29 de agosto de 2024

Análises

Levar o dinheiro a sério

Questionando suposições ortodoxas a respeito da neutralidade do dinheiro

A relação entre o mundo do dinheiro e o mundo social e material concreto é questão presente de longa data, ainda que nem sempre de modo explícito, na história do pensamento econômico. Somos rodeados de preços e pagamentos em dinheiro. Mas eles têm vida própria independente e distinta dos objetos aos quais estão vinculados? As coisas que acontecem no mundo do dinheiro podem afetar o mundo real?

A ideia de que a resposta a essas perguntas é ou deveria ser negativa é um dos eixos centrais dessa história. O dinheiro é ou deveria ser neutro—um registro passivo e uma medida para fatos sociais reais que existem independentemente dele. O uso da palavra real em economia como oposto de nominal e monetário, bem como em seu sentido ontológico cotidiano, não constitui apenas uma terminologia confusa: reflete um compromisso intelectual profundamente arraigado.

Já em 1752, podíamos ler a definição de David Hume:

O dinheiro não é mais que uma representação do trabalho e das commodities. […] Onde a moeda estiver disponível em maior profusão, sendo uma quantidade maior dela exigida para representar a mesma quantidade de bens, ela não poderá ter efeito algum, nem bom nem ruim.

Na virada para o século XXI, escutamos a mesma coisa sendo dita por Lawrence Meyer, membro do Federal Open Market Committee: “A política monetária não é capaz de influenciar variáveis reais–como produção e emprego”. Para Meyer, o dinheiro afeta somente “a inflação a longo prazo. De imediato, isso põe a estabilidade de preços […] como o objetivo de longo prazo direto, inequívoco e singular da política monetária”.

Comum a essas considerações é a perspectiva de que quantidades de dinheiro e pagamentos em dinheiro não passam de abreviaturas para as características e para o uso de objetos materiais concretos. São fenômenos neutros—meras designações, incapazes de mudar aspectos estruturais. Se o dinheiro for neutro, mudanças na oferta ou disponibilidade de dinheiro afetarão somente o nível dos preços, deixando inalterados os preços relativos e a produção.

Há também, claro, um longo histórico de argumentos a favor da posição contrária—de que o dinheiro é autônomo, que dinheiro e crédito são forças ativas que conferem forma ao mundo concreto de produção e troca, que não existe valor subjacente a que se referem preços em dinheiro. A maioria dessas perspectivas contrárias, no entanto, ocupam posições marginais na teoria econômica, ainda que tenham exercido influência em outros domínios.

A grande exceção, naturalmente, é Keynes. Há quem argumente, de fato, que o fator revolucionário da chamada revolução keynesiana foi precisamente o rompimento com a ortodoxia nessa questão. No período anterior à Teoria geral, Keynes explicou que a diferença entre a ortodoxia econômica e a nova teoria que buscava desenvolver, fundamentalmente, era a diferença entre a visão dominante da economia em termos do que ele chamou de “troca real” e uma visão alternativa que ele descreveu como “produção monetária”.

A teoria ortodoxa (nos tempos de Keynes tanto quanto nos dias atuais) tomou como ponto de partida uma economia na qual commodities eram trocadas por outras commodities, sendo o dinheiro introduzido em um estágio posterior, se introduzido, sem alterar as compensações materiais fundamentais nas quais se baseava a troca. A teoria de Keynes, em contraposição, descreveria uma economia em que o dinheiro não era neutro e na qual a organização da produção não poderia ser entendida em termos não monetários. Em suas palavras, seria a teoria de “uma economia na qual o dinheiro desempenha um papel próprio e afeta motivações e decisões […] de tal modo que não há como predizer o curso dos eventos, nem a longo nem a curto prazo, sem que se conheça o comportamento do dinheiro”.

Ainda que rejeitar a ideia de que o dinheiro é neutro possa parecer fácil, é muito mais difícil entender como o mundo do dinheiro e a realidade social concreta estão conectados. No livro que publicarei com Arjun Jayadev, exploramos a importância do dinheiro em quatro cenários: na determinação da taxa de juros; nos índices de preços e “quantidades reais”; nas finanças e na governança corporativas; e em relação a dívida e capital. A seguir, teço considerações sobre o primeiro cenário.

Desmascarando a taxa de juros como o preço da poupança

Há muito tempo, Axel Leijonhufvud argumentou que o cerne da confusão reinante na macroeconomia moderna é a teoria da taxa de juros. “Disputas inconclusivas […] que se arrastaram porque as partes em conflito não conseguiam chegar a um acordo sobre qual era a questão em jogo brotaram, em grande parte, dessa fonte”. Penso que isso ainda é substancialmente verdadeiro. Há uma incompatibilidade básica entre a teoria da taxa de juros como preço da poupança ou do tempo e a taxa monetária de juros que observamos no mundo real.

A ortodoxia concebe a taxa de juros como o preço da poupança ou dos fundos emprestáveis—em outras palavras, como a compensação entre o consumo presente e o consumo futuro. Juro, nesse sentido, é um conceito fundamentalmente não monetário. É o preço de duas commodities, respaldado pelo mesmo equilíbrio entre escassez e necessidade humana que constitui a base de outros preços. A compensação entre uma camisa hoje e uma camisa no próximo ano, expressa na taxa de juros, não é diferente da compensação entre uma camisa de algodão e uma de linho ou entre uma de mangas curtas e uma de mangas compridas. Ocorre que determinadas commodities se diferenciam quanto ao tempo e não quanto a qualquer outra qualidade.

Nessa visão, empréstimos monetários são semelhantes a empréstimos de objetos tangíveis. Digamos que eu tenha um pouco de açúcar. Meu vizinho bate à porta e o pede emprestado. Se eu o emprestar, desistirei de usá-lo hoje. Amanhã o vizinho me devolverá a mesma quantidade de açúcar e mais um extra—talvez um dos biscoitos que usou com ela. Qualquer renda que você receba da propriedade de um ativo—quer a chamemos de juros, lucro ou biscoitos—é uma recompensa pelo adiamento do uso dos serviços concretos que o ativo proporciona.

Essa forma de ver os juros é onipresente na economia. No início do século XIX, Nassau Senior descreveu os juros como recompensa por abstinência, o que lhes confere um apropriado ar de moralidade protestante. Nos livros didáticos de hoje, como o de Gregory Mankiw, por exemplo, encontramos a mesma ideia expressa em linguagem mais neutra: “Poupança e investimento podem ser interpretados em termos de oferta e procura […] de fundos emprestáveis—as famílias emprestam sua poupança para investidores ou depositam sua poupança em algum banco que, em seguida, emprega esses fundos para conceder empréstimos”.

É um tanto nebuloso como exatamente devemos imaginar esses fundos, mas claramente eles existem desde antes de o banco entrar em cena. Como no caso do açúcar, se seu dono não o estiver usando naquele momento, pode emprestá-lo a outra pessoa e obter uma recompensa por isso. Dinheiro e finanças não entram nessa história. Como explica Mankiw, os investidores podem tomar emprestado diretamente do público ou podem fazê-lo indiretamente via bancos—a lógica econômica é a mesma nos dois casos.

Podemos questionar essa narrativa por várias perspectivas. Uma das críticas—feita pela primeira vez por Piero Sraffa em um famoso debate com Friedrich Hayek, há cerca de 100 anos—é que, em um mundo não monetário, cada mercadoria terá uma taxa de juros própria e distinta. Digamos que um quilo de farinha seja negociado por 1,1 quilo de farinha daqui a um ano. Por quanto um quilo de açúcar será negociado hoje? Se, ao longo do ano em curso, seu preço de uso aumentar em relação ao preço da farinha, então certa quantidade de açúcar hoje será negociada, daqui a um ano, por uma quantidade de açúcar menor do que a mesma quantidade de farinha. A menos que o preço relativo da farinha e o preço do açúcar tenham sido fixados, suas taxas de juros serão diferentes. A farinha será negociada hoje a uma taxa pela farinha no futuro, o açúcar a uma taxa diferente; o uso de um carro ou uma casa, um quilowatt de eletricidade e assim por diante será negociado pela mesma coisa no futuro em taxas próprias, refletindo as condições reais e esperadas nos mercados para cada uma dessas mercadorias. Não há como dizer que qualquer uma dessas inúmeras taxas próprias é “a” taxa de juros.

Discussões cuidadosas sobre a taxa natural de juros reconhecerão que ela só é definida com base na suposição de que os preços relativos nunca mudam.

Outro problema é que a narrativa da poupança pressupõe que a coisa a ser emprestada—quer se trate de uma mercadoria específica, quer se trate de fundos genéricos—já existe. Mas, na economia monetária em que vivemos, a produção é realizada para venda. Coisas que não são compradas não serão produzidas. Quando você decide não consumir algo, você não está tornando essa coisa disponível para outra pessoa. Em vez disso, você reduz a produção e a receita dos produtores na mesma proporção que reduz o próprio consumo.

Lembre-se de que poupança é a diferença entre receita e consumo. Como indivíduo, você pode determinar a minha receita ao decidir quanto consumir. Nesse caso, consumir menos significa poupar mais. Mas, no nível da economia como um todo, a receita não é independente do consumo. A decisão de consumir menos não aumenta a poupança agregada, ela diminui a receita agregada. Essa é a falácia do consumo enfatizada por Keynes: decisões individuais sobre consumo e poupança não têm efeito sobre a poupança agregada. Assim, a forma como se determina a taxa de juros está diretamente ligada à ideia de restrições na demanda.

Ou então, em vez de criticar a narrativa dos fundos emprestáveis, podemos iniciar por outro lado, a saber, pelo mundo monetário em que realmente vivemos. Veremos, então, que transações de crédito não implicam o tipo de compensação entre presente e futuro enfocada pela ortodoxia.

Digamos que você esteja comprando uma casa. No dia em que toma a decisão de compra, você vai ao banco para finalizar sua hipoteca. O gerente do banco coloca duas entradas no livro razão: uma delas é um crédito em sua conta e uma obrigação para o banco, o que chamamos de depósito. A outra entrada, de valor igual e compensatório, é um crédito na conta do próprio banco e uma obrigação para você. É o que chamamos de empréstimo. A primeira é uma nota promissória que o banco emite para você, pagável a qualquer momento. A segunda é uma nota promissória que você emite para o banco, com pagamentos mensais especificados que, nos EUA, normalmente se estendem pelos 30 anos seguintes. Como notas promissórias comuns, essas entradas no livro razão são criadas simplesmente mediante registro—antigamente, eram chamadas de dinheiro de “caneta-tinteiro” (fountain-pen money).

O depósito é, então, transferido imediatamente para o vendedor, em troca do título de propriedade da casa. Para o banco, isso significa simplesmente mudar o nome de quem recebeu o depósito—de fato, você informa o banco que a dívida devida por ele a você deverá ser paga ao vendedor. No balanço do banco, um ativo foi trocado por outro—no caso, o depósito de 250 mil dólares por uma casa no valor de 250 mil dólares. O vendedor faz a troca oposta: o título de propriedade de uma casa por uma promissória de igual valor emitida pelo banco.

Como podemos ver, aqui não há poupança nem resgate de poupança. Há somente a troca de ativos de igual valor. Essa hipoteca não é um empréstimo de fundos preexistentes ou de qualquer outra coisa. Ninguém teve que fazer primeiro um depósito no banco para que esse empréstimo fosse possível. O depósito—o dinheiro—foi criado no próprio processo de fazer o empréstimo. O sistema bancário não canaliza poupança para empréstimos, mas admite uma troca de promessas.

Falar que se coloca dinheiro no banco é impreciso. O registro do banco é o dinheiro. Em certo nível, isso é de conhecimento geral. Mas raramente se reflete a fundo sobre as implicações mais amplas disso. Em que consiste essa transação? Em um conjunto de promessas. O banco fez uma promessa aos tomadores de empréstimo e os tomadores de empréstimo fizeram uma promessa ao banco. Em seguida, a promessa do banco foi transferida para os vendedores, que, por sua vez, podem transferi-la para alguma terceira parte. O banco é necessário aqui pela simples razão de que você não pode fazer uma promessa diretamente ao vendedor.

Você está disposto a fazer uma promessa de pagamentos futuros cujo valor presente é maior do que o valor que o vendedor estipula para a sua casa. Aceitar esse negócio será vantajoso para ambos os lados. Mas você não consegue fechar esse negócio porque sua promessa de pagamentos pelos próximos trinta anos não é confiável. A outra parte não sabe se você conseguirá cumprir a promessa. Ela não tem como forçar seu cumprimento. E mesmo que ela confie em você, em razão de parentesco ou outro relacionamento, outras pessoas não confiarão, pois o vendedor não tem como transformar sua promessa de pagamento em uma reivindicação imediata de outras coisas que ele possa querer.

A teoria ortodoxa parte da suposição de que todos podem contratar livremente receita e commodities em qualquer data no futuro. A conhecida equação de Euler é baseada na ideia de que você pode alocar sua receita de qualquer período futuro para consumo no presente ou vice-versa. Essa é a estrutura dentro da qual a taxa de juros parece uma compensação entre presente e futuro. Mas você não entenderá os juros em uma estrutura que abstrai justamente a função que dinheiro e crédito desempenham em economias reais.

O papel fundamental de um banco, como acentuou Hyman Minsky, não é de intermediação, mas de aceitação. Os bancos funcionam como terceiros que ampliam a gama de transações que podem ocorrer com base em promessas. Você está disposto a se comprometer com um fluxo de pagamentos em dinheiro para obter direito legal sobre a casa. Mas isso não é suficiente para adquirir a casa. O banco, em contrapartida, precisamente porque suas promessas são amplamente confiáveis, está em condições de aceitar uma promessa sua.

Os juros não são pagos porque o consumo hoje é mais desejável do que o consumo no futuro. Os juros são pagos porque é difícil fazer promessas confiáveis a respeito do futuro.

Juros como preço da liquidez

O custo do empréstimo hipotecário não advém do fato de alguém ter postergado seus gastos. O custo advém do fato de que os balanços das duas partes envolvidas na transação passaram a ter menos liquidez. Podemos pensar na liquidez em termos de flexibilidade—um ativo ou uma posição de balanço tem liquidez na medida em que amplia seu leque de opções. Menos liquidez significa menos opções.

Para você, como comprador do imóvel, o resultado da transação é que você se comprometeu com um conjunto de pagamentos fixos de dinheiro pelos próximos trinta anos e adquiriu os direitos legais associados à propriedade de uma casa. Esses direitos provavelmente valem mais para você do que o aluguel de uma casa que você poderia assumir com um fluxo semelhante de pagamentos em dinheiro. Mas o título de propriedade da casa não pode ser facilmente transformado em dinheiro e, portanto, em reivindicação de outras parcelas do produto social. A propriedade da casa implica—para o bem ou para o mal—um compromisso de longo prazo de viver em um lugar específico. A compensação que o comprador da casa faz ao tomar o empréstimo não é consumir mais hoje em troca de consumir menos amanhã. É um nível mais alto de consumo hoje e amanhã em troca de flexibilidade reduzida em termos de orçamento e de escolha do lugar onde viver. Tanto o compromisso de fazer os pagamentos da hipoteca quanto a não fungibilidade da propriedade da casa reduzem a margem de manobra para que o comprador da casa se adapte a acontecimentos inesperados no futuro.

Em contraposição, o banco adicionou uma obrigação de depósito que exige pagamento a qualquer momento e um ativo hipotecário que contém uma promessa de pagamento restrita a um cronograma fixo futuro. Isso também reduz a margem de manobra do banco. Ele está exposto não só ao risco de que o tomador do empréstimo não faça seus pagamentos, mas também ao risco de perda de capital se as taxas de juros aumentarem durante o período em que ele detém a hipoteca e ao risco de não conseguir vender a hipoteca em caso de emergência ou de conseguir vendê-la apenas por um preço inesperadamente baixo. Como mostram exemplos reais recentes, a saber, o do Silicon Valley Bank, os últimos riscos mencionados podem, na prática, ser muito mais sérios do que o risco de inadimplência. O banco que faz o empréstimo corre o risco fragilizar seu balanço.

Ou, nos termos em que Keynes formula a questão em artigo de 1937: “Pode-se considerar que a taxa de juros […] é determinada pela interação entre os termos em que o público deseja ter mais ou menos liquidez e os termos em que o sistema bancário está disposto a ter mais ou menos falta de liquidez”.

É claro que, no mundo real, as coisas são mais complicadas. O banco não precisa esperar até que os pagamentos da hipoteca sejam feitos no prazo programado. Ele pode transferir a hipoteca para um terceiro, trocando parte da expectativa de receita por uma posição de maior liquidez. O comprador pode ser alguma outra instituição financeira em busca de uma posição mais próxima da ponta da receita na compensação entre liquidez e receita, talvez com várias camadas de balanços entre elas. Ou os compradores podem ser os provedores profissionais de liquidez do Banco Central.

A propósito, há uma pergunta que as pessoas não fazem com frequência suficiente: como é que o Banco Central consegue definir a taxa de juros? A resposta é esta: o Banco Central não tem nenhuma participação no mercado de fundos emprestáveis.

Mas os bancos centrais atuam muito no negócio de liquidez. Afinal, trata-se de política monetária e não de política de poupança.

Isso indica, entre outras coisas, que não há diferença fundamental entre a política monetária rotineira e o papel do Banco Central como regulador e credor de última instância; todas essas atividades tratam de gerenciar o nível de liquidez dentro do sistema financeiro. Qual é o grau de facilidade em cumprir com as obrigações? Ser for muito difícil, a rede de obrigações se rompe. Se for muito fácil, a rede de obrigações monetárias perde sua capacidade de moldar nossa atividade e não serve mais como um dispositivo de coordenação eficaz.

Na condição de preço do dinheiro—preço da flexibilidade em fazer pagamentos em oposição a compromissos fixos—, a taxa de juros é um parâmetro central de qualquer economia monetária. A metáfora das condições “apertadas” ou “frouxas” para taxas de juros altas ou baixas capta uma verdade importante sobre a conexão entre juros e a flexibilidade ou rigidez do sistema financeiro. Taxas de juros altas correspondem a uma situação em que promessas de pagamento futuro valem menos em termos de gerenciar recursos hoje. Quando é mais difícil obter controle sobre recursos reais com promessas de pagamento futuro, o padrão dos pagamentos de hoje está mais intimamente ligado à receita de ontem. Inversamente, taxas de juros baixas significam que uma promessa de pagamentos futuros contribui muito para garantir recursos hoje. Por isso, reivindicações de recursos reais dependem menos de receitas obtidas no passado e mais de crenças no futuro. E como as mudanças na taxa de juros sempre ocorrem em um ambiente de compromissos monetários preexistentes, os juros também atuam como uma variável de escala, reponderando as reivindicações dos credores em vista da receita dos devedores.

Há uma incompatibilidade básica entre a teoria da taxa de juros como preço da poupança ou do tempo e as taxas monetárias de juros que observamos no mundo real. E, se levarmos a sério a ideia de juros como o preço da liquidez, vemos por que o dinheiro não pode ser neutro—porque as condições financeiras invariavelmente influenciam a composição tanto quanto o nível da despesa.

Juros e expectativas

Além das transações de crédito, outro cenário em que os juros aparecem no mundo real é o do preço de ativos existentes. Uma promessa de pagamentos futuros em dinheiro se torna um objeto com direito próprio, distinto desses pagamentos em si. Comecei dizendo que todos os tipos de objetos tangíveis possuem um duplo indistinto no mundo do dinheiro. Mas um fluxo de pagamentos em dinheiro também pode adquirir um duplo fantasma. Uma promessa de pagamento futuro cria um novo direito de propriedade, com seu proprietário e seu preço de mercado.

Quando focamos nossa atenção nesse fato, vemos que a convenção tem um papel importante na determinação dos juros. Em considerável medida, os preços de títulos—e, por isso, as taxas de juros—são o que são porque é isso que os participantes do mercado esperam que sejam.

Um título corporativo promete um conjunto de pagamentos futuros. É fácil, em um mundo teórico de certeza, falar como se o título consistisse apenas desses pagamentos futuros. Mas não é o caso. E isso não só porque pode haver falta de pagamento, o que é fácil de incorporar ao modelo. Não só porque qualquer título real foi emitido em uma determinada jurisdição e transmite direitos e obrigações que vão além do pagamento de juros—embora essas outras características sempre existam e às vezes possam ser importantes. Mas também porque o título pode ser negociado e tem um preço que pode mudar independentemente do fluxo de pagamentos futuros.

Se a taxa de juros cai, o preço do seu título subirá—e essa possibilidade mesma é um fator que atua sobre o preço do título. Isso ajuda a explicar uma anomalia amplamente reconhecida nos mercados financeiros. A hipótese da expectativa diz que a taxa de juros sobre um título mais longo deve ser a mesma que a média de taxas mais curtas no mesmo período ou, ao menos, que as taxas devem estar relacionadas por uma bonificação de prazo estável. Isso parece uma arbitragem direta, mas falha completamente, mesmo em sua forma mais fraca.

A resposta a esse quebra-cabeças é parte importante do argumento de Keynes em A teoria geral. Os participantes do mercado não estão interessados apenas nos dois fluxos de pagamento. Eles estão interessados no preço do próprio título de longo prazo.

Lembre-se de que o preço de um ativo sempre se move inversamente ao do seu rendimento. Quando as taxas de certo tipo de instrumento de crédito sobem, o preço desse instrumento cai. Digamos que é amplamente aceito que um título de dez anos dificilmente será negociado abaixo de 2% por muito tempo. Então você seria tolo se o comprasse com um rendimento muito abaixo de 2%, porque enfrentará uma perda de capital quando os rendimentos retornarem ao seu nível normal. E, se a maioria das pessoas acredita nisso, então o rendimento nunca cairá abaixo de 2%, não importa o que aconteça com as taxas de curto prazo.

No mundo real, em que o futuro é incerto e os compromissos monetários têm sua própria existência independente, faz muito sentido que as taxas de juros, especialmente as de prazo mais longo, sejam o que são porque é isso que as pessoas esperam que sejam.

Uma implicação importante daí decorrente é que não podemos pensar em várias taxas de juros de mercado como simplesmente “as” taxas de juros acrescidas de uma bonificação de risco. Diferentes taxas de juros podem se mover independentemente por razões que nada têm a ver com o risco de crédito.

A taxa “natural”

Por um lado, temos um corpo teórico construído sobre a ideia “da” taxa de juros como uma compensação entre consumo presente e consumo futuro. Por outro, temos as taxas de juros reais, estabelecidas no sistema financeiro de maneiras bem diferentes.

Às vezes, as pessoas tentam a quadratura do círculo mediante a ideia de uma taxa natural. Elas dizem: claro que sabemos sobre liquidez, sobre a bonificação de prazo e sobre a importância de diferentes tipos de intermediários financeiros e regulamentação. Ainda assim, queremos continuar usando o modelo intertemporal que nos foi ensinado na pós-graduação. Conciliamos isso tratando esse modelo como uma análise do que a taxa de juros deveria ser. É certo que os bancos estabelecem taxas de juros de todas as maneiras, mas há apenas uma taxa de juros consistente com preços estáveis e, em termos mais amplos, com o uso apropriado dos recursos da sociedade. Nós a chamamos de taxa natural.

Essa ideia foi formulada pela primeira vez em torno da virada para o século XX pelo economista sueco Knut Wicksell. Mas seu enunciado moderno mais influente provém de Milton Friedman. Friedman apresenta a taxa natural de juros, junto com sua prima próxima, a taxa natural de desemprego, em seu discurso de posse como presidente da American Economics Association em 1968, descrito como o artigo mais influente em economia desde a Segunda Guerra Mundial. Nele, as taxas naturais correspondem às taxas que seriam “moldadas pelo sistema walrasiano de equações de equilíbrio geral, desde que estejam embutidas nelas as características estruturais reais dos mercados de trabalho e de commodities, incluindo imperfeições de mercado, variabilidade de estoque quanto a procuras e ofertas, o custo da coleta de informações […] e assim por diante”.

O atrativo do conceito é evidente: ele provê uma ponte entre o mundo não monetário de troca intertemporal encontrado na teoria econômica e o mundo monetário de contratos de crédito no qual realmente vivemos. Ao fazê-lo, transforma a narrativa intertemporal de narrativa descritiva em narrativa prescritiva—de um relato de como as taxas de juros são determinados em uma narrativa de como os bancos centrais devem conduzir a política monetária.

O presidente do Fed, Jerome Powell, deu um bom exemplo de como os banqueiros centrais pensam sobre a taxa natural em discurso proferido há alguns anos. Ele apresenta a taxa natural de juros R* com o seguinte enunciado: “Em modelos convencionais da economia, as quantidades econômicas mais vultosas […] flutuam em torno de valores considerados ‘normais’ ou ‘naturais’ ou ‘desejados’”. R* reflete “visões sobre os valores normais de longo prazo para […] a taxa dos fundos federais”, que são baseados em “características estruturais fundamentais da economia”.

Perceba-se aqui a confusão dos termos “normal”, “natural” e “desejado”, três palavras com significados bem diferentes. R* aparentemente é para ser a taxa média de juros de longo prazo e a taxa de juros que teríamos em um mundo regido somente por fundamentos, e a taxa de juros que entrega os melhores resultados políticos.

Essa mescla é uma característica ubíqua e essencial das discussões sobre taxa natural. A exemplo do acoplamento controlado de dois discos da embreagem de um carro, ela permite que sistemas que se movem de maneiras bem diferentes sejam interligados sem que nenhum dos lados se quebre devido à tensão. A ambiguidade desses significados distintos é em si normal, natural e desejada.

O Banco Central Europeu (BCE) talvez faça um enunciado ainda melhor: “No seu nível mais básico, a taxa de juros é o ‘preço do tempo’—a remuneração por postergar o gasto para o futuro”. R* corresponde a isso. É uma taxa de juros determinada por fatores puramente não monetários, que não deveria ser afetada por evoluções no sistema financeiro. Infelizmente, a taxa de juros real pode destoar disso. Nesse caso, o BCE diz que a taxa natural, “embora não observável […], fornece um marco útil para a política monetária”. A ideia de um marco não observável destila perfeitamente a contradição incorporada na ideia de R*.

Um modelo de fundos emprestáveis constitui uma descrição simplesmente equivocada do que é a taxa de juros. Mas quando é transformado em modelo da taxa natural, ele nem sequer está errado. Ele não tem nenhum conteúdo. Não há como conectar qualquer dos termos do modelo com qualquer fato observável no mundo.

Quando retornamos à formulação de Friedman, percebemos o problema: não dispomos de nenhum modelo que incorpore todas as “características estruturais reais” da economia. Para uma economia cujas estruturas evoluem no tempo histórico, não faz sentido sequer imaginar tal coisa.

Na prática, a taxa natural de curto prazo é definida como aquela que resulta em inflação na meta—ou seja, qualquer taxa de juros que o Banco Central prefira. A taxa natural de longo prazo é comumente definida como a taxa de juros real em que “todos os mercados estão em equilíbrio e, portanto, não há pressão para que sejam redistribuídos quaisquer recursos ou para que mudem as taxas de crescimento de alguma variável”. Nesse hipotético estado estabilizado, a taxa de juros depende apenas das mesmas características estruturais que supostamente determinam o crescimento de longo prazo—a taxa de progresso técnico, o crescimento populacional e a disposição dos orçamentos domésticos de adiar o consumo.

Mas não há como passar do curto prazo para o longo prazo. O mundo real nunca está em uma situação em que todos os mercados estão em equilíbrio. Às vezes podemos até identificar tendências de longo prazo. Mas não há razão para pensar que as únicas variáveis que importam para essas tendências são as que escolhemos focar em uma classe particular de modelos. Todas essas “características estruturais reais” continuam a existir no longo prazo.

O máximo que podemos dizer é: enquanto houver alguma relação razoavelmente consistente entre a política de taxa de juros definida pelo Banco Central e a inflação, ou qualquer que seja sua meta, haverá algum nível da política de taxa de juros que levará à meta. Mas não há como identificar isso com “a taxa de juros” de um modelo teórico. O nível atual de gastos agregados na economia depende de todo tipo de fatores contingentes e institucionais—do sentimento, das escolhas feitas no passado, de toda a gama de políticas governamentais. Se você perguntar que política de taxa de juros mais provavelmente moverá a inflação em direção a 2%, tudo isso importará tanto quanto os supostos fundamentos.

O melhor que você pode fazer é estabelecer a política de juros de acordo com alguma regra prática ou algum processo de sua preferência e, então, diante do fato consumado, dizer que deve haver algum modelo em que essa seria a escolha ideal.

Conclusões

Quais são as implicações disso? Em primeiro lugar, com relação à política monetária, admitamos que ela envolve escolhas políticas feitas para atingir uma variedade de objetivos sociais muitas vezes conflitantes. Em segundo lugar, reconhecer que o juro é o preço da liquidez, estipulado pelos mercados financeiros, é importante para o modo como pensamos sobre a dívida soberana. A terceira grande lição, talvez a maior, é que dinheiro nunca é neutro.

Há uma narrativa muito difundida sobre crises fiscais que é mais ou menos assim: o equilíbrio fiscal de um governo (superávit ou déficit) ao longo do tempo determinaria sua proporção dívida-PIB. O fato de um país ter uma dívida alta em relação ao PIB seria resultado de gastos excessivos em relação às receitas fiscais. A proporção da dívida determinaria a confiança do mercado: investidores privados não querem comprar a dívida de um país que já emitiu muito. Consequentemente, o estado da confiança do mercado determinaria a taxa de juros a ser enfrentada pelo governo, ou até mesmo se esse governo poderá contrair empréstimos. Ainda, há um limite claro em que dívida alta e taxas de juros altas tornam a dívida insustentável. Austeridade seria o requisito inevitável depois que esse limite é ultrapassado. E, por fim, quando a austeridade tivesse restaurado a sustentabilidade da dívida, isso contribuiria para o crescimento econômico.

Se você aceitar as premissas, as conclusões seguem logicamente. Melhor ainda, elas oferecem o espetáculo satisfatório da arrogância do setor público se deparando com sua nêmesis. Porém, quando olhamos para a dívida como um fenômeno monetário, vemos que sua dinâmica não corre por trilhos tão bem azeitados.

Antes de tudo, como questão histórica, diferenças de crescimento, inflação e taxa de juros são pelo menos tão importantes quanto a situação fiscal para determinar a evolução da proporção da dívida ao longo do tempo. Onde a dívida já é alta, um crescimento moderadamente mais lento ou taxas de juros mais altas podem facilmente aumentar a proporção da dívida mais rápido do que até superávits bem grandes poderiam reduzi-la—como muitos países sujeitos à austeridade descobriram. Em contrapartida, o rápido crescimento econômico e taxas de juros baixas podem levar a reduções muito grandes na proporção da dívida sem que o governo tenha superávits, como aconteceu nos EUA e no Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, em meados da década de 1990, a Irlanda reduziu sua proporção dívida-PIB em vinte pontos em apenas cinco anos, graças ao crescimento muito rápido durante o período do “tigre celta”, enquanto continuava a ter déficits substanciais.

Dando mais um passo, a demanda do mercado por dívida governamental claramente não é uma avaliação “objetiva” da situação fiscal, mas reflete condições mais amplas de liquidez e as expectativas convencionais autoconfirmadas de mercados especulativos. A alegação de que a taxa de juros reflete a solidez ou não dos orçamentos públicos esbarra em um problema gritante: os mercados financeiros que rejeitaram os títulos de um país num dia geralmente são os mesmos que os haviam comprado avidamente no dia anterior. Os mesmos mercados que fizeram a taxa de juros sobre títulos espanhóis, portugueses e gregos dispararem em 2010 foram os que abocanharam suas dívidas públicas e privadas a taxas baixíssimas em meados dos anos 2000. E são os mesmos mercados que voltaram a comprar a dívida desses países em níveis historicamente baixos hoje, mesmo que seus índices de dívida, em muitos casos, permanecessem muito altos.

Pessoas como Alberto Alesina insistem em que a taxa de juros pós-crise refletiu uma avaliação objetiva do estado das finanças públicas e que as baixas taxas anteriores à crise resultaram de uma bolha especulativa. Mas não há como afirmar as duas coisas.

Isso não quer dizer que os mercados financeiros nunca sejam uma restrição aos orçamentos governamentais. Para a maior parte do mundo, que não conta com a cobertura de um Fed ou BCE, eles são. Mas nunca devemos imaginar que as condições financeiras são um reflexo objetivo da situação fiscal de um país ou do equilíbrio entre poupança e investimento.

Se a taxa de juros constitui um preço, esse preço não é a “poupança” ou a disposição de esperar. Ele não é a “remuneração por adiar gastos”, como diz o BCE. Em vez disso, é a capacidade de fazer e aceitar promessas. E essa capacidade realmente importa quando as finanças são usadas não só para reorganizar reivindicações de ativos e recursos existentes, mas também para organizar a criação de novas. As vantagens técnicas de meios de produção de longa duração e organizações especializadas só podem ser aproveitadas se as pessoas estiverem em posição de assumir compromissos de longo prazo. E, em um mundo em que a produção é organizada principalmente por meio de pagamentos em dinheiro, isso, por sua vez, depende do grau de liquidez.

A todo momento, há um número infinito de maneiras pelas quais parte dos recursos da sociedade poderia ser reorganizada para gerar maiores receitas e usar valores com expectativa de ganho. Você poderia abrir um restaurante ou construir uma casa ou obter um diploma ou escrever um programa de computador ou encenar uma peça. Os recursos físicos para essas atividades não são escassos; o valor presente da receita que eles podem gerar excede seus custos a qualquer taxa de desconto razoável. Escassa é a confiança. Ao inaugurar um projeto, você precisa reivindicar recursos da sociedade agora e a sociedade deve aceitar sua promessa de benefícios futuros. A hierarquia do dinheiro permite que os participantes de vários projetos coletivos substituam a confiança em um terceiro pela confiança uns nos outros. Porém a confiança continua sendo o recurso escasso.

Dentro da economia, algumas atividades são mais intensivas em confiança ou restritas em termos de liquidez do que outras:

  • A liquidez é um problema maior quando há uma distância maior entre desembolsos e recompensas e quando as recompensas são mais incertas.
  • A liquidez é um problema maior quando o tamanho do desembolso necessário é maior.
  • Liquidez e confiança são mais importantes quando as decisões são irreversíveis.
  • Confiança é mais importante quando algo novo está sendo feito.
  • Confiança é mais escassa quando se trata de coordenação entre pessoas sem qualquer relacionamento anterior.

Esses são os problemas que dinheiro e crédito ajudam a resolver. Dinheiro abundante não só leva as pessoas a pagarem mais pelos mesmos bens, mas também direciona seus gastos para coisas que exigem pagamentos iniciais maiores e compromissos de prazo mais longo e que são mais arriscados.

Em cenários com relacionamentos continuados, o dinheiro é menos importante como mecanismo de coordenação. Os mercados são para transações entre estranhos em condições de igualdade.

A versão dada a essa narrativa por Minsky enfatiza que temos de pensar sobre dinheiro em termos de dois preços: produção atual e ativos de longa duração. Ativos de longa duração precisam ser financiados—adquirir um deles normalmente exige assumir o compromisso com uma série de pagamentos futuros. Nesse caso, seu preço é sensível à disponibilidade de dinheiro. Um aumento na oferta de dinheiro—contra Hume e Meyer—não aumentará todos os preços em uníssono. Ele aumentará desproporcionalmente o preço de ativos de longa duração, encorajando sua produção. E justamente os ativos de longa duração constituem a base da produção industrial moderna.

O valor relativo dos bens de capital e a escolha entre técnicas de produção mais e menos intensivas em capital dependem da taxa de juros. Os bens de capital—e as corporações e outras entidades de longa duração que os utilizam—são, por sua natureza, ilíquidos. A disposição dos donos de riqueza de comprometer sua riqueza com essas formas depende, portanto, da disponibilidade de liquidez. Não podemos analisar as condições de produção primeiro em termos não monetários e depois adicionar dinheiro e juros à narrativa. As próprias condições de produção dependem fundamentalmente da rede de pagamentos em dinheiro e dos compromissos que as estruturam e do quanto essa rede é flexível.

Levar o dinheiro a sério exige que reconceituemos a economia real.

A ideia da taxa de juros como preço da poupança pressupõe, como mencionei, que a produção já exista para ser consumida ou poupada. De modo similar, a ideia de juros como um preço intertemporal—o preço do tempo, como diz o BCE—implica que a produção futura já esteja determinada, pelo menos probabilisticamente. Não podemos negociar o consumo atual pelo consumo futuro, a menos que o consumo futuro já exista para ser negociado por nós.

Wicksell, que fez tanto quanto qualquer outro para criar a arquitetura da taxa natural dos bancos centrais de hoje, captou esse aspecto perfeitamente quando comparou o crescimento econômico a barris de vinho envelhecendo na adega. O vinho já existe. O problema se limita a decidir quando abrir os barris—você gostaria de beber um pouco de vinho agora, mas sabe que o vinho ficará melhor se você esperar.

Em contextos políticos, isso corresponde à ideia de um nível de produção potencial (ou pleno emprego) que é dado pelo lado da oferta. A capacidade produtiva da economia já existe; o máximo que o dinheiro ou a demanda podem fazer é gerenciar os gastos agregados para que a produção fique próxima dessa capacidade.

É partindo dessa perspectiva que pessoas como Lawrence Meyer ou Paul Krugman dizem, no que se refere a esse tema, que a política monetária só pode afetar os preços no longo prazo. Pressupõem que a produção potencial já esteja dada.

Porém uma das grandes lições que aprendemos nos últimos quinze anos de instabilidade macroeconômica é que o potencial produtivo da economia é muito mais instável e muito menos certo do que os economistas costumavam pensar. Vimos que a força de trabalho cresce e diminui em resposta às condições do mercado de trabalho. Vimos que o investimento e o crescimento da produtividade são altamente sensíveis à demanda. Se a falta de gastos faz com que a produção fique aquém do potencial hoje, o potencial será menor amanhã. E se a economia ficar aquecida por um tempo, a produção potencial aumentará.

Percebemos a mesma coisa no plano das indústrias individuais. Um dos desenvolvimentos mais marcantes e encorajadores dos últimos anos foi a rápida queda nos custos de geração de energia renovável. Está claro que essa queda nos custos é resultado, tanto quanto causa, do rápido crescimento nos gastos com essas tecnologias. E isso, por sua vez, deve-se, em grande parte, a políticas bem-sucedidas para direcionar crédito para essas áreas. Uma perspectiva que vê o dinheiro como epifenômeno da “economia real” da produção teria descartado essa possibilidade.

Levar o dinheiro a sério como domínio social autônomo próprio significa reconhecer que a realidade social e material não é como o dinheiro. Não podemos pensá-la em termos de um conjunto de objetos existentes a serem alocados entre usos ou ao longo do tempo. Produção não é uma quantidade de capital e uma quantidade de trabalho sendo combinadas em uma função de produção. É atividade humana organizada, coordenada de várias maneiras, visando à transformação aberta de um mundo em que não há como conhecer os resultados com antecedência.

Pelo lado negativo, isso significa que devemos ser céticos a respeito de qualquer conceito econômico descrito como “natural” ou “real”. Com bastante frequência, esses conceitos são uma tentativa de introduzir dissimuladamente a visão de uma economia não monetária fundamentalmente diferente da nossa ou uma tentativa de disfarçar uma reivindicação normativa como alegação concreta ou ambas as coisas.

Por exemplo, devemos ser cautelosos em relação a uma taxa de juros “real”. Esse termo é onipresente, mas sugere implicitamente que a transação subjacente é uma troca de bens de hoje por bens de amanhã, que por acaso assume a forma monetária. Mas, na verdade, é uma troca de promissórias—um conjunto de pagamentos em dinheiro por outro. Não há razão para que o preço relativo do dinheiro versus commodities seja introduzido aqui. De fato, de uma perspectiva histórica anterior à era dos bancos centrais com suas metas de inflação, não havia nenhuma relação particular entre inflação e taxa de juros.

Também devemos ser céticos quanto à ideia de PIB real ou de nível de preços. Esse é outro grande tema do livro, mas extrapola o escopo deste artigo.

Pelo lado positivo, penso que essa perspectiva é uma preparação essencial para explorar quando e em quais contextos as finanças são importantes para a produção. Obviamente, na realidade, a maior parte da produção é coordenada de maneiras não mercantis, tanto dentro das empresas—que são economias planejadas internamente—quanto por meio de várias formas de planejamento econômico global. Mas também há casos em que a distribuição de cobranças monetárias por meio do sistema financeiro é muito importante. Entender que atividades específicas são restringidas por meio do crédito e em que circunstâncias isso acontece me parece ser uma área de pesquisa importante, especialmente no contexto das mudanças climáticas.

Permitam-me mencionar mais uma direção para a qual acho que essa perspectiva aponta.

Como sugeri, a ideia da taxa de juros como o preço do tempo e a visão mais ampla de troca real da qual ela faz parte tratam os fluxos de dinheiro e agregados como substitutos de uma economia real não monetária subjacente. Pessoas que adotam essa visão tendem a não se preocupar especialmente com o modo exato como os valores monetários são construídos. Que taxa, dentre o complexo das taxas de juros, é “a” taxa de juros? Qual das várias taxas de inflação possíveis, e durante que período, devemos subtrair para obter a taxa de juros “real”? Exatamente que pagamentos são incluídos no PIB e o que fazer se isso mudar ou se divergir de um país para outro?

Se pensarmos os valores monetários apenas como representantes de algum valor “real” subjacente, as respostas a essas perguntas não importam realmente. Por outro lado, se você achar que os valores monetários constituem o que é real de fato – se você não acha que eles são representantes de alguma quantidade material subjacente—, você terá de se preocupar muito com a maneira como eles são calculados. Se a taxa de juros realmente equivale aos pagamentos de um contrato de empréstimo e não a alguma taxa de câmbio hipotética entre passado e futuro, você deverá obter clareza sobre que contrato de empréstimo tem em mente.

Na mesma linha, a maioria dos economistas trata os objetos de investigação como as relações causais subjacentes na economia, como aquelas “características estruturais fundamentais” que se supõe que sejam estáveis ao longo do tempo. Lembrem-se de que a taxa natural de juros é explicitamente definida em relação a um equilíbrio de longo prazo em que todas as variáveis macroeconômicas são constantes ou crescem a uma taxa constante. Se é assim que você concebe o que está fazendo, desenvolvimentos históricos específicos são interessantes no máximo como estudos de caso ou como motivações para o trabalho real, que consistem em modelos formais atemporais.

Mas, se levarmos o dinheiro a sério, não precisaremos postular esse tipo de estrutura profunda subjacente. Se não pensarmos em juros em termos de compensação entre presente e futuro, não precisaremos pensar em receita e produção futuras como estando já determinadas em algum sentido. E, se dinheiro for importante para a atividade de produção, tanto como financiamento para investimento quanto como demanda, não haverá razão para pensar que a evolução real da economia pode ser entendida nos termos de uma tendência de longo prazo determinada por fundamentos.

Nesse caso, o único objeto sensato de investigação são eventos particulares que aconteceram ou podem acontecer. Abordar nosso assunto dessa forma significa trabalhar em termos das variáveis que realmente observamos e medimos. Se estudarmos o PIB, será o PIB como os contadores nacionais realmente o definem e o medem, e não um “produto” abstrato. Essas variáveis geralmente são monetárias.

Isso significa focar em explicações para desenvolvimentos históricos específicos, em vez de modelar o comportamento “da economia” de modo abstrato. Isso significa alçar o trabalho descritivo acima das espécies de questões causais que os economistas geralmente formulam. E isso significa ampliar nossa caixa de ferramentas empíricas para além da econometria.

Pode parecer que essas sugestões metodológicas estejam muito distantes de explicações alternativas da taxa de juros. Mas, à medida que Arjun e eu trabalhamos neste livro, ficamos persuadidos de que as duas coisas estão intimamente relacionadas. Levar o dinheiro a sério e rejeitar ideias convencionais da economia real têm implicações de amplo alcance para o modo como fazemos economia.

Reconhecer que o dinheiro constitui um domínio próprio nos permite ver a atividade produtiva como um processo histórico aberto, em vez de vê-la como um problema estático de alocação. Ao focar no dinheiro, teremos uma visão mais clara do mundo não monetário—e esperamos estar em uma posição melhor para mudá-lo.

Tradução: Nélio Schneider

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