25 de abril de 2024

Análises

Desenrola Brasil

A gestão da dívida como política social

Inovando em seu terceiro mandato, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva lança um ambicioso programa de renegociação de dívidas com foco na população inadimplente, que cresceu de forma exponencial nos anos recentes, no lastro de uma expansão sem precedentes do mercado de crédito no Brasil. O Programa Desenrola Brasil, promessa de campanha, surge como uma boia de salvação para dezenas de milhões de brasileiros que acumularam atrasos de pagamentos, alimentando níveis crescentes de inadimplência. Negativados, perderam acesso ao consumo financiado via endividamento junto ao setor financeiro bem como através do crediário, forma popular de parcelamento de compras no grande varejo. Se o crédito no Brasil é caro—muito caro—em particular o crédito de consumo, a exclusão do mercado de crédito onde se podem financiar necessidades básicas a que os salários não alcançam é uma ameaça à própria reprodução social das classes trabalhadoras.

Esse quadro insólito, em que o endividamento garante a sobrevivência numa economia de mercado, é recente no Brasil. A bancarização em massa das classes populares e sua “inclusão financeira” sinalizam a generalização da expropriação financeira que arrasta os setores populares para dentro do sistema financeiro, tornando-os peça-chave na criação de riqueza financeira, a contrapartida da dívida de que se apropriam as elites.

Não surpreende, portanto, o aumento acelerado e contínuo do número de pessoas endividadas e do grau de comprometimento da renda domiciliar disponível com o pagamento de dívidas. Segundo o Banco Central do Brasil,1 ao final de 2020, havia cerca de 85 milhões de pessoas endividadas junto ao setor financeiro, algo como 46% da população adulta, sendo pouco mais de 8 milhões designadas como “endividados de risco”.2 A inadimplência alcançava 8,9 milhões de pessoas.

Em pouco mais de dois anos, contudo, essa fotografia se deteriorou sensivelmente no embalo da crise da Covid-19. Enquanto o número de tomadores de crédito continuou em expansão em ritmo esperado, ultrapassando a cifra dos 105 milhões de pessoas, o número de endividados de risco praticamente dobrou e atingiu 15,1 milhões em março de 2023,3 em razão da explosão da inadimplência, que atinge algumas dezenas de milhões de pessoas, carregando uma dívida no valor de R$ 350 bilhões (US$ 70 bilhões).4 Os pobres por dívida,5 aqueles que caem abaixo da linha de pobreza oficial por comprometerem parcela elevada de sua renda com pagamento de empréstimos, já fazem parte do cenário a cada dia mais complexo de enfrentamento das desigualdades sociais.

Quaisquer que sejam as cifras e os montantes estimados, claro está que se tornou urgente não apenas medir e auscultar o universo dos endividados, e os débitos inadimplidos ou em atraso, mas formular alternativas para dirimir o bloqueio que tal realidade traz ao reaquecimento do mercado doméstico, ao inibir o consumo das famílias trabalhadoras. Daí o lançamento, em julho de 2023, de um programa inédito por parte do governo federal, o Desenrola Brasil, cuja finalidade consiste em oferecer condições para que as pessoas negativadas possam renegociar suas dívidas e, assim, reduzir seu grau de vulnerabilidade financeira, restabelecendo a capacidade de endividamento, necessária à retomada de um novo ciclo de expansão financeira. Isso porque o próprio Banco Central6 reconheceu que a elevada alavancagem das famílias e as perdas crescentes que tal alavancagem impôs ao setor financeiro acabaram provocando não apenas retração da oferta de crédito às famílias, mas colocaram em xeque a rentabilidade dos bancos. Isso se explica pelo fato de 65% do estoque de crédito estar nas mãos das famílias e por serem elas responsáveis pela maior geração de juros de crédito para o setor bancário (73%), juros esses que incidem majoritariamente sobre crédito de consumo.

O objetivo deste artigo é triplo. Primeiramente, contextualizar como tem lugar o processo de endividamento crônico das famílias brasileiras. Em segundo lugar, situar e mapear o perfil de iniciativas pretéritas que elegeram a dívida como objeto de tratamento por parte do poder público, o que ocorreu em grande escala durante a pandemia do novo coronavírus. Finalmente, refletir sobre o que muda com a gestão da dívida das famílias se tornando dimensão explícita e institucionalizada da política pública, com a criação do Programa Desenrola Brasil.

Uma análise dos ciclos financeiros: da financeirização de massa (1995–2015) à crise de rentabilidade (2016–2021)

O processo de financeirização no Brasil se inicia após o fim do “milagre econômico” (1967–1973) e pode ser dividido em duas fases. A primeira, conhecida como “financeirização elitizada”, ocorreu de 1981 a 1994 e foi marcada pelo contexto da crise da dívida externa e inflação crescente. Nessa fase, o sistema bancário implementou mecanismos de indexação que garantiram a obtenção de ganhos financeiros para uma pequena clientela privilegiada. Nesses anos, em contraste com o crescimento das rendas provindas de títulos financeiros, observa-se uma estagnação dos investimentos produtivos.

A segunda fase, denominada “financeirização de massa”, vai de 1995 a 2015.7 Nesse período, observa-se a redução da inflação e das taxas de juros reais, acompanhadas por um notável aumento nas operações de crédito. No âmbito institucional, essa etapa é marcada por um regime que concilia a ampliação das políticas sociais—em particular transferências monetárias—como vetor de expansão da acumulação financeirizada.8 Durante estes anos, o país transita de uma fase de estagnação dos investimentos produtivos, característica da primeira fase, para a consolidação de um processo de desindustrialização e baixo crescimento econômico.

Gráfico 1

A forte expansão do mercado de crédito na segunda fase é visualizada no Gráfico 1, que coleta dados de uma cesta representativa do setor financeiro-bancário para o período de 2000 e 2023.9 O gráfico exibe as variáveis: lucro líquido (linha lilás), receita de crédito (destacadas pela linha vermelha), e receita de Títulos de Valores Mobiliário (TVM, linha azul),10 que são as receitas associadas aos títulos da dívida pública. As receitas de crédito e de títulos de valores mobiliários são as duas principais receitas do setor. Como ilustrado, o lucro líquido do setor continua a crescer de forma quase ininterrupta; e, diferentemente da primeira fase, na qual o mercado de títulos da dívida era central, destaca-se a cada vez maior importância das receitas provenientes das operações no mercado de crédito.

Em relação à tendência das duas receitas, os dados sustentam a periodização que delimita a “financeirização de massa” de 1995 a 2015. O ano de 2015 marcou o esgotamento dos impulsionadores do crescimento da rentabilidade do setor. A partir do ano seguinte, em meio a uma profunda recessão, as receitas começaram a cair. Com base nesse cenário, esta seção propõe uma análise a partir da ótica dos ciclos financeiros. Para isso, discutiremos dois pontos. O primeiro deles destaca que a queda nas duas principais receitas bancárias já aparecia como tendência antes mesmo da crise da Covid-19 e, por essa razão, podemos considerá-la como tendo uma dimensão mais estrutural. O segundo ponto chama atenção para o papel do Estado na recomposição da rentabilidade do setor.

Analisar o período da crise de rentabilidade revela, outrossim, aspectos interessantes. Segundo Mader,11 diante do recuo das duas fontes de receita de 2016 até meados de 2021, a estratégia do setor bancário para puxar o crescimento do lucro líquido e o estabilizar (linha lilás) se apoia no aumento da margem aplicada nas operações de crédito, ou seja, do spread. O spread é importante, pois representa o montante efetivamente retido pelo setor bancário nas operações de crédito (calculado pela diferença entre a receita de crédito e os custos de captação). A receita do spread opera como um canal rentista. Os bancos reagiram à queda da rentabilidade utilizando o seu poder de monopólio no mercado de crédito, aumentando a margem cobrada e transferindo o ônus da crise para os tomadores de crédito.

Lavinas et al. (2022)12 constatam que esse ônus recaiu, principalmente, sobre as famílias. Ao analisar o saldo de crédito a empresas não financeiras e famílias, os autores identificam que, a partir de final de 2016, pela primeira vez na série histórica o saldo de crédito às famílias superou o das empresas não financeiras, prevalecendo de forma contínua e ininterrupta até o presente.13 E são elas, portanto, e, em particular as de menor renda, que arcam com juros proibitivos.

Gráfico 2

O gráfico 2 mostra a evolução recente das taxas de juros médias cobradas pelo setor financeiro, cotejando a taxa Selic e o IPCA. Destaca a centralidade da Selic para compreender como se dá a recuperação das receitas do setor bancário e o aumento do endividamento. Fica claro que, a partir de 2021, acompanhando a alta acelerada da Selic, as taxas de juros praticadas nas modalidades de crédito às famílias registram um pulo expressivo. O crédito consignado, com desconto automático em folha, de menor risco, sobe na média de 19,98% ao ano em maio de 2020 para mais de 25,81% em maio de 2023, enquanto o crédito recursos livres agrupando todas as modalidades de empréstimos às famílias passa de 25% para 38,22% ao ano em média no mesmo período. No mês anterior ao lançamento do Programa Desenrola (maio de 2023), com a inflação em torno de 4% a.a., a taxa de juros do saldo de crédito às famílias situa-se quase 7 pontos percentuais acima daquela praticada no saldo total de crédito.

Pelo lado da oferta de crédito, a partir de 2012, 90% das novas concessões de crédito dizem respeito a crédito não-imobiliário (Banco Central, 2022),14 logo, crédito de consumo, que não serve à acumulação de ativos numa estratégia de prevenção de riscos.

A taxa Selic também é uma variável crucial para compreender a expansão do mercado de crédito brasileiro. Essa relação é evidenciada no Gráfico 3, em que a razão entre a receita de Títulos de Valores Mobiliários (TVM) e a de crédito (representada pela linha vermelha) apresenta uma correlação negativa com a taxa Selic nominal (linha pontilhada). Essa correlação indica que o setor bancário expandiu suas operações de crédito de acordo com as mudanças da política monetária: quanto mais a Selic diminuía, mais o setor passou a depender das receitas de crédito.

Segundo o eixo plotado à direita no Gráfico 3, o valor mais baixo dessa relação foi de mais de 0.9 em 2002, quando a taxa Selic nominal estava, em média, acima de 20% ao ano. O valor de 1 indica que as duas rendas têm o mesmo peso para o setor bancário brasileiro. Já o valor mais alto registrado foi 3.1 em dezembro de 2021, quando a Selic atingiu o seu mínimo histórico (2% ao ano), estando negativa em termos reais. Vale notar que, com a elevação da taxa Selic em 2022, a relação voltou ao patamar de 2004, atingindo o valor de 1.3.

Tal como demonstra o Gráfico 1, o ano de 2021 se destaca por reverter as tendências de declínio das duas receitas. Uma explicação bastante plausível, a partir da leitura combinada dos dois gráficos, é a de que a taxa Selic desempenhou papel crucial nessa reversão. Como amplamente conhecido, a política monetária brasileira se diferenciou de outros Bancos Centrais quando, a partir de 2021, na saída da crise da Covid-19, o BCB adotou prematuramente uma abordagem contracionista, que elevou a taxa Selic para 13,75% em agosto em 2022, recolocando o país no topo da lista das taxas de juros reais mais elevadas do mundo.15 Portanto, um segundo aspecto importante a ser sublinhado é que, em 2022, o Estado, por meio da taxa Selic, foi crucial para recompor a rentabilidade do setor financeiro-bancário.

Gráfico 3

Mais especificamente, ancorados no framework da coalizão de classe financeiro-rentista,16 é possível inferir que a tendência declinante das receitas faz com que a hegemonia financeira, na iminência de uma crise de rentabilidade, intensifique a predominância dos canais rentistas que operam no mercado de títulos da dívida, em prol da elevação da Selic. Isso ocorre porque se torna não apenas preferível, mas imperativo para o setor financeiro ter o Estado como devedor (mercado de títulos da dívida), ao invés de famílias e empresas (mercado de crédito). Essa necessidade surge devido ao fato de o Estado ser o único agente econômico sem restrições orçamentárias, ao contrário de famílias e empresas, que são agentes não emissores. Comparativamente, portanto, estes últimos não têm a capacidade de expandir e honrar o endividamento da mesma forma que o Estado.17

É nesse contexto de ciclo financeiro em fase contracionista, e com um Estado em seu formato “garantidor de receitas de última instância”, que nasce o Programa Desenrola, interpretado aqui como um dos pilares para inauguração de um novo ciclo expansionista financeiro.

Porém, antes de explicitar o contexto que leva à criação e implementação do Programa Desenrola Brasil, cabe examinar as mudanças provocadas pela crise da Covid-19 e como já então impactaram a relação dos devedores junto ao sistema financeiro.

Covid-19 e a crise social: quando a renegociação de dívidas em grande escala entra no radar

Durante a pandemia do novo coronavírus que levou à adoção de lockdowns e outras modalidades de isolamento social, foram adotadas medidas emergenciais voltadas para minorar o sofrimento das famílias e evitar que empresas viessem a encerrar definitivamente suas atividades, fechando as portas e demitindo massivamente a mão de obra. Desta feita, e ao contrário da grande crise financeira de 2008, prevaleceu o bailout às famílias no âmbito das iniciativas de enfrentamento da crise econômica, social e sanitária provocada pela Covid-19 em escala global. Assistiu-se, assim, em todas as latitudes, à implementação de diversos programas de garantia de renda e emprego, cuja característica comum foi assegurar transferências monetárias a parcelas significativas da população impossibilitada de trabalhar, em patamares superiores ao que era vigente no âmbito dos sistemas de proteção social de cada país.

O Brasil não escapou à regra e adotou programas ad hoc de grande impacto em meio à Covid-19, entre os quais: o auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade; o benefício emergencial; o benefício emergencial de manutenção de emprego e renda; e a concessão de financiamento para pagamento da folha salarial. Tais programas de garantia de renda consumiram 63,5% do “orçamento de guerra” efetivamente gasto em 2020.1819

Os generosos pacotes de alívio fiscal durante a pandemia desnudaram a insensatez da ortodoxia fiscal e monetária que anteriormente restringia o gasto público, reduzindo grandemente o poder redistributivo e de minoração de riscos das políticas sociais. Após quatro décadas de neoliberalismo, tornou-se claro que as políticas de austeridade desmontaram a provisão de serviços públicos, fomentando a privatização e a financeirização. Uma das evidências da dominância financeira na esfera da reprodução social, expressa no endividamento crônico, surge justamente com a adoção de outro conjunto de medidas por ocasião da crise da Covid-19: a suspensão temporária do pagamento de distintas modalidades de dívidas assumidas pelas famílias, notadamente na década anterior à explosão da pandemia. Isso porque a dívida privada das famílias havia alcançado níveis alarmantes, comprometendo parcela considerável da renda disponível do domicílio. Com a violenta queda dos rendimentos em virtude da interrupção da atividade econômica, as taxas de inadimplência já em alta constante corriam o risco de se alastrar e agravar ainda mais as condições de sobrevivência dos grupos fortemente endividados, além de provocar instabilidade no sistema financeiro.

Estados Unidos, Reino Unido, Argentina, Espanha, Itália e muitos outros países adotaram temporariamente medidas semelhantes, combinando generosas transferências monetárias com suspensão temporária do reembolso de dívidas e das sanções até então aplicadas aos inadimplentes ou com contas em atraso. Mais uma vez o Brasil não foi exceção. Em paralelo à implementação do Auxílio Emergencial, que contemplou 67 milhões de pessoas por oito meses, algumas dívidas foram suspensas, caso da dívida dos estudantes com o FIES,20 por exemplo. Porém, a lei aprovada pelo Congresso Nacional em julho de 2020 restringia tal favorecimento apenas a quem estava em dia com seus pagamentos ou com atraso inferior a 180 dias.21 Ademais, também oferecia descontos expressivos para quem aceitasse renegociar sua dívida em meio à vigência da lei. Entretanto, nenhum dispositivo federal foi aprovado de modo a suspender o pagamento de dívidas com hipotecas, aluguel ou pagamento de contas correntes.

Ora, o que se viu em meio à Covid-19, tanto nos Estados Unidos,22 quanto no Brasil, foi uma surpreendente e acentuada redução dos níveis de default e pagamentos em atraso como efeito dos pacotes de estímulo fiscal adotados, que garantiram alta liquidez às famílias, ao mesmo tempo em que, através de medidas de suspensão de dívidas e outros instrumentos administrativos afins, estimularam uma onda de renegociação de dívidas com manifesta liderança dos bancos privados.23

No Brasil, “as famílias reduziram valores em inadimplência e atrasados, ao mesmo tempo que o saldo de crédito aumentou, juntamente com o prazo médio das carteiras. Houve, desta forma, um adensamento da dependência em relação ao mercado financeiro: por um lado, novos empréstimos foram concedidos, renovando os laços que unem estes dois agentes; por outro, estes serão quitados em um tempo maior, tornando esta relação de dependência ainda mais duradoura e estável”.24

Contudo, na comparação entre os Estados Unidos e o Brasil, observa-se um padrão diferenciado de intervenção do Estado no estabelecimento de um marco regulatório dos processos de suspensão e renegociação de dívidas. No Brasil, esse processo de recomposição da capacidade de endividamento das famílias se deu à margem de uma ação coordenada do Estado, ou seja, teve lugar de forma espontânea, como iniciativa do próprio setor bancário. Assim, famílias e trabalhadores mais vulneráveis,25 contemplados pelo programa de transferência de renda emergencial, passam a buscar os bancos para renegociar suas dívidas. Os bancos e outras instituições financeiras movimentaram cerca de 60 bilhões de Reais (US$ 12 bilhões) com programas de prorrogação de dívidas entre março e 31 de dezembro de 2020, sem renegociação das taxas de juros que, à época, como se sabe, estavam em queda livre.26

No que tange o reembolso de empréstimos hipotecários, o Conselho Monetário Nacional recomendou à época que as instituições financeiras suspendessem as prestações de financiamento imobiliário até 120 dias, estendidos posteriormente a 180 dias. Isso ocorreu entre aqueles devedores adimplentes ou com no máximo duas parcelas de pagamento em atraso (no caso de mutuários da Caixa Econômica Federal). Não houve perdão de juros, que seguiram incidindo sobre as demais parcelas. Já para os mutuários do programa Minha Casa Minha Vida,27 cuja faixa 1 é financiada em 90% por recursos públicos,28 fez-se necessário aprovar uma lei específica para suspender tais prestações, até porque em dezembro de 2020 a inadimplência acima de 360 dias já alcançava 33,2% dos contratos.29 Tal projeto de lei (795/2020) passou na Câmara dos Deputados, porém encontra-se até hoje em tramitação no Senado, sendo que sua urgência em virtude da crise provocada pela pandemia já perdeu sentido. Essa matéria jamais foi apreciada no Senado, mas o aumento do percentual de inadimplentes com atrasos acima de um ano subiu regularmente desde então, alcançando um patamar recorde em dezembro de 2022: 45% dos mutuários da faixa 1 do programa.30

O reenquadramento das dívidas individuais se deu, portanto, no caso a caso, o que supõe que possa não ter sido plenamente favorável ao devedor levando a uma redução do principal e da taxa de juros. Estima-se que, em contexto de elevadíssimo desemprego e patamares crescentes de insegurança alimentar grave prevalecentes na crise da Covid-19, a opção da população detentora de “dívidas de sobrevivência”3132 tenha sido assegurar prioritariamente meios de seguir endividada para fazer frente às necessidades mais imediatas e não tombar na exclusão. Isso indica ter-se tornado a “inclusão financeira”, para um grande número de pessoas, a base material incontornável de sua inclusão social, ainda que mediante elevada vulnerabilidade financeira.

Ora, em 2023, a renegociação de dívidas reaparece, desta vez elevada à condição de política pública federal, com desenho formulado pelo Ministério da Fazenda e lançada com pompa e circunstância, como um dos marcos fundadores da administração Lula 3.

Trata-se da repescagem de uma iniciativa pontual bem-sucedida, implementada pelos bancos durante a Covid-19, e agora novamente acionada, desta feita com participação do Estado? Ou trata-se de uma estratégia nova e reestruturante no âmbito do espectro de mecanismos de regulação do mercado de crédito para lastrear novo ciclo expansionista financeiro e que pode ganhar status de política pública?

O Programa Desenrola Brasil: foco na inadimplência, não no endividamento

Reeleito para governar o país a partir de 2023, o PT apresentou o projeto de lei Desenrola Brasil, que foi aprovado em setembro daquele ano na Câmara dos Deputados com ampla maioria. Seu objetivo principal consiste em abrir um canal de renegociação de dívidas entre devedores inadimplentes e credores institucionais (bancos, financeiras, provedores de serviços públicos), sob tutela do Estado, através da oferta de garantias.

De início, o governo estimava atender até 32 milhões de pessoas,33 restringindo-se àquelas com dívidas inadimplidas efetuadas entre janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022 e cadastradas nos birôs de crédito. Dado o perfil bastante heterogêneo dos devedores inadimplentes, o programa foi estruturado em duas faixas. A Faixa 1 concentra 21 milhões de inadimplentes, aqueles com renda de até dois salários-mínimos mensais—que predominam entre os tomadores de crédito (66%)—rendimento equivalente a R$ 2.824 (US$ 656). Já a Faixa 2 engloba aqueles com ganhos mensais entre 2 salários-mínimos e R$ 20.000 (até US$ 4,036,00), o que corresponde a um universo potencial de 11 milhões de inadimplentes.

Em relação ao arcabouço legal, na Faixa 1, o Estado assume uma parcela significativa do risco: no caso de reincidência da inadimplência, garante aos bancos o pagamento do principal (estipulado após a renegociação da dívida), corrigido pela taxa Selic. No âmbito da Faixa 2, o risco é inteiramente suportado pelas instituições financeiras. Ou seja, em contraste com a Faixa 1, o incentivo à renegociação da Faixa 2 é de natureza meramente regulatória: dívidas renegociadas geram “crédito presumido”, reduzindo o capital mínimo requerido nas exposições dos bancos em seus ativos, proporcionando maior liquidez. A renegociação da Faixa 2 teve início em julho de 2023. Já a faixa 1 começou a ser atendida em setembro de 2023.

Na Faixa 1, a renegociação ocorre por meio da Plataforma Digital Desenrola Brasil, acessada pelo portal do governo: gov.br. Essa plataforma foi desenvolvida pela empresa PdTec, ligada à B3, com o intuito de consolidar dívidas e estreitar o relacionamento entre credores e devedores. Essa empresa tem know how na área de cobranças digitais, atuando na recuperação de créditos inadimplentes por meio de intimações e protesto eletrônicos. Na plataforma, cujo acesso é viabilizado em site do governo, as empresas credoras participam de um leilão, oferecendo descontos sobre o valor das dívidas. Os parâmetros que determinam o montante dos descontos são definidos pelos credores no caso a caso, sem regra geral. O passivo de dívidas inadimplidas foi estimado inicialmente em R$ 150 bilhões (US$ 30 bilhões). Segundo o Ministério da Fazenda, os leilões organizados pelos credores acabaram promovendo um desconto expressivo, da ordem de R$ 126 bilhões (US$ 25,2 bilhões), reduzindo a dívida inadimplida a ser renegociada a apenas R$ 24 bilhões (aproximadamente US$ 5 bilhões). O desconto médio, previsto para ser de 60%, acabou chegando a 83%.

Em relação às dívidas que podem ser renegociadas, o programa abrange débitos provenientes de empréstimos consignados e não-consignados, englobando também dívidas não bancárias. As dívidas que não estão aptas para renegociação são aquelas que se colocam com garantia real ou que estão vinculadas a crédito rural, financiamento de imóveis e operações envolvendo funding ou risco de terceiros. Em suma, o programa prioriza empréstimos “pessoa física recursos livres” (crédito de consumo).

Na Faixa 1, o Estado concede uma garantia exclusivamente às dívidas com valores de negativação que não ultrapassem a marca de R$ 5.000 (US$ 1,000), totalizando cerca de R$ 13 bilhões (US$ 2,6 bilhões). Assim, estima-se que as principais dívidas renegociadas sejam as relacionadas a contas de consumo, como água, luz, telefone, varejo e obrigações bancárias. As regras proporcionam a opção de pagamento à vista ou por financiamento bancário, sem a necessidade de entrada. Os juros na Faixa 1 correspondem a, no máximo, 1,99% ao mês, o equivalente a uma taxa anual de 26,68% ao ano, com a primeira parcela devida após, no máximo, 60 dias. A parcela mínima de pagamento será de R$ 50,00 (US$ 10) e o prazo de pagamento é de 2 a 60 meses, com parcelas decrescentes. Em termos reais, o teto para cobrança de juros é significativamente alto, o que encarece a nova dívida, já que o IPCA ficou em 4,68% em 2023. Em 2024, a previsão é de que a inflação seja ainda menor, de 3,25%.

A garantia oferecida pelo Tesouro Nacional é feita a partir do Fundo de Garantia de Operações (FGO), um programa lançado originalmente em 2009, no contexto da grande crise financeira internacional. Em termos de estrutura legal, portanto, o FGO do Desenrola Brasil não é novidade, mas renova ao ampliar o arcabouço existente de pessoas jurídicas para pessoas físicas. O governo disponibilizou de início R$ 87,5 bilhões (US$ 17,50 bilhões) ao Tesouro Nacional para compor o FGO da Faixa 1. 

Já na Faixa 2, cada instituição financeira detém a autonomia para renegociar dívidas através de seus próprios canais ou em conjunto com seus parceiros, em uma abordagem similar àquela adotada durante a crise da Covid-19, entre 2020 e 2021. Para fazer parte desse processo, indivíduos com dívidas passíveis de renegociação na Faixa 2 deveriam procurar diretamente a instituição financeira com a qual possuem débitos pendentes.

Ao contrário da Faixa 1, na Faixa 2 não existe Fundo de Garantia de Operações (FGO) nem plataforma digital, e o pagamento da dívida deveria ser feito à vista, obtendo descontos. Porém, com a lentidão do crescimento da demanda, o governo resolveu rever as regras da Faixa 2 e permitiu o parcelamento da dívida inadimplida. São oferecidos estímulos regulatórios para incentivar o aumento da oferta de crédito por parte das instituições financeiras. Esse incentivo se materializa na geração de crédito presumido. O estímulo para o banco é ter o valor da renegociação como crédito presumido com o governo. “Se o desconto para a pessoa for de R$ 7.000 (US$ 1,400), o crédito [presumido] para o banco será de R$ 7.000 (US$ 1,400)”, disse o Ministro Fernando Haddad.34 Portanto, ao renegociarem dívidas, os bancos têm um “crédito presumido”, o que significa que precisam ter menos dinheiro imobilizado no caixa, dispondo de mais recursos para investimento.

Em suma, sintetizando as principais diferenças entre a Faixa 1 e 2 temos: na Faixa 1, existe um apoio fiscal, qual seja o Fundo de Garantia de Operações (FGO), que recebe aporte do Tesouro Nacional para cobrir integralmente o principal, corrigido pela Selic, em caso de inadimplência por ocasião da dívida inicial renegociada. A Faixa 2, por sua vez, estimula as renegociações via incentivo contábil, permitindo que os bancos alterem o montante de capital mínimo requerido nas exposições de risco: as dívidas renegociadas geram crédito presumido, reduzindo o montante total de imobilização do capital.

Com o programa em marcha, o governo federal resolveu estender o escopo de atuação do Desenrola. Passa a incluir como público-alvo tanto os Microempreendedores Individuais (MEI) como os estudantes financiados pelo FIES em situação de default. No caso do Desenrola FIES, contratos celebrados até 2017 e inadimplentes na data de 30 de junho de 2023 serão beneficiados, devendo favorecer cerca de 1,2 milhão de estudantes. O prazo nesse caso vai até maio de 2024. E os canais para renegociação são o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e o Ministério da Educação (FNDE), indicando que cabe exclusivamente ao governo, credor do empréstimo estudantil, definir as regras de renegociação, sem participação do sistema financeiro privado. Foram criados três perfis distintos de refinanciamento da dívida, que poderá ser parcelada (de 15 a 150 meses), sendo contemplada com distintos percentuais de desconto do principal (variando entre 77% e 99%) ou dos encargos (100%), a depender da condição do devedor, se cadastrado no CadÚnico e/ou ex-beneficiário do Auxílio Emergencial, bem como do tempo de atraso acumulado.35

Destando nós

O Ministério da Fazenda reconheceu em fins de 2023 que as metas alcançadas pelo Programa Desenrola ficaram aquém do planejado, embora cerca de 11 milhões de pessoas (Faixas 1 e 2) tenham sido beneficiadas (contra estimativas de mais de 32 milhões de negativados potenciais). Somente 1 milhão de pessoas (5% do público-alvo) da Faixa 1 foram capazes de renegociar e parcelar dívidas num montante de R$ 5 bilhões (US$ 1 bilhão), dívidas essas majoritariamente contraídas junto a bancos e financiadoras. Já em se tratando da Faixa 2, 2,7 milhões de pessoas saldaram dívidas de R$ 24 bilhões (US$ 4,8 bilhões) mediante negociações diretas com as instituições financeiras. Foram renegociados até fins de 2023 R$ 29 bilhões (quase US$ 6 bilhões). O mesmo ocorreu com o Desenrola FIES, em que apenas 14% dos estudantes em default haviam renegociado suas dívidas até 31 de dezembro de 2023.36

Porém, o maior número de desnegativados via Desenrola—7 milhões—estavam no cadastro de inadimplentes com dívidas irrisórias, inferiores a R$ 100 (US$ 20), que poderiam, inclusive, ter sido objeto de perdão. E não o foram porque seria incompatível com a moral da dívida: dívida é para ser paga qualquer que seja seu montante e as condições – abusivas ou não – que a materializaram. A título de ilustração, vale indicar que a renegociação da dívida individual de R$ 100 (US$ 20) de 7 milhões de inadimplentes, se mantida integralmente sem desconto, corresponderia a, no máximo, R$ 700 milhões (US$140 milhões), o que representa 0,2% da receita total de crédito obtida pelos bancos em 2022, graças a empréstimos, segundo dados contabilizados pelo Banco Central.

Embora seja prematuro traçar uma leitura definitiva de um programa ainda em desenvolvimento e sujeito a ajustes, e que teve sua vigência estendida por duas vezes, algumas considerações parecem dignas de nota. A começar pelas razões que parecem justificar de fato o lançamento de uma política pública pelo governo federal para enxugar a inadimplência.

O crédito às famílias aparece como variável sensível e estratégica na retomada do crescimento sob a gestão Lula 3, em especial após aprovação pelo Congresso em 2023 do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que consiste em novas regras no que tange a progressão do gasto público. Resumidamente, a despesa pública primária (excluído o pagamento dos juros) só pode crescer até o limite de 70% da arrecadação tributária do ano anterior. Caso esta cresça acima de 3,57% a.a., um garrote suplementar é imposto ao gasto público, que ficará limitado a um aumento real de no máximo 2.5% a.a. Embora saúde, educação e despesas previdenciárias tenham ficado por ora fora do NAF, em respeito à Constituição, outras despesas sociais serão fortemente reprimidas, caso contrário o NAF será inviabilizado.37 Como aponta Bastos, se tal regra for descumprida, “a punição prevista é o crescimento das despesas no ano seguinte a uma taxa 50% inferior à taxa de crescimento das receitas”.38 Nesse quadro de austeridade fiscal em que se joga nos braços do capital privado a alavanca do crescimento, o consumo das famílias passa a depender ainda mais fortemente do seu financiamento via acesso ao crédito.

Além do NAF que impõe freios à expansão do gasto público, a Nova Indústria Brasil (NIB), política lançada em janeiro de 2024 para reverter o processo de reprimarização da economia, fomentando um ciclo de reindustrialização que eleve os salários com base em ganhos de produtividade, demanda tempo para surtir efeitos positivos. Enquanto isso, o endividamento em massa das famílias permanece uma alavanca indispensável capaz de compensar a retração do Estado e preencher a transição esperada para um ciclo virtuoso de crescimento com salários reais em alta. Não sendo o investimento público que vai puxar o consumo das famílias, elas serão tributárias mais uma vez do acesso ao mercado de crédito, que deve ser franqueado, sedimentando, espera-se, o otimismo dos investidores privados.

Logo, limpar um quadro de altíssima inadimplência é tarefa para ontem. Inclusive porque, se como afirma o Ministro da Fazenda, a retomada do crescimento se fará privilegiando parcerias público-privadas (PPPs), cujo escopo só faz engrossar, é preciso reduzir o risco de que a inadimplência das famílias coloque em xeque o modelo de financiamento ao desenvolvimento que o governo vem desenhando.

Enxugar a inadimplência sem enfrentar o endividamento reflete de alguma maneira uma estratégia de de-risking, na medida em que garante que, via empréstimos, as famílias sejam capazes de quitar o pagamento de serviços cobrados pelos investidores privados, caso a renda familiar não cubra todas as necessidades. Eles são, na sua maioria, investidores institucionais, atuando na área de infraestrutura social e urbana, notadamente saúde, energia e saneamento. Nesses setores, o preço das tarifas ao consumidor tende a aumentar em termos reais para assegurar um “bom” retorno ao investimento privado. Isso, sem falar no novo marco regulatório à disposição do sistema financeiro para lastrear sem maiores incertezas um novo ciclo de expansão do mercado de crédito.

Constata-se que as causas da inadimplência não estão sendo enfrentadas. O Desenrola não veio oferecer mecanismos de proteção contra o endividamento crônico das famílias, que hoje soma, vis a vis o setor financeiro, aproximadamente R$ 3,5 trilhões (US$ 670 bilhões ou 32% do PIB). Parece baixo em termos comparativos, mas é bom lembrar que se trata de uma dívida contraída fundamentalmente com crédito de consumo de curto prazo, para financiar a reprodução social.

Vale recordar que, em 2021, diante de um quadro de deterioração do grau de endividamento das famílias, com taxas de inadimplência e atrasos batendo recordes sucessivos, foi aprovada a Lei do Superendividamento, instituindo um arcabouço legal extrajudicial para repactuação de dívidas. A Lei, fruto de forte mobilização das entidades de defesa do consumidor por vários anos, contempla o mesmo perfil de dívida coberto pelo Desenrola, isto é, débitos relacionados a consumo ou vinculados a instituições financeiras. Porém, tem como público-alvo a figura do superendividado, inadimplente ou não: toda pessoa de boa fé que acumulou dívidas para atender a suas necessidades básicas e que não dispõe de renda suficiente para quitá-las, sem comprometer seu mínimo existencial. A ressalva do mínimo existencial é uma inovação de peso pois se constitui em salvaguarda para o devedor ao definir que o pagamento mensal de dívidas não pode comprometer mais de 35% da renda do superendividado. A Lei ainda estipula critérios que as instituições financeiras devem observar, tal como prevenir práticas abusivas na concessão de crédito e cobrança de débitos que podem ameaçar grupos sociais vulneráveis.

Pelo visto, a Lei do Superendividamento não trouxe os resultados esperados, pois não foi suficiente para reverter, em dois anos, uma tendência que se alastra—viver altamente endividado—e que sugere ter sido necessário formular uma política pública mais ambiciosa, com foco distinto, desta vez para tratar da inadimplência.

É bem verdade que o governo federal marcou um gol ao inserir na Lei do Desenrola um teto ao reembolso das dívidas roladas no rotativo do cartão de crédito. Pela lei, o juro acumulado não pode exceder o valor do principal, pondo fim a percentuais delirantes que alcançavam taxas de juros acima de 430% a.a., como ao final de 2023. Este é um passo importante, que se inscreve na mesma lógica de estímulo ao endividamento das famílias como drive do rentismo, afastando, contudo, a ameaça da inadimplência essencial à estabilidade do sistema financeiro.

A ideia de tornar o Programa Desenrola permanente foi anunciada, oferecendo um quadro legal e recorrente de repactuação de dívidas inadimplidas para famílias de baixa renda. Isso sugeriria que também o FIES Desenrola deve ter vindo para ficar, considerando que nova expansão do FIES para financiar acesso ao ensino universitário privado e pago já está na mesa do Ministro da Educação. Sem falar na reivindicação do Ministro do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, que quer um Desenrola para chamar de seu. Ou seja, o Desenrola, nos formatos que vier a tomar, traduz a adoção de um arcabouço institucional e legal de gestão da dívida inédito, via política pública, articulado entre governo e instituições financeiras, para redefinir o papel da dívida das famílias na atual fase de reestruturação da economia brasileira, sob dominância financeira.

Sem decisão definitiva, o que se vê é o governo renovando seguidamente o prazo de vigência do programa, de 31 de dezembro de 2023 para 31 de março de 2024, e agora até 20 de maio deste ano, exclusivamente para o público da Faixa 1. Da mesma maneira, com o intuito de tornar mais efetiva a adesão ao Programa por parte dos negativados—que não corresponderam ao esperado—o governo flexibilizou o acesso à plataforma digital para renegociação de dívidas inadimplidas através de parcerias com os Correios, instituições financeiras e empresas como a Serasa. A Serasa Expedia é um conglomerado privado de recuperação de dívidas, consulta e concessão de crédito que se consolidou no mercado nacional emprestando a negativados excluídos do circuito financeiro a taxas de juros proibitivas, várias vezes superiores às já elevadas taxas praticadas pelos bancos. O balanço em termos de cobertura melhorou, mas mal atingiu 50% do público-alvo. Segundo os números mais recentes do Ministério da Fazenda, pelo Desenrola Brasil, cerca de 14 milhões de pessoas renegociaram R$ 50 bilhões em dívidas nas Faixas 1 e 2 até meados de março de 2024.

Resta explicar por que um programa ambicioso e tão propagandeado pelo governo não logrou atrair as parcelas mais pobres e inadimplentes da população—para quem o programa foi desenhado prioritariamente—e que se mostram algo indiferentes a permanecerem negativadas.

Dessa forma, perde força a retórica adotada pelo governo de que o Desenrola estaria reconfigurando os marcos da política social ao aliviar o fardo da dívida para inadimplentes. Qual o montante previamente pago por eles como serviço da dívida antes do default e quais os critérios adotados pelo setor financeiro para descontos e leilões? De que forma o governo atuou nessa regulação para que, mais além daquelas inadimplentes, as famílias brasileiras altamente endividadas, fora do cartão de crédito, pudessem escapar da espiral do refinanciamento persistente de dívidas para sobreviver? Essa parece ser uma estratégia funcional que dá sustentação ao consumo de massa via endividamento para fins de acumulação rentista. A novidade reside no fato de o Estado assumir a gestão da dívida como forma de enfrentamento das contradições que a própria acumulação rentista engendra, tornando-a doravante dimensão da política social.

A financeirização no Brasil avança articulando rentabilidade no mercado de títulos da dívida (quando necessário) e no de crédito. Uma realidade que tem um novo sócio, o Programa Desenrola Brasil. De uma sociedade sem crédito, o Brasil se tornou em 20 anos uma nação onde rolar dívidas faz parte da luta pela sobrevivência, traço que, pelo andar da carruagem, veio mesmo para ficar.

  1. Banco Central do Brasil. (2021, 2023). Relatório de Cidadania Financeira. Brasília.

  2. Para o Banco Central (Relatório de Cidadania Financeira, 2023), o risco se caracteriza quando 2 ou mais dos critérios a seguir estão presentes: i) inadimplência no pagamento de parcela do crédito; ii) comprometimento da renda mensal para pagamento dos serviços da dívida superior a 50%; iii) renda disponível mensal após pagamento do serviço da dívida abaixo da linha da pobreza; iv) quando prevalecem dívidas com cheque especial, crédito pessoal sem consignação, e crédito rotativo no cartão de crédito.

  3. Banco Central do Brasil. (2021, 2023). Relatório de Cidadania Financeira. Brasília.

  4. Serasa. 2023. Mapa da Inadimplência.  https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-e-renogociacao-de-dividas-no-brasil/

  5. Costa, Pedro Rubin. “Pobres por dívida: o endividamento familiar e as estatísticas de pobreza entre 2008 e 2018 – uma análise a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares”. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023. (Dissertação de Mestrado).

  6. Banco Central do Brasil. (2023). Relatório de Cidadania Financeira. Brasília.

  7. Lavinas, Lena; Araújo, E. & Bruno, M. 2019. Brazil: From Eliticized to Mass-Based Financialization. Revue de la Régulation, 25, Spring 2019.  https://journals.openedition.org/regulation/14491.

  8. Lavinas, Lena. 2017. The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox.  New York: Palgrave Macmillan.

  9. Metodologicamente, seguimos Mader (2023): coletamos dados contábeis do setor financeiro no sistema IF.Data, do Banco Central do Brasil: são demonstrativos de resultados e relatórios trimestrais dos quais calculamos os valores semestrais. A categoria empresarial denominada B1 foi selecionada para representar o setor, que inclui bancos múltiplos (com carteira comercial) e bancos comerciais. A categoria B1 representa aproximadamente 70% a 85% da receita líquida total do setor financeiro, dependendo do ano, e é analisada enquanto série contínua. É importante acrescentar que as séries históricas foram deflacionadas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

  10. Os TVM são títulos públicos e privados, sendo que os últimos são indexados à taxa Selic.

  11. Mader, B., 2023. The rentier behavior of the Brazilian banks. Brazilian Journal of Political Economy, 43, pp.893-913.

  12. Lavinas, Lena, Lucas Bressan and Pedro Rubin. 2022. Brasil: como as políticas de enfrentamento da pandemia inauguraram um novo ciclo de endividamento familiar. O Brasil no Inferno Global: capitalismo e democracia fora dos trilhos. Organizadores: André Singer, Cicero Araujo, Fernando Rugitsky, São Paulo: FFLCH/USP, pp. 249-292.

  13. No início de 2011, as concessões de crédito às famílias totalizavam 42%, ultrapassando, pela primeira vez, a partir de setembro de 2016, àquelas às empresas. Em meados de 2023, continuavam a predominar, representando 54% do total de novas concessões de crédito.

  14. Banco Central do Brasil, Séries Temporais, Brasília.

  15. https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/08/03/lider-em-ranking-mundial-de-juros-reais-brasil-tem-mais-do-dobro-da-taxa-do-2o-colocado.ghtml

  16. Ver Bresser-Pereira, L. C. 2018. Capitalismo financeiro-rentista. Estudos Avançados 32(92), 17 29. https://dx.doi.org/10.5935/0103-4014.20180003; Bresser-Pereira, L.C., Paula, L.F.D. and Bruno, M., 2020. Financialization, coalition of interests and interest rate in Brazil. Revue de la Régulation. Capitalisme, institutions, pouvoirs, (27); e Mader, 2023 op. cit.

  17. Torres Filho, E.T., 2023. Fundamentos de Economia Financeira Moderna: Moeda, Restrição de Sobrevivência, Instabilidade, Regulação e Poder. Recuperado de https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/2023/TD_IE_005_2023_TORRES%20FILHO.pdf

  18. Cabe recordar que foram alocados a esse “orçamento de guerra” excepcional, que escapava ao teto de gastos, 4,6% do PIB, tendo sido despendidos efetivamente R$ 524 bilhões para enfrentar a crise sanitária e econômica, dos quais R$ 322 bilhões diretamente com o Auxílio Emergencial (Bahia et al 2021)

  19. Bahia Ligia, Jamil Chade, Claudio S. Dedecca, José Maurício Domingues, Guilherme Leite Gonçalves, Monica Herz, Lena Lavinas, Carlos Ocké-Reis, Maria Elena Rodriguez Ortiz, Fabiano Santos. 2021. A Tragédia Brasileira do Coronavirus. Insight-Inteligência, n.93, abril/maio/junho 2021, pp. 60-89.

  20. Fundo de Financiamento Estudantil, gerido pelo Ministério da Educação, assegurando crédito para alunos que por não lograrem ingressar nas universidades públicas gratuitas, buscam cursar o ensino superior em instituições privadas. Em 2022, quase 77% dos estudantes universitários brasileiros estavam matriculados em instituições privadas e pagas. Ver em Semespe Instituto. 2022. Mapa do Ensino Superior, 12a edição. São Paulo: Semespe.

  21. Essa restrição nos critérios de elegibilidade deixou de fora mais de um milhão de estudantes inadimplentes (40% dos endividados com o FIES).

  22. Lavinas, Lena. 2021. Ad Hoc Generosity in Times of COVID: A Chronicle of Plights, Hopes, and Deadlocks, Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus, edited by Didier Fassin and Marion Fourcade, Hau Books, 2021, pp 59-82.

  23. Lavinas, Lena, Lucas Bressan and Pedro Rubin. 2022. Brasil: como as políticas de enfrentamento da pandemia inauguraram um novo ciclo de endividamento familiar. O Brasil no Inferno Global: capitalismo e democracia fora dos trilhos. Organizadores: André Singer, Cicero Araujo, Fernando Rugitsky, São Paulo: FFLCH/USP, pp. 249-292.

  24. Idem, p. 280.

  25. Estima-se que 66% das famílias que buscaram tomar novos empréstimos em novembro de 2020 recebiam benefícios do Auxílio Emergencial.

  26. Tais prorrogações (por 60 dias) e renegociações de dívidas foram autorizadas, para os cinco maiores bancos brasileiros, pelo Conselho Monetário Nacional, onde têm assento os Ministros da Economia e do Planejamento e o Presidente do Banco Central. Dívidas com cartão de crédito e cheque especial não foram contempladas nesse pacote. Houve medidas paralelas de suspensão e prorrogação de cobrança por parte da Receita Federal e, em nível estadual, no pagamento de contas de luz e água https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/confira-pagamentos-e-tributos-adiados-ou-suspensos-durante-pandemia

  27. O programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) foi criado em 2009, na segunda gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, com o objetivo de expandir o acesso em grande escala da população de baixa renda à moradia própria.

  28. https://imoveis.estadao.com.br/casa-verde-e-amarela/pausa-na-prestacao-do-minha-casa-minha-vida-nao-alcanca-faixas-menores/

  29. Ver em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/03/inadimplencia-na-faixa-1-do-minha-casa-minha-vida-bate-recorde-e-atinge-45-dos-contratos.shtml

  30. Recorde-se que o princípio da alienação fiduciária, que leva à perda do imóvel após três meses de default no pagamento da prestação imobiliária, não se aplica à faixa 1 do MCMV, senão às faixas 2 e 3. Dados de inadimplência acima de 360 dias vêm do Ministério do Desenvolvimento Regional https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/03/inadimplencia-na-faixa-1-do-minha-casa-minha-vida-bate-recorde-e-atinge-45-dos-contratos.shtml)

  31.  Para os autores, em oposição às dívidas de acumulação, aquelas que permitem acumular ativos e patrimônio.

  32. Morvant-Roux, S., Bertoli, M.A., Clerc, S., Rees, M. and Saiag, H., 2023. Dettes de survie versus dettes d’accumulation: la financiarisation au prisme des inégalités sociales en Suisse. Revue Française de Socio-Economie, 30, pp.219-244.

  33.  O Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por ocasião do lançamento do programa, citou recorrentemente a cifra de 70 milhões de brasileiros negativados. Porém, essa estimativa combina distintos padrões de atraso, nem todos eles associados a inadimplência (dívidas não honradas com mais de 90 dias de atraso). Posteriormente, desenhou o Programa para atender a 32 milhões de negativados.

  34. https://exame.com/economia/haddad-sobre-desenrola-liberamos-r-50-bilhoes-para-que-bancos-facam-as-negociacoes/

  35. https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/conheca-os-canais-de-atendimento-do-desenrola-do-fies-1

  36. Em 2023, havia 1,2 milhão de estudantes financiados pelo FIES em default (53,7%), totalizando uma dívida de R$ 54 bilhões (US$ 10.8 bilhões).

  37. No Brasil, existe um piso constitucional para a saúde e a educação. O piso da saúde estabelece que no mínimo 15% da receita corrente líquida da União devem ser destinados ao SUS. No caso da educação, trata-se de 18% da arrecadação. Ora, para atender à exigência do piso constitucional, que eleva o gasto em saúde e educação de acordo com o aumento da arrecadação, em desacordo, portanto, com a regra do novo arcabouço fiscal, outras despesas na área social seriam sacrificadas. Não por acaso, o Ministério da Fazenda e também o Tesouro Nacional sinalizam a possibilidade de desconstitucionalizar esses pisos, o que significaria manter e agravar o desfinanciamento da saúde e da educação públicas.

  38.  Bastos PPZ. 2023. Quatro tetos e um funeral: o Novo Arcabouço/Regra Fiscal e o Projeto Social-Liberal do Ministro Haddad. Nota 21 do CECON, São Paulo, Abril de 2023.


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