9 de maio de 2024

Análises

A encruzilhada fiscal de Lula

A luta por justiça social contra a austeridade determinará o destino do terceiro governo Lula e, talvez, da própria democracia brasileira

A luta por justiça social no capitalismo passa necessariamente por aquilo que o Presidente Luís Inácio Lula da Silva diz ser o lema da política econômica e social de seu terceiro mandato: “colocar o rico no imposto de renda e o pobre no orçamento público”. Quando governou o Brasil por dois mandatos sucessivos entre 2003 e 2010, Lula procurou conciliar os pobres e os muito ricos, ampliando o gasto social sem elevar a carga tributária sobre altas rendas, lucros e dividendos. O crescimento econômico no período gerou grande elevação da arrecadação tributária sem qualquer reforma institucional, facilitando a conciliação pretendida. 

Desde então, ampliar o gasto social sem enfrentar a regressividade do sistema tributário e o contra-ataque neoliberal da última década se tornou impossível. A ofensiva neoliberal teve êxito em instituir uma Emenda Constitucional que congelou o gasto público em 2016. Embora o governo Lula tenha aprovado, em 2023, um novo regime fiscal que substitui o congelamento anterior, ainda é uma regra que determina, ano a ano, a redução do peso do gasto público no Produto Interno Bruto (PIB). Ademais, o compromisso com a obtenção de superávits fiscais primários crescentes (excluídos os juros da dívida pública) reforça a austeridade e exige grande aumento da arrecadação tributária. Como evoluirá o embate entre os campos políticos que defendem o gasto social ou a austeridade? Será possível “colocar o rico pagando imposto e o pobre no orçamento público”?

O novo lema de Lula está em linha com a fórmula que presidiu a construção de Estados de bem-estar social no mundo desenvolvido. Como demonstrado por Thomas Piketty (2013; 2019) e seus coautores em diversas oportunidades, foram a progressividade tributária e a ampliação dos serviços públicos e do gasto social, contra a resistência feroz dos capitalistas, que reduziram a desigualdade social nos países desenvolvidos entre 1950 e 1980 – antes que a onda neoliberal procurasse “matar a besta de fome” cortando impostos para os ricos e elevando o déficit fiscal que, por sua vez, foi a justificativa para a austeridade. 

“Matar a besta” foi exatamente o programa proposto no Brasil em 2015 por ninguém menos do que Michel Temer, o Vice-Presidente de Dilma Rousseff, reeleita no ano anterior com uma plataforma muito diferente. Rousseff foi apoiada por Lula para sucedê-lo em 2011 e, em linhas gerais, continuou seu programa social. Entre 2003 e 2015, o gasto social e o programa Bolsa Família ampliaram a participação no PIB em quase três pontos percentuais, contribuindo para afastar cerca de 20 milhões de brasileiros da pobreza e aumentar o acesso à educação e à saúde pública. Com base nisso, apesar da perda de popularidade no rescaldo dos protestos de junho de 2013, Rousseff conseguiu se reeleger no final de 2014 com um discurso crítico da austeridade proposta por seu principal rival e pelos meios empresariais. Contudo, inaugurou o segundo mandato com um programa de cortes de gastos públicos destinado a aplacar a insatisfação daqueles próprios meios. Seu cálculo foi desastroso: diante de uma economia em desaceleração nítida, a austeridade jogou o país em recessão profunda e aumentou as insatisfações políticas à direita e à esquerda do governo. 

Como efeito da crise, a arrecadação tributária caiu 5,6% em 2015 e levou o déficit fiscal primário (sem contar juros da dívida pública) para cerca de 2% do PIB. Enquanto sindicatos e movimentos sociais exigiam de Rousseff o fim da austeridade, a reação dos ricos e seus representantes políticos foi afirmar que “não pagariam a conta” (com mais impostos), como anunciou a propaganda política onipresente da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). A solução dos ricos para a crise era mais austeridade. 

Em outubro de 2015, quando o movimento conservador que levaria ao impeachment de Rousseff se iniciava, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de Temer, principal partido conservador da coalizão governamental liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), apresentou o programa Ponte para o Futuro. Propunha-se, de um lado, radicalizar a austeridade contra o gasto social para permitir desoneração tributária de empresas e dos ricos, e de outro, atrair investimento externo com privatizações, reforma trabalhista e tratados internacionais que rebaixassem tarifas alfandegárias, salários, custos de demissão, e protegessem investidores.

Em visita a investidores estadunidenses em 2016, Temer afirmou que o Ponte para o Futuro foi proposto a Rousseff como condição para evitar o impeachment. Como ela não aceitou, tornou-se ele o Presidente desde maio de 2016. Diante da confissão, podemos abstrair razões secundárias para o impeachment. No governo Temer, a ofensiva neoliberal emplacou em novembro de 2016 a desnacionalização do Pré-Sal, principal fonte de petróleo descoberta pela Petrobras no governo Lula; em dezembro do mesmo ano, a Emenda Constitucional do Teto de Gasto (ECTG); e, em julho de 2017, a reforma trabalhista.

A ECTG foi central para o projeto neoliberal – mesmo com a sua revogação em 2023, a austeridade segue limitando o terceiro governo Lula. Em essência, a ECTG congelava, a partir de 2017, o gasto público federal em termos reais, ou seja, corrigia o valor apenas pela inflação, independentemente do ritmo de crescimento da economia e da população. As melhores estimativas indicavam que, durante os vinte anos em que deveria vigorar, até 2036, a ECTG faria o peso do estado no PIB regredir para o nível de 1996. 

O efeito prático da ECTG nos seis anos em que vigorou foi determinar cortes devastadores sobre o gasto social, encampando um experimento radical de austeridade. Os gastos federais com educação sofreram corte de 44% entre 2016 e 2021. O gasto com ciência e tecnologia, que estava na média de 0,9% do PIB entre 2013-2016, caiu para 0,78% em 2020. O investimento público (incluindo empresas  estatais), que havia partido de 2,6% do PIB em 2003-2005 para uma média de 4,13% entre 2009 e 2014, caiu desde 2015 e chegou a 2,53% em 2022, afogando consigo o investimento privado em nova capacidade de produção. 

O objetivo era evitar qualquer pressão tributária sobre indivíduos de alta renda e sobre empresas, que viram isenções e privilégios tributários aumentarem a partir de 2017. Ademais, a falta de financiamento para a oferta de bens e serviços públicos legitimou privatizações totais ou parciais no período: em 2019, nos ramos de pensões e aposentadorias, em 2021, nos de oferta de água e saneamento e, em 2022, no de energia elétrica. Mesmo nas áreas em que o esforço de privatização não teve sucesso, a carência de oferta pública criou uma demanda reprimida por escolas, saúde, segurança, transporte e afins, que abriu espaços de acumulação para investidores internos e externos.  

Às portas do neofascismo

Se não serviu como caminho para o crescimento econômico, a Ponte para o Futuro levou o país à porta do neofascismo. A crise econômica, o desemprego, a pobreza crescente, a piora dos serviços públicos, os escândalos de corrupção e o grande aumento da criminalidade urbana criaram o contexto para a eleição de Jair Bolsonaro. Político de carreira que se reelegia deputado federal conservador desde 1991, Bolsonaro conseguiu se apresentar em 2018 como outsider e ganhou a eleição presidencial prometendo acabar com o “sistema”, ou seja, o já limitado Estado de bem-estar social e, até mesmo, a própria a democracia no Brasil. 

Bolsonaro deu continuidade à execução do programa Ponte para o Futuro, terceirizando a tarefa para seu comandante da pasta econômica, o anarcocapitalista Paulo Guedes, e para a maioria à direita no Congresso Nacional. Em novembro de 2019 aprovaram a reforma da Previdência; em julho de 2020, o novo Marco Legal do Saneamento; em fevereiro de 2021, a autonomia do Banco Central; e, em junho de 2022, a privatização da Eletrobrás. O governo ainda entregou o que lhe foi solicitado pela União Europeia num acordo comercial com o Mercosul muito favorável aos concorrentes e investidores europeus.  

Contudo, ao contrário da propaganda neoliberal, a Ponte para o Futuro seguiu não conduzindo o país ao espetáculo do crescimento. Como documentado pela experiência internacional, a contração neoliberal da regulação ou oferta pública aumenta a inflação ao permitir a cartelização na determinação dos preços. Já a desaceleração do gasto público e do consumo dos trabalhadores desestimula o investimento privado total. No Brasil, vários estudos demonstram um alto efeito multiplicador do gasto público sobre a renda agregada, o chamado multiplicador fiscal.1

O baixo crescimento, a redução da renda do trabalho e a reação política à austeridade levariam, mais cedo ou mais tarde, à reforma da ECTG, exceto que uma ditadura neoliberal vingasse antes. A pandemia da Covid-19, contudo, acelerou a crise. A contragosto de Bolsonaro e Guedes, o combate à pandemia mostrou a falácia do lema “o dinheiro acabou” face à urgência de transferências monetárias para desempregados e empresas, recolocando a proteção econômica e social acima da austeridade fiscal em vários países.2 Até mesmo Donald Trump foi forçado a ampliar transferências monetárias para cidadãos impedidos de trabalhar, contra o discurso neoliberal de autorresponsabilidade individualista que ele e sua coalizão sempre defenderam. Isso acentuou a ruptura em relação ao neoliberalismo tradicional representado no Partido Democrata por Hillary Clinton e levou Joe Biden ainda mais à esquerda para assegurar o apoio da ala de Bernie Sanders e derrotar Trump.

No Brasil, apesar da promessa de acabar com o programa Bolsa Família, o governo Bolsonaro apenas mudou seu nome e ampliou a arbitrariedade na concessão de benefícios. Entretanto, sob pressão no Congresso Nacional, o valor das transferências aumentou em 2020 para permitir que as famílias cumprissem o mandato de distanciamento social e evitar o aprofundamento da pandemia, para a insatisfação de um Presidente que incitava sua base a não se distanciar, a não usar máscaras e nem tomar vacinas. Com o argumento de calamidade pública, a ECTG foi suspensa em 2020, e o  entitulado Auxílio Emergencial às famílias se tornou um enorme programa de transferência de renda com alto efeito multiplicador. Como a demanda do consumo popular foi sustentada, tanto o PIB quanto a relação dívida pública/PIB tiveram desempenho melhor em 2020 e 2021 do que previa o alarmismo do “mercado”, contrário ao gasto social. 

Em 2022, a lógica da competição eleitoral contra Lula forçou Bolsonaro à promessa vazia de auxílio mensal para famílias pobres no valor de R$ 600, um aumento substancial em relação aos valores anteriores do Bolsa Família. Contudo, a promessa não era acompanhada de qualquer destinação de recursos na proposta de orçamento federal para 2023, que previa uma contração fiscal de R$ 150 bilhões, de 1,5% do PIB brasileiro. 

Tamanha contradição abriu espaço para uma forte crítica de Lula e do PT ao teto de gastos: era simplesmente impossível cumprir promessas de gasto social e de recuperação do investimento público e, ao mesmo tempo, preservar a ECTG. Assim, após a vitória nas eleições presidenciais de outubro de 2022, Lula imediatamente pressionou por uma alteração do orçamento de 2023 que criasse espaço fiscal para a retomada do programa Bolsa Família com aumento dos estipêndios, para a reconstrução de vários programas sociais de seus primeiros mandatos e para a elevação do investimento público. 

Lula na ofensiva

Não é exagero dizer que, com a ofensiva política em novembro e dezembro de 2022, antes ainda sua posse, Lula passou a dominar a agenda legislativa do país. A investida exigia a autorização de programas de gasto deficitário que, em menor escala, também tinham sido prometidos por Bolsonaro. De certo modo, isso também tem um paralelo com os Estados Unidos, em que um candidato convertido ao progressivismo como Joe Biden derrotou um presidente neofascista e propôs uma agenda legislativa que autorizava uma forte ampliação do gasto público. Embora não haja espaço aqui para uma comparação profunda, leitores que não conhecem o Brasil a fundo podem perceber que a contradição entre democracia e neoliberalismo é universal no capitalismo contemporâneo, embora se manifeste diferentemente no Brasil e nos Estados Unidos. 

Com a expansão fiscal, os objetivos tanto de Lula quanto de Biden3 eram assegurar uma recuperação econômica robusta depois da pandemia e defender a democracia, atendendo às demandas por direitos e por recursos públicos de uma coalizão social heterogênea que incorporava tanto sindicatos industriais quanto movimentos sociais que lutavam pelo reconhecimento de discriminações históricas de base étnico-racial e de gênero. Nos EUA, especialmente depois do assassinato de George Floyd e da indicação de Amy Coney Barrett à Suprema Corte; no Brasil, em resposta aos ataques de Bolsonaro às minorias sociais e aos direitos trabalhistas. 

O paralelismo entre as coalizões de Biden e Lula não vai longe, pois a resistência neoliberal não se limitou, no Brasil, a alguns senadores como Kyrsten Sinema e Joe Manchin, mas teve lugar no próprio coração do PT. De fato, as contradições internas ao PT e à coalizão partidária do governo Lula ficaram claras já em novembro de 2022, quando o futuro Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs uma mudança no orçamento de 2023 que não eliminava a ECTG, apenas autorizava o pagamento do novo Bolsa Família acima do limite do teto de gastos. O cálculo de Haddad provavelmente se relacionava com os pisos mínimos para o gasto público em educação e saúde, que, por determinação constitucional, devem acompanhar o ritmo de arrecadação tributária. Como o teto de gastos era uma Emenda à Constituição, suspendia a vigência desses pisos. Em verdade, como veremos, os pisos são incompatíveis com qualquer regra de gasto público que determine seu crescimento abaixo do crescimento do PIB, como a que Haddad proporia mais tarde. 

Contra Haddad, uma coalizão liderada pela Presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, e pelo Presidente do Senado, o conservador Rodrigo Pacheco (aparentemente apoiados por Lula), pressionou e conquistou a abolição da ECTG com a condição de que um novo regime fiscal fosse aprovado pelo Congresso Nacional até agosto de 2023. O orçamento anual, por sua vez, foi emendado de maneira a permitir um crescimento real do gasto de 9% em 2023, possibilitando a retomada de vários programas sociais e de investimento público interrompidos desde 2017.  

Virada neoliberal

Enquanto a expansão fiscal de 2023 acomodou interesses sem a soma-zero que caracterizava o congelamento do gasto federal desde 2017, o embate se transferiu para o contorno do regime fiscal que substituiria a ECTG. Saiu vitorioso Fernando Haddad, com uma proposta nitidamente neoliberal: o chamado Regime Fiscal Sustentável (RFS). O RFS limita o crescimento anual das despesas primárias federais (excluindo despesas financeiras) a um novo teto móvel equivalente a 70% do crescimento anual prévio das receitas tributárias, até um aumento máximo de 2,5% ao ano. Também determina um patamar mínimo para crescimento das despesas de 0,6%, na hipótese de que as receitas cresçam menos do que 0,86% ao ano – um crescimento tão pequeno que não chega a se qualificar como política anticíclica. Ademais, estabelece metas de superávit fiscal primário (gastos menos receitas), de modo que a frustração na tributação pode reduzir ainda mais os tetos anuais de gasto. 

A prioridade do RFS é a mesma da ECTG: de início estabilizar, depois reduzir, a relação dívida pública bruta/PIB através do controle do gasto público. A redução da relação dívida pública/PIB resulta em outra finalidade neoliberal mais geral: a redução do gasto público na economia. Conforme reconhecido em publicação do corpo técnico do FMI,4 regras de gasto semelhantes no resto do mundo provocam necessariamente a redução do peso da despesa pública no PIB. 

Na vigência do RFS, uma eventual elevação da carga tributária não levará a um aumento proporcional do gasto público, mas sim do superávit primário (o excedente de receitas sobre gastos primários federais). Ao longo do tempo, isso tende a reduzir, como proporção do PIB, tanto o fluxo anual de gasto público quanto, a depender da taxa de juros real e do crescimento do PIB, o estoque de dívida pública, ou seja, a relação dívida pública/PIB. Isso atende às exigências dos credores da dívida e, ao mesmo tempo, cria oportunidades para investimento privado, dados os limites para expansão da oferta pública de bens e serviços. É um regime fiscal que atende aos interesses dos credores da dívida pública e dos empresários interessados em privatizar ou competir com a provisão de serviços públicos, e o faz às custas de cidadãos, sindicatos e movimentos sociais que pressionam por uma esfera pública mais robusta. 

A proposta de um regime fiscal austero como substituto para o teto de gasto pode parecer um enigma, considerando que o debate ideológico do Partido dos Trabalhadores se voltou contra a austeridade pelo menos a partir do experimento fracassado de nomeação, em 2015, do neoliberal Joaquim Levy para a condução do Ministério da Fazenda no segundo mandato de Dilma Rousseff. Desde então, o PT sistematicamente criticou o impacto econômico recessivo e concentrador da austeridade fiscal. Isso é manifestado nos programas do partido e de seus candidatos à presidência, inclusive naquele de 2022. Na avaliação acadêmica, a crítica é correta, pois o combate às desigualdades depende historicamente do gasto público. Ademais, vários estudos mostram que a austeridade fiscal reduz a taxa de crescimento do PIB em qualquer prazo, e que países mais “austeros” têm menor crescimento econômico.5

Na prática e na retórica, contra a crítica keynesiana à austeridade, há indícios de que o Ministro Fernando Haddad acredita no argumento neoliberal de que o crescimento econômico pode ser liderado pelo gasto privado apesar da austeridade fiscal, que seria a condição para redução de juros pelo Banco Central e para a retomada da confiança empresarial no futuro da economia, supostamente abalada por uma trajetória presumidamente explosiva da dívida pública. O Ministro e membros de sua equipe também afirmaram que o gasto fiscal deficitário motivaria uma percepção de descontrole da dívida pública na ótica do mercado financeiro, levando à fuga de capitais, à depreciação cambial e ao choque inflacionário resultante. A restrição fiscal é apresentada como condição para a mudança da política monetária e para a garantia da credibilidade da política fiscal perante o mercado financeiro internacionalizado (ao mesmo tempo local e global). Estas últimas, por sua vez, são tomadas como condições para que o crescimento econômico seja liderado pelo gasto privado apesar da austeridade fiscal, por meio de estímulos a investidores locais e atração de investimentos estrangeiros.

Haddad também alude explicitamente ao poder estrutural do mercado financeiro internacionalizado para vetar uma decisão alternativa. Além disso, o Ministro e sua equipe ressaltam o poder de uma instituição do Estado brasileiro – o Banco Central (BC) independente – que partilha da visão de mundo desse mercado e que organiza suas convenções por meio de pesquisas de opinião com os operadores financeiros e de sinalizações a respeito do comportamento futuro das políticas monetária e cambial. 

Tais alusões permitem duas conclusões. Primeiro, conceitualmente, a justificativa oficial do RFS exprime uma não-decisão, no sentido de Peter Bachrach e Morton S. Baratz (1962; 1963): as relações de poder se expressam (de modo paradoxalmente implícito) em uma não-decisão se a possibilidade de veto estiver inscrita previamente nas estruturas, nas instituições ou nos cálculos que condicionam a decisão a ponto de impedi-la de antemão.6 Segundo, como o BC faz parte da institucionalidade que supostamente veta uma política keynesiana de expansão fiscal, a política do governo é, indiretamente, definida por uma tecnocracia independente que não passou pelo filtro das urnas, mas pela porta giratória do mercado financeiro. É claro que essa tecnocracia representa, em última instância, interesses dos credores da dívida pública e de empresários interessados em privatizar serviços públicos ou competir com eles. 

Lula arbitrou o conflito a favor de Haddad em 2023, mas adota um discurso bastante diferente. Quando investiu contra a ECTG em novembro de 2022 e pleiteou um orçamento com forte expansão fiscal em 2023, o Presidente eleito defendeu veementemente que o gasto social fosse encarado como um investimento, em sentido contrário ao tratamento como desperdício que tipicamente recebe do discurso político neoliberal hegemônico na mídia tradicional. Publicamente, Lula dizia não se importar com a pressão do mercado financeiro e seus efeitos de curto prazo – como elevação de juros de títulos públicos de longo prazo e desvalorização cambial – pois tais efeitos seriam revertidos rapidamente à medida que os especuladores aproveitassem os preços baixos para voltar a comprar Reais e títulos públicos e, de modo mais sustentável, à medida que a economia se recuperasse. Ao contrário, deslocou a pressão contra o Presidente do BC independente, Roberto Campos Neto, acusando-o de determinar a taxa de juros em atenção aos interesses rentistas, sem base em pressões de demanda sobre a inflação e com efeitos recessivos desnecessários para controlá-la em uma economia que já desacelerava.

No entanto, uma vez empossado, a partir de janeiro de 2023 Lula transferiu a iniciativa política e ideológica no terreno fiscal para o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, limitando-se a atacar a política de juros do BC independente. Nesse momento, a disputa pelo sentido da política fiscal praticamente acabou diante da adesão do Ministro ao discurso neoliberal hegemônico que culpa o excesso do gasto público pela inflação e pelo risco de inadimplência da dívida pública. Em vista do recuo, a representação do mercado financeiro no Congresso Nacional fez uma ofensiva para tornar o RFS ainda mais restritivo do que a proposta inicial de Haddad.7  

Não se sabe o motivo da decisão de Lula de transferir a iniciativa política e ideológica no terreno fiscal para o Ministro da Fazenda. Teria o Presidente sido convencido pelo discurso de Haddad de que o novo arcabouço fiscal não prejudicaria o crescimento econômico e permitiria conciliar, à direita, a retomada da credibilidade da dívida pública perante o mercado financeiro e, à esquerda, o pagamento da dívida social que foi prometida na campanha presidencial, combinando as ditas responsabilidade fiscal e social? Caso contrário, supõe-se que Lula reconheça o impacto recessivo da austeridade. Teria acreditado que era preciso recuperar a credibilidade perante o mercado financeiro, como em 2003 e em 2015, antes mesmo de poder planejar o estímulo à aceleração do crescimento com novos investimentos públicos e privados? Ou teria simplesmente feito um cálculo político pessimista, talvez realista, quanto à correlação de forças? 

Teria o Presidente calculado que a tática adotada em novembro e dezembro de 2022 não preservaria a mesma força após a posse do novo Congresso Nacional em 2023 – talvez o mais conservador da Nova República –, e que seria preciso recuar e ceder à pressão empresarial pela austeridade e contra o investimento público e o gasto social, a despeito do risco colocado à implementação de sua agenda de campanha? Teria reconhecido em Fernando Haddad, diante da necessidade de preparar um sucessor para a Presidência da República, uma figura capaz de aglutinar a centro-direita e centro-esquerda em uma nova coalizão política de longo prazo, estendendo no tempo a frente ampla que isola a extrema direita? Ou teria, ao contrário, acreditado não haver alternativa à austeridade no curto prazo e se blindado da impopularidade da medida ao transferir a responsabilidade para Haddad, substituível na hipótese de fracasso da política a médio prazo em uma eventual virada desenvolvimentista, como em 2005?

A escolha da hipótese ou de uma combinação delas fica a gosto do leitor. O que se pode adiantar é que o RFS gera contradições capazes de marcar o destino do governo Lula. A austeridade fiscal como medida necessária para que o investimento privado lidere o crescimento do PIB é uma exigência lógica do RSF. Afinal, supondo-se que, a médio prazo, a carga tributária (arrecadação/PIB) seja estável, o fato de que o gasto público é condicionado a crescer menos que a receita tributária significa que cresce também a uma taxa menor que o PIB. Isso tende, normalmente, a desacelerar o crescimento do próprio PIB, da arrecadação e, dado o RFS, mais ainda do gasto público. A exceção seria o gasto privado (incluindo exportações líquidas) crescer a uma taxa 64% superior à despesa pública, fenômeno que, após 1930, jamais foi registrado por um prazo longo. 

Contradições da política fiscal

Uma notável contradição do RFS é que o aumento considerável do gasto privado ser necessário para a sustentação da política não significa que seja viável. Dada a importância do multiplicador fiscal no Brasil, o limite de 2,5% do crescimento do gasto público pode restringir, no futuro, o crescimento do gasto privado e da economia brasileira a algo próximo ou inferior a essa taxa. Como mostrou Guilherme Haluska,8 entre 2004 e 2019 os gastos autônomos públicos contribuíram cerca de duas vezes mais para o crescimento do PIB do que o gasto autônomo privado e do que o setor externo. Sem a fonte do gasto público, o crescimento da renda e do emprego pode ficar muito aquém das expectativas que levaram uma apertada maioria dos brasileiros a preferir a democracia de Lula ao neofascismo de Bolsonaro e, eventualmente, motivar uma punição ao campo democrático nas eleições de 2026. 

Outra contradição é que o RFS limita o crescimento das despesas públicas a 70% do crescimento das receitas, mas a Constituição determina que o gasto em educação, saúde e emendas parlamentares cresçam a um ritmo de 100% das receitas. Ainda, a política de valorização real do salário mínimo o vincula ao crescimento do PIB, o que eleva o gasto previdenciário, fortemente indexado ao salário mínimo, também acima de 70% do crescimento das receitas. Como educação, saúde e previdência são as principais rubricas do orçamento federal, seu crescimento a uma taxa 30 pontos percentuais maior do que aquele do conjunto das despesas tende necessariamente a esmagar todas as outras, como aquelas destinadas a projetos de infraestrutura, habitação popular, ao Bolsa Família, à transição ecológica e à ciência e tecnologia, por exemplo.

Isso ocorrerá em já 2024, primeiro ano de vigência do RFS. De acordo com o RFS, o orçamento de 2024 permitiria crescimento de 1,7% do gasto primário. No entanto, uma vez que a meta de resultado fiscal primário é zero, o crescimento de 1,7% depende de um crescimento irrealista da tributação capaz de zerar o déficit fiscal. O problema é que, mesmo que a arrecadação aumente muito e o gasto total possa crescer 1,7%, as despesas não protegidas por pisos legais – educação, saúde, previdência e emendas parlamentares – deverão ser cortadas em termos reais. O cenário é insustentável a médio prazo: ou alargam-se os limites do novo regime fiscal, ou reformam-se os pisos constitucionais referentes a direitos sociais como educação, saúde e previdência públicas. Não é difícil imaginar qual é a opção preferida pela maioria dos eleitores e pela base social do PT. Ainda que a hipótese mais extrema não se dê ainda este ano, a redução brusca diante do crescimento do gasto público de 9% em 2023 pode ter um impacto negativo sobre a taxa de crescimento do PIB a partir de 2024 – jogando gasolina no fogo da desaceleração em um ano de eleições municipais –, o que traria consequências econômicas e políticas até o final do governo. 

O risco assumido por Haddad com a meta de déficit zero para 2024 é alto, mas o Ministro argumenta que, sem esse compromisso, a pressão política sobre o Congresso Nacional para a aprovação das medidas de elevação da arrecadação tributária seria reduzida. Há três problemas nessa aposta. 

O primeiro é que pode existir um outro cálculo, mais maquiavélico, feito alguns parlamentares. O descumprimento de metas fiscais é negativo para o governo, mas eleva o poder de barganha do Congresso perante o Executivo, uma vez que a política fiscal é matéria criminal – Rousseff, por exemplo, sofreu impeachment sob a premissa de ter cometido um pequeno delito fiscal. Haddad planejava enviar em abril deste ano sua proposta de reforma tributária progressiva, medida necessária para o alcance de suas metas fiscais ambiciosas, mas a resistência política parece ter levado ao adiamento. Como a arrecadação não vem mostrando o desempenho espetacular esperado, o que o Ministro anunciou em abril foi um recuo no grau de ambição das metas de superávit fiscal primário até 2026. O novo projeto ainda se compromete com a obtenção de superávits primários, mas em escala menor. Isso indica que o governo reage também à pressão de sua base, e não apenas à pressão do mercado. 

O segundo problema é que o PT parece desconfiar que Haddad, seja por convicção ideológica, seja porque quer pilotar em 2030 uma frente ampla majoritariamente de centro-direita, não adere a contragosto ao austericídio de um Congresso neoliberal. A confiança mútua será testada caso se insista na revogação dos pisos constitucionais para gastos com saúde e educação (uma ideia já levantada pelo Secretário do Tesouro do Ministério da Fazenda), o que levaria a uma maior resistência do PT à ideia de Haddad como futura liderança partidária.

O terceiro problema é que, caso a aposta de Haddad no crescimento puxado pelo mercado fracasse, é pouco plausível que Lula aceite morrer, junto com seu Ministro, abraçando os dogmas do neoliberalismo. Não é improvável que Lula exija uma reforma do RFS para poder gastar o suficiente para assegurar o crescimento da renda e do emprego e atender às demandas por gasto social de seus eleitores. Haddad acompanharia Lula na meia-volta ou continuaria preso ao neoliberalismo e às pressões do mercado financeiro? Não há como prever. O que se pode sugerir é que a luta por justiça social contra a austeridade é o principal fator determinante do destino do governo Lula e, talvez, da própria democracia brasileira.  

  1. Haluska, G. (2023). A economia brasileira no século XXI: uma análise a partir do modelo do Supermultiplicador Sraffiano. Economia e Sociedade, 32, 297-332.

  2. Tooze, Adam (2021) Shutdown: How Covid Shook the World’s Economy. Viking. Ver capítulos 6-7.

  3. “Dems in both Houses voted unanimously for Biden’s $1.9 trillion Covid relief bill, which contains several items on the progressive-populist wish-list… it had the support of Biden’s economic advisers who… represent at least a partial break from the Goldman-Sachs alums who ran the Treasury Dept for decades and brought us financialization… they have at least temporarily renounced austerity logic and prioritized full employment over low inflation.”, notou Nancy Fraser.

  4. Cordes, T., Kinda, T., Muthoora, P., & Weber, A. (2015). Expenditure rules: effective tools for sound fiscal policy? Washington DC: International Monetary Fund, p. 15-6.

  5. Ver: Perotti, R. (2012). The “austerity myth”: gain without pain?. In Fiscal policy after the financial crisis (pp. 307-354). University of Chicago Press; Fatás, A., & Summers, L. H. (2018) (2018). The permanent effects of fiscal consolidations. Journal of International Economics, 112, 238-250; e Breuer, C. (2019). Expansionary austerity and reverse causality: A critique of the conventional approach. Institute for New Economic Thinking Working Paper Series, (98)

  6. Bachrach, P., & Baratz, M. S. (1963). Decisions and nondecisions: An analytical framework. American political science review, 57(3), 632-642.

  7. Bastos, P. P. Z. (2023). Não existe alternativa? Considerações sobre o impacto econômico e a economia política do novo arcabouço fiscal (“Regime Fiscal Sustentável”). Revista NECAT-Revista do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense, 12(23), 26-46.

  8. Haluska, G. (2023). A economia brasileira no século XXI: uma análise a partir do modelo do Supermultiplicador Sraffiano. Economia e Sociedade, 32, 297-332.


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