Entre 2004 e 2014, a distribuição funcional da renda no Brasil foi caracterizada por um processo de aumento da parcela salarial, fenômeno que enfrentou forte resistência política. A partir de 2015, o resultado da disputa foi a reversão desse processo, levando à queda continuada da parcela salarial na renda até 2022. O ano de 2023 marca o possível início de uma nova inflexão, por efeito de um aumento da parcela salarial na renda, mas também do ressurgimento da insatisfação dos meios empresariais e financeiros. O crescimento da inflação salarial veio acompanhado de ainda mais pressão por políticas macroeconômicas mais austeras, entre elas, a política de juros do Banco Central (BC).
A relação entre a distribuição funcional da renda, a inflação e a política macroeconômica no Brasil—a economia política da inflação brasileira—pode ser explicada pela análise do funcionamento do Sistema de Metas de Inflação (SMI) a partir da teoria da inflação de custo e do conflito distributivo. Desde 1999, o Brasil adota o SMI como arcabouço institucional para controlar a inflação, que deve ficar dentro de um intervalo de tolerância estabelecido ao redor de uma meta central definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
A base teórica utilizada pelo Banco Central brasileiro para justificar sua atuação no SMI é modelo do chamado “Novo Consenso” Macroeconômico. A versão mais simples desse modelo estabelece que a inflação acelera (e desacelera) como resultado de choques de demanda—que ocorrem quando a taxa de desemprego está abaixo (acima) da taxa natural de desemprego, e consequentemente, o produto está acima (ou abaixo) do produto potencial—, e que os “choques de oferta”, incluindo os choques externos, têm média zero no longo prazo. Segundo esse modelo, o BC deve fixar a taxa básica de juros para controlar a demanda agregada e fazer com que a taxa de desemprego fique igual à natural (e o produto fique igual ao produto potencial). Nesse sentido, o controle sistemático da inflação ocorreria pelo canal de transmissão da taxa de juros real para a demanda agregada. O Novo Consenso também entende que, a longo prazo, a política monetária é neutra para a distribuição funcional da renda e não afeta o produto potencial.1
Historicamente, ao longo da vigência do SMI, entre 1999 e 2023, o BC foi relativamente bem-sucedido em colocar a inflação dentro do intervalo da meta (figura 1). A inflação ficou acima do teto da meta somente nos anos subsequentes à implementação do sistema, entre 2001 e 2003, e pontualmente, nos anos de 2015, 2021 e 2022.
Figura 1—Inflação e meta
Acontece que o controle inflacionário sob o SMI não ocorreu pelo canal de transmissão da taxa de juros para a demanda agregada, como propõe o modelo do Novo Consenso. A figura 2 mostra o comportamento da taxa de desemprego aberto2 do Brasil durante o funcionamento do SMI, entre os anos de 1999 e 2022.3 Comparando a dinâmica do desemprego com a da inflação do país, nota-se que aqueles anos em que a inflação esteve mais alta e acima do teto da meta são justamente os mesmos em que a taxa de desemprego registrada foi igualmente mais elevada, fenômenos, portanto, relacionados a uma situação de desaquecimento do nível de atividade econômica. Por outro lado, os períodos em que a taxa de desemprego esteve mais baixa estão associados a uma inflação dentro do intervalo da meta. Desde a implementação do SMI, portanto, a inflação brasileira não parece estar sistematicamente associada à escassez de mão de obra.
Figura 2—Taxa de desemprego (%)
O funcionamento do SMI na economia brasileira na prática, portanto, não pode ser majoritariamente explicado pela dinâmica da demanda agregada. Mas a introdução de outros elementos na análise permite entender como o BC controlou a inflação por meio do SMI: a ideia de que a tendência da inflação não é de demanda, mas de custo, e decorrente do conflito distributivo.
Custos de produção e conflito distributivo
Contrariamente ao modelo do Novo Consenso, a abordagem da inflação como fenômeno de custo é compatível com a perspectiva da demanda efetiva no longo prazo. Segundo esta concepção, a demanda efetiva determina não somente o produto, mas também a capacidade produtiva. Ainda, em geral, há abundância relativa de mão de obra em relação ao estoque de capital. O estoque de capital, por sua vez, se ajusta à tendência da demanda efetiva via investimento.4 Diante disso, a ideia de que a tendência da inflação é de demanda deve ser questionada. Afinal, a inflação de demanda ocorreria quando a demanda efetiva—os gastos monetários agregados medidos aos preços de oferta—estivesse acima do produto de pleno emprego da mão de obra. Esta situação refletiria uma escassez de recursos produtivos e tenderia a ser temporária, pois a própria inflação ocorreria para diminuir a demanda agregada em termos reais e compatibilizá-la com o nível máximo possível de produção.
A inflação de custo e conflito distributivo, ao contrário de refletir uma escassez de recursos produtivos e de tender a ser temporária, ocorre antes da situação de escassez ser atingida. Ou seja, é possível que os salários nominais aumentem antes que a economia atinja o pleno emprego da força de trabalho. Nesse cenário, a inflação é um fenômeno que exprime a incompatibilidade distributiva sobre o produto existente, abaixo do potencial, e pode ser permanente. Em geral, o conflito distributivo resulta em inflação, e não em aceleração da inflação.5
Entretanto, ainda que a economia não esteja perto de atingir o pleno emprego, taxas de desemprego persistentemente baixas (altas) podem aumentar (diminuir) o poder de barganha dos trabalhadores, principalmente quando as condições políticas e institucionais são favoráveis. Um processo de inflação salarial decorrente do poder de barganha dos trabalhadores em uma economia com abundância de mão de obra, mesmo que influenciado pelo nível de atividade mais aquecido no mercado de trabalho, reflete um fenômeno de custo e de conflito distributivo, e não de demanda.
Além do custo do trabalho, o aumento nos custos de produção é grandemente influenciado pelos preços dos bens tradables (bens intermediários e finais que o país importa e exporta) convertidos pela taxa de câmbio nominal, e, ainda, pelos preços de bens e serviços regulados pelo governo.6 Estas duas últimas fontes de pressão inflacionária podem intensificar a incompatibilidade distributiva ao afetar os salários reais e as margens de lucro. Sob essa abordagem, a inflação de custo relacionada aos tradables e aos bens e serviços regulados pelo governo, assim como aquela proveniente dos salários, também não é neutra do ponto de vista distributivo.
Canais de transmissão da política monetária
Ainda que, sob o SMI, o BC tenha sido relativamente eficaz em manter a inflação brasileira ao redor da meta, há três razões pelas quais taxas de juros mais altas não engendram um controle sistemático da inflação pelo canal de demanda agregada. Em primeiro lugar, há uma série de fatores institucionais que afetam a regularidade da relação entre a taxa básica de juros real e o crédito para consumo de bens duráveis e para investimento residencial, como o spread dos bancos públicos, a política de crédito consignado e a política habitacional, além do grau de endividamento das famílias. Em segundo lugar, mudanças na taxa de juros podem levar a mudanças na taxa de câmbio e afetar a demanda agregada no sentido contrário: uma desvalorização cambial decorrente da redução da taxa de juros pode diminuir o salário real e o consumo mais do que estimular a demanda agregada via aumento das exportações líquidas. Estes dois motivos fazem com que a relação entre a taxa real de juros e a demanda agregada não seja tão regular. Finalmente, mudanças nos salários nominais parecem responder muito pouco ao desvio da taxa de desemprego de sua tendência. Apenas níveis sustentados altos ou baixos de desemprego parecem ter efeitos persistentes na inflação salarial.
Os fatores relacionados ao custo de produção, por outro lado, respondem mais sistematicamente à política de juros do BC. O principal canal de transmissão da taxa de juros para os custos de produção decorre do efeito dos juros sobre a taxa de câmbio nominal. Uma taxa de juros nominal mais alta que a taxa de juros internacional (acrescida do spread soberano) leva a um diferencial de juros positivo, o que geralmente está associado a uma tendência de apreciação da taxa de câmbio nominal. Isso ocorre porque um diferencial de juros positivo (negativo) tende a impactar a entrada (saída) de fluxos de capitais de curto prazo que, em conjunto com outros elementos do balanço de pagamentos, são importantes para a dinâmica da taxa de câmbio nominal. Além disso, com expectativas da taxa de câmbio “adaptativas” ou endógenas, regimes de taxa de câmbio flutuante podem favorecer a especulação e a instabilidade. Consequentemente, uma mudança na taxa de câmbio nominal geralmente tende a alterar a taxa de câmbio esperada na mesma direção, ampliando o processo de apreciação ou depreciação.7
No caso brasileiro, a taxa de câmbio nominal tem um papel fundamental para a determinação da inflação. Primeiro, porque influencia diretamente o preço dos bens tradables. Note que a taxa de câmbio influencia diretamente não apenas o preços dos bens intermediários e finais que o Brasil importa, como também aqueles que o Brasil exporta: pela lei do preço único, os exportadores não vendem seus produtos no mercado doméstico a um preço diferente daquele obtido no mercado externo. Segundo, porque o IGP, índice que regulamenta, por exemplo, o reajuste de uma série de contratos de aluguéis e de administração de preços pelo governo, é bastante sensível ao preço dos tradables. Como esses dois fatores afetam o custo de produção de todos os outros setores da economia, a taxa de câmbio impacta significativamente a dinâmica do nível de preços no Brasil.
Assim, o cumprimento da meta é extremamente dependente da inflação importada, resultante da taxa de câmbio nominal e da inflação dos tradables em dólares. Em outras palavras, o canal de transmissão da taxa de juros para a taxa de câmbio é bastante relevante para o controle sistemático da inflação. De fato, anos em que a inflação ficou fora da meta estão muito relacionados a episódios de forte desvalorização cambial.8
Determinantes da dinâmica inflacionária no Brasil sob o SMI
A análise empírica9 do funcionamento do SMI e de seus resultados para a inflação e para a distribuição funcional da renda no Brasil entre 1999 e 2014 permite distinguir o comportamento dessas variáveis em dois momentos. O primeiro abrange os anos de 1999 a 2003, que marcam a implementação do SMI durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e o primeiro ano do mandato inaugural de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006). O segundo momento engloba os anos de 2004 a 2014, período que inclui os 7 anos seguintes de governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) e o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014).
Logo após a implementação do SMI, entre 1999 e 2003, a meta inflacionária anual foi amplamente descumprida (figura 1). Isso foi resultado de (i) uma pressão da inflação importada, causada por um processo de desvalorização da taxa de câmbio nominal em um contexto de instabilidade externa; e (ii) de uma alta inflação dos bens e serviços monitorados (figura 4). Os salários nominais, em geral, mantiveram uma taxa de crescimento abaixo da inflação, o que resultou em perdas reais e levou a uma diminuição da parcela salarial na renda (figura 6).
Convém notar que, nesse contexto de instabilidade externa, o diferencial de juros, medido pela diferença entre a taxa básica doméstica e a taxa básica internacional (esta, por sua vez, medida pela taxa básica do Fed acrescida do spread soberano mensurado pelo EMBI), diminuiu bastante (figura 3). Esse diferencial chegou a ficar negativo negativo em 2002, uma vez que o forte aumento do spread soberano não foi compensado por uma alta suficiente da taxa de juros doméstica.
Figura 3—Diferencial de juros nominal
O processo de desvalorização cambial, portanto, foi muito influenciado por esse diferencial de juros praticado no período. A figura 4 mostra o comportamento da inflação importada,10 ou seja, da variação dos preços em dólar em conjunto com a variação do câmbio nominal, e da inflação dos bens e serviços monitorados. É visível como ambos os indicadores contribuíram para a inflação ficar fora da meta no período entre 1999 e 2003.
Figura 4—Inflação “importada” e dos monitorados (acumulada no ano)
Já entre 2004 e 2014, a meta foi cumprida em todos os anos. Esse período também foi marcado por uma queda contínua da taxa de desemprego, resultado de uma economia mais aquecida (figura 2). O cumprimento da meta, portanto, não foi resultado do controle da demanda agregada pela taxa de juros, mas da melhora da situação externa e de um progressivo melhor gerenciamento do balanço de pagamentos do Brasil. Em conjunto com a melhora na balança comercial brasileira, decorrente do aumento do preço das commodities e do crescimento do volume das exportações, houve uma melhora na conta financeira, em razão do aumento de liquidez internacional em um contexto de queda da taxa de juros do Fed e dos spreads internacionais. Estes fatores permitiram ao Brasil reduzir sua taxa de juros doméstica enquanto preservava um diferencial de juros alto e acumulava reservas. Isso ocorreu concomitantemente a um processo de valorização cambial que, a despeito do aumento dos preços das commodities em dólares (US$), se traduziu em uma inflação importada em reais (R$) mais baixa, compatível com a meta de inflação. Somou-se a isso uma inflação menor dos bens e serviços monitorados, em parte decorrente da própria valorização cambial (e seus reflexos no IGP), mas também das mudanças11 nas regras de precificação destes bens e serviços promovidas pelo governo e por empresas estatais (ver figura 4).
Os salários, entretanto, tiveram comportamento distinto entre 2004 e 2014 em comparação ao intervalo de 1999 a 2003. O período mais recente da análise foi marcado pelo que chamamos de “revolução indesejada”12 no mercado de trabalho brasileiro. Por uma série de fatores, como (i) a política de aumento real do salário-mínimo e a ampliação da cobertura das políticas sociais; (ii) uma taxa de desemprego estruturalmente mais baixa,13 resultante tanto de uma taxa de crescimento média mais alta da economia com forte geração de empregos no setor de serviços quanto de um menor crescimento da força de trabalho por motivos demográficos, os anos de 2004 a 2014 permitiram o aumento do poder de barganha dos trabalhadores. Consequentemente, nesse período, a inflação salarial ficou acima da inflação (figura 5) e houve crescimento real dos salários (acima da produtividade).14 O resultado distributivo foi o aumento da parcela dos salários na distribuição funcional da renda (figura 6).
Figura 5—Inflação dos salários e preços (acumulada em 12 meses)
Figura 6—Parcela salarial na renda
O que vem após a revolução indesejada
Os acontecimentos de 2015 em diante podem ser compreendidos a partir desse mesmo arcabouço analítico. Ainda que a inflação entre 2004 e 2014 tenha ficado dentro da meta, o acirramento do conflito distributivo provocado pela “revolução indesejada” gradualmente gerou consenso político sobre a necessidade de mudança da política econômica.
Essa análise remete à contribuição de Michal Kalecki, que acreditava que uma política econômica expansionista que levasse ao desemprego baixo e duradouro e ao aumento do poder de barganha dos trabalhadores poderia ser revertida em razão de uma crescente oposição das classes proprietárias. Esta oposição ocorreria tanto pelos aspectos políticos (por exemplo, a perda da “disciplina das fábricas”)16 como pelos aspectos econômicos do pleno emprego (por exemplo, a diminuição das margens de lucro e o aumento da parcela salarial na renda).17 As classes proprietárias atuariam para convencer o governo a mudar a direção da política econômica, desacelerar o crescimento e aumentar a taxa de desemprego.
Já no início de 2015, primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016), marcado por profunda instabilidade política e pela vitória apertada nas eleições de 2014, o governo alterou drasticamente a direção da política econômica e promoveu uma forte contração da demanda efetiva por meio de vários instrumentos.18 Essa mudança—ocorrida no contexto de rápida redução no investimento das empresas estatais como resposta às denúncias da Operação Lava-Jato—envolveu, concomitantemente, um forte ajuste fiscal, uma redução do crédito público, um aumento da taxa de juros, desvalorização cambial e aumentos das tarifas de alguns preços monitorados.
Se é certo que tais medidas foram bastante contracionistas, ocasionando uma forte retração do PIB e um aumento na taxa de desemprego, verifica-se que foram, também, inflacionárias. No ano de 2015, a inflação ficou acima do teto da meta, o que se explica pelo aumento da inflação importada e dos preços de bens e serviços monitorados. Já em 2016, a inflação se reduziu novamente, à medida que os efeitos da desvalorização cambial e dos preços monitorados foram se dissipando. No entanto, a taxa de desemprego mantida em patamar alto conseguiu interromper o processo de crescimento do salário real e criou um clima favorável para a implementação de reformas destinadas a reduzir direitos sociais e trabalhistas e conter permanentemente o poder de barganha dos trabalhadores. Efetivamente, a partir de 2015 e, particularmente, após o impeachment de Dilma, com a posse de Michel Temer (2016-2018) e a posterior vitória de Jair Bolsonaro (2019-2022) nas eleições presidenciais, o país adotou uma série de medidas de austeridade, como a reversão de políticas sociais, o fim do reajuste real do salário-mínimo, o “teto de gastos” (que impedia o aumento real do gasto público federal), além de uma reforma trabalhista e uma reforma da previdência.
Entre 2016 e 2019, diante da rápida redução do poder de barganha dos trabalhadores, o salário nominal passou a crescer, em geral, abaixo da inflação (figura 5). Consequentemente, nesse período, a parcela salarial na distribuição funcional da renda encolheu continuamente (figura 6). A inflação diminuiu consideravelmente, tanto como consequência desse baixo crescimento dos salários nominais, quanto por uma ausência de pressões significativas da inflação importada e dos bens e serviços monitorados, e voltou a ficar próxima do centro da meta.
A pandemia aprofundou essa tendência redistributiva. Por um lado, a recessão de 2020 ampliou ainda mais a taxa de desemprego, que já estava em um patamar alto. Por outro, houve um forte aumento da inflação importada e dos preços monitorados, resultado de uma significativa desvalorização cambial acompanhada do aumento dos preços dos tradables em dólares (sobretudo daqueles relacionados aos custos de energia). Estes últimos fatores refletiram uma inflação mundial mais alta, decorrente dos problemas logísticos que a crise sanitária implicou para as cadeias globais de valor e da guerra da Ucrânia.
Convém notar que a forte desvalorização cambial nos anos de 2020 e 2021, além de refletir um movimento global de desvalorização das moedas de países emergentes, foi intensificada pela política de determinação da taxa juros do Banco Central do Brasil. A figura 3 mostra que nesse período, como em 2002, o BC fixou a taxa básica abaixo da internacional (acrescida do spread soberano), o que levou a um processo de desvalorização da taxa de câmbio nominal.19
A partir do início de 2022, a modificação da política de juros do BC, que inaugurou um processo de aumento da taxa básica, parece ter contribuído para reverter o movimento de desvalorização cambial e para controlar a inflação importada. Além disso, houve deflação dos bens e serviços monitorados em razão da adoção de uma política pontual de controle dos preços pelo governo, com destaque para o controle do preço da gasolina. Estes controles foram implementados em meados daquele ano, o último do mandato de Jair Bolsonaro, marcado também por sua derrota nas eleições presidenciais para Lula, cuja terceira gestão se iniciaria (2023-2026) em janeiro do ano seguinte.
A inflação voltou a ficar dentro da meta em 2023, resultado que parece ser muito mais relacionado a esses elementos de custo do que a fatores da demanda agregada. A taxa de desemprego, a despeito do ciclo de aumento da taxa de juros nominal pelo BC, continuou caindo em 2022 e 2023, em razão, entre outros motivos, de uma política fiscal mais expansionista. Isso permite ressaltar que o controle da inflação recente também não resultou da diminuição da demanda agregada. Apesar da queda da taxa de desemprego, os salários recuperaram apenas parcialmente as perdas inflacionárias, com alguma defasagem, e não constituíram pressão suficiente para impedir a redução da inflação. O resultado distributivo foi uma forte queda da parcela salarial da renda no período entre 2020 e 2022, como mostra a figura 6.
Na prática, a meta é outra
A análise do comportamento da inflação brasileira sob o sistema de metas a partir da abordagem da inflação de custo e do conflito distributivo permite identificar três elementos centrais da dinâmica recente da economia política do país. O primeiro é que o acirramento do conflito distributivo e seus efeitos positivos sobre o salário real, ocorrido entre 2004 e 2014, resultou em uma inflação permanentemente mais alta, mas não em uma aceleração da inflação. Esse fenômeno, somado a um controle maior da inflação importada e dos preços monitorados pelo governo, permitiu que a inflação ficasse dentro do intervalo da meta em todo o período, ainda que, em alguns anos, tenha ficado acima do centro da meta. O segundo é que, mesmo nos períodos em que o conflito distributivo foi apaziguado e não houve aumento real dos salários, o cumprimento da meta foi extremamente dependente da inflação importada. O terceiro, como ficou claro, é que o processo inflacionário não é neutro em termos distributivos, não só porque depende do comportamento dos salários nominais e do poder de barganha dos trabalhadores, mas também porque depende, sobremaneira, da taxa de câmbio, do comportamento dos preços dos bens e serviços tradables em dólares e da política de reajuste dos preços monitorados: variáveis que influenciam, todas, os movimentos da distribuição funcional da renda.
As políticas de austeridade, que vão além de mudanças na taxa básica de juros pelo BC, devem ser entendidas nesse contexto. O combate a um processo de inflação salarial por meio do aumento substancial e duradouro do desemprego como medida de redução do poder de barganha dos trabalhadores é, no fim das contas, uma política de renda disfarçada, e não uma política neutra ou técnica de controle de preços. O economista Abba Lerner, defensor histórico da distinção entre inflação de custo e de demanda, não só foi crítico das políticas de manutenção de desemprego elevado para reduzir a inflação de custo e conflito distributivo, como ofereceu uma alternativa à opção pela austeridade: atrelar as políticas de renda voltadas ao controle da inflação de custo a políticas de estímulo à demanda e promoção do pleno emprego, evitando o desperdício de recursos produtivos.20
Como vimos, se o acirramento do conflito distributivo leva a uma inflação permanentemente mais alta, mas não a uma aceleração da inflação, políticas de renda que amenizem esse conflito podem ser uma alternativa progressista às políticas de austeridade. Levando em conta as características estruturais e institucionais da economia brasileira, uma possibilidade de política de renda seria a expansão do provimento de bens e serviços públicos e o barateamento dos monitorados, o que aumentaria o nível do salário real e evitaria que a barganha dos trabalhadores ocorresse apenas pela negociação dos salários nominais. Ao longo do tempo, seria importante também evitar flutuações bruscas da inflação desses bens e serviços monitorados, bem como da taxa de câmbio nominal e, consequentemente, da inflação importada. O gerenciamento da flutuação da taxa de câmbio certamente impõe limites à diminuição da taxa de juros nominal doméstica, sobretudo no contexto em que a taxa de juros nominal fixada pelo Fed ainda se encontra em patamares altos, sem perspectiva clara de redução.
A recuperação da parcela salarial na distribuição funcional da renda, tendo em vista a queda vertiginosa que sofreu no período recente, certamente exigirá algum esforço na direção apontada acima. Após o aumento pontual da parcela salarial em 2023, a reimplementada política de reajuste real do salário-mínimo e a taxa de desemprego em patamares mais baixos são condições necessárias para que esta recuperação seja sustentada. Por outro lado, mesmo essa breve reversão da tendência distributiva vem gerando descontentamento nos meios empresariais e financeiros, que já pedem seu fim.21 Alinhadas aos interesses destes mesmos meios, a política fiscal de déficit zero e a recente redução da meta de inflação certamente constituirão obstáculos adicionais a uma recuperação mais estável da parcela salarial da renda.
Com a exceção de casos de inflação alta, que geraria ineficiências que poderiam reduzir o produto potencial da economia, ou devido ao limite zero da taxa nominal de juros, que poderia reduzir o produto potencial pelo efeito histerese. Convém notar que nenhum destes casos parece ter ocorrido na economia brasileira no período de vigência do SMI. Ver: Taylor, J. A core of practical macroeconomics. The American Economic Review, v. 87, n. 2, p. 233-235, 1997 e Blanchard, O. (2018). Should we reject the natural rate hypothesis?. Journal of Economic Perspectives, 32(1), 97-120.
↩A taxa de desemprego aberto se refere às pessoas que procuraram trabalho nos últimos 30 dias e não exerceram nenhum trabalho nos 7 dias anteriores à pesquisa.
↩Utilizamos a taxa de desemprego calculada pelo FMI, uma vez que as taxas de desemprego calculadas pelo IBGE no período sofreram duas descontinuidades, em razão das mudanças na Pesquisa Mensal do Emprego (PME) em 2002 e, depois, pelo abandono da divulgação da PME em 2016 e sua substituição pela PNAD contínua.
↩Para uma revisão crítica dos métodos de estimação de produto potencial para o Brasil, ver Barbosa-Filho, N. Estimating potential output: a survey of the alternative methods and their applications to Brazil. IPEA, Discussion Paper, [2005] 2015. O autor argumenta que o produto potencial tal como estimado é influenciado pelo produto corrente, e, portanto, pela demanda agregada, visão compatível com a abordagem seguida aqui.
↩Serrano, F., Summa, R., & Morlin, G. S. (2024). Conflict, inertia, and Phillips curve from a Sraffian standpoint. Review of Political Economy, Online access, 1-26.
↩Os preços monitorados ou administrados incluem serviços de utilidade pública cujas tarifas são reguladas ou autorizadas pelo poder público por meio de agências reguladoras ou fiscalizadoras (telefonia, energia elétrica, planos de saúde), além de derivados de petróleo, que têm a Petrobras, uma empresa estatal, como formadora de preço. Para mais detalhes, ver BCB: “Preços Administrados”, Relatório de inflação, dez. 1999.
↩Para mais detalhes teóricos sobre a relação entre taxa de juros e variação da taxa de câmbio com expectativas endógenas, ver Franklin Serrano, Ricardo Summa, e Gabriel Aidar: “Exogenous interest rate and exchange rate dynamics under elastic expectations.”, Investigación económica, v. 80, n. 318, p. 3-31, 2021.
↩Esse fenômeno já havia sido descrito por Nelson Barbosa-Filho há algum tempo e a conclusão continua válida. Ver: Nelson Barbosa-Filho “Inflation targeting in Brazil: 1999–2006”. International Review of Applied Economics, v. 22, n. 2, p. 187-200, 2008.
↩Ricardo Summa e Franklin Serrano: “Distribution and conflict inflation in Brazil under inflation targeting, 1999–2014.” Review of Radical Political Economics, v. 50, n. 2, p. 349-369, 2018.
↩Utilizamos o IC-Br, que é um índice de preços de commodities medido na moeda doméstica. O fato deste índice ser divulgado pelo próprio Banco Central do Brasil reflete a importância da taxa de câmbio para a inflação.
↩Estas mudanças incluíram uma revisão do arcabouço regulatório do setor elétrico e de telefonia e uma mudança nos preços dos derivados de Petróleo pela Petrobras, entre ouras medidas. Para mais detalhes, ver Franklin Serrano e Ricardo Summa (2012). “Macroeconomic policy, growth and income distribution in the Brazilian economy in the 2000s”. Investigación económica, 71(282), p.62-63.
↩Franklin Serrano e Ricardo Summa: “Distributive conflict and the end of Brazilian economy’s” Brief Golden Age”. Working Paper n.186, IPE-Berlin, 2022.
↩Mesmo quando esteve em patamares baixos, refletindo um mercado de trabalho mais aquecido, como no período entre 2011-2014, este indicador nunca esteve próximo da situação de escassez de trabalho. É improvável que economias subdesenvolvidas e com altos graus de informalidade e “desemprego disfarçado” (ocupações com baixíssima produtividade) realmente atinjam o pleno emprego do trabalho, no sentido de escassez. No período referido, por exemplo, o indicador que mede a subutilização da força de trabalho (PNAD contínua) estava próximo de 15%. Este indicador acrescenta à taxa de desemprego aberto a subocupação por insuficiência de horas trabalhadas e as pessoas que potencialmente poderiam trabalhar, mas não procuraram emprego. Segundo dados da PNAD contínua, em 2014 o tamanho da força de trabalho no Brasil era de quase 100 milhões de pessoas, e o número de pessoas na força de trabalho potencial era de 4 milhões.
↩Para um estudo econométrico entre a inflação salarial e a inflação, ver Michelle Malher: “Inflação de Preços e de Salários no Brasil: uma análise empírica de 1999 a 2022”, Dissertação de Mestrado, Instituto de Economia, UFRJ, 2022.
↩A parcela salarial inclui o excedente operacional misto e é medido a custo de fatores. Para mais detalhes ver Alessando Miebach e Adalmir Marquetti. “A distribuição funcional da renda no Brasil: 1947-2019.” Nova Economia, [S. l.], v. 32, n. 3, 2022.
↩Michal Kalecki: “Political aspects of full employment”. The Political Quarterly, v. 14, n. 4, pp. 322–330, 1943.
↩Miebach e Marquetti (2019)
↩Franklin Serrano e Luiz Eduardo Melin “Political aspects of unemployment: Brazil’s neoliberal u-turn”. Crítica Marxista. Gennaio/Frebbraro, 2016.
↩Para mais detalhes, ver Julia Braga, Rodrigo Toneto, e Laura Carvalho: “A montanha-russa do câmbio: o que explica a desvalorização e a valorização do Real durante a pandemia?” (Nota de Política Econômica n. 012). Made/USP.
↩Ver Summa, Ricardo: “Alternative uses of functional finance: Lerner, MMT, and the Sraffian supermultiplier.” Review of Keynesian Economics, v. 12, n. 1, p. 27-52, 2024.
↩“Custo do trabalho em alta é alerta para Banco Central”. Anaïs Fernandes, Valor Economico, 20/03/2024. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/03/20/custo-do-trabalho-em-alta-e-alerta-para-banco-central.ghtml
↩
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