ao setor de combustíveis fósseis. A lógica era que, se uma entidade financeira tivesse títulos ligados a combustíveis fósseis em sua carteira, o banco central penalizaria a manutenção desses títulos, aumentando o custo do crédito e eliminando, assim, os subsídios para o capital de carbono.
DD: Como a Bidenomics desorganizou essa tendência na política pública europeia?
DG: As cenouras da Bidenomics deram mais fôlego aos lobistas que se opunham às penalidades previstas na regulamentação europeia, porque toda empresa que era penalizada dizia que mudaria para os EUA! Ficou muito mais difícil, politicamente, seguir no mesmo rumo, considerando a rigidez do cenário europeu de descarbonização que penalizava o capital privado.
TS: Os combustíveis fósseis ainda são os destinatários da maior parte dos subsídios governamentais. São extremamente caros não apenas para o planeta, mas também para os governos, em termos fiscais. Os governos europeus fizeram uma enorme quantidade de gastos deficitários após do início da guerra na Ucrânia, para colocar dinheiro no bolso das empresas e no bolso das pessoas para custear suas contas de energia. Pesquisadores estimam que mais de 800 bilhões de euros em subsídios foram destinados ao capital fóssil em apenas um ano desde a guerra! Contraponha esse valor de 800 bilhões de euros com ao orçamento verde do IRA, que equivale, segundo o Gabinete de Orçamento do Congresso, a cerca de 40 bilhões de dólares por ano.
DD: A Melanie Brusseler escreveu que: “a propriedade privada de ativos e a coordenação do mercado não podem fazer a dança sincronizada de investimento e desinvestimento, nem arcar com o custo de manutenção do excesso de capacidade (…) um boom de projetos privados de energias renováveis não vai, sozinho, orquestrar uma expansão planificada”. Por que a estatização é importante para alcançar a descarbonização?
TF: A capacidade do IRA em contribuir com a estatização está nas disposições de pagamento direto, sobre as quais falamos anteriormente, que vêm sendo aproveitadas por muitas autoridades locais e estaduais em todo o país. Esse é um dos terrenos de luta pós-IRA mais animadores – a construção dessas instituições e desse potencial de aumentar o papel da estatização.
Mas isso não é o bastante para avançarmos na velocidade necessária. Há as metas do Acordo de Paris e há a efetiva aceleração da crise climática. Se as contas públicas não desempenharem um papel maior e mais agressivo, não conseguiremos enfrentar questões como o risco de inundações a que muitas comunidades estão expostas, e o impacto que isso gera no mercado de seguros e nos preços dos imóveis – muito menos do que poderíamos conseguir enfrentar a questão da gradual desativação da infraestrutura fóssil que existe no nosso país e em todo o mundo.
Sem um processo mais assertivo de estatização e sem um Estado grande e verde que tenha seus porretes, há um receio real de que o setor público acabe simplesmente absorvendo os custos da crise climática enquanto as empresas vão declarando falência, enquanto quem tinha casa própria vai perdendo tudo. Aí, sobra para o setor público tentar arrumar a bagunça no pior cenário possível de redução de riscos: a socialização de todas as perdas. Precisamos encontrar uma forma de fazer com que a atuação do setor público seja mais proativa, que se dê de maneira menos custosa, mais equitativa e menos reativa.
DG: Há um relatório recente do Common Wealth que apresenta um argumento convincente, mesmo para os falcões fiscais, de que a estatização, especialmente do setor energético, é mais barata do que a redução de riscos para o setor privado de renováveis.
Há também a questão de uma descarbonização ordenada e de longo prazo, que não se refere apenas à estatização do setor energético, mas a uma transformação generalizada da atual arquitetura do regime macrofinanceiro. Não acho que a estatização seja suficiente, ainda que necessária. Precisamos também de uma mudança na maneira como exergamos as contas públicas diante da crise climática. Nesse momento, temos uma expansão desordenada tanto do capital verde quanto do capital fóssil. É preciso que lembrar que será necessário encolher determinados setores. O Estado precisará, necessariamente, ter mais espaço orçamentário do que tem hoje. E, para isso, é preciso ter de um banco central que funcione numa lógica muito diferente de coordenação com o Estado, para apoiar um Estado grande e verde.
Não estamos construindo capacidade institucional suficiente para que o Estado possa disciplinar o capital privado em torno das estratégias de ação climática. No artigo em que apresento meus argumentos sobre a Bidenomics, escrevo sobre a utilização monetária da redução de riscos por parte dos bancos centrais para intervir nos mercados de títulos do governo, o que, atualmente, basicamente preserva sua estabilidade para as finanças privadas.
Nova Guerra Fria
DD: Vamos falar mais sobre a China e sobre o que vem sendo chamado de “nova Guerra Fria”. A Bidenomics tenta barrar o acesso da China a certas tecnologias avançadas de semicondutores, excluir componentes e minerais críticos de origem chinesa de suas cadeias de abastecimento e, em geral, colocar em xeque o desenvolvimento e o poder militar chinês. Jake Sullivan, num discurso amplamente debatido sobre “o novo Consenso de Washington”, descreveu essa abordagem como um afastamento das premissas otimistas acerca de uma ordem global orientada por regras.
Mas o verdadeiro problema que os EUA têm com a China não é seu iliberalismo – Arábia Saudita e Israel são países que não incomodam os EUA. Quando se formou esse consenso bipartidário estadunidense que enxerga a ascensão chinesa como uma espécise de ameaça existencial? E que tipo de Estado é a China? É um Estado redutor de risco, um Estado grande e verde, ou uma outra coisa totalmente diferente?
Tf: A primeira coisa a se observar é que há uma quantidade significativa de autocrítica entre a elite política estadunidense no que diz respeito à forma como eles falam sobre a China. Havia um otimismo, uma teoria popular de “convergência” em torno da integração da China na ordem econômica global, especialmente após a sua entrada na OMC em 2001. Essa teoria dizia que, à medida que a economia da China se tornasse mais liberal, seu sistema político também se tornaria (Jake Werner e Toby Chow, por exemplo, defendem que isso de fato aconteceu por algum período entre os anos 2000 e início dos anos 2010).
A China se tornou muito mais assertiva geopolítica e militarmente no rescaldo da crise de 2008. Enquanto os EUA lambiam as feridas do colapso do mercado imobiliário, a China lançava um programa mundialmente histórico de estímulo econômico e de construção em massa. O investimento estatal chinês basicamente inundou a economia global por uma década. Há quem enxergue isso como o momento em Xi Jinping consolidou seu poder no sistema político chinês e começou a arquitetar uma política econômica muito mais estatizante, com casos documentados de coerção econômica. Em 2018, a percepção de que a China estava diferente já atravessava a elite política dos EUA – essa elite mudou de posição, deixando de enxergar a China como parceiro benigno e passando a exergá-la como ameaça ativa.
A autocrítica, então, perpassa dois níveis. Primeiro, a nível econômico, a bibliografia sobre o choque da China tomou uma importância sem precedentes para os formuladores de políticas públicas. Eles citam os artigos do David Autor nominalmente, algo inédito em outros contextos. O trabalho dos economistas que documentaram a forma como a abertura econômica à China iniciada em 2001 levou à dizimação da indústria estadunidense tiveram particular impacto. Em um artigo publicado após as eleições de 2016, eles mostraram que os condados e áreas metropolitanas que receberam a maior fatia de importações provenientes da China foram aqueles que mudaram de lado e passaram a apoiar os republicanos. A abertura à China parecia ter tido consequências econômicas domésticas mais significativas do que havia sido previsto por qualquer analista nos anos 1990 e início dos anos 2000.
Segundo, a nível climático, em 2021, os formuladores de políticas dos EUA finalmente se deram conta de que a China absolutamente dominava os principais setores industriais verdes. O consenso anterior era de que a China se concentrava em produtos de baixo valor agregado, enquanto a produção de ponta e de alto valor agregado estava no Norte Global. Mas, de repente, eles foram obrigados a reconhecer que a China controla 90% do mercado de painéis solares, controla minerais críticos, domina a cadeia de abastecimento de baterias, e assim por diante. Na medida em que a necessidade de uma transição energética foi se tornando mais clara – uma massiva subsituição de maquinário em todo o mundo aconteceria de uma forma ou de outra –, os formuladores de políticas começaram a se preocupar com a possibilidade de que a China dominasse essas indústrias. Preferiam que essas indústrias estivessem situadas nos EUA e produzissem para o mercado doméstico, mas que também competissem com a China pelos mercados externos que passariam a existir.
Finalmente, há conflitos de interesse genuínos entre os EUA e a China relacionados a Taiwan, por exemplo, e às questões mais amplas de segurança e alianças militares no Leste da Ásia.
DG: A Europa enfrentou, por mais tempo, essa mesma questão. Nos anos 2000, as indústrias solares da Alemanha e da Espanha foram bastante afetadas pela capacidade do Estado chinês de impulsionar ganhos de escala na produção de tecnologia limpa. A resposta costumava ser: “não importa, porque queremos que o mercado funcione”. Havia um forte compromisso ideológico com a globalização. Se observarmos as tentativas recentes de emular o que a Bidenomics fez nos EUA, veremos que houve uma mudança de posição. Existe uma leitura de que os mercados funcionavam bem, mas que a massiva política industrial chinesa provocou uma distorção nas tendências do mercado de tecnologia limpa. Agora estão tentando, eles próprios, provocar essa distorção.
Por ora, acho que há uma combinação, na China, entre o Estado grande e verde e a abordagem de redução de riscos. O Estado chinês e o mercado interno permitem ganhos de escala, há ali uma série de possibilidades que não existem em países menores. É importante lembrar que essa não é apenas uma história dos países, mas também da globalização financeira. Há muitas empresas europeias na China. Não é como se ela simplesmente irrompesse na cena internacional para, isoladamente, ameaçar a hegemonia dos EUA. Durante muito tempo, situar a produção na China trazia significativo potencial de lucro – corporações europeias e estadunidenses eram defensoras desse arranjo, o que, por razões políticas, não podem mais fazer.
DD: Que análise pode ser feita sobre o papel dessa Nova Guerra Fria em motivar a política industrial verde estadunidense? O que essa nova política industrial representa diante da séria ameaça de escalada das tensões? Qual seria a cara de um acordo de estabilidade geoeconômica e geopolítica com a China?
TF: Esse é um cenário perturbador que deve nos preocupar seriamente. Existe uma tendência entre determinadas forças progressistas de querer enxergar esse aspecto geopolítico como algo acessório à política industrial, mas não acho que isso seja verdade, precisamente porque a mudança de posição da elite política estadunidense em relação à China é um dos pré-requisitos para tudo isso que temos visto. Nós temos que estar atentos a essas dinâmicas, à possibilidade de que instrumentos de política industrial sejam usados para acirrar tensões geopolíticas e militares. Devemos nos opor, direta e energicamente, a movimentos de escalada nas tensões. Além disso, entendo que é, sim, importante fazer oposição às proibições de exportação de semicondutores, uma vez que elas não representam uma parte indispensável do pacote legislativo nem são tidas como prioridade por qualquer lado da coalizão de forças que se uniu para aprová-lo. Há menos atenção a essas dinâmicas, por exemplo, do que havia à forma como o poder global dos EUA se manifestava nos anos 2000.
Na minha opinião, precisamos começar a falar ativamente a respeito da “construção da ordem”, das instituições de relações internacionais, de segurança e de cooperação, especialmente daquelas ligadas ao desenvolvimento e às finanças. E isso envolve a noção de que não é possível imaginar uma ordem política ou econômica global, ou uma ordem de segurança, na qual a China não exerça um papel significativo. Coexistência deve ser a regra número um. Precisamos desenvolver uma arquitetura institucional cuja fundação seja a convicção básica de que um cenário de guerra seria absolutamente apocalíptico, e que devemos fazer tudo o que estiver a nosso alcance para evitá-lo.
Ts: A teoria de contenção da China adotada pela elite política dos EUA China se baseia em duas premissas. A primeira é que a tecnologia é o que impulsiona o crescimento econômico da China, e a segunda é que a China não sabe criar inovações tecnológicas – ela só é capaz de copiar, adquirir ou roubar. A partir dessas premissas, a contenção da China consiste em barrar seu acesso a tecnologias de ponta. É isso que o Jake Sullivan quer dizer quando fala na “construção de cercas altas em volta de um jardim estreito” de inteligência artificial, biotecnologia, tecnologia verde e assim por diante.
Não tenho tanta certeza de que a inovação tecnológica seja o motor do crescimento econômico chinês. O crescimento chinês foi impulsionado pelo investimento doméstico, grande parte voltado a tecnologias da segunda revolução industrial, ao lado de uma enorme expansão do mercado imobiliário e de uma ampliação logística que criou um vasto mercado interno. Quanto à inovação, o Estado chinês vem investindo fortemente em P&D há, pelo menos, dez ou quinze anos – dezenas de milhares de engenheiros, cientistas e médicos chineses se formaram nos MITs e Stanfords mundo afora. Em muitos setores, a China está tão próxima da fronteira tecnológica quanto os EUA, quando não à frente. Portanto, ainda que se acredite na necessidade de conter a China, não me parece obvio que essa dissociação tecnológica possa ter sucesso por si só. Além disso, obviamente, isso provoca um enorme risco de ricocheteamento: pode afastar aliados dos EUA, desacelerar a inovação e o investimento climático, aumentar preços e gerar inflação na economia doméstica.
dg: Também quero colocar em consideração a possibilidade de a China ser uma espécie de espantalho, de Cavalo de Troia útil, que oferece uma saída para essa crise de acumulação de capital. Em outras palavras, a ameaça chinesa – que é real, uma vez que desafia a hegemonia estadunidense – oferece uma narrativa política que permite a reimaginação do papel do Estado, que passa a poder se engajar na política climática. Mesmo em países como os EUA, é possível construir uma infraestrutura ou uma arquitetura de redução de riscos que, à medida que cresce mais e mais, possibilita a geração de lucros e de oportunidades para o capital privado. É preciso haver um espantalho, um adversário comum, para unir essas forças políticas. Mas o planeta Terra não liga para o conflito China-EUA.
dD: A crise climática é de escopo global. O IRA e a Bidenomics apontam na direção de alguma abordagem mais internacionalista do combate à mudança climática?
ts: O IRA não traz nenhuma disposição explícita para os países em desenvolvimento. Não vai existir dinheiro fácil nem transferência de dólares do contribuinte estadunidense para fora. Ao invés disso, o governo Biden argumenta que qualquer coisa que os EUA façam para acelerar a produção de mercadorias verdes provocará uma queda de preços que possibilitará exportações mais baratas para os países em desenvolvimento. Uma vez que essa é a teoria, seria preciso adotar uma agenda política de transferência tecnológica verde livre de constrições de propriedade intelectual para esses países, agenda essa que não tem aparecido muito nos planos do governo.
A grande questão é que os países em desenvolvimento têm um ambiente fiscal muito mais apertado e uma base tributária com muito menos espaço para a concessão de subsídios. O espaço fiscal é limitado pelas crises de dívida externa em dólares e pelas taxas de juros estruturalmente mais altas. Para que uma transição energética global seja bem-sucedida, é preciso reformar o FMI e o Banco Mundial para que reduzam os custos dos financiamentos e deixem de policiar a relação dívida/PIB desses países. Mas tampouco vem sendo essa a agenda internacional do governo.
DD: Se não houver, no Sul Global, um caminho economicamente viável para o desenvolvimento verde, por que ele deixaria de queimar carvão?
Dg: A retórica progressista do governo Biden atinge seu mínimo existencial quando o assunto é o “Novo Consenso de Washington” para os países do Sul Global – por trás disso, existe o enraizamento do Consenso de Wall Street. O paradigma da redução de riscos desenvolvimentista recomenda que os países do Sul Global combinem um pouco de dinheiro público com muito financiamento privado para alavancar o investimento na transição energética e em bens públicos. Acho irônico como os EUA reclamaram do fato de que outros países estavam consumindo tecnologia renovável e barata da China, mas depois viraram para o lado e disseram: “ah, o Sul Global deve estar feliz porque o IRA vai reduzir o custo de importação de tecnologia limpa”.
O governo Biden não apoia uma colaboração compulsória dos credores privados com os países endividados do Sul Global, não exerce pressão para que sejam feitas mais subvenções ou para que haja mais financiamento concessional para bens públicos, nem ampara, como faz a China, a transferência tecnológica. Uma empresa estatal de Uganda, por exemplo, está produzindo ônibus elétricos destinados ao transporte público com tecnologia chinesa – essa é a cara da transferência tecnológica numa estrutura repaginada, pós-neoliberal, de funcionamento do mundo. Esse mecanismo inexiste na Bidenomics. Ao invés disso, os EUA e a Europa cantam a mesma nota – se quiser fazer política industrial verde, faça por meio da redução de riscos –, pressionando os países do Sul Global a soltar mais e mais as rédeas fiscais e regulatórias para que o capital privado possa correr livremente a título de, digamos, tornar o hidrogênio verde competitivo.
Tf: Até o limite em que as coisas podem realmente mudar, me parece muito mais provável que essas transformações sejam impulsionadas pelo desenvolvimento dos processos geopolíticos do que por alguma forma de iluminação do governo ou do aparato financeiro estadunidense. Alguns dos pacotes negociados pelos EUA envolviam, como no caso da Indonésia, certo grau de transferência tecnológica, mas isso foi forçado, não voluntário. Os EUA têm feito determinadas concessões porque buscam o alinhamento de países estrategicamente posicionados. É provável que vejamos mais desses gradientes geopolíticos em acordos relacionados ao desenvolvimento e financiamento internacionais nos quais os países façam uso seu posicionamento estratégico como instrumento de barganha. A faca de dois gumes, aqui, é que isso alimenta uma perigosa dinâmica de escalada das tensões.
Esse artigo foi traduzido do inglês por André Duchiade.