27 de abril de 2022

Análises

Mudança de Regime?

A evolução e a armamentização do dólar mundial

O efeito mais importante da resposta econômica do Ocidente à invasão e bombardeio da Ucrânia pela Rússia, após o choque e a surpresa, foi o congelamento dos ativos do Banco Central russo. Na edição de 7 de março de sua newsletter Global Money Dispatch, o estrategista de investimentos do Credit Suisse, Zoltan Pozsar, escreve que o confisco das reservas cambiais da Rússia pelo G7 marca uma mudança de regime no sistema monetário global. Pozsar enuncia esse novo regime de Bretton Woods III. Ele antecipa que soberanos asiáticos, temendo que suas reservas estrangeiras em dólares e euros estejam em risco de expropriação em caso de futuros conflitos de política externa, vão colocar seus fundos excedentes fora do alcance das autoridades financeiras do Ocidente. Para Pozsar, isso anuncia o surgimento de “moedas lastreadas em commodities no Oriente” e sinaliza o desfecho da hegemonia do dólar.

Em um artigo subsequente, publicado em 31 de março, Pozsar especula que os desenvolvimentos recentes vão levar a China a substituir o Ocidente como o comprador, em último caso, do do petróleo russo. Como resultado, produtores de petróleo terão que ser redirecionados da rota Leste-Oeste, mais rápida, via Canal de Suez, para uma passagem mais longa (requerendo transferências de navios) da Rússia para a China. A geopolítica vai moldar a reorganização das redes de infraestrutura real, tornando mais lentas as cadeias de abastecimento e aumentando o custo do crédito. Pozsar prevê que essa rearrumação dos fluxos globais de commodities e dinheiro pode antecipar uma nova ordem econômica mundial, na qual a China substituirá os EUA como a maior hegemonia monetária. O petrodólar, ele imagina, será substituído pelo petro-yuan.

A análise de Pozsar – assim como a resposta de Adam Tooze a ela – dá conta da assimetria na economia mundial: entre as economias avançadas que dominam as finanças globais e os países em desenvolvimento que produzem a maioria (cerca de sessenta por cento) do PIB mundial. A Ásia talvez seja o centro gravitacional da manufatura mundial, mas as empresas europeias e norte-americanas ainda comandam a maioria dos lucros embutidos nas cadeias globais de suprimentos. Essa tensão na economia global não deve ser resolvida tão cedo, mas tem se tornado cada vez mais turbulenta. A instrumentalização da política comercial pela administração anterior, feita pelo Partido Republicano, foi apenas reforçada pela atual administração democrata. O discurso recente da secretária do Tesouro, Janet Yellen, defendendo a “amizade de cadeias de suprimentos” — onde os EUA fortalecem os laços comerciais com aqueles com os quais compartilham interesses estratégicos e “valores fundamentais,” enquanto cortam com os demais— reflete o novo clima. (No seu discurso, Yellen também defende a revitalização de Bretton Woods com base na sua visão de que a ordem econômica baseada no dólar ” beneficia a todos nós”).

Para compreender essa emergente ordem econômica mundial, é necessário complementar a famosa abordagem “matriz de balanços” de Hyun Song Shin para a globalização financeira, com uma lente que veja o sistema global do dólar como uma matriz de domínio monetário, militar e legal. Estamos testemunhando o crescimento de um novo capítulo neste sistema — se estivermos em uma nova era chamada Bretton Woods III, ela é a forma mais instrumentalizada do sistema global do dólar até agora.

Bretton Woods I

De 1952 a 1973, Bretton Woods I forçou a sujeição de outras moedas ao dólar. Obter ouro exigia a conversão de outras moedas, como a libra esterlina ou o franco francês, em dólares, que eram os únicos conversíveis em ouro. A dominação do dólar, portanto, dependia de uma taxa de câmbio estável entre dólares e ouro. Isso significava limitar a oferta de dólares — que eram impressos de maneira fácil, quando comparado com a produção de ouro, uma mercadoria escassa. Uma crescente demanda por dólares no final dos anos 1960 tornou cada vez mais difícil manter uma paridade fixa entre dólares e ouro. Em agosto de 1971, temendo um colapso do dólar, o presidente Nixon desvinculou a moeda do ouro. Os detentores de dólares não podiam mais ir ao guichê do banco e trocar a moeda por ouro. De fato, a ordem monetária internacional conhecida como Bretton Woods chegava ao fim.

A decisão de Nixon de tirar o dólar de sua ligação com o ouro foi acompanhada da ameaça de sanções comerciais, a menos que os europeus valorizassem suas moedas, tornando as exportações dos EUA mais baratas e atraentes para o mercado mundial. Para seus colegas estrangeiros do G-10, o secretário do Tesouro de Nixon, John Connally, deu uma declaração infame: o dólar “é nossa moeda, mas é o problema de vocês.” O abandono dos Estados Unidos da sua própria gestão do dólar global resultou em mais de uma década de desordem econômica marcada por alta inflação e desemprego.

Pozsar compara o momento atual a essa ruptura estrutural nos regimes monetários. Mas não estamos de volta a 1971. Quando os mercados pareciam imperturbáveis na primeira semana da guerra russa na Ucrânia, nas palavras do presidente do Fed, Jerome Powell, foi porque “nós institucionalizamos o fornecimento de liquidez“. Powell se referia às linhas de swap e instalações de repo do Tesouro, tornadas permanentes no verão passado, que estão prontas para oferecer dólares a bancos centrais estrangeiros e mercados monetários, em caso de turbulência no mercado. Na comparação com a saída abrupta de fluxos financeiros da China e à ampliação dos spreads da dívida soberana na periferia europeia nos dias seguintes à invasão da Ucrânia, o dólar se fortaleceu e as expectativas de inflação nos EUA pareceram bem ancoradas, em parte por conta das garantias do Fed de que iria estabilizar os mercados de financiamento em dólares como intermediário, em último caso.

Como guardiões do dólar – envolvidos na criação e emissão da moeda, bem como na compensação e liquidação de pagamentos, o Federal Reserve e o Tesouro dos EUA possuem um poder inigualável sobre o sistema financeiro mundial. Um sistema financeiro mundial assimétrico, sustentado por uma única moeda, estimula a instabilidade. Deixar o dinheiro global à mercê das vicissitudes dos mercados de câmbio globais resultou em décadas de crises financeiras, principalmente nas periferias do sistema financeiro global. Entretanto, quando uma gigantesca bolha financeira estourou no epicentro da ordem mundial do dólar em 2007, as intervenções para combater a crise tornaram-se parte central do mandato do Fed. O intervencionismo tornou-se seu nova mantra.

Se as sanções são o punho de ferro, as linhas de swap são a luva de veludo da ordem global dolarizada. Nas últimas duas crises financeiras globais, as trocas de dólares do Fed para bancos centrais estrangeiros – totalizando quase um trilhão em 2008 e meio trilhão em 2020 – foram concedidas a uma dúzia de bancos centrais. Depois da crise financeira global de 2008, o dólar emergiu ainda mais poderoso em seu papel de moeda global de reserva e veículo de comércio. O ciclo financeiro global do dólar pós-2008 significa que a moeda norte-americana dita as flutuações no comércio mundial, nos empréstimos internacionais, nos retornos do mercado de ações e no crescimento global. Em caso de falta de autonomia monetária e fiscal, governos enfrentam restrições orçamentárias mais rigorosas, ciclos de negócios mais voláteis e, em tempos de crise, calotes soberanos. A infraestrutura monetária da hegemonia dos EUA é mais ampla e arraigada do que nunca.

Bretton Woods II 

Sem dúvida, o confisco das reservas cambiais da Rússia pelo G7 incentivará a China a reavaliar sua estratégia de acumulação de reservas em dólares e euros. Isso pode até acelerar um impulso para a internacionalização dos mercados em renminbi no futuro, e países podem ser incentivados a trocarem o SWIFT pelo Cips, o sistema chinês de pagamentos transfronteiriços menos utilizado, que abrange 100 nações. Mas, por ora, a China permanece firmemente inserida na vasta infraestrutura monetária dos EUA. Seus empréstimos – aquisições de títulos do Tesouro dos EUA ou financiamento da Iniciativa Cinturão e Rota – continuam sendo, majoritariamente, em dólares. Apesar de toda a conversa sobre Rússia e China estarem alinhados contra as potências ocidentais, parece que a China, no momento, está bloqueando o financiamento das vendas de petróleo russo para evitar sanções secundárias impostas pelos EUA. As externalidades de rede são uma força poderosa na economia.

Enquanto Pozsar argumenta que o Banco Popular da China “pode dançar ao som de sua própria música”, o país asiático não pode escapar do fato de que a economia mundial continua a dançar ao som do dólar. As reservas cambiais dos governos, o comércio global e a dívida internacional estão todos desproporcionalmente denominados em dólares. Economias emergentes orientadas para a exportação dependem dos consumidores das economias avançadas para adquirir o que produzem. Os países acumulam suas receitas de exportação em ativos financeiros denominados em dólares e euros. Desde o final da década de 1990, a economia global foi caracterizada pelo fato de que economias orientadas para a exportação atrelam suas moedas ao dólar. As receitas com exportações foram direcionadas para as reservas cambiais denominadas em dólares e para os fundos soberanos de países exportadores de manufaturas e commodities. O arranjo foi provocativamente descrito por Michael Dooley e Peter Garber como “Bretton Woods II“, uma troca colateralizada de dívidas em que as reservas soberanas denominadas em dólares supostamente funcionavam como garantias para respaldar investimentos corporativos multinacionais em nações anteriormente comunistas, a exemplo da China.

A hipótese de Bretton Woods II partia da ideia de que a hierarquia financeira global era estável. A China acumulou mais de três trilhões e meio de dólares em suas reservas cambiais. Parte disso é composta por recursos que poderiam ter sido gastos para melhorar o bem-estar social dos cidadãos chineses. Duas décadas depois, a massiva acumulação de ativos denominados em dólares continua a sustentar o dólar. A questão é: os bancos centrais estrangeiros ainda estão dispostos a correr riscos desproporcionais, comprando grandes quantidades de títulos de baixo rendimento em dólares ou euros, quando emissores de moeda forte demonstraram a capacidade de expropriar suas reservas cambiais?

Em um novo artigo, Dooley, Garber e David Folkerts-Landau afirmam que os eventos atuais confirmam sua tese de Bretton Woods II. Para eles, as sanções não apenas são justificadas, mas, de fato, compõem o resultado “natural”, caso os países descumpram o “contrato social global”. Uma garantia deve ser exercida, caso os atores se comportem mal. Para eles, o “sequestro” dos ativos russos serve de exemplo para outras nações de que os EUA são capazes de exercer seu poder para usurpar ativos em dólares. As apreensões, argumentam, só reforçarão para as economias “geopoliticamente arriscadas” que elas devem fornecer mais garantias para participar das cadeias de suprimentos globais.

Pozsar arrisca que a China não vai mais estabilizar a supremacia global do dólar no futuro; que, por uma variedade de motivos – desde a escassez de recursos diante das mudanças climáticas até a necessidade crítica de commodities na infraestrutura verde – os países do Oriente vão se vincular às commodities. Ele deixa de mencionar que, ao contrário da China, os EUA são um importante produtor de petróleo e gás. Ironicamente, a guerra tem sido bastante benéfica para a indústria de combustíveis fósseis dos EUA. A liberação sem precedentes das reservas estratégicas de petróleo dos EUA para amenizar as perturbações no fornecimento causadas pela guerra foi acompanhada de penalidades contra empresas americanas que não estavam perfurando mais petróleo. A recém-anunciada força-tarefa conjunta da administração Biden com a Comissão Europeia (que visa chegar à chamada segurança energética, afastando a Europa da energia russa) praticamente garante um mercado europeu maior para o gás natural liquefeito (GNL) dos EUA, pelo menos até 2030. O compromisso de ajudar a garantir contratos de energia para fornecedores de GNL dos EUA representa uma total reviravolta para a Europa, que tinha interrompido novos contratos de GNL dos EUA devido às preocupações ambientais, sociais e de governança (ESG). O aumento nas exportações de GNL dos EUA para a Europa é apenas um indicativo de como os EUA está prestes a emergir fortalecido pela crise atual.

Armando o dinheiro mundial

Uma perspectiva ingênua sobre Bretton Woods passa por uma visão benigna da hegemonia do dólar, mas o dinheiro mundial sempre foi geopolítico.

No meio do século XX, a libra esterlina ainda financiava quase metade do comércio mundial. O petróleo extraído dos campos de petróleo iranianos por empresas britânicas era vendido em libras esterlinas. Em 1950, o governo britânico determinou que os membros da área da libra esterlina – seu bloco de moeda colonial que exigia que os governos membros depositassem seus ganhos em moeda em Londres – reduzissem suas compras de petróleo em dólares, produzido por empresas americanas, e comprassem, ao invés disso, “petróleo em libras“. Apesar de ter deixado a Commonwealth, o Egito foi coagido a aceitar o mesmo acordo. (Quando o Egito pediu para converter seus saldos em libras esterlinas em dólares, ao sair da união colonial, o Reino Unido quebrou seu acordo com o país africano, suspendendo a conversibilidade da libra, assim como fez anteriormente com as reservas de câmbio da Índia). Em 1951, quando Mossadegh nacionalizou os ativos da Anglo-Iranian Oil Company, os britânicos impuseram um bloqueio de sanções ao Irã. Até 1953, uma operação conjunta entre a CIA e o MI6 havia destituído Mossadegh do cargo. Quando Gamal Nasser nacionalizou a (britânico-francesa) Suez Canal Company, em 1956, interrompendo o movimento de petróleo em libras pelo Mediterrâneo, Grã-Bretanha, França e Israel ocuparam o canal de Suez.

Desde 1950, quase metade de todas as sanções globais foram impostas pelos EUA. Economias como o Irã – em sanção feita pelo presidente Jimmy Carter em 1979 – foram impedidas de participar plenamente da economia global por décadas. A globalização da década de 1990 trouxe consigo um aumento nas sanções. Os efeitos da crise financeira global de 2008, por sua vez, trouxeram outro aumento geral. O unilateralismo é uma das características definidoras do regime de sanções: elas foram impostas, sobretudo, por estados europeus a nações africanas.

Impostas por estados poderosos aos menos poderosos, as sanções são a face coercitiva e desagradável da economia global. Não é inédito para as potências ocidentais expropriar ativos do banco central de outro país. Ainda em 2018, o Banco da Inglaterra confiscou US$ 1 bilhão em ouro venezuelano mantido em seus cofres. Isso ocorreu apesar das normas de imunidade soberana estrangeira nas leis dos EUA e do Reino Unido que claramente dizem respeito à exceção soberana, ou seja, determinando que haja imunidade contra a apreensão de ativos.

A retirada dos Estados Unidos do Afeganistão parece ser um caso de teste para o uso de sanções como arma econômica pela administração Biden. A redução das tropas dos EUA em agosto de 2021 pôs fim aos envios volumosos de dólares – que eram entregues semanalmente paletes transportados em aviões – para Cabul. (Economias com crédito fraco e sistemas bancários dependem de dinheiro em espécie, e o dólar é dinheiro, sem dúvida.) A retirada militar foi seguida pela guerra monetária. Impondo sanções financeiras ao novo governo Talibã, o Tesouro dos EUA bloqueou o Da Afghanistan Bank, o banco central do país, de acessar suas reservas cambiais mantidas no Fed de Nova York. O Afeganistão, por seu turno, depende de leilões de dólares para definir sua política monetária. As sanções paralisaram o funcionamento do DAB, catalisando uma crise bancária. À medida que os dólares desapareciam, a economia do Afeganistão implodiu. Em fevereiro de 2022, usando a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional, a administração Biden consolidou e congelou as reservas cambiais do Afeganistão mantidas no Fed. Mais tarde, naquele mês, confrontada com a piora da fome no país, os EUA relaxaram algumas de suas sanções.

Os últimos meses testemunharam a extensão dessa guerra econômica. O rol de sanções dos EUA contra a Rússia incluiu o bloqueio de instituições financeiras russas para transmissão e compensação de pagamentos via infraestruturas financeiras como o SWIFT, além da apreensão dos ativos no exterior de Putin e seus associados. Essas ações foram possibilitadas pela proteção legal dos poderes de emergência, cujo uso mais refinado remonta ao USA PATRIOT Act de 2001. A guerra econômica também envolveu um conjunto de intervenções diplomáticas. Isso incluiu, por exemplo, enviar representantes americanos à Venezuela para negociar a reabertura de suas reservas de petróleo para os mercados mundiais (o que requer a remoção das sanções dos EUA ao país); convencer membros da OPEP a produzir mais petróleo para conter os aumentos nos preços da energia; uma declaração do G7 na qual os EUA se uniram à Europa, comprometendo-se a limitar os preços dos combustíveis fósseis, se necessário; e enviar o vice-conselheiro de segurança nacional dos EUA e arquiteto das sanções, Daleep Singh, à Índia para repreender o governo local por comprar petróleo russo com desconto (nenhuma raiva semelhante foi dirigida aos alemães, que continuaram comprando energia russa). Exercer pressão sobre nações produtoras de petróleo para aumentar a produção – enquanto se assegura aos cidadãos do G7 que a independência energética está intrinsecamente ligada à energia limpa a longo prazo -, criar leis a respeito de novas regulamentações sobre criptomoedas e avançar com um dólar digital apoiado pelo Fed foram algumas das medidas tomadas pela administração Biden. Esses esforços hercúleos para estabilizar a ordem do petrodólar aconteceram após um dilema político enfrentado pelo Fed, no qual conter a inflação por meio de aumentos nas taxas de juros provavelmente teria um impacto prejudicial na economia mundial.

A escala e o alcance das sanções financeiras à Rússia e sua natureza tática em evolução – que inicialmente visavam os dois maiores bancos do país e isentaram as exportações de energia russa das sanções, mas depois passaram para a expropriação das reservas cambiais do Banco da Rússia e uma proibição de importação pelos EUA do petróleo russo – representam um golpe para sua economia impulsionada por receitas. Essa economia foi moldada pelo legado do choque terapêutico liderado pelos EUA, que fez o rublo despencar em 1998. As sanções desencadearam a exclusão dos títulos de grau de investimento russos dos três principais índices do mercado de títulos. A saída de corporações ocidentais, incluindo a BP, maior investidor estrangeiro da Rússia, agravou a queda econômica.

Embora os controles de capital e os aumentos nas taxas de juros impostos pelo banco central russo tenham levantado o rublo do colapso nos primeiros dias da guerra na Ucrânia, ao ser isolada da infraestrutura financeira global, a dívida externa da Rússia, de cerca de US$ 194 bilhões, está cada vez mais ilíquida. Os recentes pagamentos de juros da Rússia no valor de US$ 117 milhões em sua dívida soberana denominada em dólares, processados por meio de bancos correspondentes dos EUA, foram aprovados pelas autoridades dos EUA, evitando um calote. No entanto, em 4 de abril, o Tesouro dos EUA não permitiu o processamento de cerca de US$ 600 milhões em pagamentos pendentes de títulos russos. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, anunciou que os EUA não permitiriam mais que a Rússia fizesse pagamentos de dívidas por meio de bancos dos EUA. A intenção explícita de catalisar uma “nação não amigável” para uma crise de dívida soberana evoca aquele momento decisivo em 1956, quando Eisenhower ameaçou o governo britânico de que os EUA afundariam os títulos esterlinos, a menos que os britânicos se retirassem de Suez. Foi o único caso em que as sanções dos EUA alcançaram seu objetivo pretendido de política externa.

Bretton Woods III

A ordem econômica emergente revela uma escalada na utilização do dólar como arma. As apreensões de ativos do banco central russo pelo G7 não têm magnitude precedente. Estima-se que as reservas cambiais russas mantidas no exterior estejam em torno de US$ 300 bilhões, duas vezes maiores do que as do Afeganistão. Como terceiro maior produtor de petróleo do mundo, a Rússia responde por mais de um décimo da produção global de petróleo e gás. Seus petrodólares, ou seja, dólares obtidos através das exportações de petróleo, são depositados no exterior nos mercados financeiros globais. (Antes das sanções, 80% das transações de câmbio e metade do comércio externo da Rússia eram realizadas em dólares). Os turbo-capitalistas russos têm investimentos bilionários nos principais centros financeiros mundiais. Isso inclui não apenas riqueza privada em imóveis em Knightsbridge ou clubes de futebol como o Chelsea – cuja venda pelo magnata russo Roman Abramovich foi complicada, em razão das sanções impostas pelo governo do Reino Unido – mas, também, fundos soberanos emprestados nos mercados financeiros de Londres. Segundo Pozsar, a Rússia emprestou cerca de US$ 200 bilhões no mercado global de swaps de câmbio (Londres é um polo dominante desse mercado global).

A apreensão coordenada de ativos da Rússia pelo G7 sinaliza como a ordem econômica ocidental se consolidou no topo da hierarquia monetária global. Isso ocorre às custas de um multilateralismo mais extenso. A postura neutra adotada por trinta e cinco economias ao se absterem da votação da Assembleia Geral da ONU condenando a Rússia é complexa, indicando alianças conflitantes diante de linhas de batalha cada vez mais rígidas. (Este sentimento foi vividamente capturado por Daleep Singh em sua recente viagem à Índia: “Amigos não estabelecem linhas vermelhas… Estamos muito interessados em todos os países, especialmente nossos aliados e parceiros, para não criar mecanismos que fortaleçam o rublo e tentem minar o sistema financeiro baseado no dólar“). Um terço do mundo, principalmente no Sul Global, vive sob sanções dos EUA. A falta de suprimentos impulsionada pela guerra em trigo e outros produtos, somada aos problemas relacionados à pandemia, está agravando a precariedade nesses países. Após distúrbios relacionados à falta de combustível e alimentos, estados de emergência foram declarados no Sri Lanka e no Peru.

O lawfare econômico faz parte dessa paisagem recém-armada. Considere o próprio sistema global do dólar como uma matriz financeiro-militar respaldada por uma estrutura legal. Suas principais capitais são Nova York e Londres. Os maiores fluxos financeiros transfronteiriços ocorrem entre Wall Street e a City de Londres. A Eurozona, com suas restrições orçamentárias, é uma jurisdição monetária periférica no sistema do dólar offshore. Grande parte do dinheiro do mundo, desde títulos de dívida internacionais até ouro, está abrigada em Nova York e Londres. Em cerca de um quilômetro quadrado que abriga os maiores mercados de moeda estrangeira do mundo, em formas-chave de financiamento em dólares, como derivativos, a City de Londres supera Wall Street. Mais de noventa por cento dos contratos derivativos, como swaps de câmbio – uma forma fundamental de financiamento global – são baseados em dólares. Nova York e Londres também dominam a profissão jurídica global. Metade da resolução de disputas em todo o mundo ocorre nos tribunais da Inglaterra e do País de Gales, e cerca de um quarto ocorre no estado de Nova York. O direito transnacional ostenta a insígnia do unilateralismo americano. O segundo circuito dos EUA, que inclui Nova York (a jurisdição envolvida no imbróglio do DAB), lidera na aplicação de decisões judiciais extraterritoriais. Enquanto isso, os EUA se opõem a outros estados soberanos que aplicam suas leis de forma extraterritorial contra residentes americanos. A advocacia por meio das sanções tem se mostrado muito lucrativa para a Anglo-América.

Junto às redes de defesa de riqueza legal e financeira anglo-americanas, está um aparato de segurança transnacional. O Five Eyes, a rede de compartilhamento de inteligência mais poderosa do mundo, é um acordo anglofônico. As guerras intermináveis foram lideradas pelos EUA e pelo Reino Unido como potências ocupantes conjuntas. A abrangência da rede militar britânica é a segunda maior do mundo, atrás apenas da dos Estados Unidos. O Aukus, o pacto de defesa de 2021 entre os EUA, o Reino Unido e a Austrália, sinaliza uma renovada “interoperabilidade” entre as forças. Embora não a reproduza diretamente, essa nova cooperação ocorre juntamente com aumentos nas reservas cambiais de dólares australianos e canadenses. A coincidência de poder, em sentido amplo, e softpower – Five Eyes e Fedwire – representa a integração de força militar, jurídica e econômica.

Cui bono?

Todos nós somos sujeitos desta nova, embora nebulosa, ordem econômica – que pode ser chamada de “Bretton Woods III” -, marcada pela acentuada penetração do dólar e sua instrumentalização na economia mundial. O ressurgimento do intervencionismo estatal após a pandemia foi seguido por uma renovada agressão estatal. Enquanto a codependência entre China e EUA (descrita de maneira evocativa como “Chimerica“) foi uma característica marcante do Bretton Woods II, o Bretton Woods III é uma cepa virulenta do sistema global do dólar. A invasão russa à Ucrânia – cujas raízes remontam à ampliação da OTAN no Leste Europeu – contraposta por um bloqueio econômico ocidental, desvenda sua lógica em tempo real. Enquanto as sanções anglo-americanas contra o Irã pretendiam acabar suas exportações de petróleo, as sanções dos EUA contra a Rússia isentaram o setor de energia. Excluir as exportações de petróleo e gás russos (bem como agricultura e contratos de derivativos) das sanções – para estabilizar os preços dos combustíveis fósseis e os mercados financeiros no Ocidente – até uma proibição de importação de energia russa no âmbito da esfera anglofônica é a forma atual e imprevisível da globalização armada. 

Nas últimas semanas, destacaram-se as destruições causadas pela instrumentalização do dólar mundial. A guerra jurídica entre a Rússia e o G7 só se intensificou. As demandas do governo russo para que suas exportações de gás sejam pagas em rublos, em vez de dólares, foram consideradas uma violação de contratos pelo governo alemão. O bloqueio dos Estados Unidos aos pagamentos da Rússia em dois títulos soberanos denominados em dólares (regidos pela lei inglesa) levou a administração de Putin a buscar medidas legais em seus próprios tribunais contra as medidas que impedem a Rússia de pagar sua dívida e recuperar suas reservas do banco central que foram apreendidas.

Que a apreciação do dólar vai infligir mais dor às partes mais pobres da economia global já é evidente. A estabilidade no cerne do sistema global do dólar, garantida por todos os meios necessários, será contraposta por uma tremenda instabilidade na periferia. As complexidades de utilizar o dólar mundial como arma na guerra econômica ressuscitam os antigos dilemas do gerenciamento de uma moeda hegemônica. Existem pelo menos duas maneiras pelas quais um regime global do dólar, na sua forma instrumental, pode se desenrolar. Alinhar regimes no Indo-Pacífico e no MENA com o pico do norte-atlântico da ordem mundial do dólar por meio de ajuda militar e monetária é o caminho previsível. (Países que recebem liquidez em dólares tendem a estar entrelaçados nas redes globais de bancos e redes militares dos EUA.)

Enquanto isso, defensores da estabilidade hegemônica benevolente, como Charles Kindleberger e Ronald McKinnon, advogavam pela desarticulação da ordem do dólar por meio do multilateralismo. Para McKinnon, isso significava que o Fed deveria levar a sério sua responsabilidade como banco central do mundo. (Isso não é uma tarefa fácil: conter a inflação por meio de aumentos nas taxas de juros tem resultados financeiros prejudiciais para economias em desenvolvimento que conduzem negócios e tomam empréstimos em dólares, e levanta questões sobre a capacidade de uma moeda soberana ser suficiente como moeda mundial estável.) O atual Fed, sob a gestão Powell, deu um passo nessa direção por meio de uma maior provisão de liquidez para governos. A rede de linhas de swap poderia ser expandida muito mais. Um complemento ainda mais democrático às linhas de swap implantaria  as tecnologias de vigilância e de investigação forense nas mãos do Fed e do Tesouro para acabar com a evasão fiscal e fechar os paraísos fiscais offshore. Um passo nessa direção – o acordo global mínimo de impostos do ano passado -ainda precisa ser implementado.

A declaração conjunta dos ministros de energia do G7, em 10 de março, em resposta à invasão da Ucrânia, defende caminhos mais limpos para a independência energética. Prometendo “fluxo ininterrupto de energia para as populações mais vulneráveis”, a declaração, à primeira vista, parece ser redigida por uma organização verde progressista, mas, em última instância, envolve a energia limpa no nacionalismo prejudicial da “segurança energética”. Políticas perversas podem advir desse casamento: Boris Johnson está buscando o dinheiro da Arábia Saudita para financiar uma planta de aviação sustentável no Reino Unido, ao mesmo tempo em que persuade a Arábia Saudita a aumentar a produção de petróleo.

Uma ordem mundial do dólar desarmada envolveria a provisão de renda básica para comunidades vulneráveis por meio de contas no Fed, reestruturação justa da dívida para economias pobres cujos futuros foram prejudicados por ônus de dívida onerosos (países com grande dívida denominada em dólares estão em maior risco de crises bancárias) e financiamento público para infraestrutura verde no Sul Global. No entanto, a economia mundial parece estar seguindo na direção oposta. Os gastos militares mundiais ultrapassaram a marca sem precedentes de dois trilhões de dólares em 2021. Os gastos dos EUA sozinhos representam quarenta por cento desse valor. Ao mesmo tempo, a campanha global para vacinar as nações mais pobres contra o vírus tem falhado. A administração americana tem a capacidade de desarmar a globalização. Mas isso exigiria uma mudança de estratégia longe do “fortalecimento de amizades” por meio de alianças militares e monetárias em direção a um verdadeiramente novo multilateralismo nos assuntos monetários internacionais. Renunciar a alguns dos privilégios exorbitantes do dólar pode libertar os EUA de parte dos fardos da hegemonia econômica.

Esse artigo foi traduzido do inglês por André Lucena.


In early 2020, the “dash for cash” in the US Treasury market prompted the Fed to relaunch its dollar swap lines, which it eventually did in mid-March of that year.…

Leia o artigo completo


What does the US dollar’s continued dominance in the global monetary and financial systems mean for geo-economic and geo-political power?

Leia o artigo completo


Why did the Ever Given capture our collective imaginations? At the end of its week in the spotlight, the poet Kamran Javadizadeh wrote: “I too am ‘partially refloated,’ I too…

Leia o artigo completo